A proteção de dados pessoais no mercado de arte brasileiro: Reflexões à luz da LGPD
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
Atualizado em 3 de setembro de 2025 10:35
O mercado da arte é visto com frequência, pela ótica dos veículos de comunicação em massa e do público leigo, como se estivesse permanentemente envolto por uma densa névoa: transações vultuosas em leilões espetaculares, compradores misteriosos, destinações desconhecidas. A realidade, no entanto, tende a ser bastante diferente: as galerias de arte são, em sua ampla maioria, de pequeno ou médio porte; os colecionadores, muitas vezes, possuem orçamentos reduzidos e fazem aquisições pontuais para construir uma coleção particular. Os dados da pesquisa setorial do mercado da arte 2024, elaborada pelo Projeto Latitude1 e expostos na sequência, permitem visualizar esse cenário de maneira mais clara.
Destaca-se o fato de que 58% das galerias de arte do Brasil possuem um valor geral de vendas anual de até R$5 milhões, formadas, em sua maioria, por equipes pequenas, de até 5 colaboradores. Já em relação às obras de arte comercializadas, temos que 59% foram negociadas por até R$50 mil, e apenas 4% se referem a obras com valores acima de R$500 mil reais. Também ajuda a entender o tamanho do mercado o número médio de clientes das galerias analisadas: 48% delas possuem até 60 clientes únicos - sendo que em 20% delas o número é ainda menor: até 30.
Um dos aspectos mais relevantes na comercialização de uma obra de arte é a provenance, ou trajetória, como bem denomina o professor Gustavo Martins de Almeida2, termo que diz respeito a todo o percurso que uma obra de arte percorreu desde o momento de sua concepção pelo artista: quem foram os proprietários, por meio de quais galerias ou casas de leilão ela foi comercializada, por quais valores, em quais museus ela esteve exposta, se passou ou não por restaurações, entre outros registros.
Esses fatores podem ter reflexos diretos no valor de uma obra de arte: aquelas expostas em museus de reputação internacional ou que fizeram parte do acervo de determinado indivíduo certamente serão mais valorizadas no mercado. Ou seja, temos que a provenance é para uma obra de arte o que a matrícula é para um imóvel3. Sob a ótica da LGPD, esta conceituação evidencia o tratamento de múltiplos dados pessoais, frequentemente de vários titulares, com armazenamento por prazo sequer determinável.
É justamente neste ponto que se identifica um dos grandes desafios para o mercado da arte em relação ao cumprimento efetivo das determinações da LGPD: como encontrar o equilíbrio necessário entre a divulgação necessária de determinadas informações das obras de arte e de suas transações, o sigilo muitas vezes exigido (e valorizado) pelos compradores e a proteção de dados pessoais resguardada pela legislação?
Aqui cabe destacar outro ponto importante da pesquisa setorial mencionada previamente: um dos desafios identificados para o setor diz respeito a questões relacionadas à falta de transparência nas práticas comerciais, e, para tentar superar esses desafios, foram sugeridas recomendações referentes a práticas de negociação éticas, com a adoção de códigos de conduta comercial, e à publicação de dados sobre os preços praticados, com a criação de uma base de dados que possa ser alimentada com informações confiáveis sobre transações em leilões.
Tem-se, portanto, um setor que ao tempo em que enxerga na busca por uma maior transparência uma possível solução para as assimetrias detectadas nas práticas do mercado, também precisa encontrar mecanismos que gerem um equilíbrio entre as informações que precisam ser mantidas públicas e aquelas que devem ser objeto de um certo grau de sigilo, em atendimento aos preceitos legais e aos interesses de seus clientes.
O Regulamento para Agentes de Pequeno Porte, aprovado pela Resolução CD/ANPD nº 2, de 27 de janeiro de 2022, publicado pela ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados4, delineia uma via simplificada de adequação à LGPD, considerando-se a receita bruta anual máxima de R$4,8 milhões, conforme estipula o art. 2º, I do regulamento e o art. 3º da LC 123/06, na qual se encaixa grande parte das galerias brasileiras.
Este regulamento teve como objetivo proporcionar às empresas de pequeno porte maior facilidade de adequação à lei, adaptando e, em alguns casos, dispensando certos procedimentos, levando em consideração a realidade dessas empresas. Destaca-se a possibilidade de apresentar um registro simplificado das operações de tratamento de dados pessoais com base em modelo apresentado pela própria Autoridade5, cumprindo assim de maneira facilitada o requisito do art. 9º do regulamento. Há também a dispensa de apresentação de um encarregado pelo tratamento de dados pessoais (art. 11), trazendo, com isso, uma menor onerosidade às galerias.
Não obstante tais flexibilizações, as empresas do segmento não podem deixar de adotar medidas que garantam a segurança dos dados pessoais coletados, ainda que possam fazê-lo por meio de uma política simplificada de segurança da informação, conforme preceitua o art. 13 do regulamento.
É necessário atentar para o fato de que o mercado de obras de arte também precisa cumprir com uma série de requisitos de transparência presentes na legislação nacional e internacional, principalmente aquelas relacionadas ao combate à lavagem de dinheiro. No Brasil temos a portaria 396/16 do Iphan e o CNART - Cadastro Nacional de Negociantes de Obras de Arte e Antiguidades, que, regulamentando o disposto nos arts. 9º a 11º da lei 9.613/1998 (lei da lavagem de dinheiro), aumentam a publicidade no comércio de obras de arte e antiguidades, ao tempo em que também obrigam os comerciantes de obras de arte a "comunicar à Unidade de Inteligência Financeira independentemente de análise ou de qualquer outra consideração, operação ou conjunto de operações de um mesmo cliente que envolve o pagamento ou recebimento em espécie de valor igual ou superior a R$10 mil"6.
Já na União Europeia estão em vigor as AMLDs - Diretivas Antilavagem de Dinheiro, atualmente em sua sexta geração, que impõe aos comerciantes de obras de arte uma série de obrigações, como, por exemplo, que transações acima de ?10 mil obedeçam às regulações de combate à lavagem de dinheiro. Ponto ainda mais importante diz respeito às políticas de KYC - Know Your Client que devem ser adotadas, incumbindo aos participantes do mercado de arte a obrigação de identificar o beneficiário final, avaliar a finalidade da relação negocial e efetuar o seu monitoramento de forma contínua7.
Depreende-se dos fatos apresentados que há certo tratamento de dados pessoais considerado obrigatório para o mercado da arte: o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador, previsto no art. 7º, II da LGPD, justamente em razão do atendimento aos requisitos estabelecidos na legislação de combate aos crimes de lavagem.
Em relação à provenance também haverá o tratamento de dados pessoais, e a depender da obra em questão, é possível que diga respeito a um ou inúmeros titulares de dados, e que abranja um prazo de armazenamento potencialmente longo, tendo em vista que se trata de um documento caracterizado quase que como um registro histórico. Considere, por exemplo, uma obra de arte de grande relevância dentro do patrimônio artístico e cultural nacional e que, porventura, esteja sendo comercializada no mercado privado. É possível, neste caso, que haja documentação contendo dados de titulares que perpassam séculos.
No que se refere ao período de retenção dos dados pessoais previsto no art. 16 da LGPD, encontra-se também, no inciso I, a possibilidade de que os dados sejam mantidos para além do fim do seu tratamento para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória. Tal previsão possivelmente se adequaria ao estabelecido no art. 3º da IN 01/07 do Iphan8, que determina o registro no CNART de determinados tipos de objetos comercializados por negociantes de obras de arte e antiguidades.
Concernente aos objetos que não se enquadram no referido dispositivo legal, há de se considerar a hipótese de que uma vez que a provenance está vinculada ao objeto em si, sendo em muitos casos os registros realizados fisicamente na própria peça, como selos e carimbos de galerias e museus, brasões familiares, registros de restauração, etc.9, a partir do momento em que a obra é comercializada, finda também o tratamento de dados pessoais realizado pelo comerciante relacionados especificamente à provenance, cabendo a ele realizar a exclusão dos dados eventualmente armazenados, conforme preceitua o art. 15 da LGPD, garantir que toda a documentação anexa à obra seja encaminhada corretamente ao comprador, e proceder somente com o tratamento dos dados pessoais para os quais haja outra finalidade e hipótese legal específica.
Há de se atentar que poderá haver, em alguns casos, a transferência internacional de dados, principalmente quando relacionado ao envio de obras de arte para comercialização no exterior ou a utilização de sistemas e/ou bancos de dados de empresas estrangeiras e hospedadas no exterior. Deste modo, se faz fundamental que sejam verificados e cumpridos os requisitos legais pertinentes à esta matéria, estabelecidos no capítulo V da LGPD, bem como na resolução CD/ANPD 19/24, que regulamenta os artigos da lei referentes à transferência internacional.
Não obstante, o tratamento de dados pessoais dos titulares por parte das galerias de arte também abarcará, possivelmente, outras finalidades e hipóteses legais, como nos casos de coleta de dados para alimentação de banco de dados de clientes e fornecedores, tratamento de dados para fins de comunicação e marketing, entre outros.
Novas tecnologias surgem como alternativa para modernizar o mercado, possibilitando aos agentes do setor harmonizar o cumprimento da legislação de proteção de dados com as obrigações de transparência perante autoridades antilavagem e a satisfação das expectativas de seus clientes.
A título exemplificativo, a utilização de blockchain para a manutenção dos registros de provenance parece oferecer um bom equilíbrio entre transparência e privacidade, permitindo também sua aplicação transfronteiriça, aspecto primordial quando o mercado lida tanto com transações, quanto com leis internacionais.
Em síntese, a tecnologia blockchain constitui um livro-razão digital, descentralizado e imutável. Cada transação ou evento na história de uma obra é registrado em um "bloco" de informação digital, que é criptografado e encadeado cronologicamente aos blocos anteriores, formando uma corrente de dados permanente e inviolável. Esta aplicação tecnológica permite criar um histórico digital de titularidade e autenticidade, rastreável e auditável, mitigando significativamente os riscos de fraudes e falsificações.
Ao mesmo tempo, por se tratar de uso ainda pouco difundido para uma tecnologia desenvolvida apenas nos últimos anos, existem questões que devem ser debatidas, técnica e juridicamente, com maior profundidade, como o direito ao esquecimento ou à correção de dados (art. 18, III da LGPD), pontos críticos em uma tecnologia que oferece registros, em tese, imutáveis.
Importante dizer que a implementação de novas tecnologias que possibilitem a modernização do mercado da arte, atendendo a leis e regulamentos, também vai ao encontro de outro desafio do mercado apontado na pesquisa setorial: a ampliação do uso de tecnologias digitais. Segundo o relatório, "embora indispensáveis no cenário contemporâneo, ainda encontram resistência e limitações estruturais no setor. Essas barreiras comprometem o potencial de modernização e expansão do mercado, impactando diretamente a competitividade de galerias e artistas no cenário global"10.
No contexto em que o mercado reconhece, dentre seus desafios atuais, a necessidade de maior transparência e a modernização mediante a ampliação do uso de novas tecnologias, cria-se um ambiente propício para que, na busca por soluções para tais desafios, sejam identificados e aproveitados os pontos de convergência que contribuam também com a adequação do mercado à LGPD.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Vide nota 2.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Turner, Regulating the "Unregulated": The European Union and United Kingdom Have Put in Place Anti-Money Laundering Directives for the Art Market. Should the United States Follow?
8 Disponível aqui.
9 Vide. Disponível aqui.
10 Vide nota 1.