A inteligência artificial e o jornalismo: Regulação, desafios e oportunidades no Brasil
quinta-feira, 22 de maio de 2025
Atualizado em 21 de maio de 2025 11:03
A inteligência artificial deixou de ser apenas uma promessa futurista para transformar radicalmente as diversas facetas da vida cotidiana e profissional. Atualmente, algoritmos influenciam decisões sobre consumo, comportamento social, segurança pública, diagnóstico médico e, cada vez mais, produzem diretamente conteúdo jornalístico. Com essa expansão veloz, surgem desafios críticos relacionados à ética, transparência, responsabilidade e autenticidade das informações geradas por máquinas, levantando a necessidade urgente de uma regulamentação clara e eficaz.
Nesse cenário de transformações, o jornalismo destaca-se como um dos setores mais impactados pela revolução tecnológica proporcionada pela IA. Em março de 2025, o jornal italiano Il Foglio conduziu um experimento inédito ao publicar uma edição especial cuja totalidade do conteúdo foi gerada por inteligência artificial. Essa edição contou com dezenas de textos, incluindo editoriais, todos produzidos com base em comandos previamente definidos pelos editores humanos.
Nesse processo, a intervenção dos jornalistas restringiu-se à elaboração das perguntas e temas norteadores, ficando a cargo da IA a redação completa das matérias. Tal iniciativa gerou discussões intensas na imprensa internacional sobre os limites éticos da automação jornalística e sobre o impacto que esse tipo de tecnologia pode ter na qualidade das informações disseminadas para o público.
No Brasil, embora o uso da IA no jornalismo ainda esteja em fase de experimentação e implementação inicial, já é possível observar iniciativas concretas. Veículos de comunicação tradicionais têm adotado algoritmos para produzir automaticamente notícias curtas, especialmente aquelas relacionadas a resultados financeiros, esportes e atualizações meteorológicas. O potencial dessa tecnologia, entretanto, vai além da simples automação. Há um potencial significativo para que a IA seja empregada em análises de tendências e audiência, otimizando decisões editoriais e estratégias comerciais das redações brasileiras. Apesar disso, o país ainda carece de regulamentação específica que estabeleça parâmetros claros para o uso responsável e ético dessas tecnologias nas atividades jornalísticas.
É nesse contexto de indefinição normativa e acelerado avanço tecnológico que tramita na Câmara dos Deputados o PL 2338/23, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, cujo objetivo é instituir uma regulamentação ampla sobre o uso e desenvolvimento responsável da IA em território nacional. O texto do PL 2338/23 prevê o estabelecimento de um sistema específico para gerir e fiscalizar a aplicação da inteligência artificial no país, sob coordenação da ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que atuaria como órgão regulador central.
De acordo com o projeto, sistemas de IA estariam classificados em diferentes níveis de risco, com normas mais rigorosas para aqueles classificados como de alto risco - principalmente nas áreas de saúde, segurança, justiça e infraestrutura crítica. Apesar da relevância dessa proposta, especialistas apontam que alguns pontos ainda merecem maior detalhamento e discussão pública, especialmente relacionados à aplicação prática das diretrizes sugeridas. No que concerne especificamente ao jornalismo, o PL ainda não estabelece regras detalhadas, o que deixa uma lacuna importante a ser preenchida durante o debate legislativo.
O caso do jornal Il Foglio reforça a importância de se definir urgentemente critérios claros sobre os limites de utilização da IA nas redações brasileiras. O jornalismo, atividade essencial para o funcionamento saudável de uma democracia, requer padrões éticos elevados, responsabilidade editorial e constante compromisso com a verdade e a clareza da informação. A IA, apesar de extremamente útil na produção de conteúdo rápidos e na análise de grandes volumes de dados, não pode substituir aspectos cruciais do jornalismo humano como a capacidade crítica, a análise contextual e a sensibilidade ética.
Uma preocupação central relacionada à utilização da IA no jornalismo é a questão da transparência. É essencial que o público saiba distinguir quando determinado conteúdo foi produzido por máquinas e quando passou por um processo editorial humano. A ausência dessa clareza pode resultar em uma crise de confiança e na proliferação de desinformação. Portanto, regulamentar a identificação clara dos conteúdos gerados automaticamente torna-se uma questão não apenas técnica, mas também ética e social.
Diante desses desafios, o debate em torno do PL 2338/23 precisa ser ampliado, envolvendo diversos setores da sociedade, incluindo profissionais de comunicação, acadêmicos, juristas e representantes da sociedade civil organizada. Apenas uma discussão ampla e inclusiva poderá garantir uma legislação robusta, equilibrada e eficaz, capaz de fomentar a inovação tecnológica sem descuidar dos valores democráticos e éticos que fundamentam o jornalismo profissional.
O futuro da profissão jornalística frente ao avanço da inteligência artificial dependerá essencialmente da capacidade da sociedade brasileira de estabelecer regras claras e responsáveis para o uso dessas tecnologias. O PL 2338/23 pode ser o primeiro passo nesse sentido, mas precisa ser debatido de forma profunda e detalhada, especialmente com relação ao setor jornalístico. A qualidade da informação, a manutenção da confiança pública e a preservação da essência democrática do jornalismo dependem diretamente dessa capacidade regulatória e do compromisso ético das instituições.
Além disso, outro aspecto fundamental para reflexão é a proteção dos direitos autorais relacionados aos conteúdos gerados ou assistidos por IA. Quem será o detentor dos direitos autorais sobre textos integralmente produzidos por algoritmos? Essa é uma questão jurídica ainda aberta e que exige regulação específica para evitar conflitos futuros. Essa ausência regulatória pode prejudicar tanto os veículos jornalísticos quanto os próprios jornalistas, criando um ambiente incerto e potencialmente litigioso.
A experiência italiana mostrou também a necessidade de capacitação dos jornalistas para lidarem com essas novas tecnologias. A formação jornalística tradicional já não é suficiente para enfrentar os desafios impostos pela IA. Portanto, torna-se necessária uma atualização curricular nas universidades e cursos de comunicação, com o objetivo de preparar os futuros profissionais para atuarem com mais segurança e eficácia nesse novo cenário digital.
Outro ponto de atenção é o impacto socioeconômico da adoção maciça da IA no mercado de trabalho jornalístico. Embora a IA possa trazer ganhos de eficiência, ela também poderá provocar uma significativa redução nos postos de trabalho tradicionais, especialmente aqueles relacionados à produção repetitiva e automatizável de conteúdo. É necessário, portanto, discutir políticas públicas de mitigação desses impactos sociais, como programas de capacitação e transição profissional, garantindo que os trabalhadores afetados tenham condições de se adaptar às novas exigências do mercado.
Refletir sobre o papel ético das empresas que desenvolvem tecnologias de IA é imprescindível. Essas organizações também devem ser submetidas a diretrizes claras de responsabilidade social e ética profissional, assegurando que suas tecnologias sejam desenhadas e implementadas respeitando plenamente direitos humanos fundamentais e princípios democráticos.
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IL FOGLIO. Un altro Foglio fatto con intelligenza. Il Foglio, 17 mar. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 16/4/25.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara começa a discutir projeto que regulamenta a inteligência artificial no Brasil. Agência Câmara de Notícias, 26 mar. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16/4/25.