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Cotas trans no ensino superior: Visão parcial, conclusão distorcida

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Atualizado em 26 de fevereiro de 2025 09:46

Há poucos dias fui surpreendido com uma mensagem de um colega professor que dava conta de que um texto por mim publicado havia sido citado como referência em uma publicação numa rede social por um colega. A postagem aludia ao editorial do volume 4, número 2 da Revista Direito e Sexualidade cujo título é "A importância da verificação dos dados e o risco para a credibilidade das pautas LGBTIAPN+"1.

O conteúdo do texto da postagem realizada trazia, em linhas gerais, que seu autor estava convencido da necessidade do Brasil "intervir no processo social, corrigindo distorções e reparando injustiças, tendo a promoção da igualdade como horizonte ", o que haveria de ser realizado por meio de políticas públicas. Na sequência, se coloca contra a política pública de cotas direcionadas à população trans nas universidades públicas brasileiras, apresentando como elementos contrários a tal a ação afirmativa as seguintes alegações:

  1. O orçamento não é infinito e, portanto, todo o direito adquirido por um grupo significaria, ato contínuo, a redução de direitos para outros grupos;
  2. A população transgênero seria a única minoria reconhecida como tal ante a autoidentificação;
  3. Tal situação colocaria aqueles que disputam uma vaga nas universidades públicas em uma luta desigual, vez que o "orçamento não é infinito, vagas não são infinitas e todo direito adquirido na luta política colide com interesses de outros grupos";
  4. Os pleitos formulados pelo "movimento trans ativista" estariam baseados na afirmação de que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo e de que a expectativa de vida dessa população no Brasil seria de 35 anos, dados estes desprovidos de qualquer tipo de verificação independente, asseverando ainda a inexistência de "estudos sólidos, oficiais, capazes de revelar a real situação da população trans no Brasil";
  5. A fragilidade de tais dados já teria sido apontada em inúmeras pesquisas, como no nosso texto publicado na Revista Direito e Sexualidade.

A conclusão dos autores do texto/postagem é de que: "hoje, o sistema brasileiro de universidades públicas está colocando em prática uma linha de política pública que não está devidamente sustentada em estudos especializados. Isso significa uso inadequado de dinheiro público".

Para não mergulhar no raivoso mar de ataques e ofensas que caracteriza as redes sociais nos dias atuais, simplesmente comentei a postagem me apresentando como autor do texto indicado e sugerindo o acesso a outros dados a fim de se permitir um perfeito entendimento do tema, indicando também a presente coluna como um repositório de informações básicas capazes de melhor fundamentar a discussão sobre o acesso à educação da população transgênero.

Com o escopo de facilitar a compreensão de forma geral a quem se interessar sobre esse assunto, passo a tecer breves considerações acerca de dados importantes que podem viabilizar uma apreciação abalizada do problema como um todo.

O primeiro aspecto que considero ser pertinente que seja trazido, reside no fato específico do texto do editorial da Revista Direito e Sexualidade ter sido utilizado como fundamentação para as manifestações apresentadas na referida postagem. Quando da elaboração do texto estava consciente desse risco de que o seu conteúdo poderia vir a ser utilizado com o instrumento para tentar minar os alicerces que sustentam as discussões relacionadas aos direitos das pessoas transgênero, tanto que essa ideia está presente no conteúdo daquele editorial.

O texto partia exatamente da premissa de que é indispensável que as informações técnicas apresentadas para lastrear todo qualquer pleito formulado se mostrem corretas e sólidas, razão pela qual o editorial indicava expressamente a necessidade de uma perfeita compreensão da mortalidade que atinge as pessoas transgênero em nossa sociedade.

Um exame mais detalhado do tema é apresentado no Manual dos Direitos Transgênero recentemente publicado2, mas as ideias essenciais se fazem presentes no referido editorial que, de forma sintética, expõe que, em verdade, não existem no Brasil dados que permitam afirmar que a expectativa de vida de uma pessoa trans seja de apenas 35 anos.

Apesar de se tratar de uma afirmação reiteradamente utilizada por aqueles que se dedicam aos estudos sobre os direitos das pessoas transgênero, tão informação efetivamente não encontra respaldo científico, fato este que se mostra presente até mesmo em trabalhos produzidos e disponibilizados por associações especializadas na defesa dos direitos transgênero. A Rede Trans Brasil, expressamente relata que 35 anos não revelam "uma expectativa de vida, mas uma média da idade das pessoas trans vitimadas" por homicídio3.

Aparentemente a grande novidade trazida no editorial é que tal informação estava agora consignada em um estudo científico, o que, aparentemente, conferiria maior solidez a ela segundo os autores da postagem.

Ainda que a assertiva quanto a expectativa de vida de uma pessoa transgênero seja de 35 anos não encontre respaldo técnico (até mesmo indicamos a provável origem desse equívoco no texto que consta da Revista Direito e Sexualidade), não se pode questionar o número alarmante de pessoas transgênero que são vítimas de homicídio em território nacional.

Mesmo que não se tenha dados oficiais, o mais provável é que o número de mortes de pessoas transgênero em todo o Brasil é maior do que aquele constatado, como também expressamos em nosso Manual dos Direitos Transgênero, fruto da subnotificação reconhecida internacionalmente4.

Nesse contexto, o fato interessante a ser considerado é que exatamente um dos pontos suscitados pela tal postagem para demonstrar a falta de solidez dos dados apresentados é representativo do nível de segregação enfrentado pelas pessoas transgênero em nossa sociedade, já que o Estado brasileiro quase nada faz em favor desse grupo vulnerabilizado em razão da sexualidade.

Se o Poder Público apresenta objeções para a inclusão do dado quanto à identidade de gênero no censo populacional, premissa básica para verificação da expectativa de vida de um grupo populacional, fica inviabilizado, por uma escolha do Estado, a coleta de informações imprescindíveis. Basta se considerar que os dados estatísticos coletados com base em boletins de ocorrência não permitem o acesso à informação da identidade de gênero da vítima de homicídio simplesmente porque não há no documento oficial um espaço para se indicar tal dado.

O Estado brasileiro entende, portanto, não ser pertinente aferir qual é o real número de pessoas que apresentam tal identidade de gênero em todo Brasil, invisibilizando a existência desse contingente de pessoas para fins oficiais5.

Impossível também se pensar na possibilidade da apresentação de dados oficiais com relação às mortes de pessoas transgênero em todo Brasil se pensarmos em todo estigma que recai sobre essa população, a qual, muitas vezes, sequer tem seus direitos mais elementares conhecidos no momento da morte e do sepultamento6.

A grande maioria dos dados utilizados nos estudos sobre identidade de gênero é coletada pela sociedade civil ou por meio de informações obtidas pela mídia, exatamente porque os dados oficiais não são coletados. Para a oferta de proteção e garantia de direitos essas pessoas não existem, mas para se exigir o pagamento de impostos, ou cumprimento de deveres, ou para segrega-las, elas são facilmente localizadas.

Partindo de uma premissa elementar, não nos parece ser coerente acreditar que por não haver dados oficiais a situação de fato não ocorreu. A falta de tais dados é a manifesta expressão da leniência do Poder Público com relação a essa minoria vulnerabilizada em razão de um elemento de sua sexualidade7.

Superado esse ponto inicial é necessário se analisar o aspecto mais central da discussão posta na referida postagem: a utilização de dinheiro público para beneficiar política de inclusão de pessoas transgênero no ensino superior.

Antes mesmo de discutir a questão de fundo é imperioso se deixar claro que a quantidade de pessoas trans que efetivamente acessam o ensino superior é ínfimo8. Em que pese, mais uma vez, a ausência de dados oficiais sobre o tema, não é necessário que concordemos com os estudos estatísticos que mostram tal realidade.

Já que muitos gostam do senso comum como um parâmetro para chegar a conclusões técnicas, convido a quem estiver lendo essa coluna a buscar na memória a quantidade de colegas trans que estiveram presentes em suas salas de aula durante toda a sua vida de estudante, desde o ensino fundamental até o ensino superior.

Inúmeros estudos realizados tanto no Brasil quanto no exterior revelam que um dos maiores índices de evasão escolar está associado à identidade de gênero, de forma que, por lógica, aquele que não consegue se manter nos extratos mais elementares da educação jamais terá condições de atingir o nível superior9.

Outra questão que precisa ser esclarecida é o sistema de cotas estabelecido para a graduação e pós-graduação nas universidades públicas brasileiras visando favorecer a inclusão de pessoas transgênero. Essas vagas são, de regra, supranumerárias, o que significa dizer que trata-se de uma vaga extra, que não entra na disputa dos demais candidatos que participam do processo seletivo. Não há, portanto, disputa sobre essa vaga, pois ninguém é privado do poder de acessá-la por ter ela sido direcionada a uma pessoa transgênero.

É uma vaga a mais, ofertada apenas para pessoas transgênero, da mesma forma que ocorre, por exemplo, com vagas direcionadas a pessoas com deficiência ou servidores técnicos.

Assim a preocupação expressada de que a disputa não seria justa fica prontamente afastada.

A alegação de que as vagas não são infinitas é um fato, contudo não se mostra como relevante para a presente discussão. A quantidade de pessoas que acorrem a tais vagas é tão pequeno que não é capaz de gerar nem um impacto orçamentário, nem um problema de alocação desse aluno. No contingente de alunos de uma universidade, os que procuram tais vagas são tão poucos que é viável a criação de uma vaga excepcional para atender a esse estudante.

Por fim, há uma questão que parece ser um mantra quando das discussões sobre identidade de gênero: a condição de pessoa transgênero é reconhecida mediante a autodeclaração, sem a possibilidade de "bancas de heteroidentificação e perícias médicas", o que conferiria às pessoas transgênero "a prerrogativa de tão somente se identificar como tal" para acessar os direitos que lhe são franqueados.

É uma visão extremamente superficial do tema, repleta de um dos inúmeros mecanismos de terror utilizados com a clara finalidade de tentar privar as minorias sexuais de seus parcos direitos10.

Tal discussão apresenta um caráter bastante delicado de tentar, de um lado, desacreditar aquilo que caracteriza a identidade de gênero, bem como de tentar forçar uma retomada da discussão da patologização da condição apresentada pelas pessoas transgênero. A concepção do que venha a ser a identidade de gênero está atrelada à percepção da pessoa com relação ao seu gênero, o que é algo personalíssimo e que não é passível de verificação externa.

A questão não é se discutir se a autodeclaração é válida ou não, mas sim se eventualmente ocorreu alguma conduta fraudulenta praticada por quem alegou ser uma pessoa transgênero e efetivamente não é. Bastante inocente se acreditar que a existência de uma eventual banca de heteroidentificação ou mesmo a possibilidade da apresentação de laudos médicos seria capaz de impedir qualquer tipo de fraude, haja vista as situações excepcionais que são relatadas em todo o sistema de cotas.

Em síntese, nos parece que, na prática, a quantidade de pessoas transgênero que efetivamente conseguem acessar tais cotas não é o bastante para fazer com que a preocupação demonstrada na postagem mencionada se mostre efetiva, seja porque aqueles que conseguem chegar ao nível superior é bastante reduzido, seja porque tais vagas, de regras, são supranumerárias.

Talvez muito mais pertinente que a discussão fosse do porquê as pequenas conquistas seguidas pelas pessoas transgênero geram tamanha repercussão e atingem de forma tão direta à fragilidade daqueles que detém os privilégios11, levando-os a uma cruzada contra quem apenas busca sobreviver em uma sociedade segregatória que não quer nem mesmo lhes garantir a possibilidade de acesso aos direitos fundamentais que são conferidos a toda e qualquer pessoa.

O inconformismo apresentado não recai sobre os motivos pelos quais essas pessoas são vítimas de homicídios violentos ou apresentam um elevado índice de tentativa de suicídio.

O questionamento que se faz não é do motivo pelo qual tão poucas pessoas transgênero estão presentes no ensino superior ou na pós-graduação.

A dúvida que é levantada é sobre essas pessoas (que são muito poucas na prática) terem acesso ao ensino superior, sem sequer fazer uma pesquisa mais aprofundada dos elementos que permeiam tal discussão, suscitando apenas um dado relacionado ao assunto. Cita que estudos reconhecem erros nos dados mas não explica o contexto ou as conclusões do que deles constam.

Convenientemente ignora o conteúdo do texto que é mencionado, sem explicitar que nele há a recomendação para que se tenha cuidado com os dados, escolhendo não aplicar tudo aquilo que aquele editorial indica. Faz uma apresentação enviesada para tentar fustigar os argumentos que lastreiam a necessidade da implementação de políticas públicas de inclusão.

A estratégia de usar apenas de forma parcial informações técnicas com objetivo de tentar retirar os poucos acessos conquistados por grupos minoritários é atitude preocupante e tem o poder de ludibriar aqueles menos versados no tema ou quem está disposto a acreditar em teorias da conspiração.

De toda sorte, a conclusão que podemos chegar é que uma visão parcial gera o risco de conclusões distorcidas.

Com todas as possibilidades que a internet nos oferece atualmente é primordial, antes de confiar em afirmações apresentadas de forma genérica, se buscar o conhecimento técnico para não correr o risco de incidir em equívocos que podem tornar ainda mais difícil a vida daqueles que apenas sobrevivem em razão de toda a segregação, discriminação e estigma que nossa sociedade impõe.

A não ser que seu objetivo seja apenas desinformar, criar bait ou atender àquilo que seus seguidores querem que você diga.



1 Disponível aqui.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 36.

3 ARAÚJO, Tathiane Aquino; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim; CABRAL, Euclides Afonso. Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil em 2022. Série Publicações Rede Trans Brasil. 7. ed. Aracaju: Rede Trans Brasil; Uberlândia: IBTE, 2023. p. 19.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 35-50.

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Da invisibilidade à exposição indevida: as agruras que seguem permeando a vida das pessoas trans no Brasil. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v. 3, 2, p. I - IV, 2022.

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; D'ALBUQUERQUE, Teila Rocha Lins. Responsabilidade civil ante a violação póstuma da identidade de gênero. In: CUNHA, Leandro Reinaldo da; MATOS, Ana Carla Harmatiuk; ALMEIDA, Vitor. Responsabilidade civil, gênero e sexualidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024.

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 187.

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 187.

10 GONÇALVES JÚNIOR, Sara Wagner Pimenta. A travesti, o vaticano e a sala de aula. SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos - UFAM, ano 19, n. 1, ago.-dez. 2019. p. 118-121.

11 Disponível aqui.