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A lógica de riscos do PL 2.338/23: Convergências com a indústria brasileira em seminário promovido pela CNI

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Atualizado em 20 de agosto de 2025 09:12

O debate em torno do PL de inteligência artificial no Brasil, atualmente PL 2.338/23, revela a busca por um necessário equilíbrio entre inovação tecnológica, proteção de direitos fundamentais e promoção da competitividade econômica. Esse foi o fio condutor do debate promovido em 12/8 pela CNI - Confederação Nacional da Indústria em parceria com a Associação Lawgorithm no seminário Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil - O Caminho Setorial.

O Brasil apresenta um cenário complexo: base industrial heterogênea, forte dependência de políticas públicas de fomento e carências estruturais na formação de mão de obra qualificada, em especial no setor de tecnologias da informação. Nesse contexto, compreender a perspectiva dos agentes industriais é essencial para calibrar uma regulação que seja eficaz sem sufocar o desenvolvimento tecnológico.

O evento reuniu parlamentares, executivos, acadêmicos e representantes do Poder Executivo e demonstrou que há mais consensos do que divergências entre a indústria e defensores do modelo regulatório. As falas de representantes empresariais ilustram pontos centrais de convergência.

Mauro Junior, da ATECH (Grupo EMBRAER), destacou a importância dos instrumentos públicos de financiamento, mencionando o uso de recursos da FINEP para o desenvolvimento de projetos de IA. A experiência reforça que, em setores estratégicos, o investimento estatal é determinante para viabilizar pesquisa e desenvolvimento em escala relevante.

Essa visão conecta-se ao art. 218 da CF/88, que atribui ao Estado a obrigação de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica. O relator do PL na Câmara dos Deputados, deputado Aguinaldo Ribeiro, já manifestou interesse em aprimorar o texto com propostas que definam mecanismos concretos de incentivo à inovação, inclusive de natureza financeira. Uma das ideias debatidas na Comissão Especial de IA da Câmara dos Deputados, em audiência pública de 8/7, foi a criação de critérios de preferência para contratação, por órgãos públicos, de soluções nacionais de IA, mecanismo que funcionaria como fomento indireto.

A redação atual do PL traz uma lógica de riscos. Isso significa que quanto maior o risco, maiores os deveres dos atores envolvidos no ciclo da IA. Esse tornou-se um dos pontos mais sensíveis do PL: o rol de sistemas de "alto risco", cuja aplicação implica obrigações adicionais de governança e conformidade. A redação atual inclui, de forma exemplificativa:

  • Sistemas de IA aplicados à gestão de infraestruturas críticas;
  • IA em dispositivos médicos;
  • Sistemas utilizados em processos de recrutamento e avaliação de desempenho;
  • Algoritmos que impactam direitos fundamentais, como educação, acesso a crédito e benefícios sociais;
  • IA voltada à aplicação da lei e segurança pública.

Diversos representantes da indústria brasileira de IA puderem falar:

Daniel Moraes, da TUPY, apresentou a classificação interna de IA utilizada na empresa, distinguindo entre IA clássica (preditiva), IA embarcada (integrada a máquinas industriais) e IA generativa (pouco usada). A experiência da TUPY mostra que a maior parte das aplicações industriais se concentra em predição e controle operacional, com baixo impacto ético-social.

Alexandre Pagotto, da Bosch, relatou o uso de IA na empresa para monitoramento de legislação tributária, controle de qualidade de produtos, melhoria de segurança e ganhos de eficiência nos processos industriais.

Já Cibele Sinhorini, do Instituto de Pesquisas Eldorado, apresentou casos de IA embarcada em produtos para avaliação de segurança e qualidade, além de sistemas para monitorar o uso de EPIs - Equipamentos de Proteção Individual por colaboradores.

Ora, todas essas utilizações, estariam fora do rol de hipóteses de alto risco de acordo com a redação atual da lei, sendo consideradas baixo risco e, portanto, livres de obrigações de governança adicionais1. As exposições da indústria ao longo do seminário demonstraram que a preocupação de entraves adicionais no desenvolvimento industrial e de sufocamento da inovação por enquadramento de processos nas hipóteses de alto risco não é verificada pelas práticas do setor.

O que se percebe, como apontado pelo deputado Orlando Silva em painel no período da tarde, é que as preocupações da indústria na atual estrutura do rol de alto riscos são oriundas de um descompasso entre as lógicas do sistema legal e produtivo. Isso porque o setor industrial adota como referência normas técnicas especializadas, como as elaboradas pela ISO - International Organization for Standardization, concebidas para estabelecer critérios objetivos, mensuráveis e verificáveis, possibilitando a análise de conformidade de processos e produtos com base em requisitos claros e padronizados. Nessa lógica, a interpretação deve ser mínima, de modo a preservar a comparabilidade, a confiabilidade e a interoperabilidade entre diferentes agentes, sendo eventuais ajustes feitos por meio da atualização periódica desses padrões.

Essa racionalidade contrasta com a dinâmica própria do sistema jurídico brasileiro, cuja dinâmica predominante do ordenamento é de de civil law, em que a lei é a fonte primária do Direito, mas que opera com instrumentos de abertura semântica próprios da common law, permitindo que a norma se adapte a situações concretas e a contextos contemporâneos ou futuros sem a necessidade de alterações legislativas constantes2. A segurança jurídica decorre não apenas da letra da lei, mas também de métodos interpretativos estáveis e do code tecnologias emergentes, como a inteligência artificial, essa distinção se torna particularmente relevante. Normas técnicas podem detalhar, por exemplo, procedimentos para aferir a robustez ou o viés de um sistema, mas não substituem a ponderação normativa necessária para equilibrar inovação, direitos fundamentais e interesses coletivos. 

O desafio regulatório, no contexto das preocupações apresentadas pela indústria, está em articular a precisão e objetividade da norma técnica com a adaptabilidade e legitimidade da norma jurídica, evitando tanto a obsolescência precoce quanto a vagueza excessiva.

Dessa forma, a Comissão Especial da Câmara pode buscar mecanismos dentro do rol de alto risco para garantir ao setor industrial certa segurança quanto à análise de suas IAs no contexto produtivo.

O terceiro ponto de convergência entre o PL e as demandas industriais é a preocupação com a formação profissional. A Bosch, por exemplo, mantém um programa interno de capacitação com alto índice de absorção de formandos, mas enfrenta dificuldades para encontrar profissionais qualificados em áreas de STEM - ciência, tecnologia, engenharia e matemática, bem como com proficiência em inglês. Essa carência também foi mencionada pelo representante da Embraer.

Nesse sentido, dentro da visão de um núcleo da lei que seja propositivo de políticas públicas de forma a vincular o Poder Executivo com diretrizes à longo prazo, há a preocupação de que o papel futuro do Brasil no mercado de novas tecnologias, passa pela necessidade de programas de formação especializados a serem implementados de forma abrangente com currículos que incorporam conhecimentos específicos de matemática, lógica e programação, papel que o PBIA - Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, enquanto política pública, precisa prever, cumprir e garantir. 

O que se notou ao longo do dia de debate na CNI, foi que o PL de inteligência artificial, representa um avanço necessário para posicionar o Brasil no cenário global. O diálogo com a indústria revela que, além da preocupação com a proteção de direitos, há consensos sobre diversos itens da estrutura legal. 

Uma regulação equilibrada, que reconheça as especificidades setoriais e preserve a capacidade de inovação, é condição indispensável para que o país não apenas regule a IA, mas também assume papel de liderança responsável no seu desenvolvimento e aplicação, já que, conforme fala da doutora Laura Schertel, para a sociedade usufruir de forma positiva dos efeitos da econômicos e sociais da inovação, necessitamos de diretrizes e direcionamentos que conciliam a busca pelo lucro e o bem-estar social. 

Afinal, uma IA para o Bem de Todos (conceito trazido pelo PBIA) é interesse comum da indústria e dos cidadãos brasileiros. Resta ao regulador, garantir esse equilíbrio. 

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1 Ressaltamos que, em alguns casos, a depender do contexto das IAs de segurança em infraestruturas críticas, pode haver o enquadramento em alto risco.

2 Junquilho, Tainá; JEVEAUX, Geovany Cardoso. "Tupi, or not Tupi": a necessária e definitiva adaptação da teoria dos precedentes ao brasil. v. 19 n. 38 (2016): REVISTA DA FACULDADE MINEIRA DE DIREITO - PUC MINAS.