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Direito e Sexualidade

Discussões da sexualidade como parâmetro relevante para o Direito.

Leandro Reinaldo da Cunha
Os dias atuais estão repletos de algumas certezas coletivas acerca de temas técnicos que se afiguram como realmente preocupantes, especialmente ao se considerar aquelas que tangenciam questões de fundo jurídico. Em larga medida nos deparamos com situações nas quais independentemente da formação da pessoa ela se sente à vontade para se manifestar a plenos pulmões, como se fosse uma grande especialista no tema. Muitas dessas convicções expressadas com ares de indivíduo dotado de enorme expertise são decorrentes de inúmeros elementos, que vão de um "ouvi dizer" a um "li em algum lugar", passando por um "vi um vídeo" ou "recebi no zap". E o mais complexo é que muitas vezes essas informações acabam por revestir-se de tamanha força que costumam sobrepor-se ao conhecimento calcado em efetivos estudos. Não são poucas as circunstâncias nas quais o conhecimento popular adquirido das formas mais diversas carece de sustentação técnica. Contudo na atual coluna me debruçarei sobre a ocorrência dessa perspectiva em uma seara bastante específica, associada à sexualidade, sob o viés da reprodução humana. Uma das hipóteses nas quais hoje se verifica uma das maiores lacunas do nosso ordenamento jurídico, claro reflexo da leniência legislativa1 que tanto mal faz ao nosso Estado Democrático de Direito, expressão preocupante da sua face esquizofrênica2, reside nas discussões sobre a reprodução humana fora dos moldes tidos por tradicionais. Trata-se de um descompasso aterrador entre a realidade social e científica face à legislação positivada3, numa assincronia que remete a uma constatação que vai além da visão de que "o direito encontra-se sempre em mora com os fatos, desajustado, revelando-se como uma superestrutura que não acompanha as transformações que ocorrem na infraestrutura da sociedade"4. Como trarei no decorrer do presente texto, estão longe de serem novidades situações vinculadas à reprodução humana, as quais têm recebido grande atenção das pessoas e que têm cada vez mais chegado ao Poder Judiciário para que ele equacione as celeumas que estão se afigurando. O que nos impõe questionar as razões pelas quais ainda não temos uma legislação minimamente estabelecida para resolver o tema. Basta considerar que a fertilização in vitro de seres humanos remonta ao final dos anos 1970, com o primeiro "bebê de proveta" nascido no Reino Unido, ou mesmo a chamada "produção independente", forma como era denominada a escolha de uma mulher por ter um filho sem a participação daquele que forneceria seu material genético ante a uma relação sexual (sem que se estabelecesse qualquer relação futura dessa mulher ou da criança com o sujeito que com ela se relacionou)5, em contornos próximos ao que se tem atualmente na chamada inseminação caseira natural6. Nessa mesma seara surge a inseminação caseira artificial, entendida como aquela situação em que há a oferta de esperma para uma mulher que o inoculará em seu corpo, usualmente com uma seringa, sem qualquer intercurso sexual7. Há ainda a Gestação em Substituição8 (ou de substituição, ou cessão temporária de útero), chamada durante muito tempo de "barriga de aluguel", tendo até sido pano de fundo de uma telenovela de grande audiência nos anos 1980, que caracteriza-se pela oferta de uma pessoa para gestar o filho de outrem9. São, assim, questões que se fazem presentes já de muitas décadas em nossa sociedade e que seguem amplamente ignoradas pelo nosso ordenamento jurídico, fato que culmina numa série de manifestações que conduzem a que se estabeleçam "certezas" desprovidas de sustentação. Para ser honesto, há de se mencionar que o CC traz parcas considerações sobre a presunção de paternidade em sede das nominadas inseminação homóloga e heteróloga, mas restringe-se a esse parâmetro (art. 1.597). A mim, o que faz com que se instale um enorme incômodo na apreciação desse tema está na afirmação de que, apesar de toda a carência de previsão legislativa, são estabelecidos mitos lastreados em convicções desprovidas de lastro e que acabam reverberando de tal forma que são "replicados pelas pessoas leigas, pela mídia, e até mesmo por iniciados no mundo jurídico como se fosse a mais absoluta verdade"10. Nesse contexto existe um dogma, sustentado de forma feroz por alguns, de que as atividades vinculadas ao que se tem denominado de reprodução humana assistida não admitem qualquer sorte de remuneração, podendo apenas se dar de forma altruística. Contudo essa "verdade" não se encontra descrita, para o espanto de muitos, em nossa legislação. E o primeiro aspecto que refuta tal ideia está no fato de que para algumas pessoas a reprodução humana assistida configura-se como uma atividade altamente lucrativa. Basta considerar que as clínicas e os médicos podem ser remunerados (e bastante) ao desempenharem tais atividades. A restrição que se sustenta existir recai apenas sobre aqueles que se propõem a ofertar os "insumos" necessários para a efetivação do desejo de procriar. Esse é o ponto que nos toca no presente texto. Ao se acessar o conteúdo da legislação tradicionalmente suscitada para o tema, mais especificamente, a Constituição Federal, a lei de doação de órgãos e tecidos (lei 9.434/1997), lei de doação de sangue (lei 10.205/01) e a lei de biossegurança (lei 11.105/05), não se encontra qualquer menção à doação de gametas, restringindo a remuneração, tampouco previsões que tangenciem a oferta de útero para a gestação de prole alheia. Reitero, NADA HÁ EM TAIS LEIS SOBRE DOAÇÃO DE GAMETAS OU GESTAÇÃO. Mas, se assim o é, de onde emanam as assertivas desse jaez? A resposta simples é que elas decorrem de uma interpretação extensiva do que efetivamente consta da Constituição Federal, da lei de doação de órgãos e tecidos (lei 9.434/1997), da lei de doação de sangue (lei 10.205/01) e da lei de biossegurança (lei 11.105/05), nas quais se encontra a vedação de comercialização de certos bens ou atos. Ocorre, contudo, que é elementar em nosso sistema jurídico afirmar que não se admite uma interpretação extensiva ou ampliativa que importe em restrição de direitos. Impor uma norma restritiva de direitos a um caso em que a lei não mencionou expressamente é inadmissível, contudo muitos ignoram essa premissa ao discorrer sobre a oferta de gametas ou de útero para gestação. A fim de evidenciar a afirmação de que a legislação nacional não trata do objeto da presente coluna, cabe discorrer brevemente sobre o que há positivado. Uma apreciação do conteúdo do art. 199 da Constituição Federal, mais especificamente o disposto no § 4º, revela que há sim a vedação de qualquer tipo de comercialização de "remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas". Porém quando pensamos em gametas para fins de procriação, especialmente no caso de espermatozoides, não há que se falar em "remoção" como indicado no texto constitucional. Aplica-se ainda menos para os casos de gestação em substituição, inseminação caseira artificial ou natural. Talvez pudéssemos manter a possibilidade de uma restrição em sede de oferta de óvulos, a qual depende de uma conduta médica para que se efetive a sua coleta. Contudo ao se continuar na apreciação do texto constitucional se verifica que há uma complementação, asseverando que a restrição posta está vinculada ao ato praticado para fins de transplante, pesquisa ou tratamento11. Ainda pensando nos óvulos, é possível se vislumbrar sua relação com a expressão tratamento, que pode ser entendida como uma série de condutas com o objetivo de curar uma enfermidade ou condição médica. Caso se entenda que a reprodução humana assistida consiste em um tratamento, o próximo passo é analisar se é o óvulo que é usado nesse tratamento para superar aquela questão de infertilidade, já que não mais é o óvulo que retorna ao corpo da mulher, mas sim um embrião. Se, ainda assim se continuar entendendo pela permanência da vedação constitucional, passa a ser necessária a compreensão da dimensão jurídica da expressão comercialização que é usada no texto legal. Uma das acepções técnicas mais sólidas para o termo o vincula a uma atuação que tem como partes empresas e consumidores, com um viés de atividade reiterada e economicamente estruturada, o que é muito mais do que o mero ato de realizar um contrato oneroso para a transferência da propriedade do gameta. Comercialização, em sentido técnico, pressupõe, portanto, habitualidade e objetivo de fazer dessa conduta uma forma de atividade empresarial, o que não se coaduna com a situação aqui posta. A mim aparenta bastante evidente que se o legislador constituinte tivesse o intuito de impedir o mero ato de transacionar tais bens de forma onerosa teria utilizado a expressão "compra e venda" no texto legal, como o faz em inúmeros momentos. Note que não há a imposição de que tais atos sejam gratuitos ou não onerosos, mas sim que não se caracterize a comercialização. A ampliação da concepção do que há de ser entendido nessa vedação à comercialização pode dar azo a construções totalmente equivocadas em que não se poderia, no caso da gestação em substituição, por exemplo,  estabelecer que os contratantes venham a disponibilizar à gestante meios melhores para que tenha um período de gravidez com mais infraestrutura e condições de saúde que viabilizem que a criança nasça saudável, como a oferta de alimentos e um pré-natal de qualidade12. Superada a previsão constitucional nos cabe apreciar o conteúdo dos dispositivos infraconstitucionais. Evidentemente, essa questão passa ao largo lei de doação de órgãos e tecidos (lei 9.434/1997), já que ela versa especificamente sobre órgãos e tecidos, além de expressamente asseverar no parágrafo único do art. 1º, que "para os efeitos desta lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo"13. Assim, fica inquestionável que o disposto na referida lei não incide sobre o objeto da discussão aqui posta. Outra previsão legal que versa sobre tema próximo é a lei de doação de sangue (lei 10.205/01), que expressamente assevera, no art. 14, que esta há de ser voluntária e não remunerada14. Contudo note-se que o estabelecimento de qualquer relação entre a doação de material genético para reprodução ou oferta de útero para gestação com a doação de sangue não se faz coerente, haja vista que o objeto da liberalidade lá previsto tem por fim salvar a vida de alguém, o que é deveras distinto dos casos em que se discute a reprodução humana assistida. E, por óbvio, sangue é totalmente distinto de gametas e não tem qualquer conexão com a ideia de oferta de útero para a gestação de prole alheia. A lei de biossegurança (lei 11.105/05), por sua vez, apenas menciona a figura dos embriões (e não do espermatozoide ou óvulo, portanto) a serem utilizados para fins de pesquisa e terapia, indicando expressamente em seus incisos que não se tratam de embriões que ainda possam ser implantados15. Assim, reiterando o que já foi mencionado, uma interpretação extensiva ou ampliativa, com o fim de vedar a possibilidade de recebimento de uma contraprestação pela oferta de gametas ou mesmo pela cessão do útero para uma gestação acaba configurando uma exegese que restringe direitos, sem qualquer base legislativa, em manifesta afronta aos preceitos hermenêuticos16. Tenho plena convicção que nesse ponto muitos daqueles que até aqui chegaram estão a bradar internamente que estou cometendo um equívoco crasso, já que há previsão expressa em resolução elaborada pelo CFM - Conselho Federal de Medicina proibindo o pagamento ou a cobrança para a doação de material genético ou mesmo para a gestação em substituição. Tal consideração emana da resolução 2.320/22, na qual há a determinação de que a doação de gametas (espermatozoide e óvulos) "não pode ter caráter lucrativo ou comercial" (IV, 1), contendo o mesmo texto para o caso de gestação em substituição (VII, 2). Importante notar, de antemão, que, da mesma forma indicada anteriormente, as expressões usadas pelo CFM - Conselho Federal de Medicina não estão a negar a possibilidade de recebimento dinheiro ou benefícios pela oferta dos gametas ou cessão do útero, mas sim que essa seja lucrativa ou comercial, o que é bastante distinto. Contudo é de se notar que o negócio jurídico por meio do qual alguém transfere a propriedade de seu espermatozoide ou óvulo a outrem é um contrato entre particulares, sem a intervenção de profissional da área médica como parte. Da mesma maneira que a avença na qual alguém se predispõe a gestar o filho alheio também não tem uma pessoa da área da medicina como parte. O contrato firmado passa longe da medicina, de sorte que não parece ser sequer coerente se conferir qualquer tipo de valia a restrições impostas por um conselho de classe a tais temas. O CFM - Conselho Federal de Medicina, não se pode negar, tem a prerrogativa de estabelecer normas. Contudo tais regramentos apenas se impõem a quem está vinculado àquela entidade de classe. A capacidade legislativa desse órgão restringe-se exclusivamente aos profissionais da área médica, jamais podendo se conceber a ideia de que possa estabelecer normativas que extrapolem esse universo. Assim, as manifestações do CFM - Conselho Federal de Medicina se direcionam apenas aos profissionais a ele vinculado, sem qualquer força cogente à população em geral, sendo ainda mais teratológico se imaginar que qualquer de suas normativas tenham que ser seguidas pelas pessoas de forma ampla17. Da mesma maneira que se mostraria absolutamente absurdo que a população geral tivesse que seguir os parâmetros estabelecidos pela OAB ou pelo Confea - Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, não há qualquer razão a sustentar que regras do CFM - Conselho Federal de Medicina sejam impostas erga omnes. Considere qual seria nossa reação se o CRECI - Conselho Regional de Corretores de Imóveis determinasse, em suas normas, que os contratos de compra e venda obrigatoriamente precisassem da participação de um corretor de imóveis e que estes teriam o poder de veto quanto a realização da avença. Risível, não? Preocupante que muitos sigam dando aos regramentos do CFM - Conselho Federal de Medicina uma força que não encontra respaldo. Aos versados nas letras jurídicas, provoco: norma elaborada por conselho de classe está entre as fontes do direito, com força cogente? Não há aqui o intuito de banalizar ou reduzir a relevância da situação, mas é premente que se tenha uma percepção crítica, sem se assumir que se trata de questão já solucionada, como se positivada em nosso ordenamento jurídico. A discussão é importante e pode ser estabelecida no universo da bioética, e também sob o prisma moral, como faz Michael Sandel na obra "O Que o Dinheiro não Compra", no capítulo destinado a "autorizações de procriação negociáveis"18. Nesse âmbito é essencial que se assevere que o objetivo de se refutar a mercantilização do corpo ante a restrição de remuneração não confere nenhum benefício a quem oferta os gametas ou cede o útero, "constituindo-se apenas como uma regra que sob os auspícios de tentar resguardar uma pessoa tida como vulnerável apenas traria para ela mais vulnerabilidade, fazendo-lhe vítima de exploração"19. Sob uma perspectiva prática é de se afirmar que não é nada incomum que quem oferta seus gametas ou se predispõe a gestar o filho para outra pessoa receba alguma contraprestação por seu ato. E se esse aspecto fez parte da avença firmada por aquelas pessoas é de se pugnar de que há a obrigatoriedade de que ela seja cumprida. Afastar o dever de satisfazer os termos do acordo firmado no sentido de retribuir pelo que está sendo ofertado mostra-se atentatório à boa-fé que pautou a negociação entabulada pelas partes, além de estar afastado dos motivos que norteiam as hipóteses de vedação legal, afeitas a situações em que a vida de outrem possa estar em risco ou então para fins de pesquisa. Outro ponto importante nesse caso é que restringir o recebimento do que foi combinado é conduta que ordinariamente atentará contra a parte mais vulnerável da relação. Além do fato de que quem acessou o gameta ou o resultado da gestação em substituição não haverá de ser privado do beneficio obtido, enquanto a outra parte poderá perder a contrapartida econômica. Quando se pondera quanto a hipótese da gestação em substituição, a ausência do aspecto econômico pode ensejar em uma ampliação do risco de que a gestante venha a se recusar a entregar a criança aos contratantes após o nascimento, já que a gratuidade reduz a percepção de obrigatoriedade do contrato firmado. Em qualquer dessas situações, a retirada do benefício econômico obtido por quem ofertou os gametas ou a gestação, impondo-lhe uma transferência de bens ou prestação de serviço gratuita se mostra como uma afronta "à vedação do enriquecimento sem causa preconizado no art. 884 do CC, já que os contratantes [...] aufeririam um beneficio às custas de outrem"20. Se pensarmos na hipótese da gestação em substituição haveria ainda a incidência de uma perspectiva de gênero que não pode ser ignorada, já que "negar à cedente temporária do útero o direito a uma contraprestação goza de um caráter discriminatório pois é inegável que de regra quem se colocaria à disposição para gestar o filho de outrem, não sendo por motivos altruísticos, certamente o faria por necessitar dos ganhos econômicos que viria a obter"21. Por fim, ressalto que a diretriz que pauta o presente texto não está em convencer ninguém que a "certeza" professada de que tais condutas devam ser obrigatoriamente gratuitas está equivocada, mas sim impor que a coletividade analise de forma acurada os motivos que a leva a chegar a essa conclusão. Ainda assim, preciso questionar, ao fim: Você sai daqui convencido que não há a restrição quanto a remuneração para quem oferece gametas ou cede o útero para a gestação? Se não, consegui ao menos te tirar daquela "certeza" prévia? _______ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 3 Orlando Gomes. Direito e desenvolvimento. 2 ed., rev. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 4-5. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 135. 5 Disponível aqui. 6 ALBUQUERQUE, Teila Rocha Lins D'; CUNHA, Leandro Reinaldo da. Filiação e parentalidade na perspectiva das inseminações caseiras. Diké - Revista Jurídica, v. 23, p. 171-193, 2024. 7 Disponível aqui. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024 10 Disponível aqui. 11 Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. § 3º É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei. § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 135. 13 Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei. 14 Art. 14. A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: I - universalização do atendimento à população; II - utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social; III - proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue; IV - proibição da comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, componentes e hemoderivados; V - permissão de remuneração dos custos dos insumos, reagentes, materiais descartáveis e da mão-de-obra especializada, inclusive honorários médicos, na forma do regulamento desta Lei e das Normas Técnicas do Ministério da Saúde; VI - proteção da saúde do doador e do receptor mediante informação ao candidato à doação sobre os procedimentos a que será submetido, os cuidados que deverá tomar e as possíveis reações adversas decorrentes da doação, bem como qualquer anomalia importante identificada quando dos testes laboratoriais, garantindo-lhe o sigilo dos resultados; VII - obrigatoriedade de responsabilidade, supervisão e assistência médica na triagem de doadores, que avaliará seu estado de saúde, na coleta de sangue e durante o ato transfusional, assim como no pré e pós-transfusional imediatos; VIII - direito a informação sobre a origem e procedência do sangue, componentes e hemoderivados, bem como sobre o serviço de hemoterapia responsável pela origem destes; IX - participação de entidades civis brasileiras no processo de fiscalização, vigilância e controle das ações desenvolvidas no âmbito dos Sistemas Nacional e Estaduais de Sangue, Componentes e Hemoderivados; X - obrigatoriedade para que todos os materiais ou substâncias que entrem em contato com o sangue coletado, com finalidade transfusional, bem como seus componentes e derivados, sejam estéreis, apirogênicos e descartáveis; XI - segurança na estocagem e transporte do sangue, componentes e hemoderivados, na forma das Normas Técnicas editadas pelo SINASAN; e XII - obrigatoriedade de testagem individualizada de cada amostra ou unidade de sangue coletado, sendo proibida a testagem de amostras ou unidades de sangue em conjunto, a menos que novos avanços tecnológicos a justifiquem, ficando a sua execução subordinada a portaria específica do Ministério da Saúde, proposta pelo SINASAN. § 1º É vedada a doação ou exportação de sangue, componentes e hemoderivados, exceto em casos de solidariedade internacional ou quando houver excedentes nas necessidades nacionais em produtos acabados, ou por indicação médica com finalidade de elucidação diagnóstica, ou ainda nos acordos autorizados pelo órgão gestor do SINASAN para processamento ou obtenção de derivados por meio de alta tecnologia, não acessível ou disponível no País. § 2º Periodicamente, os serviços integrantes ou vinculados ao SINASAN deverão transferir para os Centros de Produção de Hemoterápicos governamentais as quantidades excedentes de plasma. § 3º Caso haja excedente de matéria-prima que supere a capacidade de absorção dos centros governamentais, este poderá ser encaminhado a outros centros, resguardado o caráter da não-comercialização. 15 Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - sejam embriões inviáveis; ou II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. 16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 135 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 135. 18 SANDEL, Michael. O Que o Dinheiro não Compra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 64 19 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 137. 20 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 137. 21 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024, p. 137.
Há pouco mais de um ano, no final do mês de maio de 2024, teci algumas considerações sobre a questão da sexualidade vinculada a crianças e adolescentes, nessa mesma coluna, em texto intitulado "Sexualidade de crianças e adolescentes: Uma realidade analisada sob lentes distorcidas"1. Na oportunidade, questionava: a. Qual a idade em que a criança/adolescente pode começar a ter um relacionamento amoroso?; b. Com qual idade uma criança/adolescente pode começar a ter preocupações estéticas?, e; c. Qual a idade em que a criança/adolescente pode realizar intervenções cirúrgicas vinculadas à sua sexualidade? Anteriormente, em texto publicado em 2021, cujo título foi "O fenômeno do sharenting e o compartilhamento na Internet pelos pais de fotos de crianças com censura dos genitais: proteção ou sexualização?"2, discorri sobre a publicação de imagens dos filhos pelos pais com a utilização de elementos gráficos se sobrepondo a certas regiões do corpo de crianças. A menção dos trabalhos acima serve apenas de norte para indicar a trajetória da pesquisa já publicada que tangencia um assunto que ganhou uma enorme atenção da sociedade brasileira, transpassando o mundo virtual e atingindo um status de "o maior problema social brasileiro" da semana: a adultização de crianças na internet. Obviamente que ao me referir à questão dessa maneira não se tem o intuito de minorar sua importância, mas apenas expressar que é premente que se tenha por evidente que tal situação já vem sendo objeto atenção há tempos. Contudo o aspecto distintivo do momento atual está na amplitude e disseminação das manifestações. E isso se deve, inegavelmente, à força das redes sociais pois, em caso, o seu fato gerador está na publicação de um vídeo de um influenciador digital, conhecido como Felca, que conferiu enorme visibilidade a um caso de exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais. No vídeo denominado de "adultização", o influenciador traz casos de exploração e sexualização de menores através de material publicado em plataformas digitais. O cerne da celeuma está, portanto, na sexualização de crianças e adolescentes. Entre os inúmeros desdobramentos decorrentes do que foi relatado no vídeo mencionado está, por exemplo, a aprovação na Câmara dos Deputados de requerimento de urgência para o PL 2628/22, que "cria regras para a proteção de crianças e adolescentes durante o uso de aplicativos, jogos, redes sociais e outros programas de computador", bem como "estipula obrigações para os fornecedores e garante controle de acesso por parte dos pais e responsáveis"3. O objetivo da presente coluna, no entanto, não está na análise das responsabilidades das plataformas, que haveriam de ter uma atuação efetiva com o objetivo de resguardar as crianças e adolescentes, fazendo cumprir, ao menos, as regras por elas mesmo criadas de que apenas podem ser titulares de perfis maiores de 13 anos. O escopo aqui é discutir a conduta dos pais e as consequências de suas atitudes para seus filhos. A premissa, ressalte-se, não é a de quem tem mais culpa ou quem está descumprindo de forma mais nefasta o disposto no art. 227 da Constituição Federal que estabelece, à família, à sociedade e ao Estado, o dever de assegurar a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes com absoluta prioridade. Apenas faço um recorte a fim de melhor direcionar as considerações que serão elaboradas. Partindo dessa perspectiva, a base do que será considerado aqui está no poder familiar previsto no CC de 2002 a partir do art. 1.630 e que, em linhas bastante panorâmicas, impõe deveres e confere direitos aos genitores em relação a seus filhos4, determinando que lhes compete, entre outras cominações, a obrigação de criar e garantir o bom desenvolvimento daquela criança ou adolescente enquanto ele não atingir a maioridade civil. Assim, é de se afirmar que cabe aos detentores do poder familiar o dever de garantir a integridade física e psicológica de seus filhos, o que, claramente, encontra-se em risco nos inúmeros casos em que se vislumbra a sexualização de crianças e adolescentes nas redes sociais, seja com seu consentimento ou conivência. É inquestionável que fatos dessa natureza deveriam estar sob atenta vigilância Poder Público, que tem a incumbência de resguardar esse grupo vulnerabilizado e, uma vez constatadas e comprovadas condutas atentatórias aos parâmetros postos, haveria de agir, impondo até mesmo a perda do poder familiar a quem atuou dessa forma. O fato é que essa exposição indevida de crianças e adolescentes nas redes sociais tem, por si só, um potencial lesivo já amplamente reconhecido, o qual se mostra exponencialmente elevado quando associado a uma sexualização, fato que pode ensejar em danos profundos, com severos reflexos patrimoniais e extrapatrimoniais. Exatamente nesse contexto que a presente coluna pretende trazer alguma contribuição. Essencialmente, nos termos do disposto no art. 186 do CC, aquele que causa dano a outrem, ainda que meramente moral, pratica ato ilícito, o qual há de ser indenizado (art. 927), sendo o mais corriqueiro que esse dever seja apreciado sob a vertente dos danos materiais (patrimoniais) e dos danos morais (extrapatrimoniais). Contudo, o fato é que a análise das consequências decorrentes de uma conduta de tal jaez são bastante mais complexas, não podendo restringir-se a uma apreciação superficial. Pensando em uma perspectiva mais afeita às questões de cunho patrimonial, para além do tradicional dano material, é pertinente se analisar a situação sob a ótica do agente do ato. Como já trabalhado em outros momentos5, a figura do enriquecimento sem causa, estabelece-se como uma das figuras que mais me é cara quando analisando as situações afeitas ao "universo da responsabilidade civil". A perspectiva básica é que a situação fática impõe que se desloque o foco da figura dos danos sofridos pela vítima da conduta tida por ilícita e se passe a considerar também os benefícios indevidamente auferidos por aquele que agir de forma atentatória aos parâmetros legais postos. Considerando especificamente as situações em que os pais expuseram a imagem dos filhos, ainda mais se considerando tal conduta praticada com um viés sexualizado de uma criança ou adolescente, é inconcebível se permitir que ele possa manter consigo todos os benefícios econômicos que tenha auferido ante a tal prática. Não se pode jamais comungar com qualquer solução relacionada à exploração da imagem dos filhos, especialmente quando objetificando-os e conferindo contornos sexualizados, que ignore os eventuais benefícios que tenham sido auferidos por esses genitores. Ignorar os proveitos econômicos obtidos mostra-se atentatório a todo o nosso arcabouço jurídico, dando azo à consolidação da clássica visão de que "o crime compensa". Evidentemente que não se ignora que inúmeras vezes esses benefícios acabem sendo direcionados, direta ou indiretamente, para aquelas crianças exploradas, contudo isso não pode ser visto como bastante para ignorar a ilicitude da conduta. O fato social de uma condição econômica que foi alterada em razão dos proventos eventualmente obtidos com a exposição indevida são relevantes e merecem atenção, contudo a proteção dessa criança ou adolescente há de se sobrepor à sua objetificação e sexualização precoce. Nesse ponto é pertinente se consignar que o exame do tema é totalmente perpassado por um recorte de gênero, haja vista que essa sexualização precoce de crianças e adolescentes incide majoritariamente sobre meninas. Outra vertente atrelada às consequências do dano decorrente dessa sexualização de crianças e adolescentes está afeita à perspectiva extrapatrimonial, cabendo uma análise que não há de se restringir ao dano moral, impondo-se a verificação da presença da figura do dano existencial. A conduta dos pais de permitirem ou estimularem a sexualização de seus filhos pode ter severos impactos na vida daquela criança, com o manifesto potencial de protraírem-se no tempo e gerarem consequências severas, capazes de impedir que ela venha a alcançar objetivos que poderiam ser considerados até mesmo ordinários, com o manifesto comprometimento de um projeto de vida, bem como de sua convivência em sociedade nos moldes esperados. É fato que a sexualização precoce de uma criança ou adolescente causa severos impactos psicológicos, os quais não podem restar ignorados, e, uma vez verificados, tornam imperioso o dever de indenizar. A atuação daquele pai que expõe seus filhos a uma condição que coloca em risco toda a sua vida adulta, inserindo na já tortuosa linha de seu desenvolvimento peças que manifestamente têm o poder de privar do acesso ao que seria de se esperar caso tivesse recebido aqueles cuidados mínimos impostos pele legislação, não pode restar incólume. O presente texto, como de costume nessa coluna, não tem o objetivo de trazer uma análise exauriente. Longe de ser um ponto final é apenas um breve conjunto dos caracteres iniciais que merecem especial atenção. O intuito é suscitar a discussão entre os pesquisadores, conduzindo os pontos aqui trazidos para considerações futuras, aproveitando-se, especialmente, do momento atual em que o tema ganhou um espaço de atenção de grande parte da sociedade. _______ 1 Disponível aqui. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da.; MENDONÇA, Júlia Fernandes. O fenômeno do sharenting e o compartilhamento na Internet pelos pais de fotos de crianças com censura dos genitais: proteção ou sexualização?. Revista de Direito Brasileira. , v.29, p.418 - 430, 2021. 3 Disponível aqui. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 121. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Lucro da intervenção e o uso exclusivo do imóvel do casal após a separação de fato. Revista IBERC, v.4, p. 52 - 64, 2021.
Em meados do ano de 2025 as redes sociais e os veículos de comunicação, especialmente aqueles com vocação para discorrer sobre a vida das celebridades e "famosos", nos inundaram com uma discussão sobre um tema que a grande maioria da população brasileira acredita dominar: a "guarda". Os holofotes foram direcionados a esse instituto em decorrência de uma disputa sobre a "guarda" do filho de Marília Mendonça, famosa cantora de música sertaneja, falecida em novembro de 2021, em um acidente aéreo. O evento trágico que vitimou a artista gerou inúmeras considerações com conexões jurídicas: Quais os motivos que culminaram no acidente? Quem foram os responsáveis? Qual o destino das redes sociais da renomada artista? O que ocorreria com o seu "legado" musical? Mas o que nos move no presente texto é algo que se vincula com uma consequência atrelada ao Direito de Família, e que foi, à época, resolvido de forma bastante tranquila, segundo o que se noticiou. Quem cuidaria do "filho da Marília Mendonça"? Ainda que mencionado de forma recorrente como "filho de Marília Mendonça", a criança tem um pai, o cantor Murilo Huff, que a reconheceu e registrou, nos termos da lei. Evidentemente que a popularidade da mãe e o evento de seu falecimento tem grande influência nessa forma de se indicar aquela criança, mas também é fruto de uma perspectiva de gênero. A premissa social de que os filhos pertencem às mães segue tendo o seu peso... Segundo o que foi divulgado, a criança permaneceria morando com a avó, mantendo-se na mesma casa em que já morava, em decisão conjunta de seus familiares. Passados alguns anos, agora em 2025, surgem notícias de que o pai teria "tomado a criança da avó", passando a exercer a guarda unilateral, afastando a "guarda compartilhada" até então existente1. Toda essa celeuma que acabou sendo noticiada revela a existência de uma manifesta confusão entre institutos jurídicos distintos, gerando uma compreensão equivocada sobre o embate estabelecido. O questionamento que se coloca é se é prevista, em nosso ordenamento, a hipótese de uma "guarda compartilhada" entre um dos pais e um dos avós. Tal situação revela o quão relevante é uma análise mais acurada acerca da concepção jurídica do termo "guarda", expressão polisssêmica, com significados de valias distintas e que, para o objetivo desse texto, será apreciada segundo a sua acepção inserida no corpo do CC e também no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Em que pese terem, em ambos os diplomas, o escopo do exercício dos deveres de cuidado sobre uma criança ou adolescente, apresentam concepções bastante diferentes. O sentido mais difundido e conhecido da expressão está associado ao contexto descrito no CC, vinculado ao direito/dever dos pais de ter seus filhos consigo, como uma expressão do poder familiar (art. 1.630 e ss.). Essa perspectiva apenas passa a ser considerada quando os pais não estão vinculados por um casamento ou união estável, ou, como usa o próprio texto legal, nos casos em que o "pai e a mãe não vivam sob o mesmo teto" (art. 1.583, § 1º). Sendo uma das consequências ordinárias do término do casamento ou união estável a cessação da convivência more uxorio, é de praxe que um dos pais passe a ter o filho consigo, enquanto o outro exerce aquilo que tradicionalmente se nomeia de "direito de visitas". Evidente que em uma grande quantidade de situações jamais houve a convivência sob o mesmo teto dos pais, hipótese na qual nunca houve o compartilhamento fático da coabitação entre os pais e seus descendentes, sendo esse viés de guarda presente desde sempre na vida daqueles pais. Seja como for, não havendo essa condição de habitação dos pais com seus filhos é de se estabelecer qual deles terá a companhia de sua prole, no que se convencionou intitular, como já mencionado, de guarda. Essa guarda, que por motivos a serem mencionados de forma mais qualificada a seguir, é tradicionalmente deferida à mulher/mãe, muito em decorrência da visão de que compete à mulher e ao feminino os deveres de cuidado, já que haveria até mesmo uma aptidão natural dela para "maternar". A figura da guarda é trazida no art. 1.583 e seguintes do CC, que pode ser exercida de forma unilateral ou compartilhada, havendo de ser estabelecida quando os pais "não vivam sob o mesmo teto" (art. 1.583, § 1º). A análise dessa modalidade de guarda é complexa o bastante para ensejar estudos amplos, contudo não é esse o escopo da presente coluna, de sorte que nos restringiremos apenas a uma apreciação superficial do instituto. Assim, a guarda descrita no CC é um atributo que compete exclusivamente aos pais, como um desdobramento do poder familiar. Já a guarda prevista no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, a partir do art. 33, faz parte da seção direcionada à família substituta, e "destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros" (§ 1º), mas que pode também, excepcionalmente, ser deferida em outras hipóteses "para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados" (§ 2º). Exatamente nesse contexto específico é que se vislumbra a utilização da guarda quando os pais, efetivos detentores do poder familiar e, portanto, responsáveis por tudo o que envolva seus filhos enquanto não atingirem a maioridade civil, encontram-se numa situação em que não podem efetivamente exercer, em toda a sua plenitude, os deveres que lhes compete. Como meio de regularização de uma situação de fato, é recorrente a utilização do referido instituto com o fim de conferir a certos parentes, como avós, a possibilidade de exercício dos cuidados sobre crianças e adolescentes que não estão inseridas nos limites do seu poder familiar. De se notar que a guarda, nos termos pensados pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, é, portanto, uma forma de concessão de direitos de cuidados que não tem, de inicio, o condão de afastar o poder familiar dos pais, salvo nas hipóteses em que se vislumbra a existência de algum motivo severo para que isso ocorra. Todavia, quando há uma concordância dos pais para a conferência da guarda em favor de alguém, em situação convencionada, estamos essencialmente diante de uma outorga conferida por eles para que outra pessoa possa exercer certas atribuições que seriam exclusivas deles. Ainda que a guarda esteja inserida no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente entre as figuras atreladas à família substituta, é de se entender que possa ser aplicada em sede de família extensa ou ampliada (art. 25, parágrafo único), oriunda de uma concessão dos pais, de um deles (na falta do outro) ou de uma imposição decorrente de uma determinação judicial. Assim, quando os pais (ou um deles) conferem a um dos avós a prerrogativa de atuar em favor dos netos, na esfera que ordinariamente compete a quem é o detentor do poder familiar, estamos diante da figura da guarda descrita no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Para além da confusão decorrente da utilização de uma mesma expressão para designar institutos distintos, a própria legislação acaba contribuindo para que essa celeuma se estabeleça, conforme se depreende do disposto do § 5º do art. 1.584 do CC que assevera que "se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade", redação essa dada pela lei 13.058, de 2014. No referido texto, ao se fazer uma análise técnica, é de se verificar que o termo guarda é usado por duas vezes, sendo que na primeira está em sua acepção de "atribuição que compete aos pais" como desdobramento do poder familiar, enquanto a segunda se insere na perspectiva concebida pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. O fato é que a regra é que todo o direito/dever decorrente do poder familiar compete aos pais, os quais apenas podem ser privados de seus efeitos caso venha a ocorrer uma das hipóteses previstas expressamente na lei para a suspensão ou extinção do poder familiar (art. 1.635 a 1.638 do CC). E, a autorização para que um dos avós venha a exercer a "posse de fato" daquela criança ou adolescente, não tem o condão, por si só, de por termo ao poder familiar. Com isso, quem tem o direito/dever originário de estar com os filhos são seus pais e, excepcionalmente apenas, outras pessoas, de sorte que, havendo qualquer conflito entre pai e guardião, salvo a existência de motivos graves devidamente comprovados, há de prevalecer os efeitos que emanam do poder familiar, com a manutenção da criança ou adolescente com os pais, como reflexo da premissa de prevalência da família natural sobre a substituta, conforme descrito no próprio ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, se estivermos diante de uma criança cuja mãe tenha falecido, mas que tenha pai, a prerrogativa de estar com essa criança é desse pai, o que se estabelece em sede de dever antes de mais nada. Caso tenha havido a concessão de um direito em favor de outra pessoa, esse é subsidiário e não se sobrepõe àquele que decorre do poder familiar, imperando apenas quando se demonstrar a existência de reais motivos para que tal direito não seja exercido por esse pai. Quando se tem apenas um dos pais vivos, não há que se estabelecer qualquer discussão sobre a guarda, já que conforme previsto no art. 1.631 do CC, "durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade". Menos razão ainda há para qualquer questionamento com base na guarda prevista no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Salvo se esse pai queira conferir a outrem poderes que ordinariamente competem a si. Se houver alguma disputa entre um pai e uma avó com relação a quem pode ter uma criança consigo, é de se entender que a contraposição é entre o poder familiar do pai e a autorização dada por ele para a avó, outorga essa que pode ser retirada por ele a qualquer tempo. Importante ainda se colocar que, diversamente do que chegou a ser mencionado por alguns nas redes sociais quanto ao caso de Marília Mendonça, não haveria o que a falecida mãe pudesse ter feito em vida para impor que seu filho ficasse sob a guarda de alguém que não o outro genitor. A previsão legal existente, passível de ser descrita em sede de testamento ou documento autêntico, seria de que se indicasse quem seria a pessoa a quem haveria de competir a tutela daquela criança, contudo essa hipótese apenas se efetiva quando ambos os genitores tiverem falecido ou não puder exercer seu poder familiar, nos termos do art. 1.634, VI. Para arrematar a análise do presente tema, é premente que se ressalte a evidente perspectiva de gênero que impera nessa discussão como um todo. Há uma construção social de que caberia necessariamente ao feminino o dever de cuidado dos filhos, fator que é indiscutivelmente potencializado pela recorrente conduta masculina de omitir-se com relação ao cumprimento dos seus deveres face a sua prole. Mesmo com a previsão legal da guarda compartilhada e a ideia de que ela deva ser o parâmetro ordinário, segue cabendo às mulheres, na maioria dos casos, a responsabilidade fática sobre os filhos2. O importante é que se tenha claro que os deveres são efetivamente dos genitores, seja para o bem ou para o mal. Compete ao pai e à mãe o dever de cuidar dos filhos, tê-los em sua companhia, conferir-lhes o sustento e direcionar sua educação (art. 1.583 do CC), sendo a oferta dessas incumbências a quaisquer outras pessoas absolutamente excepcional, sem o poder de afastar, de per si, a incidência dos deveres e responsabilidade oriundos do poder familiar. A situação mencionada no início da presente coluna é extraordinária para os padrões sociais postos, uma vez que estamos diante, segundo o que se veicula, de um pai presente e que se manifesta no sentido de efetivamente exercer seus deveres. O que era para ser a praxe mostra-se tão excepcional em nossa realidade que, quando ocorre, salta aos olhos, espanta e se converte em algo digno de nota. Contudo, ainda que uma figura pouco usual, é relevante que se aproveite essa oportunidade para se clarear a questão, e asseverar que o poder familiar impõe a ambos os pais o dever de atuar visando cumprir a premissa de garantir os meios indispensáveis para que seus filhos possam se desenvolver e chegar à idade adulta com condições de regerem suas vidas por si só, de forma digna. E para que se possa realizar uma análise abalizada sobre os aspectos jurídicos que envolvem a questão de quem deve ficar com a guarda do filho da Marília Mendonça é preponderante se entender que a guarda do CC é distinta daquela prevista no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa compreensão permite entender melhor os parâmetros que envolvem a "fofoca" jurídica que permeou a mídia recentemente. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Que tudo aquilo que não se insere perfeitamente na concepção da normalidade posta ou do padrão esperado1 causa alguma forma de espanto naqueles que repousam tranquilamente no universo das maiorias é um fato consolidado em nossa sociedade. Quando tratamos dessa questão sob os parâmetros da sexualidade2, a figura adquire contornos ainda mais explícitos, com o surgimento de um pavor, com caracteres até mesmo associados a elementos mágicos. São vestes, cores, palavras ou números que teriam o poder sobrenatural de fazer com que a "anormalidade" pudesse se instalar e "transformar" alguém em integrante de uma das letras que compõem a sigla LGBTQIANP+3. A sensação consolidada no inconsciente das maiorias de que ela é tão universal que independe de qualquer qualificação para indicá-la, necessidade que se impõe para descrever ou mencionar qualquer situação que não seja afeita a ela, já que é considerada como o padrão, "faz com que essas pessoas se sintam detentoras de todo um poder que lhes conferiria até mesmo a prerrogativa de "permitir" que as minorias existam"4. Como possuidoras de um poder magnânimo, lhes seria atribuída a prerrogativa de permitir que os demais venham a compartilhar o mesmo espaço social, mas com a condição de essas pessoas se enquadrem nos seus parâmetros. Podem existir desde que ocultem suas características e expressem os "valores" da maioria, privando-as de ser quem elas são5. Se quiser viver nessa sociedade, está autorizada, mas há de reprimir a demonstração pública de que é divergente, para não afrontar a maioria... Nesse contexto é possível se vislumbrar que toda vez que as minorias conseguem acessar direitos básicos, garantidos a todas as pessoas6, surge entre uma parcela dos integrantes das maiorias uma sensação de que sua hegemonia estaria em risco, como se a oferta de direito a todos pudesse privar-lhes de alguns de seus direitos próprios7. Manifesto equívoco, que apenas se sustenta ao se ter em mente que o que alguns entendem por direitos próprios são, em verdade, privilégios indevidos e alcançados às custas da privação dos grupos vulnerabilizados. A condição de "normais" ou "universais" assumida pelas maiorias as conduz a uma deturpada percepção de que tudo o que a elas se confere já é acessível a todos8, em uma clara distorção de que os míseros direitos ofertados às minorias seriam excessos, "havendo até mesmo a criação de uma narrativa de que esse acesso aos direitos garantidos de forma geral a todos, quando resguardados às minorias, estaria configurando um preconceito contra homens, heterossexuais e cisgêneros, figura similar à do racismo reverso, como se fosse possível que as minorias tivessem condições de impor algum tipo de opressão contra essas maiorias"9. As poucas conquistas das minorias sexuais saltam aos olhos das maiorias, apesar de mostrarem-se extremamente frágeis10, especialmente ao se considerar que são oriundas de decisões judiciais e não de uma sólida legislação de caráter protetivo, em expressa demonstração da manifesta leniência legislativa11 que marca o nosso Estado esquizofrênico12. Essa sensação experienciada pelas maiorias é tida como uma fragilidade calcada no medo de perda de seu status, tratada por Robin DiAngelo sob a alcunha de white fragility13 quando relacionada à raça pautada na cor de pele e no fenótipo14. No âmbito da sexualidade15 surge um pavor toda ver que "mulheres e intersexos (quanto ao sexo); femininos, não-binários e agêneros (quanto ao gênero); homossexuais, bissexuais, assexuais e pansexuais (quanto à orientação sexual); e transgêneros, em toda sua amplitude, que engloba, entre outros, transexuais e travestis (quanto à identidade de gênero)"16 conquistam qualquer direito. Essa fragilidade masculina ou cisgênero17, assenta-se na "tendência a adotar posturas defensivas e de negação direta, minimizando preocupações caras às comunidades transgênero, enfatizando, ao mesmo tempo, suas boas intenções"18, revelando consequências que extrapolam o mero receio, com elementos de repulsa19. É um medo que acaba sendo incutido na cabeça das pessoas cisgênero de que sua posição hegemônica estaria em risco, em contexto realmente bastante similar à fragilidade branca20, haja vista sua conduta defensiva, repleta de raiva e medo, similar a que se vislumbra ante as conquistas da população negra21. A fragilidade cisgênero expressa-se em condutas e opiniões refratárias às pautas que visam a proteção dos direitos fundamentais das pessoas transgênero, bem como na repulsa à presença de tais pessoas nos espaços tradicionalmente destinados aos "normais", reflexo de sua compreensão de mundo distorcida de que "a essas pessoas apenas seria conferida a presença em espaços ocultos ou de perversão"22. Uma das consequências ordinárias desse sentimento experimentado pelas maiorias gera uma reação, que culmina na construção de um cenário que visa "criar pânico, normalmente fundado em alegações de que o 'crescimento' de direitos"23 às minorias sexuais encerraria no risco de uma destruição da estrutura tradicional de família ou num desvirtuamento das crianças, gerando um pânico moral como uma estratégia de controle24. Incutir medo nas pessoas como forma de controle social é prática recorrente e pode ser constatada em discussões variadas que envolvem os interesses das minorias. Tome como exemplo toda a celeuma que se estabelece quanto a questão do banheiro adequado a ser usado pelas pessoas transgênero25, discussão que até mesmo engloba uma série de consequências de cunho econômico26. Nessa seara há também a ideia de que haveria um acréscimo de violência sexual em razão da utilização de banheiros segundo a identidade de gênero, fato que não tem qualquer respaldo fático27, além de corroborar, quando se sustenta que predadores sexuais se transvestiriam para entrar nos banheiros, que efetivamente não se trata de uma questão afeita à identidade de gênero28. O pavor criado é tamanho que tem culminado em agressões a mulheres cisgênero por serem "confundidas" com pessoas transgênero, em restaurantes29 e academias30. Essa situação escala de tal forma que até mesmo se vislumbra a utilização da alegação desse medo de pessoas LGBTQIANP+, ou aquelas que a elas se assemelham, como excludente de ilicitude quando da prática de condutas típicas contra essas pessoas, em uma "manifesta tentativa de transferir a responsabilidade pelos atos ilícitos praticados, justificando a conduta em uma forma enviesada de legítima defesa"31. A situação se faz tão preocupante que o chamado "gay panic", prática baseada em "exagerar coisas, considerar incidentes isolados como se indicassem problemas generalizados ou até mesmo inventar coisas"32 acaba sendo utilizada como defesa quando um heterossexual comete um crime violento contra uma pessoa que não seja heterossexual como ele (ou não aparente ser), sob a alegação de que apenas reagiu de forma descontrolada ou exacerbada ante ao que lhe pareceu uma tentativa de investida amorosa/afetiva/sexual33. Em certa medida é de se considerar que tal sorte de argumento importa em afirmar que vidas LGBTQIANP+ seriam menos importantes que as demais34, sendo plausível até mesmo que elas sejam ceifadas quando alguém alega se sentir ofendido por uma eventual demonstração de interesse. Essa defesa processual, a "LGBTQ+ panic defense", tentando fazer com que um júri considere a orientação sexual ou identidade de gênero da vítima como sendo a razão motivadora de uma reação violenta do réu, até em sede de homicídio, é expressamente proibida em alguns estados nos Estados Unidos da América35, revelando que vinha sendo uma prática recorrente. No contexto da sexualidade como um todo, essa forma de pensar em muito se aproxima com a legítima defesa da honra, bastante suscitada no Brasil em casos de violência doméstica e feminicídio, e que já se mostra devidamente rechaçada, tendo sido declarada inconstitucional pelo STF na ADPF 779, por se mostrar atentatória à dignidade humana, à proteção da vida e à igualdade de gênero. Essa perspectiva de que certas "condutas seriam permitidas contra minorias, bem como que atitudes praticadas por integrantes desses grupos sociais minoritários conferiria uma permissão para a prática de agressões, reforçando a vulnerabilidade que os acompanha"36 não pode prosperar. É premente que nossa sociedade seja apresentada de forma real e efetiva a toda a plenitude da sexualidade e seus pilares37, apoderando-se dos conceitos e concepções que envolvem o sexo, o gênero, a orientação sexual e a identidade de gênero, o que permitirá que toda a ignorância, preconceito, estigma e discriminação que atingem a existência das minorias sexuais possa ser refutada38 e que tenhamos uma sociedade que efetivamente se mostre pautada pelos parâmetros elementares de um Estado Democrático de Direito. 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 40. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sexualidade e o medo da magia. Revista Direito e Sexualidade, v.2, p. I - IV, 2021. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 55. 5 Robert Jaulin, La paz blanca. Editorial Tiempo Contemporaneo: Buenos Aires, 1973, p. 13. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 312. 7 Leandro Reinaldo da Cunha. Não é tolerância. É respeito. Coluna Direito e Sexualidade - Portal Migalhas. Disponível aqui. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 55. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 56. 10 Disponível aqui.  11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 13 Robin DiAngelo. Não basta não ser racista: Sejamos antirracistas. São Paulo: Faro Editorial, 2020. 14 Disponnível aqui.  15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308. 16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O discurso humorístico do comediante sobre minorias: crime ou exercício da profissão do humorista? Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 6, n. 1, p. 326-369, 2025, p. 329. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 6. 18 Carl G. Streed Jr; Jacob E. Perlson; Matthew P. Abrams;Elle Lett. On, With, By-Advancing Transgender Health Research and Clinical Practice. Health Equity, 7:1, p. 161. 19 Clifton Edward Watkins Jr; Christopher Blazina. On Fear and Loathing in the Fragile Masculine Self. International Journal of Men's Health, 9(3), 211-220, 2010, p. 213.. 20 Zachariah Graydon Oaster, "Cisgender Fragility" (2019). Master's Theses, 2019, p. 9. 21 Cida Bento. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 112. 22 Leandro Reinaldo da Cunha. Não é tolerância. É respeito. Disponível aqui. Acesso em 15/1/24. 23 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 56 24 Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior. A travesti, o vaticano e a sala de aula. SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos - UFAM, ano 19, nº 1, Ago./Dez. 2019, p. 118-121. 25 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 148. 26 CUNHA, Leandro Reinaldo da. RIOS, Vinícius Custódio. Mercado transgênero e a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva do capitalismo humanista, Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, v. 105, n. 972, p. 165-184, out. 2016. 27 Bruna G. Benevides. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022 / Bruna G. Benevides (Org). - Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2023., p. 72. 28 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 259. 29 Disponível aqui. 30 Disponível aqui.  31 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 259. 32 Disponível aqui. Acesso em 10/1/24. 33 Nicholas D. Michalski; Narina Nunez. When Is "Gay Panic" Accepted? Exploring Juror Characteristics and Case Type as Predictors of a Successful Gay Panic Defense. Journal of Interpersonal Violence, 37(1-2), 782-803, p. 782. 34 Disponível aqui. Acesso em 28/3/23. 35 Kijana Plenderleith. "Panic! At the Courthouse: A New Proposal for Amending Enacted Legislation Banning the LGBTQ+ Panic Defense." Vermont Law Review, vol. 46, no. 4, Summer 2022, p. 690. 36 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 246. 37 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 1. 38 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, 2024.
Para comemorar a 50ª edição da Coluna Direito e Sexualidade decidi escrever mais uma vez sobre a confluência das duas searas jurídicas que mais me motivam e que me trouxeram até aqui. A intersecção entre o Direito Civil e aspectos da Sexualidade, apesar de extremamente elementar, segue sendo um campo pouco explorado tanto na academia quando na prática jurídica, o que reforça a necessidade de que essa correlação seja suscitada e apresentada de forma a atingir a maior quantidade de pessoas possíveis, a fim de que possa passar a ser pensada de maneira mais recorrente pelos juristas e ganhe massa crítica, visando a construção de uma doutrina especializada. Nesse contexto optei por trabalhar exatamente uma das perspectivas do Direito Civil que se mostra menos associada com aspectos vinculados à sexualidade: os Direitos Reais (ainda que, no caso concreto, seja uma vertente dessa área que se mostra revestida de contornos sólidos de Direito de Família). Toda essa relação será trabalhada sob as lentes de um dos pilares da sexualidade1: o gênero. Feita essa introdução, como já mencionado no título da presente coluna, é de se ressaltar que um dos temas mais clássicos do Direito Civil, atrelado aos Direitos Reais, reside na aquisição da propriedade pelo exercício reiterado da posse por meio da usucapião. Esse instituto clássico, com previsão tanto na Constituição Federal como em leis infraconstitucionais (CC e Estatuto das Cidades), encontrou, há cerca de 15 anos, uma inclusão que fez com que ele se aproximasse do universo do Direito de Família. Em 2011 a lei 12.424 inseriu no CC o art. 1.240-A, que instituiu o que passou a ser chamada de usucapião familiar. Aqueles que acompanham essa coluna podem se perguntar quanto aos motivos pelos quais um tema já imensamente discutido estaria presente nesse espaço dedicado a questões tão atuais. E a resposta está em algo bastante simples. A usucapião familiar está imersa em um manifesto recorte de gênero. A referida lei que nos deu o art. 1.240-A foi, em verdade, aquela que instituiu o PMCMV - Programa Minha Casa, Minha Vida, e está inserido no art. 9º da lei 12.424/11, fato que gera até mesmo o questionamento quanto a adequação da sua instituição por meio dessa norma2. Há até mesmo aqueles que sustentem que, na gênese, o "instituto foi pensado para amparar mulheres de baixa renda"3, ainda que tal informação não seja expressa. A perspectiva de constituição visando a proteção da mulher será objeto de mais atenção a seguir, contudo é importante que se assevere que, ainda que a intenção tenha sido a de atender as mulheres de baixa renda, não só elas poderão ser beneficiadas, bastando para tanto se considerar que o critério espacial previsto na lei, que delimita a dimensão do imóvel a ser usucapido a 250 m2, revela que este não se circunscreve necessariamente a bens de valor reduzido. Retomando a apreciação atrelada à questão de gênero é interessante se constatar que a conexão entre a usucapião e o feminino é tão pouco usual que, apesar de parecer óbvia, não se faz presente no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero elaborado pelo CNJ. Seria bastante pertinente que o protocolo tivesse trabalhado diretrizes no sentido de que os magistrados considerassem as desigualdades de gênero ao proferir decisões nas ações de usucapião familiar. Como o objetivo aqui não é discorrer de forma exaustiva sobre essa modalidade de prescrição aquisitiva, o texto será estruturado de uma forma pouco usual no que se refere aos estudos realizados sobre a usucapião, com a análise de apenas alguns dos requisitos que tangenciam mais a questão de gênero. Com isso, toda a tecnicidade inerente ao instituto da usucapião estará vinculada aos aspectos que efetivamente podem encontrar algum tipo de aderência com o recorte de gênero que norteia o escopo ao qual me proponho aqui. O primeiro ponto que confere sentido ao título dado ao presente texto reside no fato de que a expressão "usucapião" há de ser acompanhada do artigo definido feminino "a". Assim, o correto é se referir ao instituto como a usucapião, retomando a concepção que vigia originalmente e que havia sido afastada com o CC de 1916. Passando à análise do instituto em si, é de se constatar que a usucapião familiar, prevista no art. 1.240-A do CC, foi modalidade instituída depois do início da vigência do atual texto legal e apresenta uma série de requisitos a serem atendidos para a sua configuração, os quais vão dos mais clássicos, como a posse ad usucapionem e o prazo, chegando em parâmetros extremamente específicos que se vinculam a uma perspectiva essencialmente subjetiva. Outro dos motivos que nos conduz a afirmar que a usucapião é um instituto feminino lastreia-se no fato de que, ordinariamente, em sede de ruptura de relacionamentos, quem deixa o lar conjugal, é o homem, ou quem expressa o masculino naquela estrutura familiar. Seja em um relacionamento entre pessoas de sexos ou gêneros distintos, como também naqueles em que se constituem entre pessoas do mesmo sexo ou gênero4, a tendência é que a mulher ou quem expressa o feminino, mantenha-se naquele lar conjugal que até então era compartilhado. Tal assertiva tem uma conexão direta com a atribuição dos deveres de cuidado às mulheres e ao feminino, especialmente quando aquele casal tem uma prole, o que faz com que quem exerce os deveres diretos com relação aos filhos siga onde esses descendentes estão. Como a usucapião tem como premissa básica a posse direta, é elementar que aquele que permanecesse no lar conjugal seja o autor ordinário de tal sorte de pleito e, se as mulheres são as que permanecem no imóvel, é natural que a maior incidência de pleitos seja formulada por tais pessoas. Quanto ao momento adequado para a propositura da ação é relevante que, considerando que um dos requisitos para a configuração de qualquer usucapião é a ausência de oposição, é essencial uma atenção especial a fim de conseguir demonstrar de maneira clara que tal requisito se faz presente, o que pode exigir dessa mulher uma atuação estratégica, não promovendo, por exemplo, a ação visando a dissolução do casamento ou da união estável antes de cumprido o prazo legal, para que o seu cônjuge ou companheiro não venha a apresentar a oposição à sua posse e, com isso, inviabilizar a aquisição da propriedade plena do bem. Importante se consignar que não se está aqui fazendo qualquer relação com a restrição existente outrora de um critério temporal de rompimento de fato do relacionamento para o pleito da dissolução do casamento. O que se pondera é que ao se orientar quanto a propositura da ação apenas 2 anos após o rompimento de fato daquele relacionamento, o objetivo é apenas que não se corra o risco de que o outro cônjuge/companheiro possa vir a exercer sua objeção à posse exclusiva em sede de defesa naquela ação. Nada relacionado ao divórcio em si, mas sim ao cumprimento dos requisitos legais para a usucapião familiar. Outro dos requisitos que apresenta nuances de gênero é o elemento subjetivo que marca a usucapião familiar, que é a necessidade, para a sua configuração, de que tenha ocorrido o abandono do lar conjugal pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro. De se pontuar, de plano, que a questão aqui não está atrelada a uma perspectiva de culpa pela dissolução do casamento, marcadamente em razão da natureza potestativa que permeia o divórcio5, tampouco se está discutindo a figura do abandono como forma de perda da propriedade6. Trata-se de um abandono que recai, em verdade, sobre a família, tanto no âmbito material/assistencial quanto extrapatrimonial7. Em uma perspectiva simples, o mais usual em nossa sociedade é que o homem venha a largar toda a família para trás, abandonando-a. Apesar da inexistência de estatísticas oficiais, isso pode se depreender da constatação de que compete ordinariamente às mulheres os deveres de cuidado, o que envolve a atenção aos filhos e ao lar. A isso pode se associar o fato de serem os homens os maiores autores do abandono afetivo dos filhos. É possível ainda se concluir que abandonar está mais afeito aos homens do que às mulheres pela análise dos julgados que podem ser encontrados versando sobre o tema. Verifica-se, também, que quando a mulher sai de casa, deixando o lar conjugal, dificilmente ela pratica uma conduta de abandono. O mais ordinário, quando ela deixa o seu lar, é que tenha sido vítima de violência doméstica ou tenha sido de lá expulsa. Raros são os relatos de mulheres que simplesmente tomam a decisão de deixar sua família e aquele lar conjugal que fora constituído. Premente se faz expor que o abandono pressupõe uma conduta volitiva individual, tomada de forma particular e não negociada. Abandonar é deixar o lar sem dar explicações, de maneira deliberada. É uma saída voluntária e injustificada8. E esse desprendimento é uma das características que culturalmente constituem um marcador dos homens e do masculino em nossa sociedade. Construída essa trajetória lógica é importante tecer, ao fim, algumas ponderações críticas com relação à ideia de que a usucapião familiar se configuraria como uma grande conquista para as mulheres, já que elas é que ordinariamente são as beneficiadas pela aquisição da propriedade por meio dessa modalidade. O que há de questionar é: a qual preço essa "benesse" é alcançada? Às custas de abandono familiar, rompimento de um projeto familiar e todas as consequências psicológicas? Será que essa possibilidade de tomar para si parte do bem que foi do casal é o bastante? Quando se fala do quanto é bom que venha a se tornar dona da integralidade do bem normalmente não se menciona que essa modalidade apenas assiste a quem tem unicamente um imóvel residencial compartilhado com o cônjuge ou companheiro. Aqui sim podemos vislumbrar aquela premissa de que esse direito ordinariamente beneficia uma camada da população que tem um menor potencial aquisitivo, ainda que possa haver exceções. Se ignora também que, de fato, são poucas as pessoas que efetivamente são detentoras da propriedade de um bem imóvel, haja vista que a grande maioria daqueles que têm um patrimônio mais singelo residem em imóveis alugados. E os que afirmam ser proprietários dos bens, em muitos casos, efetivamente não o são, pois, no mais das vezes, a aquisição daquele imóvel que tem como sendo seu se dá por meio de financiamento com alienação fiduciária, hipótese em que a propriedade só passa a ser efetivamente do comprador após a quitação do empréstimo bancário. Em outra senda, é recorrente que essa aquisição seja vista como um grande benefício, se ignorando que é capaz que o valor referente à parte do imóvel que será usucapida não seria suficiente para saldar todas as obrigações que essa mulher, especialmente quando tenha uma prole comum, teve que assumir sozinha em razão da inadimplência do cumprimento dos deveres daquele cônjuge que abandonou o lar conjugal. Como usualmente ocorre com os grupos vulnerabilizados, aqui se vê as mulheres recebendo um "prêmio de consolação" por ter visto o seu lar ser destroçado com o abandono do seu cônjuge ou companheiro, algo que, provavelmente, acabaria podendo ser direcionado a ela, de forma indireta, por todas as despesas assumidas individualmente com a família. Muitas vezes esse sujeito que abandonou se converte exatamente no pai que não cumpre com seus deveres, não arcando com o sustento dos filhos, e, aquela mãe que há de garantir a mantença da prole comum sozinha, ganhou o poder de se consolidar como única proprietária do imóvel comum, o que não basta para suprir todas as responsabilidades assumidas por ter sido abandonada. Com isso surge uma inquietação que quero compartilhar: para as mulheres, destinatárias mais recorrentes do benefício previsto na usucapião familiar, essa modalidade de aquisição da propriedade é um real benefício ou mais uma das várias situações em que se parece que está sendo-lhe garantido direitos quando, na verdade, o que lhe é conferido não passa de mais uma das inúmeras falácias da construção de uma igualdade de gênero? _______ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 1. 2 SOUZA Adriano Stanley Rocha de; THEBALDI, Isabela Maria Marques. Usucapião familiar: uma análise crítica do novo instituto sob o ponto de vista do direito civil. Revista de Direito Civil Contemporâneo, RT: Sa~o Paulo, v. 2, p. 195-215, 2015. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Revisitando o abandono presumido dos bens imóveis. Considerações atuais após a Lei 13.465/17. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 2, p. 123-148, 2025. 7 Acórdão 1248779, 07534826920188070016, Relator: ANGELO PASSARELI, Quinta Turma Cível, data de julgamento: 13/5/2020, publicado no PJe: 22/5/2020. 8 Acórdão 1370179, 00024335520178070019, Relator: JOÃO EGMONT, Segunda Turma Cível, data de julgamento: 8/9/2021, publicado no PJe: 17/9/2021.
quinta-feira, 5 de junho de 2025

O divórcio liminar sob lentes de gênero

Ganhou grande repercussão nas mídias especializadas em noticiar decisões relevantes para o universo jurídico o julgamento do REsp 2.189.143, publicado em 21 de março de 2025, no qual o STJ, reconheceu a possibilidade do divórcio liminar, pautado no caráter potestativo da dissolução do casamento. Em linhas singelas, o que se viu, principalmente das manchetes apresentadas, é que agora o divórcio poderia ser decretado por uma decisão liminar, em atenção ao "predomínio da vontade" dos cônjuges1, podendo o divórcio "ser decretado antes de definição de guarda e partilha"2. Surge, assim, para grande parte da população, o divórcio liminar, figura já discutida de longa data, mesmo que com outras nomenclaturas, como a de divórcio impositivo, cunhada pelo desembargador do TJ/PE, Jones Figueiredo Alves. A questão do divórcio impositivo ou unilateral se faz também presente no projeto de reforma do CC (PL 4/25), no art. 1.582-A. As manchetes mencionadas mal tocam a superfície do cerne da decisão proferida, de forma que se faz necessária uma análise mais detida sobre o tema, principalmente ante aos aspectos de gênero que precisam ser considerados, já que estes permeiam a referida decisão. Para uma adequada compreensão do todo, é necessário que se leia, ao menos, a rubrica da ementa do acórdão, a qual segue: Civil. Processual civil. Direito de família. Recurso especial. Ação de divórcio cumulada com guarda, alimentos e partilha de bens. Inclusão dos filhos no polo ativo da ação. Desnecessidade. Súmula 283/STF. Direito real de habitação. Instituto de direito sucessório. Aplicação por analogia ao divórcio. Impossibilidade. Divórcio liminar. Direito potestativo. Desnecessidade de contraditório. Tutela de evidência. Aplicação da técnica processual mais adequada. Possibilidade de julgamento parcial de mérito em caráter liminar. A decisão versa, portanto, sobre outras questões que não apenas o divórcio liminar, tratando da necessidade ou não da inclusão dos filhos no polo ativo da ação de divórcio cumulada com guarda, alimentos e partilha de bens, como também quanto a possibilidade de que se estabeleça direito real de habitação, em analogia ao que existe no direito sucessório, para o divorciado. Considerando o escopo da presente coluna, me aterei apenas à figura do divórcio liminar, ainda que as outras questões também se mostrem interessantes e merecedoras de uma discussão técnica em momento posterior, especialmente a hipótese de direito real de habitação. Direcionando o olhar sobre o REsp 2.189.143 existem 3 pontos que merecem uma especial atenção: (i) o que é o divórcio liminar; (ii) o julgamento parcial de mérito, e; (iii) o recorte de gênero. Divórcio liminar A natureza potestativa da dissolução do casamento, consolidada com a EC 66, de 13 de julho de 2010, é o sustentáculo básico do divórcio liminar, que parte da premissa de que a atividade do magistrado em sede de dissolução do casamento é meramente homologatória, cabendo-lhe apenas reconhecer a vontade de quem é casado de não mais manter-se vinculado àquele matrimônio. Ante à impossibilidade de que o outro cônjuge possa apresentar qualquer objeção que viesse a obstar a dissolução do casamento, é de se entender que não há a necessidade de se estabelecer o contraditório em processos dessa natureza, havendo o outro cônjuge apenas que se sujeitar à manifestação de vontade externada de por termo àquela relação. O REsp 2.189.143 traz até mesmo a seguinte assertiva: "basta a apresentação de certidão de casamento atualizada e a manifestação de vontade da parte para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo". No mesmo sentido do que já temos discutido há tempos, com relação ao divórcio post mortem3, qualquer lapso temporal entre o pleito e a prolação da sentença de divórcio há de ser atribuída ao Judiciário, haja vista que a dissolução desse casamento já se mostra efetivada de fato, faltando apenas a manifestação do magistrado afirmando que reconhece aquela situação relatada no pleito formulado4. Não acolher de forma incontinenti o pedido de divórcio chega a ser temerário, pois essa demora pode encerrar consequências relevantes, especialmente no âmbito do direito sucessório, como já me manifestei em outros escritos5, além de todo o custo psicológico que pode essa prolongação da questão trazer. Até mesmo o temor de alguns de que o divórcio liminar geraria uma insegurança jurídica, pelo risco de não se saber que a ação visando a dissolução do casamento já fora proposta e julgada, não mais se sustenta ante ao advento de todo o arcabouço tecnológico existente nos dias atuais. A massiva inclusão digital, atrelada à integração dos cartórios, ajuda no acesso a essa informação, que certamente não surpreenderá quem não esteja já separado de fato. Aos que se encontram nessa situação, cientes da ruptura da convivência conjugal, é plausível que presumam que a decretação do divórcio é iminente e só depende da chancela do Poder Judiciário Postergar a decretação do divórcio não traz, portanto, nenhum benefício jurídico, constituindo-se, apenas, como um manancial para uma série de celeumas desnecessárias, de sorte que o divórcio liminar se mostra como uma solução imperiosa. Julgamento parcial de mérito O art. 356 do atual CPC versa sobre o "Julgamento Antecipado Parcial do Mérito", uma das inovações trazidas pelo novo texto processual em relação ao revogado, que permite a resolução fracionada do processo, com relação àquela parcela de lide que se mostra incontroversa ou em condições de imediato julgamento. O tema da possibilidade de manifestação que coloca termo à parte da lide me é muito cara, tendo sido essa possibilidade, ainda sob a égide do CPC de 1973, a questão de fundo tanto do meu trabalho de conclusão da especialização lato sensu, reduzido em artigo publicado em 20086, como também da dissertação de mestrado7. Aquilo que eu denominava de JAPIP - Julgamento Antecipado da Parte Incontroversa do Pedido é a ideia que lastreia a construção trazida no art. 356 do atual CPC. Quando há um pedido ou parte dele sobre o qual não se estabeleça dissonância, é premente que a decisão seja proferida prontamente, sem que se postergue a solução para o momento em que todo o objeto da demanda se mostre em condições de ser sentenciado. Na hipótese do REsp 2.189.143 julgado pelo STJ, nos exatos termos da lei, foi dada decisão decretando o divórcio, julgando tal pedido, mantendo-se a lide quanto aos demais pontos, constando do acórdão até mesmo a afirmação de que "a decisão que decreta o divórcio é definitiva, não podendo ser alterada em sentença". Nota-se, portanto, que trata-se de manifestação exauriente do magistrado, capaz de produzir coisa julgada em não sendo interposto o recurso cabível no prazo legal. E é exatamente sobre a questão do recurso cabível que entendo que é pertinente tecer algumas considerações breves. O art. 356 do atual CPC, ao trazer o § 5º, assevera que, em sede de Julgamento Antecipado Parcial do Mérito, o recurso cabível seria o agravo de instrumento. O ponto que se suscita aqui é: qual a natureza dessa decisão? Sentença, segundo nosso ordenamento jurídico, é "o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução", conforme o disposto no art. 203, § 1º do CPC. Decisão interlocutória seria, de modo excludente, a decisão que não possa ser enquadrada como sentença. Seguindo esses parâmetros, me parece sólido se poder afirmar que a decisão proferida com base no art. 356 cumpre os requisitos de uma sentença, com relação àquele pedido em específico. Aquela parte da lide não será mais objeto de deliberação daquele magistrado, de forma que, se for considerado cada pedido uma lide independente, aquele estaria finalizado. Assim, ignorando-se o fato de se tratar de uma decisão que se reveste de natureza jurídica de sentença, face ao seu conteúdo decisório, a legislação determina que esta venha a ser atacada com o recurso que se manuseia para enfrentar decisões interlocutórias. A escolha pelo recurso de agravo parece fundada no dogma da unicidade da sentença (della unità e unicità della deciozione), o qual não está expresso na lei, e que nos leva a enfrentar mais uma das facetas de nosso estado esquizofrênico8, no qual uma decisão definitiva, que põe termo a um pleito, será atacada por agravo de instrumento ou por apelação, dependendo do momento em que foi proferida, mesmo que o parâmetro da lei para definir se a decisão comporta contornos de uma sentença esteja vinculado ao seu conteúdo e não ao instante em que é proferida9. Essa questão, em verdade, nos parece meramente acadêmica e de pouca relevância prática, já que, se houver mesmo a incontrovérsia, nenhum recurso haverá de ser conhecido ante a falta de sucumbência do recorrente. No caso exato do REsp 2.189.143, sendo o pedido apresentado por um dos cônjuges não haveria nenhum aspecto que pudesse sustentar um recurso, já que nenhum dos consortes "perdeu" nada, inexistindo, assim, o requisito elementar para expressar qualquer inconformismo com a decisão proferida recurso. Recorte de gênero Questão que não foi muito explorada quando se mencionou a decisão do REsp 2.189.143 está relacionada com um elemento de gênero que envolve o caso em específico. Da leitura do acórdão se verifica que a cônjuge "deixou o lar conjugal juntamente com sua filha" em razão de um "desentendimento entre o casal", tendo retornado "ao imóvel após a concessão de tutela de urgência, para que o recorrido fosse retirado da residência comum" e que, face "a situação de violência doméstica, a recorrente obteve medidas protetivas que impuseram ao réu a proibição de se aproximar de si e manter consigo qualquer contato". Constata-se, assim, que, em caso, não apenas havia a potestatividade que é inerente ao divórcio a fundamentar o pleito, mas também a existência de uma constatação prévia de violência doméstica que ensejou na determinação de medidas protetivas. Qual seria a objeção do cônjuge afastado do lar ao divórcio liminar? Que o casamento fosse mantido para que a violência pudesse ser restabelecida? Tentar fazer com que, judicialmente, houvesse a imposição de uma reconciliação, reeditado uma práxis muito comum em outros tempos? Forçar a manutenção do casamento visando o interesse social da perpetuação da "família tradicional"? A atual dinâmica social demonstra que a concessão liminar do divórcio não traria qualquer prejuízo para a sociedade ou mesmo para o casal. A visão tradicional que sempre laborou por manter a todo custo um casamento já se mostra amplamente defasada. Tratava-se de uma concepção totalmente pautada em uma sociedade que via a mulher como um simples apêndice do marido, praticamente mais um dos bens que compunham o seu patrimônio. Uma mulher que pertencia ao marido, que necessitava, com base no que constava expressamente do texto legal, de sua autorização até mesmo para trabalhar. Essa visão ainda segue, mesmo já passados mais de um quarto do século XXI, impondo seus efeitos nefastos, com a manutenção da ideia de que os deveres de cuidado familiar são exclusivos das mulheres e do feminino, de forma não remunerada, como reflexo de uma condição nata. Basta considerar que a maioria dos divórcios "não consensuais", segundo o IBGE, são requeridos pela mulher10, isso depois de muito ponderar sobre as consequências econômicas que sobre ela incidirão, as quais, muitas vezes, fazem com venham a protelar o pleito de dissolução do casamento11 ou mesmo a sequer cogitar o divórcio. Com essas considerações acredito que tenha trazido lume a alguns pontos relevantes sobre o tema do divórcio liminar que merecem uma maior atenção tanto da doutrina quando do Poder Judiciário. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 155. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS, Vivian S. Divórcio post mortem. Revista dos Tribunais. São Paulo. Impresso, v.1004, p.51 - 60, 2019. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do Julgamento Antecipado da Parte Incontroversa do Pedido (JAPIP) - A Sentença Parcial de Mérito. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v.12, p.259 - 271, 2008 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do julgamento antecipado da parte incontroversa do pedido nas ações de indenização decorrentes das relações de consumo, Dissertação de mestrado em direito defendido perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Metropolitana de Santos em 2008. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ZAMBONE, Alessandra Maria Sabatine. O julgamento antecipado parcial do mérito e o exercício do direito recursal, no prelo. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui.
Foi recebida com grande alegria pela comunidade LGBTIAPN+ a decisão da 3ª turma do STJ garantindo o direito à indicação de gênero neutro no registro civil. Após ter o pedido negado nas instâncias ordinárias, com o TJ/SP fundamentando seu entendimento em premissas como a previsão de que o "ordenamento jurídico prevê apenas a existência dos gêneros feminino e masculino", bem como que "a eventual adoção do gênero neutro exigiria antes um amplo debate e o estabelecimento de uma regulamentação a respeito", o processo chegou ao STJ que, em decisão unânime, entendeu pela possibilidade de retificação do registro civil a fim de que dele passasse a constar, no campo designado para o sexo, a expressão "gênero neutro", consignando o órgão colegiado que, em que pese a carência de legislação específica versando sobre o tema, inexiste razão jurídica a lastrear uma "distinção entre pessoas transgênero binárias - que já possuem o direito à alteração do registro civil, de masculino para feminino ou vice-versa - das não binárias, devendo prevalecer no registro a identidade autopercebida pelo indivíduo"1. O posicionamento adotado se lastreia na ideia do direito à autodeterminação de gênero e à identidade sexual, aspectos que se associam de forma plena com o "livre desenvolvimento da personalidade e ao direito do ser humano de fazer as escolhas que dão sentido à sua vida", tendo ainda destacado o órgão colegiado que "a decisão não elimina o registro de gênero da certidão de nascimento, mas apenas assegura à pessoa o reconhecimento formal de sua identidade"2. Nas palavras da ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, "Todos que têm gênero não binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei"3. Como o processo tramita em segredo de justiça, não se tem acesso aos exatos termos dos autos, mas segundo o material disponibilizado pelo STJ, a pessoa que ajuizou a ação de retificação de registro civil alegou "ter enfrentado dificuldades emocionais e psicológicas, tendo feito cirurgias e tratamento hormonal para mudar de sexo" e após ter realizado a retificação de seu registro para se adequar o nome e o "gênero" constatou que ainda assim não havia a real correspondência com a sua percepção de pertencimento, já que não se identificava como homem ou como mulher, reconhecendo-se como uma pessoa não-binária4. A questão que permeia toda essa decisão é o cerne da Coluna Direito e Sexualidade, bem como do grupo de pesquisa de mesmo nome que tenho o prazer de conduzir junto à Universidade Federal da Bahia. Trata-se do objeto dos meus estudos já há mais de 15 anos, tendo como frutos uma tese de doutorado, um estágio pós-doutoral e 2 livros específicos sobre a identidade de gênero, além de uma grande quantidade de artigos científicos que tem a sexualidade como pano de fundo. E toda essa experiência me leva a uma situação bastante peculiar ao ver a referida decisão. Um misto de alegria e tristeza. A alegria se dá por constatar que o STJ mais uma vez se coloca na vanguarda da defesa dos direitos das minorias sexuais, como se deu outrora, por exemplo, na paradigmática decisão que pela primeira vez autorizou a realização da mudança do nome e sexo nos documentos de uma pessoa em razão de sua identidade de gênero transgênero independentemente da realização prévia de intervenções cirúrgicas ou tratamentos hormonais (REsp. 1.626.739, 4ª turma, relatoria do ministro Luis Felipe Salomão), na qual tenho a alegria de ter sido citado. Toda sorte de decisão que possa conferir alguma proteção à integridade da pessoa transgênero, garantindo-lhe os direitos mais elementares que são ofertados a todo e qualquer cidadão5, calcados em parâmetros basilares insculpidos nos Direitos Humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade, merece aplausos e deve ser sempre enaltecida. Contudo não há como simplesmente ignorar as questões preocupantes que circundam tal decisão, especialmente por revelar a institucionalização de uma das maiores preocupações que me acompanham nessa intersecção entre direito e sexualidade, a qual tem sido expressa em inúmeros textos por mim publicados, tanto nessa coluna como em outros escritos. A enorme confusão existente entre a concepção técnica de cada um dos pilares de sustentação da sexualidade6 segue causando seus efeitos, fazendo com que a compreensão inadequada dos conceitos venha a gerar equívocos técnicos preocupantes. Mesmo quando eles acabam acertando e gerando um benefício para um grupo tão vulnerabilizado como as minorias sexuais, não podemos nos furtar de cumprir com nossa responsabilidade acadêmica e científica e indicar os equívocos. Não foram poucas as vezes que aqui mesmo nessa coluna me coloquei quanto ao risco de se confundir a concepção técnica do que há de ser compreendido, ao menos no universo jurídico, como sexo e gênero. Já relatei minhas considerações com relação às consequências dessa confusão tanto de forma geral7 quanto específica, como no pacote antifeminicídio (lei 14.994/24)8, no que consta da Declaração de Nascido Vivo9 e Registro de Nascimento10, manifestando-me com relação à premência de que o Estado brasileiro como um todo venha a adotar uma padronização quanto aos elementos que versam sobre a sexualidade11. A questão da utilização da expressão "não-binário" no registro foi objeto específico do capítulo 5 do meu "Manual de Direitos Transgênero", na seção 5.1.1, denominada de "A impropriedade técnica da mudança do gênero no documento"12. Ali menciono expressamente que, apesar de toda a luta em busca da proteção das minorias sexuais que pauta meu trabalho, não posso me furtar a discutir toda a impropriedade técnica que circunda a ideia de se admitir a "alteração da informação do gênero nos documentos", exatamente porque o que há de ser consignado nos documentos é o sexo, laborando com a distinção elementar de que não há de se misturar o que seja cada um desses aspectos da sexualidade. A institucionalização dessa confusão entre sexo e gênero não passa incólume, gerando um efeito cascata13 que culmina na imposição de se argumentar sobre a impropriedade técnica de tal decisão, mas de também reconhecer a adequação social de se mudar os documentos da pessoa quando ela não se reconhece inserida no contexto do gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Se houvesse a adequada compreensão e correta utilização de nomenclaturas quanto aos parâmetros da sexualidade não haveria qualquer celeuma a ser resolvida, pois não teríamos que conviver com a imprecisão de tratar o sexo na perspectiva binária de "masculino" e "feminino", e sim como homem/macho, mulher/fêmea e intersexo14. O pior é nos depararmos com assertivas como a indicada no material disponibilizado pelo STJ, que afirma que na decisão proferida pelo TJ/SP haveria a afirmação de que o "ordenamento jurídico prevê apenas a existência dos gêneros feminino e masculino". De se notar que nem a lei de registros públicos, nem o Código Civil mencionam gênero, tampouco afirmam que há uma perspectiva binária a ser seguida, sendo certo que até mesmo a lei que estabelece as normas para a DNV - Declaração de Nascido Vivo não o faz, como se pode verificar do art. 4º, III, da lei 12.662/12, surgindo tal construção binária apenas no modelo desse documento, apresentado pelo anexo II da portaria 116, de 11/2/2009, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde15. Entendo até mesmo que a exposição dessa informação nos documentos de identificação revela-se como uma manifesta ofensa ao direito à intimidade, sendo inconcebível sua manutenção no chamado novo RG, pontuando que a informação quanto ao sexo, constante da DNV - Declaração de Nascido Vivo, haveria de ser protegida, não sendo nem mesmo exposta na certidão de nascimento, salvo solicitação expressa devidamente fundamentada16. Como afirmo no "Manual dos Direitos Transgêneros" é preponderante deixar claro que a questão aqui passa totalmente ao largo do direito à autodeterminação, recaindo especificamente sobre a análise dos motivos pelos quais tal informação quanto a sexualidade consta dos documentos oficiais, bem como da absoluta impropriedade de se confundir o que há de ser entendido como sexo e como gênero.  Se o que consta dos documentos decorre do que é aferido pelo médico quando do nascimento de uma pessoa qual seria a plausibilidade de se acreditar que aquela informação esteja atrelada ao gênero, considerando que esse é decorrente de uma construção social? O que o recém-nascido expressou que fez com que se constatasse seu gênero? O que é aposto na DNV é tão somente o reflexo de uma constatação visual que relaciona o sexo biológico com base no fenótipo apresentado pelo recém-nascido, associando a existência de um pênis e bolsa escrotal ao homem/macho, contraposto com a ausência dessas estruturas para a configuração da mulher/fêmea, como se isso fosse uma indubitável consequência de ser portador de uma estrutura genética binária de XX ou XY, que cientificamente não se consubstancia, ainda mais quando se tem em mente que existem 150 variações17 entre esses "opostos". O fato é que a decisão do STJ quanto a possibilidade de aposição da informação de "gênero-neutro" no campo destinado ao sexo não é conduta isolada do Poder Público sobre o tema, podendo se constatar que existem provimentos de alguns Tribunais de Justiça, como o do Estado da Bahia (provimento conjunto 8 CGJ/CCI/2022-GSEC) e o do Estado do Rio Grande do Sul (provimento 16/22) a manifestar-se institucionalmente com relação à acolhida de tal sorte de pleito. Com base em todo o exposto é que mais uma vez afirmo que não sei se tal decisão me alegra ou entristece, pois ainda que seja claramente favorável que a alteração ocorra em razão dos aspectos sociais que a permeiam não há como não constatar que ela é fruto de uma série de equívocos que revelam a falta de letramento institucionalizado quando se está diante de um tema tão relevante quanto a sexualidade. As batalhas travadas pelas minorias sexuais seguem atingidas por uma premissa que ainda vai exigir muito daqueles que buscam a concessão dos direitos elementares a elas pois mesmo quando ganhamos, perdemos. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.  5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 312 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.  9 Disponível aqui.  10 Disponível aqui.  11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez. 2024 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 93. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 94. 14 CUNHA, Leandro Reinaldo da; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. Intersexolidade e intersexualidade das pessoas intersexo: confusão e invisibilidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 147-165, 2023. 15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 87. 16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 97. 17 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; ALBUQUERQUE, Céu Ramos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. 150 variações intersexo. Paraná: CRV, 2024.
Como tem sido tratado de forma recorrente na presente coluna a realidade das minorias sexuais é bastante delicada, sendo certo que em dados casos, como o que ocorre com a população transgênero, podemos até mesmo afirmar que nos encontramos diante de uma experiência de genocídio trans1. Ainda que seja inquestionável que as pessoas transgênero são detentoras de todos os direitos que são garantidos como fundamentais a qualquer cidadão é evidente que, na prática, são condenadas a viver em uma constante luta para simplesmente sobreviver2, o que é manifestamente atentatório aos parâmetros mais elementares de um Estado Democrático de Direito que tem o ser humano e a sua integridade como centro. Muito dessa situação tem origem em um Poder Público que expressa quase nenhuma consideração com relação às minorias sexuais, o que se manifesta de forma incontestável na leniência legislativa que é uma marca de um Estado que claramente não tem qualquer preocupação em resguardar a integridade e cidadania daqueles que não se inserem entre os detentores das rédeas do poder constituído3. A proteção que é de se esperar que seja ofertada às minorias em uma democracia, considerando a essência do que caracteriza esse sistema de governo, se mostra totalmente apartada do que se pode constatar daquilo que é a vivência de uma pessoa transgênero na sociedade brasileira, já que a ela é reservada a imposição de conviver constantemente com ofensas e agressões que tem o condão de colocar em risco a higidez do tecido social que estrutura esse Estado4. Uma das várias formas que acabam sendo institucionalizadas de tortura5 e até mesmo de busca do extermínio6 da população transgênero está no seu estrangulamento econômico oriundo da evasão escolar, ínfima inclusão no mercado de trabalho formal, acesso apenas a profissões de baixa remuneração ou marginalizadas. Tais fatos ajudam a colocar as pessoas pertencentes a esse grupo em uma situação extremamente preocupante. Considerando os deveres mais nucleares que norteiam um Estado Democrático de Direito é premente que o Poder Público atue visando conferir o elementar a essas pessoas. Contudo nada é feito, de sorte que nos cabe compreender os parâmetros atualmente existentes em busca de viabilizar o efetivo acesso aos direitos fundamentais a parcela da população tão necessitada. Nesse contexto podemos buscar algum tipo de suporte no universo do direito previdenciário, calcado na premissa de que ele se baseia no âmbito dos direitos sociais, com o escopo básico de viabilizar condições mínimas para o sustento da pessoa quando esta não tiver condições, ou estas se mostrarem reduzidas, de desenvolver atividades laborais que possam garantir o seu sustento. Ordinariamente as discussões nessa seara estão atreladas a uma aposentadoria por tempo de serviço, considerando todo o período que essa pessoa contribuiu para a previdência na expectativa de poder gozar dos benefícios de uma renda que lhe permita viver quando em uma idade na qual já não tenha mais as mesmas condições de atuar no mercado de trabalho. Ocorre, contudo, que a possibilidade de que uma pessoa transgênero tenha condições para acessar ao INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, para requerer a concessão de uma aposentadoria é praticamente nula por duas razões básicas: a enorme violência que costuma vitimar as pessoas transgênero antes da idade em que poderiam se aposentar7 e a ínfima inserção no mercado de trabalho já mencionada8. Por tais motivos é que se constata a baixa incidência de estudos mais sólidos sobre o tema em nossa doutrina, sem a existência de uma jurisprudência versando sobre os direitos previdenciários das pessoas transgênero. Todavia é de se mencionar uma perspectiva atrelada ao direito previdenciário que merece especial atenção e que vem sendo suscitada nos últimos tempos, como expressamente desenvolvo no Manual dos Direitos Transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis, que é a possibilidade de que uma pessoa transgênero possa acessar ao BPC - Benefício da Prestação Continuada. A pequena presença das pessoas transgênero no universo de atuação do direito previdenciário leva a uma total carência de dados que possam indicar qual seria o efetivo impacto econômico da eventual concessão de qualquer benefício previdenciário9 a fim de conferir uma renda mínima que permita que essa minoria sexual possa ter uma existência digna[10], por meio da criação de um instituto específico para esse fim. De qualquer sorte uma análise do sistema previdenciário nos permite vislumbrar a real possibilidade de que pessoas transgênero possam acessar a um benefício já existente, qual seja, o  BPC que, essencialmente, se destina àqueles que a lei considera como sendo "pessoa com deficiência", ou a maiores de 65 anos que não tenham conseguido contribuir de forma a garantir o direito ao benefício por incapacidade, e que esteja em condição de miserabilidade. Com base na amplitude conferida à concepção do que possa ser considerado "pessoa com deficiência" para fins de se acessar ao BPC, considerando a sua perspectiva de estar vinculado a um programa assistencial de acesso universal e não contributivo, instituído com o fulcro de viabilizar a inserção social com contornos que podem incluir as pessoas transgênero que estejam expostas a um risco ou vulnerabilidade que inviabilize que ela possa exercer uma atividade laboral capaz de permitir a sua subsistência11. Tal possibilidade está calcada em uma premissa decorrente da estigmatização enfrentada por pessoas transgênero que pode ser associada àquela que recai sobre portadores assintomáticos de HIV, situação essa que já encontra respaldo jurisprudencial12. Essa associação com a ideia de deficiência não comunga com nenhuma perspectiva de retorno da patologização da transgeneridade, mas sim com o contexto mais abrangente que se tem dado à ideia do que poderia ser abarcado pela legislação específica do BPC - Benefício da Prestação Continuada, que trabalha com um conceito de vulnerabilidade social que a priva de "participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas" (art. 20, § 2º da lei 8.742/1993). Em verdade é possível se constatar que a premissa elementar para a concessão do BPC está pautada na presença de uma situação de incapacidade laboral, a qual não está vinculada a uma dada condição física ou psicológica que restrinja o exercício de uma atividade laborativa13. Dados como uma evasão escolar massiva (56% sem ensino fundamental, 72% sem ensino médio e somente 0,02% na universidade)14, baixa inserção no mercado de trabalho (4% da população transgênero feminina possui empregos formais, 6% em atividades informais/subempregos, e 90% encontra na prostituição a fonte primária de sua renda)15 é um manifesto reflexo da restrição socialmente imposta a que essas pessoas possam efetivamente ter condições de exercer uma atividade laborativa que lhe confira as condições mínimas de subsistência16. A concessão do BPC para pessoas transgênero mostra-se inserida nos mais estritos critérios norteadores de tal instituto, em perfeita consonância com os objetivos constitucionais de proteção social aos mais vulnerabilizados e que sustenta a Assistência Social no Brasil. O parâmetro econômico imposto de que a renda familiar não seja superior a 1/4 do salário-mínimo por pessoa, valor a ser calculado com base no que consta do CadÚnico - Cadastro Único e das demais informações existentes no sistema do INSS17 também não é uma restrição considerando a precária condição econômica que permeia a absoluta maioria das pessoas transgênero. Em verdade esse requisito se mostra mais difícil de ser demonstrado pela enorme dificuldade que as pessoas transgênero seguem tendo de possuir todos os documentos oficiais respeitando sua identidade de gênero, restrição muito maior do que aquela que o restante da população encara para ter um RG, título de eleitor ou qualquer outro documento que se faça necessário para ser inserida no CadÚnico. Ao se constatar a existência da concessão do BPC em casos que se mostram muito próximos daquele que atinge as pessoas transgênero, especialmente se considerando o contexto da segregação e estigmatização18 que as priva do efetivo acesso ao mercado de trabalho, é de se considerar que qualquer obstáculo que seja criado para o acesso ao referido benefício se mostra como a consolidação da institucionalização de um projeto de extermínio dessa minoria sexual19. É notório que ideal seria a existência de uma política pública especialmente voltada para a eliminação da discriminação enfrentada pelas pessoas transgênero, que se mostrasse efetiva em garantir acesso à educação20, conferindo-lhes meios para poderem inserir-se no mercado de trabalho formal sem ter que lidar com todos os obstáculos que emanam da discriminação e estigma que encaram na sociedade, sem que precisassem recorrer a nenhum tipo de assistência governamental. Contudo estamos ainda muito distantes dessa realidade, mesmo na proximidade de atingirmos mais de 1/4 do século XXI. Ainda vivemos em uma sociedade em que a identidade de gênero de uma pessoa, por não se mostrar inserida naquele padrão esperado, é suficiente para relegá-la a uma condição sub-humana. Mas ainda há quem diga que as lutas das pessoas transgênero são "mimimi" ou que o objetivo é criar pessoas com super-direitos21, numa expressão clara da fragilidade que tradicionalmente caracteriza as maiorias22. Em verdade, a grande batalha travada é simplesmente conseguir que sejam reconhecidos como humanos e tenham acesso aos direitos humanos e fundamentais mais basilares, como sobreviver. Porém, para muitos, a simples tentativa de ser visto como um ser humano por parte das pessoas transgênero é entendida como uma afronta. Que eu possa, como um aliado da causa, seguir auxiliando nessa insistência afrontosa das pessoas transgênero em continuar existindo. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 216. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 83. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 59. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A importância da verificação dos dados e o risco para a credibilidade das pautas LGBTIAPN+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.4, n.2, p. III - VIII, 2023. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 195. 9 Heloísa Helena Silva Pancotti. Previdência social e transgêneros. Proteção previdenciária, benefícios assistenciais e atendimento à saúde para transexuais e travestis. Curitiba: Juruá, 2019, p. 121. 10CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 216. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 216. 12 Heloísa Helena Silva Pancotti. Previdência social e transgêneros. Proteção previdenciária, benefícios assistenciais e atendimento à saúde para transexuais e travestis. Curitiba: Juruá, 2019, p. 157. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 217. 14 Disponível aqui. Acesso em 30/4/23. 15 Disponível aqui. Acesso em 30/4/22 16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 217. 17 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 147. 18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 44. 19 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 59. 20 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 184. 21 Disponível aqui. 22 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 55.
No dia 16/4/25 a sociedade brasileira foi apresentada a mais uma das manifestações do CFM - Conselho Federal de Medicina relacionada a questões vinculadas à sexualidade, com a publicação da resolução 2.427/25 que, segundo release que pode ser encontrado no próprio portal do conselho, "revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero"1. O texto, apesar de se afirmar decorrente de um "longo processo de discussão e análise", tendo considerado "estudos clínicos sobre o assunto e experiências em outros países na tentativa de formular um documento moderno e ancorado em critérios técnicos sólidos" é, no mínimo, de qualidade questionável. Farei aqui uma rápida análise sobre o conteúdo da resolução, sendo certo que em breve apresentarei um artigo científico com uma apreciação mais aprofundada. O primeiro ponto que não pode ser ignorado é que a resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina, como era de se esperar, tem um viés evidentemente patologizante da identidade de gênero. Tanto é assim que logo no seu artigo inicial traz definições que pautarão o seu conteúdo. Nesse contexto, define: Pessoa transgênero: Indivíduo cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo de nascimento, não implicando necessariamente intervenção médica; Incongruência de gênero: Discordância acentuada e persistente entre o gênero vivenciado de um indivíduo e o sexo atribuído, sem necessariamente implicar sofrimento; Disforia de gênero: Grave desconforto ou sofrimento que algumas pessoas experienciam devido a sua incongruência de gênero. O diagnóstico de disforia de gênero deverá seguir os critérios do DSM-5-TR - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou o que vier a atualizá-lo. Em uma hermenêutica básica, e considerando que o próprio texto da resolução não indica na definição de quem seja uma pessoa transgênero qualquer elemento que possa ser associado a uma condição que exija tratamento em busca de uma "cura", nada do que dela consta se aplica a quem se identifica como uma pessoa transgênero, salvo quando expressamente o afirme, como o faz no art. 7º.  Assim, não se pode trazer qualquer interpretação restritiva com relação a acesso aos procedimentos ali descritos, estando suas determinações direcionadas especificamente para quem apresente uma incongruência de gênero, com "discordância acentuada e persistente", ou uma disforia de gênero, com um "grave desconforto ou sofrimento". Quando não o fizer expressamente, suas previsões não se estendem a pessoas transgênero, nos termos fixados na própria resolução (aquele que tenha uma "identidade de gênero que não corresponde ao sexo de nascimento"). Superada essa introdução de cunho hermenêutico, é possível se questionar a adequação das definições utilizadas, especialmente aquela que é trazida para indicar o que seria uma pessoa transgênero, exatamente por afirmar que seria quem tem uma identidade de gênero que "não corresponde ao sexo de nascimento". Seguindo na batalha constantemente travada em minhas atividades em aulas e palestras, bem como em meus escritos, a pessoa transgênero apresenta uma condição na qual ela não se identifica com o GÊNERO que era esperado em razão do SEXO que lhe foi atribuído quando do seu nascimento2. Não ignoro que a definição descrita na resolução é mera reprodução do que consta da CID-11 - Classificação Internacional de Doenças, contudo urge que seja indicado de forma precisa qual é a realidade experienciada pela pessoa transgênero, a fim de tornar clara a compreensão baseada nos pilares da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero). A própria expressão que define a referida condição é clara em indicar que estamos diante de uma questão que se assenta no gênero (expressão social da sexualidade) e não no sexo (configuração biológica), já que se trata de identidade de gênero e não de sexo. A incompatibilidade manifestada, portanto, se vincula ao gênero que se espera que ostente em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento. Outro ponto que suscita dúvida é: toda pessoa transgênero apresenta uma incongruência de gênero? Pela forma como o texto foi construído, aparentemente o CFM - Conselho Federal de Medicina considera existir uma gradação: a mera não correspondência sexo/gênero seria a característica da pessoa transgênero; a discordância acentuada e persistente marcaria a incongruência de gênero; e, finalmente, a disforia de gênero estaria vinculada a um grave desconforto ou sofrimento. Tecnicamente não parece ser a melhor construção, mas foi assim que entendeu por bem descrever o CFM - Conselho Federal de Medicina. Se o texto da resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina não apresenta a acuidade técnica que permitiria a plena compreensão do tema ao qual se destina, especialmente ao se considerar que trata-se do texto que será utilizado pelos profissionais da saúde em sua atuação, é de se esperar que o que virá a seguir não será exatamente um primor. Pondero, também, que qualquer consideração emanada pelo CFM - Conselho Federal de Medicina que não se atenha exclusivamente a critérios clínicos, devidamente fundamentados, há de ser rechaçada por não se inserir no escopo precípuo de atuação daquele conselho. Partindo-se dessas premissas, direciono meu olhar para as diretrizes de fundo que podem ser encontradas na resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina. Considerando o parâmetro fixados pela CID-11 - Classificação Internacional de Doenças atualmente vigente, a incongruência de gênero, que encontra-se descrita no art. 1º da presente resolução, não se configura como uma patologia, mas sim como uma condição sexual. Definida lá como uma "marcante e persistente falta de alinhamento entre o gênero vivenciado por um indivíduo e o sexo atribuído", como consta do item 17, nos códigos HA60 (incongruência de gênero na adolescência ou na idade adulta), HA61 (incongruência de gênero na infância) e HA62 (incongruência de gênero não especificada), insere-se como uma mera "condição relacionada à saúde sexual". Assim, trata-se de "uma condição que merece atenção médica, em que pese não se configurar como uma doença"3, afastando-se do antigo travestismo que, como indicava o sufixo, estava associado a uma doença como constava da anterior CID-10 - Classificação Internacional de Doenças. Não sendo sobre questões vinculadas ao tratamento do desconforto ou sofrimento psicológico, condição descrita no DSM-V - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, sob os códigos 302.6 (F64.2) e 302.85 (F64.1), é necessário que se conduza a análise sob a perspectiva de condição sexual apresentada por aquela pessoa, tal qual ocorre com a gravidez. Não sendo o objetivo da resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina definir, em verdade, o que é pessoa transgênero, incongruência de gênero ou disforia de gênero, é de se entender que o seu intuito é, em verdade, definir quais as condutas médicas que podem ser adotadas quando do diagnóstico de qualquer dessas condições. Nesse sentido, surge o art. 5º, versando sobre hormonioterapia visando bloqueio hormonal, determinando a vedação da prescrição de bloqueadores hormonais para crianças e adolescentes, excluindo as situações em que se configure uma "puberdade precoce ou outras doenças endócrinas, nas quais o uso de bloqueadores hormonais é cientificamente indicado".  A resolução anterior que tratava do tema (resolução 2.265/19 do CFM - Conselho Federal de Medicina) permitia a atuação com o objetivo de bloqueio puberal objetivando impedir a consolidação hormonal vinculada ao sexo gonadal, exatamente a partir da puberdade, com critérios fixados no art. 9º, § 2º. O texto previa também a possibilidade que esse bloqueio fosse interrompido "por decisão médica, do menor ou do seu responsável legal"4. Já naquele momento eu afirmava que tal procedimento haveria de ser indicado levando em consideração as particularidades de cada indivíduo, vez que a puberdade pode se dar em momentos distintos para cada pessoa (dos 8 aos 13 anos de idade nas meninas e dos 9 aos 14 anos de idade nos meninos), sem a imposição de um parâmetro etário fixo5. Interessante notar que a nova posição adotada afirma se fiar em estudos que revelam haver uma "dúvida em relação ao uso de bloqueadores hormonais" que teria conduzido "recentemente, diversos países [a] proibirem ou restringirem seu uso, inclusive países de viés claramente liberal em questões de costumes", em um "movimento [que] tomou força a partir de 2020, um ano após a publicação da resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina".  Chama a atenção a assertiva de que a mudança teria ocorrido até mesmo em "países de viés claramente liberal em questões de costumes", como se o tema não fosse científico, mas sim estivesse calcado em um viés de discricionariedade política. No mínimo, inusitada essa "defesa prévia". Mas o grande questionamento que se faz é: a quem tal regra se aplica? Às pessoas transgênero, a quem tem incongruência de gênero ou a quem tem disforia de gênero? Pela construção técnica que estrutura a resolução é de se entender que ela se aplicaria apenas para o "tratamento de incongruência de gênero ou disforia de gênero", como descreve expressamente o caput do art. 5º da resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina. Ainda nesse contexto, encontramos diversos estudos que se posicionam favoravelmente à realização de bloqueio puberal, por poderem propiciar benefícios funcionais e de saúde mental, além de reduzir o sofrimento relacionado ao gênero6, ou que a supressão da puberdade pode ser considerada uma contribuição valiosa no manejo clínico da disforia de gênero em adolescentes7. Aparentemente a certeza que outrora fez com que o CFM - Conselho Federal de Medicina se manifestasse quanto a possibilidade da utilização do bloqueio hormonal se diluiu, ainda que se possa encontrar inúmeros estudos recentes amplamente favoráveis a tal tipo de hormonioterapia.  Já a terapia hormonal cruzada, que antes era autorizada pelo CFM - Conselho Federal de Medicina a partir dos 16 anos, agora só seria possível após os 18 anos, e precedida por uma "avaliação médica, com ênfase em acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por, no mínimo, 1 (um) ano antes do início da terapia hormonal" (art. 6º). Importa notar que o texto da resolução que trata da terapia hormonal cruzada não indica se a restrição ali prevista se aplica a todas as hipóteses definidas no art. 1º, de sorte que podemos interpretá-la de maneira a entender que apenas incida sobre aqueles que apresentam disforia de gênero, não se aplicando a quem não demonstrar desconforto ou sofrimento psicológico.  Outro ponto interessante que se pode constatar é que quando a resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina passa a tratar das intervenções cirúrgicas, no art. 7º, expressamente menciona que o texto ali consignado se aplica à "atenção médica especializada a pessoa transgênero para cirurgias de redesignação de gênero". Note que especificamente adota a expressão "pessoa transgênero", o que conduz à conclusão que o que consta do art. 5º e do art. 6º não se aplica a elas. Seguindo na análise do art. 7º, verifica-se que o CFM - Conselho Federal de Medicina mantém a "fixação" que costumeiramente apresenta com relação aos 21 anos de idade, sem qualquer parâmetro8. Agora, contudo, tenta sustentar-se em outro equívoco legal, consignado na lei 14.443/22 (que trata de técnicas e métodos contraceptivos), apenas permitindo que elas ocorram antes desse marco etário se não implicarem em potencial efeito esterilizador. Aqui também se vê uma impropriedade técnica nas expressões utilizadas pelo CFM - Conselho Federal de Medicina já que nenhuma intervenção cirúrgica tem o poder de alterar o gênero, de forma que as cirurgias apenas mudam o físico da pessoa transgênero, tornando-o mais condizente com o seu gênero, mas não redesignam o gênero. Essa chamada redesignação já aconteceu de fato, sendo que as intervenções cirúrgicas realizadas apenas têm o objetivo de afirmar o gênero com o qual aquela pessoa se identifica e reconhece9. Findas as análises vinculadas à hormonioterapia e aos procedimentos cirúrgicos, é possível trazer um argumento crítico a ser considerado. Não vemos essa atuação do CFM - Conselho Federal de Medicina com o intuito de regulamentar, fiscalizar e acompanhar a utilização de hormônios com fins estéticos ou mesmo intervenções cirúrgicas em pessoas cisgênero, como no caso uso de hormônios por praticantes de atividades físicas ou implantes de silicone mamários10. Com essas ponderações, convido a quem acompanha essa coluna a pensar: existe um viés político na resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina ou ela é totalmente pautada em critérios científicos? Tire suas próprias conclusões... ____________ 1 Disponível aqui. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da; D'ALBUQUERQUE, Teila Rocha Lins. Responsabilidade civil ante a violação póstuma da identidade de gênero. In: CUNHA, Leandro Reinaldo da; MATOS, Ana Carla Harmatiuk; ALMEIDA, Vitor. Responsabilidade civil, gênero e sexualidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024, p. 132. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 14. 4 Disponível aqui. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 21 6 Wright, D., Pang, K.C., Giordano, S. and Gillam, L. (2025), Evaluating the benefits and risks of puberty blockers and gender-affirming hormones for transgender adolescents. J Paediatr Child Health, 61: 7-11 7 de Vries, A.L.C., Steensma, T.D., Doreleijers, T.A.H. and Cohen-Kettenis, P.T. (2011), Puberty Suppression in Adolescents With Gender Identity Disorder: A Prospective Follow-Up Study. The Journal of Sexual Medicine, 8: 2276-2283. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 18. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 26.
A concepção de família é tema que tem sido objeto de atenção da presente coluna bem como de outros escritos que tenho produzido nos últimos tempos, de forma que já tenho consignado que se trata de uma questão que merece especial cuidado face todos os desdobramentos que dela decorrem. Mesmo sob a égide de um Estado Democrático de Direito que se encontra lastreado em uma Constituição Federal que assevera que vivemos em um Estado laico, é possível se constatar de forma bastante simples e direta que quando o tema envolve a ideia do que há de ser entendido como família existe uma enorme incidência de preceitos de cunho religioso e moral que têm o poder de esvaziar toda a vitalidade da premissa constitucional da laicidade do Estado. São inúmeras as situações nas quais a compreensão do que seja família, bem como dos elementos que permeiam o Direito de Família, acabam esbarrando em dogmas que se mostram atrelados a uma perspectiva de cunho religioso, o que enseja em uma restrição a todo aquele que ousa exercer a sua liberdade e constituir sua família segundo parâmetros que não se mostram perfeitamente adequados aos preceitos religiosos que regem o nosso ordenamento jurídico. Como já mencionado anteriormente até mesmo nessa coluna, não se trata de impor à maioria que venha a submeter-se às visões de mundo dos grupos minoritários, mas sim que estes possam efetivamente exercer a sua liberdade e estabelecer seus relacionamentos segundos os critérios que se mostrarem mais convenientes para o seu modo de ver a vida1. Durante muito tempo a única forma que o Estado concebia de estruturação familiar passava necessariamente pelo matrimônio, baseado em requisitos de fundo religioso e atrelado a um caráter vitalício2. Apenas aqueles que estivessem unidos pelos laços do casamento é que fariam jus às benesses garantidas pelo Direito de Família. Ainda nesse contexto, em razão de todo viés religioso que acompanhou a elaboração da legislação referente ao tema, se tinha como um requisito intransponível, ainda que não encontrasse previsão expressa do corpo da lei, que o casamento só poderia ser estabelecido quando houvesse diversidade sexual entre os nubentes. Sempre que menciono essa compreensão, prevalente enquanto da vigência do Código Civil de 1916, ressalto a construção que era apresentada   Pontes de Miranda de que a diversidade sexual seria tão natural que se mostrava desnecessária a sua determinação de forma expressa no corpo da lei3, em manifesto desprezo ao princípio da legalidade que pugna pela garantia da possibilidade de atuação sempre que não exista norma expressamente vedando a prática. O fato inafastável é que a concepção de família que norteou o legislador quando do Código Civil de 1916 se mostrava vinculada a uma ideia de que o propósito dessa família passaria necessariamente pela regularização da prática de atos sexuais e constituição de uma prole, revelando que a compreensão do que poderia ser reconhecido como família estava conectado, de forma indissociável, a aspectos da sexualidade daquelas pessoas que pretendiam se unir. Toda essa questão foi enfrentada no início da década passada quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre a discussão da possibilidade do estabelecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo4, decidindo, na ADI 4.277 e na ADPF 132, pela possibilidade da configuração de entidades familiares independentemente da existência de diversidade sexual entre aqueles que compunham aquela família5. Essa decisão oxigenou um pouco a discussão sobre o tema, reconhecendo direitos a famílias que não eram assim consideradas em razão de uma interpretação segregatória, que culminava em discriminação que tinha por base a sexualidade tida por dissonante das pessoas que as integrava. Mesmo enfrentando posicionamentos contrários6, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) foi bem recebida pela sociedade, aparentemente por se ter entendido que aqueles relacionamentos efetivamente estavam baseados nos parâmetros ordinários de concepção de uma família. Porém o passar do tempo nos brindou com toda a polarização política que se faz presente nos dias atuais, trazendo com ela uma equivocada visão de que reconhecer Direitos Humanos e acolher os pleitos das minorias, principalmente as sexuais, estaria atrelado a um viés político. A isso veio a somar-se uma crescente falácia de que as questões vinculadas à sexualidade mereceriam ser rechaçadas de pronto, segundo uma interpretação bastante questionável dos preceitos religiosos. Assim, vivemos dias em que temas associados à constituição de entidades familiares que não estejam perfeitamente enquadradas nos critérios considerados tradicionais tornou-se objeto de discussão político-partidária, em nível possivelmente sem precedentes, fazendo com que encontrem uma resistência que eu, talvez por inocência, já julgava estar superada7. Dentre os vários temas associados à família que tem gerado celeuma se encontra o das famílias simultâneas, as quais podem ser entendidas, de maneira bastante singela, como aquelas nas quais se constata a existência de uma pluralidade de relacionamentos concomitantes, seja por meio da convivência conjunta de mais de duas pessoas, seja pelo estabelecimento de dois ou mais núcleos familiares concomitantes8. O objeto da presente coluna não é exatamente discutir as modalidades possíveis de relacionamentos concomitantes, nem mesmo os requisitos eventuais para que possam ser reconhecidas, mas sim levar o leitor a refletir sobre algumas questões fáticas que atualmente se fazem presentes no Direito de Família. Partindo dos critérios mínimos estabelecidos na lei para o reconhecimento de uma entidade familiar, independentemente da sua formalização perante o cartório, exige-se, para a configuração de uma união estável, que exista uma convivência pública, contínua e duradoura, com objetivo de constituir família, nos termos descritos no art. 1.723 do Código Civil. Ainda que possa haver ponderações relativas aos requisitos indicados9, pode-se afirmar que o elemento volitivo reveste-se de um caráter de elevada relevância. Assim, família é algo que necessariamente decorre da existência de animus. É possível se falar em maternidade ou paternidade independentemente de uma real vontade de ser pai ou mãe, servindo de exemplo clássico as inúmeras hipóteses em que os genitores são compelidos a reconhecer a paternidade de seus filhos. Contudo o estabelecimento de uma família, em seu vetor horizontal, fundado na existência de um relacionamento afetivo-amoroso, considerando a essência do que isso significa, parte necessariamente do desejo e interesse de que ela venha a ser constituída como tal10. Infelizmente, atualmente, o desejo manifesto das pessoas quanto ao reconhecimento de que as famílias que escolheram constituir possam gozar de proteção legal tem enfrentado uma série de obstáculos e restrições baseados, claramente, em preceitos morais e religiosos que não se coadunam com os parâmetros estabelecidos em nosso Estado Democrático de Direito. Sendo configurado que um indivíduo tenha uma convivência pública, contínua e duradoura, com objetivo de constituir família, com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, o seu interesse não será levado em consideração para fins de proteção legal dessas entidades familiares. Não importa o seu desejo ou sua compreensão de que aquelas são suas famílias, uma vez que o Estado tem-lhe imposto que apenas uma dessas realidades poderá ser reconhecida como família para fins de proteção legal. E o que se questiona é: por qual motivo? Em que isso importa para a coletividade? A ingerência do Poder Público nas relações de Direito de Família segue se mostrando presente e cerceadora da liberdade e autonomia, conflitando com o ideal principiológico de intervenção mínima do Estado nessa seara. A premissa de que haveria o Estado de abster-se de imiscuir-se em questões que "exaurem seus efeitos na esfera do interessado" com a prevalência do direito à autodeterminação, "sem a possibilidade de se lhe sobrepor 'un'ordre morale institutionnel'"11 segue sendo ignorada quando se trata da liberdade de constituição das famílias. Os opositores do reconhecimento das famílias simultâneas ordinariamente argumentam suas objeções em critérios de natureza econômica ou na preocupação do que será feito de um eventual patrimônio constituído por esta ou aquela pessoa. As preocupações rotineiramente revestem-se de um cunho econômico, afastando totalmente o caráter existencial da questão. No entanto tenho que confessar que nada me afasta da convicção de que essa resposta tem um fundo muito mais formal do que real, pois tal tipo de consideração não é levantada quando se discute a possibilidade de que uma pessoa tenha 2, 3, 4 ou 10 filhos. A grande verdade é que tal tipo de negativa se mostra totalmente embebida em uma ideia de moralidade que, no mais das vezes, tem uma natureza muito mais teórica do que prática, que se coloca ao lado, por exemplo, da afirmação de que a monogamia segue sendo uma regra obrigatória imposta a todos os casais e que não pode por eles ser afastada12. Muitos dos que se arvoram a bradar contra o reconhecimento da possibilidade de outras formas de entidades familiares distintas daquele conceito clássico de uniões formadas com diversidade de sexo e de forma monogâmica, na prática, não seguem tais premissas, mas se declaram como "cidadãos do bem" e defensores "da família tradicional". E isso nos conduz à necessidade de questionar exatamente o que tais pessoas entendem por família tradicional, o que certamente será objeto de discussão em texto posterior. O que se pode constatar, em verdade, é que um dos pontos a causar maior incômodo aos objetores da possibilidade da constituição de famílias simultâneas reside numa aversão ao acolhimento e reconhecimento de uma situação de fato que já se mostra consolidada, na qual prevalece a liberdade afetiva das pessoas. Não só a liberdade de estabelecer vínculos afetivos fortes, mas principalmente um terror à possibilidade de que alguém possa manter, de forma chancelada pelo Estado, relações sexuais com mais do que uma pessoa. Trata-se apenas de mais um componente da miríade de contradições que algumas pessoas ostentam em nossa sociedade. No mais das vezes, aqueles que se mostram radicalmente contra a possibilidade do reconhecimento de entidades familiares baseadas em relacionamentos tidos por não usuais, seja em razão da sexualidade daqueles que estão envolvidos nessa forma de constituição familiar, seja em razão da pluralidade de pessoas que as compõem, são as mesmas pessoas que se colocam como fervorosas defensoras da liberdade de expressão. Para elas é: Liberdade de expressão, sim. Liberdade de constituição de família, não... O preocupante é que essa concepção restritiva de direitos para aqueles que estão inseridos em uma família que se mostra fora dos padrões tem ganhado espaço socialmente e até mesmo com acolhida no Supremo Tribunal Federal (STF), que tem se afastado de sua atuação contramajoritária, como se constata da decisão proferida no RE 1.045.273, onde acabou por manifestar-se quanto a vedação da possibilidade do reconhecimento de família simultâneas, fundando-se, basicamente, na ideia de restrição quanto à pluralidade de matrimônios em razão da bigamia. Essa interpretação, que perpassou também pela inclusão da monogamia como um parâmetro inafastável, está calcada em uma hermenêutica que refuta a incidência de parâmetros basilares da Constituição Federal, em um entendimento discriminatório que afasta da proteção legal entidades familiares pelo simples fato delas não estarem perfeitamente adequadas ao que se estabelece dentro de uma compreensão tradicional. Ainda que as pessoas que compõem essa entidade familiar se vejam como família, mesmo que a sociedade as reconheça e trate como tal, o Estado segue em sua arrogância, avocando pra si a prerrogativa de determinar se aquela família é digna ou não de receber proteção13, reforçando o preconceito já institucionalizado contra as minorias14. É preponderante a necessidade de uma interpretação mais inclusiva acerca daquilo que possa ser entendido como família, sem que moralismos e preceitos religiosos venham a restringir direitos básicos, sob pena de que enfrentemos na prática, situações de grave discriminação. Trago, para que seja ponderado por quem está disposto a analisar a questão de forma crítica, uma hipótese, no mínimo, inusitada. Tem sido cada vez mais recorrente o reconhecimento, na seara judicial, daquilo que se denomina de família multiespécie, entendendo-se que animais de estimação não são meras coisas, mas sim seres sencientes, os quais são considerados como parte integrante da família, com decisões acolhendo pleitos até mesmo de guarda, visitas e pensão para os pets. Em oposição a essa visão mais abrangente do conceito de família, nos deparamos com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) vedando a possibilidade do reconhecimento de famílias simultâneas, escancarando, como já aduzido, a ofensa a preceitos clássicos como dignidade da pessoa humana, igualdade, autonomia e até mesmo a premissa elementar de mínima intervenção do Estado no Direito de Família. Essa decisão foi proferida em processo que tinha como pano de fundo uma questão de natureza previdenciária, que acabou por restringir o acesso à pensão morte apenas a uma das companheiras do falecido. Esses fatos tem me levado a fazer uma provocação àqueles com quem dialógo sobre o tema, seja nas aulas ou palestras versando sobre Direito de Família: se o pet compõem a família multiespécie e a lei veda a discriminação entre os integrantes da família, não me parece que estaríamos, logicamente, muito distantes do momento em que os cachorros venham a ser considerados quando do cálculo da renda per capta de uma família para a fixação dos parâmetros para a concessão do benefício da prestação continuada. Por mais absurda que possa aparecer a afirmação acima, a tendência dos tribunais de aceitar e reconhecer direitos à família multiespécie me faz crer que estas gozarão de uma maior gama de direitos no universo do Direito de Família do que aqueles que fazem parte de relacionamentos plurais. Que fique claro que aqui não se está fazendo qualquer crítica à proteção dos animais, tampouco ao reconhecimento das famílias multiespécie, mas sim se levantando o questionamento acerca dos motivos pelos quais o Estado se vê no direito de privar de ofertar a devida acolhida a certas famílias como entidades familiares pelo simples fato delas fugirem da composição clássica, calcada em imperativos morais e religiosos que não devem nortear um estado laico. O afeto tão festejado nos dias atuais em sede de Direito de Família parece não ter força suficiente para romper a barreira dos preconceitos fundados em uma moralidade de lastro sexual. Que o amor aos pets prevaleça. Que o amor ÀS PESSOAS também possa vicejar. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. 3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. t. VII, p. 296. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 126. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A união homossexual ou homoafetiva e o atual posicionamento do STF sobre o tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo: Metodista, v. 8, 2010. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 145. 9 Disponível aqui. 10 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 134. 11 RODOTÀ, Stefano. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017, p. 14 12 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 120. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, n. 1, p.III - VII, 2022. 14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 50.
É notório que o direito de família é uma das áreas jurídicas que sofre maior influência de aspectos atrelados à sexualidade, sendo certo que muito disso se deve à enorme presença de elementos de fundo moral e religioso incidindo sobre a constituição da própria família. Já tivemos oportunidade de discorrer um pouco sobre o tema em inúmeros momentos, tanto na presente coluna como nas demais obras, tangenciando os mais diversos elementos conexos com a relação família/sexualidade. A arrogância do universo jurídico e do Poder Público de querer se assenhorar da prerrogativa de ser o detentor do poder de definir o que efetivamente será reconhecido ou não como família é um enorme problema para todo aquele que não está inserido em uma estrutura familiar tida por tradicional ou já reconhecida 1. Nesse contexto, viceja a tentativa do Estado de colocar amarras e estabelecer de forma coercitiva o que será ou não reconhecido, para fins legais, como família, conduta revestida de elevado potencial segregatório. Basta considerar que se está partindo do pressuposto de que existe um modelo específico ou mesmo um padrão aceito de entidade familiar, o que vai de encontro com à realidade fática vivenciada pelas pessoas em nossa sociedade. Ao tratar do tema recentemente em uma palestra, mencionei aos presentes tal fato e questionei, àquelas pessoas que se faziam ali presentes, se todas as famílias que elas conheciam tinham a mesma estrutura e a mesma dinâmica. Por óbvio, a resposta foi negativa.   Ainda que se considere o reduzido contingente de indivíduos a quem me dirigi naquele momento, posso replicar o mesmo questionamento a quem acompanha essa coluna e certamente a resposta refletirá aquilo que é de conhecimento geral: as pessoas são diferentes e suas composições familiares não seguem, necessariamente, aquele padrão esperado pelo legislador e que acaba por ser imposto a muitas pessoas. Essa limitação de visão que labora com a crença de que existiria uma família standard é o que pauta nosso legislador, como é facilmente constatado da leitura da Constituição Federal. Mesmo sendo patente que o art. 226 expressa um rol meramente exemplificativo, o texto constitucional indica apenas três modalidades familiares. Constitucionalmente encontra-se consignada a existência da família oriunda do casamento, da união estável, ou ainda aquela estabelecida entre um ascendente e seus descendentes, a denominada família monoparental. Para além dessas modalidades, o Judiciário atualmente já tem reconhecido e dado guarida a outras modalidades de entidades familiares distintas daquelas previstas no texto da Constituição Federal de 1988, ao mesmo tempo que tem legado a possibilidade de proteção legal a outras configurações. Essa discussão nos permitiria construir um texto de centenas de páginas apenas discorrendo sobre essa questão em específico. Contudo, visando atender o escopo específico da presente coluna, tecerei considerações pontuais acerca de um dos elementos caracterizadores da união estável, bem como a sua relação direta com a sexualidade daqueles que fazem parte deste relacionamento. Uma análise das mais simplórias relacionada à união estável nos conduz ao conteúdo do art. 1.573 do Código Civil. Nesse dispositivo se estabelece as atuais diretrizes a serem atendidas a fim de caracterizar tal tipo de entidade familiar, sendo o resultado de uma construção que passou por um longo período sem positivação (que antecedeu a Constituição Federal de 1988), passando por leis específicas (uma de 1994 e outra de 1996). A opção legislativa atual, constante do Código Civil vigente, é que a união estável será caracterizada mediante a demonstração de uma convivência pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família. Nesse momento me aterei apenas ao requisito da convivência pública, bem como aos motivos que levaram o legislador a estabelecer tal premissa, fazendo ainda uma rápida análise com relação à expressão "intuito de constituir família". Partindo do pressuposto que jamais pode ser ignorado de que o texto do Código Civil vigente foi construído originalmente no início dos anos 1970, ainda que tenha entrado em vigor apenas no começo dos anos 2000, é preponderante se entender que o conteúdo que ali se faz presente mostra-se totalmente embebido nos parâmetros e critérios de uma sociedade bastante moralista e conservadora, que experienciava, na prática, um período de ditadura militar. Todo esse moralismo, lastreado nos preceitos tidos por "cristãos", mas que muitas vezes deixa de lado premissas das mais nucleares constantes da Bíblia Sagrada, faz com que tenhamos que lidar com um texto legal que só oferece proteção a quem comunga desses mesmos valores, relegando à marginalidade aqueles que exercem a sua liberdade de crença em um estado que se autointitula como laico. Tais considerações se mostram pertinentes uma vez que toda entidade familiar que não esteja constituída segundo os parâmetros clássicos da heterossexualidade monogâmica (ao menos segundo um critério formal) não se encontra expressamente respaldada pelo texto legal. A primeira batalha travada nessa seara objetivou o reconhecimento da união estável, bem como do casamento, entre pessoas do mesmo sexo/gênero 2, que, em razão de todo o preconceito que permeia o tema, fez com que fosse necessário que esse processo chegasse até o STF para que este, em linhas bastante singelas, reconhecesse algo que é basilar na hermenêutica jurídica: na ausência de legislação específica é possível se aplicar a analogia, utilizando uma legislação que trata de um tema similar para resolver um dado assunto 3. Retomando os requisitos caracterizadores da união estável, passo à análise da publicidade daquele relacionamento como um critério para caracterização da união estável. De início, é imperioso que tal aspecto não mais seja apreciado segundo os preceitos sociais vigentes quando da sua aposição no texto legal, uma vez que a sociedade tanto da época da promulgação da Constituição Federal, como do momento em que teve início a vigência do nosso atual Código Civil, se mostra totalmente distinta daquela vivenciada nos dias atuais. Quando se pensou originalmente na ideia da publicidade como um parâmetro indispensável para o reconhecimento da união estável, vivíamos em uma sociedade que hoje em dia chamamos de "analógica", sem a presença maciça de tecnologias que pautam a vida dos indivíduos nos nossos tempos. Evidentemente que a publicidade requerida pela lei só seria alcançada, naquela época, mediante a exposição "em praça pública" daquele relacionamento, fazendo com que ele fosse constatado como existente no mundo físico. As mudanças tecnológicas, e mesmo de concepção de mundo, nos colocam em uma realidade na qual muitos relacionamentos se estabelecem eminentemente no universo virtual, fazendo com que seja imprescindível um redimensionamento da compreensão do que venha a ser a publicidade exigida pela lei para a configuração de uma união estável, bem como um questionamento quanto à natureza imprescindível da presença de tal elemento para que se possa dizer que estamos diante de tal sorte de entidade familiar. Nesse contexto como um todo podemos pensar naquelas hipóteses em que o tal "intuito de constituir família" se mostra patente e inquestionável entre aquelas pessoas que vivenciam aquela união, mas cuja convivência se dá exclusivamente no universo virtual, sem que essas pessoas venham a compartilhar o mesmo espaço físico. Podemos ainda nos deparar com relacionamentos em que as partes não tenham parentes a quem "comuniquem" aquela união, ou não tenham interesse de expor sua vida pessoal a quem quer que seja, vivendo sua vida e desfrutando do direito à intimidade e a privacidade que a legislação garante a todos. Ainda que estejamos em uma sociedade de massiva exposição nas redes sociais, há um enorme contingente de pessoas que preza pela discrição, eventualmente até mesmo sem uma vida social que faça com que outras pessoas tenham compartilhado a companhia presencial daquele casal, inviabilizando a possibilidade de virem a testemunhar judicialmente a tal publicidade exigida pela lei. Podemos até mesmo pensar em situações extremas nas quais um determinado casal resida numa área rural, distante dos demais vizinhos, sem que tenha sido apresentado ao "mundo" o relacionamento existente entre tais pessoas. Com isso é coerente se questionar: só será família se as demais pessoas reconhecerem aquilo como família? Não basta a existência do fato, sendo necessário que a coletividade "reconheça" aquela situação? Outro assunto pouco mencionado acerca da publicidade que seria necessária para o reconhecimento da união estável está vinculado à discussão quanto aos motivos que eventualmente possam fazer com que aquelas pessoas não queiram tornar público o relacionamento que possuem. E é exatamente aqui que podemos nos deparar com uma questão extremamente relevante vinculada à sexualidade como um todo. Muitas vezes a realidade da sociedade em que aquelas pessoas vivem, atrelada a todo o estigma, preconceito e discriminação que recai sobre quem integra as minorias sexuais, pode ser um fator determinante para que um dado casal não venha a tornar público aquele seu relacionamento. Não são poucos os casos em que até mesmo pessoas famosas, com uma condição econômica favorecida, e dotadas de todos os privilégios possíveis, acabam ocultando um relacionamento com alguém do mesmo sexo/gênero, o que é tornado público, muitas vezes, apenas após sua morte. Em inúmeras circunstâncias, quando tal informação é levada ao conhecimento do público, revelando que se trata de um relacionamento que já durava décadas, mas que não era exposto de uma maneira geral, o fato causa uma certa estranheza. Outra situação que muitas vezes faz com que o relacionamento seja ocultado se dá quando um dos integrantes dessa união é uma pessoa transgênero. Em tais hipóteses, a ocultação da existência de tal relacionamento se mostra como um dos pontos mais atrozes a atingir transexuais e travestis que se veem privados do reconhecimento da existência de uma entidade familiar exatamente porque não conseguem demonstrar a publicidade exigida, pois a sociedade não aceita que elas possam ter uma vida comum, como qualquer outra pessoa 4. Todas essas proposições aqui apresentadas têm por escopo levar a quem acompanha a coluna a se questionar se, durante toda a sua vida, tornou público todos os relacionamentos que teve e, também, os motivos pelos quais, eventualmente, preferiu mantê-los protegidos do conhecimento das pessoas como um todo. Mas também que pondere como reagiria caso alguém próximo viesse a lhe confidenciar que está tendo um relacionamento com alguém do mesmo sexo/gênero, ou então que está se envolvendo com uma pessoa transgênero. Evidentemente que tenho claro que o ideal seria que todas as pessoas tivessem a liberdade de expor, quando quisessem, seus relacionamentos para toda a sociedade, fossem eles com quem fossem. Se estivéssemos vivendo em um mundo que efetivamente acolhesse e respeitasse toda a diversidade, atenta aos preceitos basilares da dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade, os aspectos relacionados à sexualidade que permeiam tais uniões não seriam um parâmetro de discriminação. Enquanto essa realidade social não se estabelece, é inegável a necessidade de se aferir os motivos que fizeram com que uma dada união estável que se constituiu mediante uma convivência contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família, não foi publicizada, sob pena de que o preconceito venha a impor mais essa marca a privar as minorias sexuais dos direitos ordinariamente franqueados a todos 5 Não podemos ser cúmplices de uma escolha de retirar de uma união estável a possibilidade do reconhecimento jurídico por terem aquelas pessoas sido compelidas, pelo preconceito que segue infectando nossa sociedade, a resguardar sua intimidade que, caso exposta, poderia até mesmo colocar suas vidas em risco. 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, n. 1, p.III - VII, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A vara de família é a competente para apreciar e julgar pedido de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva. Revista DOS Tribunais (São Paulo. Impresso), v.984, p.305 - 315, 2017. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O STF O STF e o banheiro: mais vale o processo do que a vida?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.5, n.1, 2024, p. VII 4 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 131 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 33.
Como costumeiramente faço na presente coluna, reitero que é patente que a sexualidade é um elemento inerente à identidade de cada ser humano, aspecto de sua personalidade que se mostra indissociável de sua existência1. Trata-se de característica que se expressa nos mais diversos momentos da vida de todo o indivíduo, com o potencial de gerar um infindável número de reflexos em seu cotidiano. É, portanto, um fato. Conviver com a sexualidade é uma constante. Seja com a própria ou com a alheia. Contudo, mesmo tendo plena ciência da presença contínua da sexualidade na vida de todas as pessoas, ainda me intriga demais o valor dado à curiosidade acerca da sexualidade alheia. Por que existe tanto interesse em saber qual a genitália que alguém sustenta por debaixo das suas roupas (sexo), com quem a pessoa "se deita" (orientação sexual), ou se aquela pessoa é cisgênero ou transgênero (identidade de gênero)? Note que não fiz aqui menção ao gênero em si, exatamente por ser este constatado face àquilo que se demonstra socialmente, de sorte que se alguma dúvida venha a surgir, esta reside especificamente por não se conseguir enquadrar aquilo que está sendo expressado nos padrões clássicos do que seja o masculino ou o feminino2. Ante a tais premissas, em verdade, o questionamento a ser feito é: esse anseio por informações quanto à sexualidade alheia é mera curiosidade ou expressão manifesta do preconceito? Em uma resposta preliminar, tendo a concluir que acessar tais informações é o que viabiliza o pleno exercício do preconceito e discriminação contra as minorias sexuais. Não que a culpa seja dessas pessoas de expor sua sexualidade, mas sim que a falta de letramento de nossa sociedade quanto à sexualidade e aos elementos que a compõem, é o que pavimenta a forma discriminatória que emana da "descoberta" de caracteres vinculados ao sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Em certos círculos sociais, as bolhas como se tem chamado atualmente, a discussão acerca de elementos da sexualidade alheia ganha contornos de uma pseudo cientificidade que chega a assustar, principalmente por estar lastreado em uma série de informações equivocadas e certezas extraídas de um "conhecimento popular" que está totalmente dissociado dos parâmetros cientificamente constituídos. Muitas vezes são questões que ordinariamente passariam ao largo da atenção da maioria das pessoas, mas que acabam chegando a elas de forma enviesada, maculada por interesses daqueles que veiculam certas informações, especialmente quando esses são pessoas com algum poder de fazer com que sua voz reverbere, fazendo com que muitos venham crer que tais discussões realmente permeiam o dia a dia de todas as pessoas que vivem em nosso país. O fato é que, em verdade, para a grande maioria da sociedade tais temas não se convertem efetivamente em questões de relevância, exatamente por não se tratar de fatos que tangenciam sua vida ou mesmo das pessoas que lhes são mais próximas, fazendo com que elas venham a considerar um grande exagero todas as discussões entabuadas sobre esses temas, a ponto de questionarem: "pra que todo esse mimimi?". É notório que são poucas as pessoas em nossa sociedade que manejam de forma adequada os conceitos vinculados à sexualidade, como se pode constatar facilmente dos recorrentes equívocos e confusões expressadas com relação a conceitos como transgênero, cisgênero, homossexual, bissexual, intersexo e intersexual, para dar apenas alguns exemplos3. Não são poucas as situações nas quais falas que envolvam os interesses de minorias sejam atravessadas por afirmações que relatam a existência de preocupações maiores para a sociedade do que a discussão ou a luta para garantia dos direitos desses grupos sociais. Entre os menos versados sobre as questões da sexualidade é muito comum um discurso que pondera a relevância de se discutir o direito à mudança do nome das pessoas transgênero enquanto "a criminalidade na cidade só aumenta ". Esse é apenas um dos vários casos em que podemos constatar manifestações das chamadas "pessoas comuns" se mostrando contrárias às pautas que são caras a todas as minorias sexuais, claramente revelando que quando não se trata de uma dor que a atinge, a tendência é menosprezar a importância das agruras enfrentadas pelos demais. Interessante considerar, ao mesmo tempo, que muitas dessas pessoas que desprezam as importantes lutas travadas pelas minorias sexuais se sentem profundamente ofendidas quando suas características vinculadas à sexualidade, ou mesmo a elementos decorrentes desta, são ignorados ou não são perfeitamente considerados. Qual é, ordinariamente, a reação de um desses sujeitos quando alguém erra o seu nome e, por qualquer motivo, vem a chamá-lo por um prenome distinto do seu, especialmente quando não condizente com o seu gênero, principalmente se essa pessoa for alguém do gênero masculino? Como um "macho" se porta quando chamado por um nome feminino? Simplesmente comunicaria o equívoco ou se sentiria ofendido? Para além dessas discussões tenho notado que tem sido cada vez mais usual que questionamentos quanto à sexualidade alheia venham sendo feitos em contextos desnecessários. Aparentemente, muito desse agir decorre de uma campanha que visa incutir um pânico nas pessoas contra aspectos vinculados à diversidade, criando uma refração social a tudo o que tenha por objetivo garantir direitos elementares aos mais vulnerabilizados4. Elementos que deveriam ser básicos de qualquer sociedade, por envolverem características humanas, acabam sendo distorcidos, gerando um pavor em certas pessoas quanto a temas que, em verdade, não carregam em si nenhum potencial ofensivo. Visam apenas garantir às minorias aquilo que ordinariamente é ofertado a todos5. Nesse aspecto basta considerar toda a ojeriza que certa parte da população brasileira tem quando se menciona a necessidade de que crianças e adolescentes tenham acesso à educação sexual. Quando tal expressão chega aos ouvidos de alguns há uma imediata associação com uma absurda ideia de que nessa matéria as crianças serão ensinadas a manter relações sexuais. Esse tipo de construção se origina de um mundo obscuro, tendo como criadores os mesmos autores que um dia sugeriram a existência de projetos que tinham por objetivo oferecer às crianças "mamadeiras de piroca", uma história absurda, sem qualquer correlato com o mundo dos fatos, mas que ganhou grande notoriedade e que segue presente na cabeça de muitas pessoas6. Na nova dinâmica de veiculação de informações propiciada pela nossa sociedade da informação, que possibilita a qualquer pessoa, através da internet, manifestar todo tipo de sandice como se fosse uma verdade que foi apurada jornalisticamente, o potencial lesivo de uma invenção como essa é exponencialmente elevado. Essa realidade atualmente posta tem feito com que algumas discussões relacionadas à sexualidade surjam em contextos que aparentemente não fariam sentido, demonstrando estarem totalmente permeadas por esses ranços preconceituosos. Na presente coluna trago, à titulo de exemplo, um fato ocorrido no Carnaval de 2025. Essa festa popular que é intimamente associada a uma ideia de liberdade e diversidade, na qual muitas pessoas experimentam, ainda que sem perceber, uma experiencia de crossdresser, algo que não faz parte do seu cotidiano, pode revelar traços dessa problematização da sexualidade sem uma real razão. Conforme publicado nas redes sociais, o Bloco Afoxé Filhos de Ghandy, uma das associações mais tradicionais do carnaval baiano, encaminhou um comunicado aos associados (termo de aceite) afirmando que apenas homens cisgênero seriam permitidos no cortejo. Tal fato gerou uma grande discussão social, principalmente na cidade de Salvador, com entidades LGBTQIAPN+ e foliões questionando imediatamente a natureza transfóbica de tal manifestação. Na sequência, a diretoria do bloco se manifestou, afirmando: "Recolhemos o termo de aceite onde consta a palavra masculino cisgênero, passando a constar apenas do sexo masculino, quanto à alteração no estatuto posteriormente convocaremos uma assembleia geral para discutir o assunto". Chegaram a se justificar afirmando que o bloco possui 76 anos de existência e que, tradicionalmente, só homens nele desfilam. A nota afirma que "tradicionalmente, e de acordo com os preceitos religiosos que o regem desde o início", o bloco "é formado exclusivamente por pessoas do sexo masculino". O fato ensejou a abertura de investigação pelo Ministério Público da Bahia para apurar um possível caso de "transfobia", tendo sido encaminhado um ofício ao presidente do Bloco Afoxé Filhos de Ghandy para que, no prazo de 24 horas, tal objeção viesse a ser retirada, solicitando ainda o encaminhamento para a promotoria do estatuto social do bloco, haja vista que constava do termo de aceite que a restrição de participação de pessoas transgênero no bloco estaria pautada no disposto no art. 5º do seu estatuto social (item 10 do aceite). Inusitado notar que também do aceite consta, no item 4, que não será aceita qualquer conduta de desrespeito ao próximo, que conduz ao questionamento básico: Tal tipo de exclusão não seria efetivamente um desrespeito? Ou identidade de gênero divergente faz com que a pessoa deixe de ser considerada "próximo"? O termo de aceite, a nota e as demais manifestações publicadas sobre o tema revelaram claramente a necessidade urgente de que as pessoas efetivamente entendam os elementos vinculados à sexualidade antes de qualquer manifestação sobre o tema7. Em tudo o que consta desse caso é possível verificar a existência de uma série de equívocos quanto à compreensão do que vem a ser sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Importante pontuar aqui que a presente coluna não tem o intuito de discutir a autonomia do bloco de determinar quem são as pessoas que poderão integrar o seu cortejo. O que se coloca é se, e como, haveria a verificação quanto tal requisito caso ele pudesse prosperar, especialmente quando se tratasse de uma pessoa que já tivesse realizado a alteração de seus documentos a fim de fazer constar deles o nome e o sexo condizentes com a identidade de gênero expressada. Teria a associação a prerrogativa de exigir que seu associado apresentasse não apenas uma certidão de nascimento, mas sim a sua versão de inteiro teor, onde seria possível constatar tais alterações? Ou seria imposto que os associados passassem por algum tipo de exame médico ou mesmo exposição do corpo para demonstração de que se trata de uma pessoa cisgênero? Proporiam uma comissão de heteroidentificação para verificar se aquela pessoa seria mesmo uma pessoa cisgênero? Tais soluções me parecem um tanto absurdas. Outro ponto que levantamos é se efetivamente houve a procura de pessoas transgênero para participar do bloco ou a discriminação no aceite apresentado aos interessados tinha um caráter de outra natureza. E mais, tenho profundas dúvidas se quem redigiu o aceite e as demais manifestações do bloco tem, efetivamente, a plena compreensão do que caracteriza cada um dos elementos da sexualidade. Esse caso é apenas mais um que nos faz questionar essa moda de demonizar toda sorte de diversidade sexual para atender a standards conservadores e morais. Por fim, o que se traz para a reflexão é: qual diferença faz, para desfilar, se aquela pessoa é cisgênero ou transgênero? Com isso, retomo ao título da presente coluna para instigar a quem me lê: por qual motivo você quer saber o sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero de quem quer que seja? 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 6. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 3-16. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 245. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 312 6 Disponível aqui. Acesso em: 27 jan. 2024. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, 2024.
Há poucos dias fui surpreendido com uma mensagem de um colega professor que dava conta de que um texto por mim publicado havia sido citado como referência em uma publicação numa rede social por um colega. A postagem aludia ao editorial do volume 4, número 2 da Revista Direito e Sexualidade cujo título é "A importância da verificação dos dados e o risco para a credibilidade das pautas LGBTIAPN+"1. O conteúdo do texto da postagem realizada trazia, em linhas gerais, que seu autor estava convencido da necessidade do Brasil "intervir no processo social, corrigindo distorções e reparando injustiças, tendo a promoção da igualdade como horizonte ", o que haveria de ser realizado por meio de políticas públicas. Na sequência, se coloca contra a política pública de cotas direcionadas à população trans nas universidades públicas brasileiras, apresentando como elementos contrários a tal a ação afirmativa as seguintes alegações: O orçamento não é infinito e, portanto, todo o direito adquirido por um grupo significaria, ato contínuo, a redução de direitos para outros grupos; A população transgênero seria a única minoria reconhecida como tal ante a autoidentificação; Tal situação colocaria aqueles que disputam uma vaga nas universidades públicas em uma luta desigual, vez que o "orçamento não é infinito, vagas não são infinitas e todo direito adquirido na luta política colide com interesses de outros grupos"; Os pleitos formulados pelo "movimento trans ativista" estariam baseados na afirmação de que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo e de que a expectativa de vida dessa população no Brasil seria de 35 anos, dados estes desprovidos de qualquer tipo de verificação independente, asseverando ainda a inexistência de "estudos sólidos, oficiais, capazes de revelar a real situação da população trans no Brasil"; A fragilidade de tais dados já teria sido apontada em inúmeras pesquisas, como no nosso texto publicado na Revista Direito e Sexualidade. A conclusão dos autores do texto/postagem é de que: "hoje, o sistema brasileiro de universidades públicas está colocando em prática uma linha de política pública que não está devidamente sustentada em estudos especializados. Isso significa uso inadequado de dinheiro público". Para não mergulhar no raivoso mar de ataques e ofensas que caracteriza as redes sociais nos dias atuais, simplesmente comentei a postagem me apresentando como autor do texto indicado e sugerindo o acesso a outros dados a fim de se permitir um perfeito entendimento do tema, indicando também a presente coluna como um repositório de informações básicas capazes de melhor fundamentar a discussão sobre o acesso à educação da população transgênero. Com o escopo de facilitar a compreensão de forma geral a quem se interessar sobre esse assunto, passo a tecer breves considerações acerca de dados importantes que podem viabilizar uma apreciação abalizada do problema como um todo. O primeiro aspecto que considero ser pertinente que seja trazido, reside no fato específico do texto do editorial da Revista Direito e Sexualidade ter sido utilizado como fundamentação para as manifestações apresentadas na referida postagem. Quando da elaboração do texto estava consciente desse risco de que o seu conteúdo poderia vir a ser utilizado com o instrumento para tentar minar os alicerces que sustentam as discussões relacionadas aos direitos das pessoas transgênero, tanto que essa ideia está presente no conteúdo daquele editorial. O texto partia exatamente da premissa de que é indispensável que as informações técnicas apresentadas para lastrear todo qualquer pleito formulado se mostrem corretas e sólidas, razão pela qual o editorial indicava expressamente a necessidade de uma perfeita compreensão da mortalidade que atinge as pessoas transgênero em nossa sociedade. Um exame mais detalhado do tema é apresentado no Manual dos Direitos Transgênero recentemente publicado2, mas as ideias essenciais se fazem presentes no referido editorial que, de forma sintética, expõe que, em verdade, não existem no Brasil dados que permitam afirmar que a expectativa de vida de uma pessoa trans seja de apenas 35 anos. Apesar de se tratar de uma afirmação reiteradamente utilizada por aqueles que se dedicam aos estudos sobre os direitos das pessoas transgênero, tão informação efetivamente não encontra respaldo científico, fato este que se mostra presente até mesmo em trabalhos produzidos e disponibilizados por associações especializadas na defesa dos direitos transgênero. A Rede Trans Brasil, expressamente relata que 35 anos não revelam "uma expectativa de vida, mas uma média da idade das pessoas trans vitimadas" por homicídio3. Aparentemente a grande novidade trazida no editorial é que tal informação estava agora consignada em um estudo científico, o que, aparentemente, conferiria maior solidez a ela segundo os autores da postagem. Ainda que a assertiva quanto a expectativa de vida de uma pessoa transgênero seja de 35 anos não encontre respaldo técnico (até mesmo indicamos a provável origem desse equívoco no texto que consta da Revista Direito e Sexualidade), não se pode questionar o número alarmante de pessoas transgênero que são vítimas de homicídio em território nacional. Mesmo que não se tenha dados oficiais, o mais provável é que o número de mortes de pessoas transgênero em todo o Brasil é maior do que aquele constatado, como também expressamos em nosso Manual dos Direitos Transgênero, fruto da subnotificação reconhecida internacionalmente4. Nesse contexto, o fato interessante a ser considerado é que exatamente um dos pontos suscitados pela tal postagem para demonstrar a falta de solidez dos dados apresentados é representativo do nível de segregação enfrentado pelas pessoas transgênero em nossa sociedade, já que o Estado brasileiro quase nada faz em favor desse grupo vulnerabilizado em razão da sexualidade. Se o Poder Público apresenta objeções para a inclusão do dado quanto à identidade de gênero no censo populacional, premissa básica para verificação da expectativa de vida de um grupo populacional, fica inviabilizado, por uma escolha do Estado, a coleta de informações imprescindíveis. Basta se considerar que os dados estatísticos coletados com base em boletins de ocorrência não permitem o acesso à informação da identidade de gênero da vítima de homicídio simplesmente porque não há no documento oficial um espaço para se indicar tal dado. O Estado brasileiro entende, portanto, não ser pertinente aferir qual é o real número de pessoas que apresentam tal identidade de gênero em todo Brasil, invisibilizando a existência desse contingente de pessoas para fins oficiais5. Impossível também se pensar na possibilidade da apresentação de dados oficiais com relação às mortes de pessoas transgênero em todo Brasil se pensarmos em todo estigma que recai sobre essa população, a qual, muitas vezes, sequer tem seus direitos mais elementares conhecidos no momento da morte e do sepultamento6. A grande maioria dos dados utilizados nos estudos sobre identidade de gênero é coletada pela sociedade civil ou por meio de informações obtidas pela mídia, exatamente porque os dados oficiais não são coletados. Para a oferta de proteção e garantia de direitos essas pessoas não existem, mas para se exigir o pagamento de impostos, ou cumprimento de deveres, ou para segrega-las, elas são facilmente localizadas. Partindo de uma premissa elementar, não nos parece ser coerente acreditar que por não haver dados oficiais a situação de fato não ocorreu. A falta de tais dados é a manifesta expressão da leniência do Poder Público com relação a essa minoria vulnerabilizada em razão de um elemento de sua sexualidade7. Superado esse ponto inicial é necessário se analisar o aspecto mais central da discussão posta na referida postagem: a utilização de dinheiro público para beneficiar política de inclusão de pessoas transgênero no ensino superior. Antes mesmo de discutir a questão de fundo é imperioso se deixar claro que a quantidade de pessoas trans que efetivamente acessam o ensino superior é ínfimo8. Em que pese, mais uma vez, a ausência de dados oficiais sobre o tema, não é necessário que concordemos com os estudos estatísticos que mostram tal realidade. Já que muitos gostam do senso comum como um parâmetro para chegar a conclusões técnicas, convido a quem estiver lendo essa coluna a buscar na memória a quantidade de colegas trans que estiveram presentes em suas salas de aula durante toda a sua vida de estudante, desde o ensino fundamental até o ensino superior. Inúmeros estudos realizados tanto no Brasil quanto no exterior revelam que um dos maiores índices de evasão escolar está associado à identidade de gênero, de forma que, por lógica, aquele que não consegue se manter nos extratos mais elementares da educação jamais terá condições de atingir o nível superior9. Outra questão que precisa ser esclarecida é o sistema de cotas estabelecido para a graduação e pós-graduação nas universidades públicas brasileiras visando favorecer a inclusão de pessoas transgênero. Essas vagas são, de regra, supranumerárias, o que significa dizer que trata-se de uma vaga extra, que não entra na disputa dos demais candidatos que participam do processo seletivo. Não há, portanto, disputa sobre essa vaga, pois ninguém é privado do poder de acessá-la por ter ela sido direcionada a uma pessoa transgênero. É uma vaga a mais, ofertada apenas para pessoas transgênero, da mesma forma que ocorre, por exemplo, com vagas direcionadas a pessoas com deficiência ou servidores técnicos. Assim a preocupação expressada de que a disputa não seria justa fica prontamente afastada. A alegação de que as vagas não são infinitas é um fato, contudo não se mostra como relevante para a presente discussão. A quantidade de pessoas que acorrem a tais vagas é tão pequeno que não é capaz de gerar nem um impacto orçamentário, nem um problema de alocação desse aluno. No contingente de alunos de uma universidade, os que procuram tais vagas são tão poucos que é viável a criação de uma vaga excepcional para atender a esse estudante. Por fim, há uma questão que parece ser um mantra quando das discussões sobre identidade de gênero: a condição de pessoa transgênero é reconhecida mediante a autodeclaração, sem a possibilidade de "bancas de heteroidentificação e perícias médicas", o que conferiria às pessoas transgênero "a prerrogativa de tão somente se identificar como tal" para acessar os direitos que lhe são franqueados. É uma visão extremamente superficial do tema, repleta de um dos inúmeros mecanismos de terror utilizados com a clara finalidade de tentar privar as minorias sexuais de seus parcos direitos10. Tal discussão apresenta um caráter bastante delicado de tentar, de um lado, desacreditar aquilo que caracteriza a identidade de gênero, bem como de tentar forçar uma retomada da discussão da patologização da condição apresentada pelas pessoas transgênero. A concepção do que venha a ser a identidade de gênero está atrelada à percepção da pessoa com relação ao seu gênero, o que é algo personalíssimo e que não é passível de verificação externa. A questão não é se discutir se a autodeclaração é válida ou não, mas sim se eventualmente ocorreu alguma conduta fraudulenta praticada por quem alegou ser uma pessoa transgênero e efetivamente não é. Bastante inocente se acreditar que a existência de uma eventual banca de heteroidentificação ou mesmo a possibilidade da apresentação de laudos médicos seria capaz de impedir qualquer tipo de fraude, haja vista as situações excepcionais que são relatadas em todo o sistema de cotas. Em síntese, nos parece que, na prática, a quantidade de pessoas transgênero que efetivamente conseguem acessar tais cotas não é o bastante para fazer com que a preocupação demonstrada na postagem mencionada se mostre efetiva, seja porque aqueles que conseguem chegar ao nível superior é bastante reduzido, seja porque tais vagas, de regras, são supranumerárias. Talvez muito mais pertinente que a discussão fosse do porquê as pequenas conquistas seguidas pelas pessoas transgênero geram tamanha repercussão e atingem de forma tão direta à fragilidade daqueles que detém os privilégios11, levando-os a uma cruzada contra quem apenas busca sobreviver em uma sociedade segregatória que não quer nem mesmo lhes garantir a possibilidade de acesso aos direitos fundamentais que são conferidos a toda e qualquer pessoa. O inconformismo apresentado não recai sobre os motivos pelos quais essas pessoas são vítimas de homicídios violentos ou apresentam um elevado índice de tentativa de suicídio. O questionamento que se faz não é do motivo pelo qual tão poucas pessoas transgênero estão presentes no ensino superior ou na pós-graduação. A dúvida que é levantada é sobre essas pessoas (que são muito poucas na prática) terem acesso ao ensino superior, sem sequer fazer uma pesquisa mais aprofundada dos elementos que permeiam tal discussão, suscitando apenas um dado relacionado ao assunto. Cita que estudos reconhecem erros nos dados mas não explica o contexto ou as conclusões do que deles constam. Convenientemente ignora o conteúdo do texto que é mencionado, sem explicitar que nele há a recomendação para que se tenha cuidado com os dados, escolhendo não aplicar tudo aquilo que aquele editorial indica. Faz uma apresentação enviesada para tentar fustigar os argumentos que lastreiam a necessidade da implementação de políticas públicas de inclusão. A estratégia de usar apenas de forma parcial informações técnicas com objetivo de tentar retirar os poucos acessos conquistados por grupos minoritários é atitude preocupante e tem o poder de ludibriar aqueles menos versados no tema ou quem está disposto a acreditar em teorias da conspiração. De toda sorte, a conclusão que podemos chegar é que uma visão parcial gera o risco de conclusões distorcidas. Com todas as possibilidades que a internet nos oferece atualmente é primordial, antes de confiar em afirmações apresentadas de forma genérica, se buscar o conhecimento técnico para não correr o risco de incidir em equívocos que podem tornar ainda mais difícil a vida daqueles que apenas sobrevivem em razão de toda a segregação, discriminação e estigma que nossa sociedade impõe. A não ser que seu objetivo seja apenas desinformar, criar bait ou atender àquilo que seus seguidores querem que você diga. 1 Disponível aqui. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 36. 3 ARAÚJO, Tathiane Aquino; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim; CABRAL, Euclides Afonso. Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil em 2022. Série Publicações Rede Trans Brasil. 7. ed. Aracaju: Rede Trans Brasil; Uberlândia: IBTE, 2023. p. 19. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 35-50. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Da invisibilidade à exposição indevida: as agruras que seguem permeando a vida das pessoas trans no Brasil. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v. 3, 2, p. I - IV, 2022. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; D'ALBUQUERQUE, Teila Rocha Lins. Responsabilidade civil ante a violação póstuma da identidade de gênero. In: CUNHA, Leandro Reinaldo da; MATOS, Ana Carla Harmatiuk; ALMEIDA, Vitor. Responsabilidade civil, gênero e sexualidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 187. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 187. 10 GONÇALVES JÚNIOR, Sara Wagner Pimenta. A travesti, o vaticano e a sala de aula. SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos - UFAM, ano 19, n. 1, ago.-dez. 2019. p. 118-121. 11 Disponível aqui.
Situações fáticas que nem mesmo passavam pela mente do legislador mais visionário são cotidianas atualmente, e necessitam do estabelecimento de diretrizes básicas para resolver os impasses que surgem vinculados a elas. Contudo, para além da dinamicidade das relações sociais não ser acompanhada pela legislação, que sempre se mostra um passo atrás1, há também as várias circunstâncias em que pode-se atribuir a uma demora de atuação do Poder Legislativo a grande carência de parâmetros para equacionar as questões que recaem sobre certos eventos. Quando o Código Civil de 1916 foi pensado, lá nos idos do início do século passado, algumas conjunturas que perpassam a vida das pessoas estavam totalmente fora do horizonte, podendo-se dizer o mesmo com relação ao que se deu com o Código Civil de 2002, elaborado no início dos anos 1970. No entanto, quando ele entrou em vigor no início de 2003, algumas das "novidades" que fazem parte do nosso dia-a-dia já tinham um mínimo de consolidação, mas permaneceram ignoradas, causando uma miríade de hipóteses lacunosas a serem analisadas. Dentre as várias situações que deveriam ter sido inseridas no texto legal mas que o legislador não se deu ao trabalho de positivar está toda a gama de questões atinentes às técnicas de reprodução humana assistida, tendo ele meramente se limitado a trazer três míseros incisos sobre a inseminação homóloga e a heteróloga no artigo destinado a estabelecer os critérios de presunção de paternidade dos filhos de uma mulher casada (art. 1.597 do Código Civil). Contudo a defasagem do Código Civil, e da legislação como um todo, com relação às várias possibilidade de se atingir o desejo de obtenção de uma prole fora dos limites tradicionais de um casamento, que antigamente era o instituto autorizador para que as pessoas pudessem começar a se dedicar à prática sexual e à busca pela constituição de uma família com filhos, é notória e até mesmo vergonhosa. Basta se considerar que o primeiro caso de "bebê de proveta" do mundo ocorreu em julho de 1978 em Bristol, na Inglaterra, com o nascimento de Louise Joy Brown, sendo que, no Brasil, foi em outubro de 1984, com o nascimento no Paraná de Anna Paula Caldeira. Ante a um cálculo bastante singelo pode-se afirmar que, quando do início da vigência do atual Código Civil, já era um fato que datava quase 20 anos a inseminação artificial em solo pátrio. As discussões sobre o tema ganharam tamanha relevância na sociedade que entre 1990 e 1991 foi transmitida, pela Rede Globo de Televisão, uma novela chamada "Barriga de Aluguel", com enorme audiência, movimentando a população em geral a pensar na trama em que uma jovem aceitava gestar o filho de um casal que não conseguia engravidar.  Tais considerações servem apenas para demonstrar que o Código Civil de 2002 deveria ter trazido considerações sobre um tema já presente na sociedade. E mesmo já passado mais de 20 anos de sua vigência, o legislador ainda não teve o devido cuidado de, ao menos, ter criado uma legislação específica visando estabelecer um regramento elementar para direcionar a solução dos problemas relacionados à realidade de quem busca ter um filho valendo-se das diversas tecnologias ou ante a uma contratualização de algum dos passos que levam a uma gestação. Impossível se apreciar as técnicas de reprodução humana sem que o recorte da sexualidade se faça presente, para além da discussão ordinária acerca da gravidez ter decorrido ou não de uma relação sexual, pois é relevante se ter em mente qual a origem do material genético que será utilizado para esse fim. Vivíamos uma realidade em que a definição da relação entre ascendente e descendente era lastreada por uma solução bastante ordinária na qual a mãe era a mulher que tinha dado à luz àquela criança (Mater semper certa est) e o pai seria o seu marido, em decorrência da presunção de paternidade já mencionada.    Posteriormente, por razões óbvias, já que a manutenção de relações sexuais não ocorria apenas dentro da estrutura de um casamento, se passou a ter a necessidade de criar mecanismos para resolver aquelas hipóteses em que a criança nascia de uma mulher que não estava casada, conferindo-se ao pai a atribuição de manifestar-se, de maneira formal, afirmando ser o genitor daquela criança, por meio do reconhecimento da paternidade. Contudo atualmente é possível que venhamos a nos deparar com uma realidade capaz de trazer uma multiplicidade de complexidades que podem deixar em grande dificuldade aquele que tenha que equacionar as celeumas que surgem. Muito disso decorre da já tradicional leniência legislativa2 que marca o nosso Estado Esquizofrênico3, a qual, nesse caso concreto, ainda abre espaço para a teratológica atuação do CFM - Conselho Federal de Medicina tratando de questões que estão totalmente fora do seu escopo de atuação4 e que, ainda mais aberrante, acaba levando o próprio Poder Judiciário a acolher tais normativas como fonte do direito5. Basta considerar que para além de todas as características de inovação surgidas na medicina, temos topado de forma recorrente com discussões que versam sobre a figura da inseminação caseira e da contratualização de relações sexuais com o intento único de geração de filhos. São situações ordinárias onde alguém coleta o esperma de um doador e inocula-o no corpo da mulher com uma seringa (simulando o que ocorre em uma relação sexual) ou em que firmam um acordo em que aquela mulher apenas deseja engravidar, sem que a pessoa com quem ela manteve a relação sexual tenha qualquer vínculo com aquela criança que nascerá, como já trazido anteriormente nessa coluna6. Se o Poder Público não se dignou a cuidar de hipóteses prosaicas como essas, que não envolvem a aplicação de um elevado grau de tecnologia, é de se imaginar que aquelas mais intricadas passam totalmente ao largo do que é possível se encontrar em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido trago uma proposição para provocar a análise de todo aquele que queira se debruçar sobre a complexa arte de compreender o direito e aplicá-lo: Se um casal formado por pessoas de gênero distintos não tiver condições de ter filhos e contratar que um homem e uma mulher lhe ofereçam seu material genético para que se fecunde um embrião que será implantado em uma outra pessoa que o gestará, quem serão os pais dessa criança?7 Sob a perspectiva contratual é de se compreender que aqueles que contrataram sejam os pais, contudo muito tem se discutido acerca desse contrato de gestação em substituição e seu valor jurídico. Ainda que não exista legislação expressa sobre o tema, o CNJ prevê a possibilidade de que se faça o registro da criança no nome dos contratantes, afastando a presunção da maternidade e reconhecendo a valia da manifestação de vontade das partes envolvidas (art. 513, § 1º do Código Nacional de Normas - Foro Extrajudicial)8. Importante se constatar que a previsão indicada apenas acolhe a quem formalizou por meio de contrato escrito a gestação em substituição, haja vista que o registro de nascimento em nome da contratante, e não da parturiente, apenas se autoriza ante a apresentação de "termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação". Considerando que o Código Civil prevê que a regra dos negócios jurídicos seja a forma livre, exigindo-se forma especial apenas quando for expressamente determinado em lei (art. 107 do Código Civil), temos aqui o CNJ inovando e legislando sobre algo que não lhe incumbe. De outra sorte, caso o entendimento for refratário à validade do contrato, entendendo-se pela inadmissibilidade da avença formulada entre aqueles que desejam ser pais e a pessoa que gesta uma criança em seu favor, é possível se concluir pela filiação vinculando a criança e quem a gestou, lastreado ainda no preceito do mater semper certa est que norteia o art. 1.597 do Código Civil. Tanto é assim que a própria previsão do CNJ tem por escopo afastar a obrigatoriedade de inserção no assento de nascimento da criança a informação que consta da DNV - Declaração de Nascido Vivo no campo destinado à mãe, atualmente parturiente9. Não se pode, por fim, ignorar que se o parâmetro utilizado for o da origem genética daquela criança, os pais não serão nem os contratantes e nem a parturiente, havendo de se estabelecer a vinculação entre aquele que nasceu com quem se constatar serem as pessoas das quais seu DNA se origina. Por mais absurda que possa ser essa afirmação, é premente que não se perca de vista que atualmente quando um homem não se manifesta reconhecendo ser o pai de uma criança é o exame de DNA que tem o condão de fixar a filiação. Trazidas essas ponderações, nos cabe decidir se o que haverá de prevalecer é o acordo de vontade entre as partes, a previsão legal de que a mãe é quem deu à luz à criança ou a sua ascendência genética. Obviamente que na ausência de conflito entre todas as partes que integram essa situação a solução se faz trivial, contudo o problema se estabelece caso haja uma pluralidade de interessados pugnando pela prevalência da vinculação paterno/materno-filial com aquela criança. Estabelecido um conflito em decorrência da eventualidade da gestante afirmar que não mais deseja cumprir o contrato e que quer ficar com aquela criança para si, estamos diante de uma situação que já vem sendo objeto de atenção da doutrina e que, particularmente, considero que a prevalência da avença firmada sobre a nova vontade expressada pela gestante é inafastável. Muito pode ser trazido no que concerne às alterações hormonais sofridas por essa gestante, pelo afeto que possa vir a ter nutrido por aquele feto que está a gestar ou sobre a perspectiva do direito ao seu próprio corpo e uma eventual vulnerabilidade que a levou a aceitar fazer parte daquela gestação em substituição. São variadas as vertentes que podem conduzir os questionamentos porvindouros, contudo o objetivo da presente coluna não se aterá a tais perspectivas. O aspecto que me motiva aqui não se direciona a resolver o embate entre vários indivíduos desejosos por assumir essa filiação, mas sim quando por qualquer razão os contratantes exaram o seu intuito de rescindir o contrato, negam-se a receber a criança depois que ela tenha nascido ou tenham falecido antes do seu nascimento. Nessas circunstâncias, a quem se impõe da filiação dessa criança? Por entender ser contrato de gestação em substituição indiscutivelmente válido, e sem a possibilidade, a princípio, de qualquer sorte de rescisão, sustento como inevitável o dever dos contratantes de assumirem a paternidade da criança gestada. Poderíamos lançar como situação limítrofe, que ensejaria um maior aprofundamento técnico, a discussão quando a gestante toma atitudes durante a gravidez que podem colocar em risco a perfeita saúde do bebê que está gestando, o que, de per si, abre espaço para se debater quais os limites que podem ser impostos contratualmente para essa gestante. Seja como for, de início, entendo que, com o nascimento da criança gestada, não há que se falar de qualquer discricionaridade em favor dos contratantes, os quais podem ser compelidos, até mesmo judicialmente, a registrar o bebê, fazendo valer a avença firmada pelas partes. Arrependimento, dissolução do relacionamento dos contratantes, cessação do interesse de ser pai/mãe, uma eventual gravidez da contratante, ou qualquer outra razão não são bastantes para eximir os que procuraram a gestação em substituição do dever de assumir a paternidade. Nesse diapasão tenho como plausível a possibilidade da propositura da ação de investigação de paternidade com o fim de que seja judicialmente determinado que os contratantes assumam a paternidade daquela criança nascida em decorrência da gestação em substituição, lastreada no contrato firmado entre as partes. Conjuntura que pode se revestir de contornos um tanto mais delicados é aquela em que os contratantes venham a falecer antes do nascimento da criança que está sendo gestada. Entendendo-se que o contrato segue inalterado com a morte dos contratantes, quando do nascimento dessa criança é possível se determinar que seja realizado o reconhecimento de sua paternidade/maternidade post mortem, com os contratantes figurando como pais, fixando-se que competirá a um tutor a responsabilidade de cuidar daquela criança, a quem será garantido todos os direitos sucessórios. Caso se entenda, noutro sentido, que se trata de um contrato que gera uma obrigação personalíssima, corre-se o risco de se concluir que a estipulação firmada estará rescindida ante a morte dos contratantes. E nesse exato ponto é que surge a grande preocupação que pauta o presente texto: será a gestante obrigada a ficar com a criança, impondo-se a ela o dever de ser mãe mesmo que esse nunca tenha sido o seu desejo, já que sua gravidez é decorrente exclusivamente de um negócio jurídico? Poderia se argumentar que essa situação seria algo equivalente a um "risco do negócio" que sobre ela recairia? Esse desenho apresentado está plenamente permeado de um recorte de sexo enquanto pilar da sexualidade, vez que como apenas mulheres, em sua acepção estrita biológica, por terem útero, podem gestar, o ônus do não cumprimento do contrato tem um claro marcador sexual. Evidente que poderíamos discorrer sobre a natureza do contrato, a necessidade da presença de certas cláusulas para mitigar tais riscos ou ainda as variáveis admissíveis caso o contrato para a gestação em substituição tenha sido escrito ou não, se é possível a cessão desse contrato ou a assunção da posição contratual pelo falecimento de um dos contratantes, questões que serão objeto de artigo científico posterior. No presente momento a finalidade desejada é fazer com que aqueles que tem se dedicado a estudar esse tema tenham sua atenção voltada para esse recorte. Negar a validade do contrato como uma premissa, de maneira genérica, especialmente após a gestação em substituição ter se consubstanciado de fato, pode gerar uma consequência extremamente prejudicial a uma mulher, cabendo até mesmo se aventar a possibilidade que o julgamento com perspectiva de gênero venha a ser levado em consideração em tais circunstâncias. Antes de uma visão romantizada ou revestida de uma tecnicidade parcial é indispensável que se coloque em primeiro plano a autonomia que lastreou a convenção firmada entre as partes, não se fazendo escolhas ao sabor dos ventos e dos interesses que se busca atender em cada momento, prezando por uma linearidade de raciocínio lógico-jurídico. Como a legislação, nesse caso, sequer foi elaborada, é primordial que as discussões que venham a pautar o tema não se esqueçam de ponderar que, uma solução que não sopese todos os eventuais riscos, pode acabar por culminar em uma nova modalidade de mãe-solo, ainda mais cruel do que as que já assolam nossa sociedade. Que a proteção da mulher não seja mais uma vez ignorada pelos nossos tribunais. Que o Poder Legislativo não relegue a mulher, mais uma vez, a uma condição de arrimo familiar, especialmente considerando que a gestação se originou de um contrato. Que, ao menos dessa vez, a mulher receba a proteção de que é merecedora. ______ 1 Orlando Gomes. Direito e desenvolvimento. 2 ed., rev. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 4-5. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Acesso à reprodução humana assistida por homoafetivos e transgêneros. In: MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). Direitos reprodutivos e planejamento familiar. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2023. p. 220 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 77. 6 Clique aqui 7 Parte das questões aqui analisadas foi objeto de discussão com os alunos da UFBA que integram o LABFAMS (Laboratório de Investigação de Direito da Família e Sucessões), grupo de estudo sob minha coordenação. 8 § 1.º Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação. 9 Clique aqui
Em outubro de 2024 entrou em vigor no Brasil a lei 14.994/24, também nomeada de pacote antifeminicídio em razão de seu escopo direcionado à proteção contra a violência de gênero, tendo como ponto mais aclamado o fato de ter tornado o feminicídio um crime autônomo (art. 121-A do Código Penal). O delito deixa de ser apenas uma qualificadora no crime de homicídio (antigo inciso IV do art. 121, agora revogado), passando a ter existência em si mesmo enquanto conduta típica. A lei 14.994/24 mostra-se como um instrumento normativo de envergadura, não tendo se restringido apenas a estabelecer o novo tipo penal do feminicídio, mas também fixando uma pena mais grave para o crime de homicídio quando praticado contra mulher (reclusão de 20 a 40 anos), além de trazer outras considerações em inúmeras circunstâncias em que a vítima é atacada em razão de sua condição de gênero. Face à toda misoginia que permeia o cotidiano brasileiro e que coloca as mulheres e toda a gama do feminino em uma situação de extrema vulnerabilidade é de suma importância que o Estado confira especial atenção a tal realidade. Nesse aspecto, a apresentação do pacote antifeminicídio é merecedora de toda a felicitação possível. Contudo há uma perspectiva técnica que envolve o tema e que é elemento nuclear de tudo o que recorrentemente compartilho nesse espaço, e critério basilar dos meus escritos: de que pilar da sexualidade estamos falando? A legislação visa resguardar uma questão atrelada ao sexo, ao gênero, à orientação sexual ou à identidade de gênero? A dúvida se coloca exatamente ante a contínua confusão existente entre sexo e gênero1 que é apresentada não só pela sociedade como um todo mas também pelo Poder Público2, e que impacta de maneira preocupante na efetiva proteção de quem precisa de especial atenção do Estado. Em que pese entender que todo o espectro do feminino (enquanto gênero) esteja abarcado pela defesa preconizada pelo pacote antifeminicídio, a forma como a questão é descrita no corpo da lei 14.994/24 pode trazer fortes questionamentos quando se analisa o tema para além da sua superfície. Durante todo o texto da lei, iniciando na própria ementa, se tem a utilização da expressão "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino", fixando o parâmetro a ser utilizado para a incidência da lei. Seguindo o nosso marco teórico de que a sexualidade se sustenta em quatro pilares sob o viés jurídico3, é essencial se entender de qual dos alicerces estamos tratando. Com base nessa perspectiva temos que sexo há de ser entendido, em seu sentido estrito, como reflexo da "conformação física ou morfológica genital constatada no instante do nascimento da pessoa"4, enquanto o gênero repousa na "expressão social que se espera de quem seja homem/macho (masculino) ou mulher/fêmea (feminino)"5. Ao valer-se da expressão "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino" o texto faz uma enorme miscelânea conceitual, mas, claramente, ainda que de forma pouco escorreita, conduz a uma proteção tanto da mulher (sexo) quanto do feminino (gênero). Dessa maneira, a lei 14.994/24 alberga a quem tem elementos biológicos associados à mulher, como também a quem expressa socialmente o feminino. A atecnia demonstrada apenas revela uma vez mais a clara deficiência de letramento do Poder Público acerca das questões atinentes à sexualidade, que reiteradamente trata sexo e gênero como uma única coisa. Qualquer interpretação que aparte da proteção especial, trazida pela lei 14.994/24, quem quer que seja que possa ser considerado sob o espectro da mulher (sexo) ou do feminino (gênero) se mostra equivocada e, muito provavelmente, eivada de preconceito. Proteger apenas a mulher por ter nascido com uma vagina ou por portar dois cromossomos X exigiria que o agressor, obrigatoriamente, tivesse ciência da conformação física ou acesso a uma análise genética da vítima. Na prática os crimes contra a mulher estão, em larga escala, muito mais vinculados a uma presunção de que aquela pessoa seja uma mulher exatamente pelos caracteres por ela ostentados socialmente. Objetivamente se infere qual é o sexo de uma pessoa (na perspectiva biológica) pelo fato de estar ela expressando aspectos associados ordinariamente àquele sexo, e não pela constatação do sexo em si. Se conclui por qual é a configuração física e genotípica da pessoa em razão dos caracteres de gênero que ela demonstra. Inquestionável que o aspecto biológico atrelado ao sexo é pertinente para a análise do tema, objetivando a proteção especial de alguém que experiencia uma maior vulnerabilidade em razão do seu corpo expressar aspectos vinculados ao feminino. Contudo o ódio que norteia as condutas criminosas contra tais pessoas se assenta nas características exteriorizadas dessa condição de mulher (critério biológico), ou seja, no gênero. No universo jurídico, podemos atribuir boa parte da responsabilidade pela dificuldade de se compreender com clareza a distinção entre sexo e gênero ao equivoco técnico já relatado nessa coluna com relação à informação consignada na DNV - Declaração de Nascido Vivo, e consequentemente no RCN - Registro Civil de Nascimento e na certidão de nascimento, no campo destinado ao sexo. No espaço destinado a indicar o sexo (homem/macho, mulher/fêmea ou intersexo) o modelo elaborado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde no anexo II da portaria 116/09 indica dois termos concernentes ao gênero (feminino ou masculino, na perspectiva binária, além de um "ignorado" que seria direcionado aos casos de pessoas intersexo)6. Entre os inúmeros desdobramentos desse equívoco podemos constatar que transgêneros e pessoas não-binárias, em razão do impacto social da presença desnecessária de tal informação nos documentos, tem pleiteado a alteração da informação constante desse campo nos documentos7. Retomando a apreciação específica do texto da lei 14.994/24, é de se assinalar que ao "definir" o nome a ser dado ao novo tipo penal de "Matar mulher por razões da condição do sexo feminino" valeu-se daquele que já vinha sendo utilizado para tal conduta, qual seja, feminicídio. Tal escolha, preferindo feminicídio a "mulhericídio", não é inconsciente, revelando que o crime se ancora na primazia da perspectiva do gênero, já que a motivação está baseada no que é expressado pela mulher, seguindo os moldes estabelecidos na origem do termo fimicide, cunhado por Diana Russell e Jill Radford8. Restando inequívoco que as condutas tipificadas pelo pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) têm na misoginia ou menosprezo face a condição feminina seu lastro, é premente se entender que o fator aglutinador dos comportamentos previstos nessa lei está na premissa de que o agente do ilícito atua segundo uma percepção de que ele possui uma superioridade em face dessa vítima. No cerne da motivação do agente está a concepção de poder, nesse caso direcionado ao controle dos corpos alheios e à regulação da sexualidade9, como é recorrente em sede de crimes sexuais. Conclui-se, portanto, que é inteligência inafastável que toda vez que a lei 14.994/24 replica a expressão "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino" em verdade está referindo-se a crimes que sejam motivados pelo fato de a vítima possuir um elemento ligado ao feminino, não apenas vinculando-se ao fato de ter ela nascido com uma vagina, ovário, útero, trompas, etc, ou por ter o cromossomo sexual XX. Disso decorre uma considerável gama de consequências técnicas que não podem ser ignoradas, como a de que estão acolhidos sob os preceitos estabelecidos pelo pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) toda pessoa que expresse o feminino, o que inclui mulheres (cromossomo XX) e pessoas do gênero feminino (cisgênero ou transgênero)10. Necessariamente também se aplica aos homens transgênero (pessoas a quem se atribuiu o sexo mulher/fêmea ao nascer mas que não se reconhecem como do gênero feminino), quando a motivação do crime esteja na premissa de que aquela pessoa possui ou possuiu aspectos sexuais externos associados ao feminino, como nos casos de pânico trans11. Como exposto no manual dos Direitos Transgênero que acabo de publicar, ainda antes da transformação do feminicídio em crime autônomo, "a proteção da lei visa atender toda a amplitude do conceito atrelado ao feminino, seja quanto a sua manifestação física/genital (sexo), seja na sua acepção sociocultural (gênero), autorizando a imposição da qualificadora quando o homicídio tenha como vítima tanto quem possui genitália tradicionalmente associada à mulher (mulheres cisgênero e homens transgênero) como também a quem performe o gênero feminino (mulheres cisgênero e mulheres transgênero)12. Em uma hermenêutica que pode gerar arrepio a muitos chego até mesmo a ponderar que se o bem jurídico protegido é o feminino seria admissível se pensar na aplicação de todos os parâmetros estatuídos no pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) em favor de um homem vitimado por violência doméstica que vive um relacionamento com alguém do mesmo sexo/gênero e que exerce o papel do feminino nessa relação. Finda a análise da vítima que o pacote antifeminicídio busca resguardar é premente se fazer uma crítica acerca de um aspecto que já nos motivou anteriormente na presente coluna, que é a proteção das mulheres de forma geral, como uma coletividade e não apenas de maneira individualizada. O pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) perdeu uma enorme chance de tipificar as condutas misóginas praticadas contra as mulheres e o feminino de forma geral, persistindo a inexistência de cominação legal específica com relação a atos dirigidos contra a coletividade feminina. Ao traçar novas linhas com relação aos "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino" trata dos crimes contra a honra, prevendo a majoração da pena, por exemplo, no caso de injúria cometida com tal motivação, cominando a aplicação da pena em dobro (art. 141, § 3º do Código Penal). Persiste a lacuna em relação à misoginia contra a coletividade das mulheres e ao feminino como um todo, já que o texto da lei 14.994/24 restringe-se a tratar apenas de tais condutas direcionadas a uma pessoa individualizada. A omissão que sustenta a ADO 26, que, a partir da concepção social de raça, aplica o crime de racismo para os casos de homofobia e transfobia13, permite que se conclua também pela verificação do mesmo tipo penal para a misoginia direcionada a todas as mulheres, como sustentei na coluna na qual discorri sobre o empresário que disse "Deus me livre de CEO mulher"14.  A concepção de sexismo enquanto um elemento passível de ser compreendido como raça em sua dimensão social não é uma novidade em si, tendo sido abordada em estudos antropológicos, nos quais até mesmo se sustenta que a conexão sexismo/racismo se justificaria "na medida em que o sexismo também se apoia em uma definição física e biológica da mulher"15. Evidente que a subsunção de tais condutas ao crime de racismo não é a solução mais adequada, contudo os elementos componentes do tipo penal, ao firmar a raça (que juridicamente não é o mesmo que cor)16 como um dos parâmetros para a sua aplicação, ao lado de outros como etnia, religião ou procedência nacional, deveria nos conduzir mais a uma discussão acerca do nome dado ao crime. Se o tipo penal descrito no art. 20 da lei Caó (lei 7.716/89) fosse meramente denominado de "discriminação" ou qualquer outra expressão que socialmente não fosse atrelada ao que tradicionalmente se vincula às lutas raciais no Brasil a situação seria menos conturbada. Indubitável que as conquistas da população negra pautaram a elaboração da legislação e é plenamente compreensível a busca pela manutenção de toda a simbologia que está associada ao crime de racismo para pretos e pardos, contudo esse aspecto não pode ser suficiente para se impedir que outras pessoas venham a se beneficiar da proteção descrita na lei Caó (lei 7.716/89). Tentar restringir que quem não é negro venha a valer-se do que está ali descrito constitui uma manifesta afronta aos preceitos constitucionais mais basilares, além de representar uma exclusão indevida de cidadãos da proteção legal, em afronta à vedação de proteção insuficiente, o que reveste-se de contornos ainda mais preocupantes em se tratando de um grupo tão vulnerabilizado quanto o das mulheres e daquelas que expressam o feminino. Mesmo ciente da árdua luta que pessoas negras seguem travando em nossa sociedade, a perspectiva que conduz a presente análise não tem qualquer intenção de trazer apagamento ou minoração da relevância de sua batalha. O intuito é apenas garantir a efetiva proteção às mulheres e ao feminino como um todo, ainda mais quando em muitos momentos essas guerras travadas contra as maiorias subjugadoras são convergentes. A proteção de uma não minora a proteção da outra. Negar acesso à plenitude das garantias legalmente existentes sob a alegação de que foi um dado grupo que laborou para o surgimento da legislação, deixando à deriva quem precisa de proteção, jamais pode ser uma diretriz a nortear quem sente todas as mazelas da opressão, subjugação e discriminação. Pugno, por fim, que pessoas negras, mulheres, homossexuais, transgêneros, aliados, e leitores de todos os espectros absorvam o que apresento aqui com a mente aberta, pautados meramente pelas linhas elementares dos Direitos Humanos e de nosso Estado Democrático de Direito. Se quiserem traçar objeções, que elas seja jurídicas e não ideológicas, sob pena de que ao defender seu ponto de vista você estará perpetuando uma realidade de discriminação contra outro grupo. Ninguém com um mínimo de consciência social nega que a misoginia é um dos grandes problemas a assolar nosso país. Então qual a sustentação para uma vedação de aplicação da lei a uma situação fática que está nos seus limites de atuação? Preocupante que a busca pela proteção mais ampla possível à mulher nas bases aqui propostas encontre objeção de mulheres e negros. Mas sigo provocando: se o "nome" dado ao tipo não fosse racismo ou injúria racial, a refração à ideia aqui expressada seria a mesma? Se ao lado de "raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", que constam do art. 20 da lei Caó (lei 7.716/89), estivessem presentes expressões como "sexo", "gênero" ou "sexualidade" haveria alguma dúvida quanto a sua aplicação em casos de misoginia? Apenas para aplacar a ira que o presente texto certamente fará nascer nos penalistas, já ressalto que não se está aqui tratando de analogia ou mesmo interpretação extensiva, mas tão somente de hermenêutica lastreada na compreensão dos termos apostos na legislação, bem como seus objetivos. Então, desafio a quem chegou até aqui à reflexão: Se o próprio STF já reconheceu que a expressão raça constante da lei comporta a sua dimensão social (ADO26), que abarca dados grupos vulnerabilizados e subjugados em razão de elementos da sexualidade, por que é tão difícil garantir essa proteção às mulheres e ao feminino? É premente se aceitar que é necessário se usar todas as ferramentas disponíveis em nosso ordenamento jurídico em favor da proteção dos grupos que sofrem preconceito e discriminação em razão de quem são. O Poder Público expressa claramente, com o pacote antifeminicídio (lei 14.994/24), que a mulher e o feminino necessitam de uma atenção especial, não podendo a leniência legislativa17 expressada por nosso Estado Esquizofrênico18, mais uma vez patente, permitir que a misoginia, que abre fissuras em nosso tecido social, siga incólume. A proteção da mulher e do feminino há de ser exercida de forma ferrenha e plena, com todas os instrumentos possíveis, ainda que possam desagradar outras pautas ou gerar incomodo. O foco há de ser sempre a proteção das minorias e de quem padece de uma realidade de vulnerabilidade em nossa sociedade. A luta há de ser sempre pela ampliação dos instrumentos protetivos dos que mais precisam, nunca a sua redução. ________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p.189-204, 2022, p. 191. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. Intersexolidade e intersexualidade da pessoa intersexo: confusão e invisibilidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 147-165, 2023 7 Disponível aqui. 8 RUSSELL, Diana E. H.; RADFORD, Jill. Femicide: The Politics of Woman Killing. New York: Twayne Publishers, 1992. 9 Michel Foucault. História da sexualidade 1: A vontade de saber, Rio de Janeiro: Graal, 1999. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 242. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 230. 14 Disponível aqui. https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/415941/racismo-e-o-deus-me-livre-de-mulher-ceo 15 WIEVIORKA, Michel. El espacio del racismo. Barcelona, Paidós, 1991. p. 27. 16 Disponível aqui. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
Não são poucos os casos em que se pode constatar restrições de acesso aos direitos fundamentais para as minorias sexuais lastrados em parâmetros desprovidos de fundamentação plausível, com manifesta ofensa a premissas fundantes do nosso Estado democrático de direito. O preconceito por vezes parece consolidar-se como um valor metajurídico que tem o poder de afastar a concessão dos direitos mais nucleares garantidos a todas as pessoas quando destinados a proteger certos grupos1, vulnerabilizando de maneira inadmissível aqueles que necessitam de especial atenção do Estado. Diversamente do que muitos propagam as minorias gozam de um status nos Estados democráticos de direito que as coloca em condição de grupos merecedores de atuação diferenciada visando propiciar a manutenção da sua existência segundo os preceitos norteadores da cidadania plena, não podendo prosperar uma visão de mundo que segrega e que muitas tenta exterminar todo aquele que não se enquadra no padrão posto2. Não bastasse essa realidade social que por si só já coloca em risco a presença das minorias sexuais na sociedade ainda somos obrigados a experienciar uma situação bizarra em que até mesmo modelos e formulários têm se sobreposto a lei, especialmente em detrimento dos direitos desse grupo já tão vulnerabilizado. A alegação de que os formulários configuram-se como parâmetro para decisões pode ser visto, nos últimos tempo, no caso da CNI - Carteira Nacional de Identidade, o chamado novo RG. Questionada a necessidade da aposição do sexo no corpo do documento, como também a concomitância da presença de um campo destinado ao nome e outro ao nome social, o TRF da 1ª região entendeu que a emissão do documento com tais informações seria mantida, pois do contrário poderia ocorrer "uma série de embaraços e transtornos" para a Administração Pública "como um todo e em todas as esferas estatais", o que ensejaria numa "completa paralisação do serviço de emissão da carteira nacional de identidade" (1022184-25.2024.4.01.0000). No referido caso é relevante se notar que o próprio Governo Federal manifestou-se inicialmente no sentido de que não prevaleceriam as informações referentes ao sexo e ao nome social na CNI, contudo nem mesmo esse reconhecimento bastou para que o executivo e o Judiciário efetivassem a proteção das minorias sexuais3. Nessa nossa "pátria do formulário", na qual o padrão constituído se sobrepõe à realidade dos fatos, recebemos como uma grande notícia toda vez que o Poder Judiciário reconhece algum dos absurdos praticados lastreados nesse equívoco crasso de valorizar um modelo construído em detrimento de todo o arcabouço jurídico existente com o fulcro de proteger a pessoa humana. O mais recente caso em que pudemos ver o afastamento de uma premissa equivocada constante de modelos e formulários se deu com a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADPF 787, que teve o min. Gilmar Mendes como relator e que, por unanimidade, em julgamento ocorrido em 17 de outubro de 2024, reconheceu a "Omissão da União em assegurar acesso adequado à saúde para pessoas transexuais e travestis", impondo ao Poder Público o dever de garantir o apropriado atendimento médico às pessoas independentemente da informação quanto ao sexo constante de seus documentos. Partindo-se do pressuposto de que a identidade de gênero (e o seu reconhecimento para fins legais) independe da realização de qualquer intervenção cirúrgica ou tratamento hormonal prévio (ADI 4275), é evidente que não pode prevalecer qualquer critério que vede o acesso à saúde a quem tenha realizado a alteração de seus documentos em consonância com a sua identidade de gênero4. Tal afirmação é relevante a partir do momento em que se compreende que há a possibilidade de que homens transgênero venham a engravidar e a dar à luz a uma criança, já que podem manter-se com a capacidade reprodutiva integra mesmo após a sua transição, o que torna necessário o atendimento médico especializado, como com um ginecologista, ainda que apresente em seus documentos a informação de se tratar de alguém do gênero masculino. Da mesma forma que é possível que uma mulher transgênero tenha a necessidade de atendimento por um urologista. Trata-se de uma constatação lógica baseada simplesmente na constituição física daquela pessoa, algo que vai além de qualquer discussão que tenha a sexualidade como fundo. Não importar se aquela pessoa apresenta documentos que indicam esse ou aquele sexo, ou ostente um determinado gênero, já que o fato que a leva a precisar de um atendimento médico específico há de ser determinado simplesmente pela condição clínica que apresenta5. Além de especificamente impor que o efetivo acesso ao direito à saúde seja garantido a todas as pessoas independentemente de sua identidade de gênero, o STF, na ADPF 787, manifestou-se quanto aos elementos componentes da DNV - Declaração de Nascido Vivo, vez que o modelo institucionalizado desse documento traz informações em seus campos que podem gerar limitação ao pleno exercício dos direitos pelas pessoas transgênero. Já teci nessa coluna algumas considerações sobre os problemas da DNV6, sendo certo que há muito o que se questionar sobre a qualidade e adequação do modelo atualmente vigente. Na ADPF 787 o STF debruçou-se a analisar a informação que compõe o campo destinado a indicar os aspectos atinentes ao nascimento, mais especificamente à relação existente entre aquele que nasceu e a pessoa que deu a luz, bem como aos que figurarão como seus genitores. Antes mesmo de discorrer com maior vagar sobre o conteúdo da decisão proferida na ADPF 787 pelo STF é primordial se destacar como a compreensão dos elementos que compõem a sexualidade segue sendo um dos maiores problemas quando da discussão de questões vinculadas ao tema, sendo recorrente que tribunais se equivoquem ao defini-los. Isso também ocorre na presente ADPF que, ressalte-se, tem por fundamento específico analisar aspectos vinculados à sexualidade, o que faria se pressupor que a decisão estaria alicerçada nos mais escorreitos e técnicos conceitos acerca do que encerra a ideia de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Todavia não é isso o que se pode constatar na prática.  Acessando-se a decisão se verifica que, ao mencionar "transexuais e travestis" como pessoas que devem ter a si garantido o acesso à saúde, o STF os define como "pessoas que não se identificam com o sexo com o qual nasceram". Uma das minhas cruzadas em meus escritos e como pode ser constatado em vários dos textos constantes dessa Coluna, sexo e gênero são aspectos distintos e que precisam ser devidamente separados para que não se incorra em equívocos técnicos7. Da mesma sorte, reiteradamente expresso qual há de ser a correta compreensão do que venha a ser a transgeneridade, condição que alberga tanto transexuais quanto travestis, e que há de ser entendida como a condição experienciada por aquela pessoa que "não se entende como pertencente ao gênero que era esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento"8. Chega a ser desolador constatar a maneira como a transgeneridade é tratada pelos nossos tribunais, a ponto de o descuido ser tamanho que o comunicado oficial do STF, destinado à "informação à sociedade", chega a grafar de forma equivocada a palavra transexual (transsexual). É uma falha que não se pode admitir, ainda mais quando consignada em um documento elaborado pela mais alta casa do Judiciário nacional, e destinada a dar ciência à população como um todo de sua atuação naquele caso concreto. Retomando a análise do conteúdo da decisão proferida na ADPF 787, com relação ao que consta da DNV, entendeu-se que o "princípio da igualdade impõe que o poder público respeite as identidades de todas as pessoas (arts. 3º, IV, e 5º, caput, da CF/88). Assim, as declarações de nascido vivo (DNVs) devem usar os termos 'parturiente/mãe' e 'responsável legal/pai', que contemplam todas as identidades de gênero, incluindo pessoas transexuais e travestis". Mais uma vez é preocupante constatar que uma questão que se manifesta como óbvia precise chegar ao STF para ser reconhecida apenas por versar sobre temas atinentes à sexualidade9, em uma clara demonstração de como a dominação cisheteronormativa vigente tenta (e consegue) impor à sociedade preceitos equivocados, exigindo que as minorias sexuais tenham que muito laborar para conseguir fazer valer o que é inconteste para as demais pessoas. A obscuridade que toma conta desses olhares conservadores é tamanha que faz com que a ciência mais elementar e consolidada seja ignorada e questionada, ressuscitando dúvidas já de muito superadas, conferindo a elas uma nova roupagem capaz de ludibriar os incautos e aqueles que desejam que suas perspectivas discriminatórias sejam confirmadas. A questão posta é, essencialmente, a de adequação de um modelo usado de forma nacional e que se mostra inadequado. Chamar a pessoa que deu a luz à criança de parturiente e não de mãe se mostra coerente não apenas sob a perspectiva das pessoas transgênero mas também atende a um outro parâmetro que permeia nossa sociedade, que são as hipóteses de reprodução humana assistida, especialmente quando se pensa na figura da gestação em substituição. Pela própria essência do que constitui a figura da gestação em substituição10 é evidente que aquela pessoa que pariu a criança não é a mãe daquele bebê, não sendo nem mesmo necessário se embrenhar em discussões referentes a sentimento ou afeto. Tal modalidade de gestação tem uma natureza contratualizada, de sorte que a expressão "mãe" não guarda conexão com a relação existente entre a parturiente e aquela criança. É indispensável que se consolide a ideia norteadora de que não podem os formulários elaborados e utilizados de forma geral pelo Poder Público fomentar a discriminação, haja vista que uma DNV na qual conste "mãe" no campo que haveria de ser destinado à parturiente pode encerrar em si uma série de dificuldades, promovendo uma segregação e institucionalizando uma discriminação atentatória as diretrizes basilares do nosso Estado Democrático de Direito. Importante se consignar também que o modelo da certidão de nascimento estabelecido pelo provimento 63 do CNJ já não traz em seu corpo as expressões "mãe" ou "pai", mas sim filiação, que de forma mais includente possibilita que no campo sejam inseridos os nomes dos ascendentes daquela pessoa independentemente de qualquer consideração de gênero. Não é possível se admitir que o Poder Público continue fechando os olhos para as ofensas perpetradas contra as minorias sexuais, sendo ainda mais degradante se constatar que muitas das condutas segregatórias que atingem esse grupo tão vulnerabilizado emanam do Estado que haveria de protege-las e garantir-lhes o real acesso aos seus direitos fundamentais. Mas ver formulários e modelos pautando discussões que envolvem o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana desse grupo extrapola todos limites. Parece anedótico, mas é, em verdade, algo que coloca em risco a existência de quem já enfrenta tanta segregação, estigma e discriminação. Pode ser fatal. ________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, 1, p. I - IV, 2022. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 96. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 65-66. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 65. 6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 7. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A união homossexual ou homoafetiva e o atual posicionamento do STF sobre o tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo: Metodista, v. 8, 2010. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, 1, p. 117-147, 2024.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O impacto de gênero das bets

O fenômeno das apostas tomou conta do Brasil de uma maneira assustadora, atingindo um enorme número de pessoas e famílias. Nos últimos tempos fomos inundados com reportagens relatando os perigos do "jogo do tigrinho" e a forma como os influenciadores digitais participam desse fenômeno.  O Banco Central estima que em agosto de 2023 cerca de 24 milhões de brasileiros realizaram ao menos uma transferência de PIX para empresas de jogos de azar e apostas1. Acredita-se que seja um mercado que alcançará cifras de mais de 150 bilhões de dólares em 2030, com um crescimento de 11% ao ano a partir de 20232. A enorme quantidade de dinheiro envolvida nesse mercado faz com que a publicidade das empresas de apostas, as chamadas "bets", seja uma constante no cotidiano de todas as pessoas, estejam ou não elas interessadas nesse tipo de jogo. Basta considerar que o campeonato brasileiro de futebol profissional masculino é patrocinado por uma empresa de apostas, e quase todas as equipes que disputam esse certame tem patrocínios dessas empresas. Ainda que os jogos de azar sejam proibidos no Brasil, a lei 13.756/18, autorizou a prática de apostas de quotas fixas (modalidade que permite ao apostador que saiba, já no momento em que realiza sua aposta, quanto poderá ganhar caso acerte o resultado).  Recentemente, a lei 14.790/23, estabeleceu as diretrizes para o funcionamento das apostas esportivas de cota fixa, com a definição dos lucros das empresas (retenção de até 88% do faturamento bruto, 2% destinados à Seguridade Social, e os 10% restantes distribuídos entre áreas como saúde, educação e segurança pública), além da alíquota de 15% de Imposto de Renda sobre os ganhos.  Uma apreciação mais superficial do tema poderia conduzir à equivocada conclusão de que a onda das "bets" atinge de forma indiscriminada a todas as pessoas, independentemente dos seus marcadores, sendo uma crise que recai sobre a população de forma abrangente. Todos estaríamos sujeitos aos reflexos das apostas esportivas da mesma forma o que, de fato, não é uma verdade. As apostas podem culminar no "transtorno do jogo", condição de saúde mental na qual a pessoa expressa um comportamento de jogo compulsivo e incontrolável, com impactos negativos significativos em sua vida (pessoal, social e profissional). Ele se manifesta como uma incapacidade de resistir ao impulso de jogar, mesmo tendo plena ciência de toda a gama de consequências negativas que podem decorrer de tal conduta, que gera problemas financeiros, danos aos relacionamentos e sofrimento psicológico. Esse transtorno, catalogado no DSM-5 - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais como um transtorno do controle de impulso, possui características similares aos da dependência química, trazendo consigo uma ânsia por apostar, com valores cada vez mais elevados, em busca de ganhos maiores, conduzindo o jogador a um comportamento altamente pernicioso, capaz de interferir gravemente em suas atividades diárias e causar sofrimento clínico, impondo até mesmo a necessidade de intervenção terapêutica (CID 6C50 - transtorno de jogo). Estudos revelam que a prevalência global do transtorno do jogo é de 1,9%, atingindo 1,3% da população na Europa e 5,3% na América do Norte, com homens sendo considerados 3,4 vezes mais propensos do que as mulheres a se envolverem em jogos de azar problemáticos3. O NCPG - National Council on Problem Gambling afirma a prevalência de homens nos jogos problemáticos (entre 70% a 75%), segundo dados do NPGH - National Problem Gambling Helpline.4 A Universidade de Liverpool constatou que 78,4% das contas ativas de apostas esportivas são de homens5, enquanto a Universidade de Lethbridge revelou que 82,4% dos jogadores online canadenses são homens, em contraposição a apenas 17,6% de mulheres, podendo-se verificar que cerca de 25% dos homens apostam em comparação com 17% das mulheres6, como indicado no Relatório de Estatística de Gênero em Jogos de Azar.7 Porém, apesar de uma maior incidência entre os homens, é possível se aferir que quando mulheres desenvolvem o transtorno do jogo essa patologia as atinge mais tarde na vida, sendo acompanhada de um potencial de rápida progressão para uma situação realmente preocupante. A isso há de se acrescer o fato de que, com uma saturação do mercado masculino, a tendência é que as casas de apostas passem a focar cada vez mais nas mulheres visando sua expansão no mercado.8 Segundo uma perspectiva direta é certo se afirmar que a incidência de problemas com as apostas recai mais sobre os homens, contudo a maneira como as mulheres são impactadas se mostra bem mais preocupante. Elas são duplamente oneradas pelos gastos com as apostas: pagam pelo seu próprio vício e ainda são atingidas pela derrocada econômica que acomete os homens, pois o dinheiro por eles destinado às apostas muitas vezes é retirado do montante que a elas seria destinado, por exemplo, a título de pensão alimentícia (seja para elas ou para seus filhos). O vício em apostas, que tem se revelado como uma das causas que mais crescem entre os motivos que tem levado as pessoas a se divorciarem9, também impacta na relação com os filhos, pois crianças e adolescentes podem se sentir ainda mais atraídas por esse mundo ao verem seus pais mergulhados nesse universo. Ainda nessa seara das consequências das apostas para as famílias seria possível se considerar a possibilidade que tal tipo de conduta possa, em razão da natureza da realização de apostas, ensejar na configuração de prática de ato contrário à moral e aos bons costumes, que, nos termos do art. 1.638, III do CC, poderia ser causa a dar azo à perda do poder familiar. Caso isso venha a ocorrer, considerando a maior incidência de casos de transtorno de jogo entre os homens, a perda do poder familiar acarretará uma sobrecarga ainda maior sobre aquela mãe. A fim de tornar a questão ainda mais clara basta considerar que 3 bilhões de reais foram gastos com apostas no mês de agosto de 2024 por beneficiários de Bolsa Família, segundo Banco Central, revelando que famílias de baixa renda são "as mais prejudicadas pela atividade das apostas esportivas". O levantamento realizado constatou que 17% dos que receberam o benefício no mês de dezembro de 2023 realizaram apostas.10 Os dados coletados mostram que "a média gasta pelos beneficiários do programa social com as apostas no período foi de R$ 100", e que do montante total dos apostadores, "4 milhões (70%) são chefes de família (quem de fato recebe o benefício)", que enviaram, via PIX, R$ 2 bilhões para as bets. O mais inquietante é se constatar que tal levantamento englobou apenas 36 empresas e não considerou pagamentos realizados com cartão de crédito e débito11. Atualmente mais de 200 casas de apostas estão autorizadas a funcionar no Brasil12, o que nos leva a acreditar que essa realidade como um todo seja bastante pior do que a relatada. Considerando que o Bolsa Família oferta um valor baixo para os beneficiários (mínimo de R$ 600, ao qual se acresce R$ 150 a cada filho de até seis anos), é patente que o montante recebido por meio programa de transferência de renda do governo Federal não deve e nem pode ser utilizado para apostas. Salvo exceções, que certamente não se enquadram no caso daqueles que recebem o Bolsa Família, o montante destinado às apostas é valor que anteriormente seria direcionado a outros fins necessários à mantença daquela pessoa e seus filhos, e que, agora, encontra uma outra finalidade, colocando em risco a própria subsistência daquela pessoa. O vício em jogos até mesmo tem causado a retomada da discussão de temas que se julgava de baixa incidência prática até então, como a análise da condição do pródigo (art. 4º, IV do CC), e a consequente interdição pela qual pode vir a passar. Com a constituição patriarcal da nossa sociedade que confere às mulheres os deveres de cuidado em contraposição da responsabilidade (nem sempre assumida) dos homens de prover o sustento do lar, o fato das apostas estarem sendo realizadas em um maior número por homens enseja na exposição daquela mulher a uma vulnerabilidade ainda maior.  Como de costume, toda a análise realizada para a liberação das casas de apostas no Brasil não teve a participação efetiva de mulheres (apenas uma integra a chamada "bancada das bets"), tampouco aqueles que ali estavam consideraram os desdobramentos ou reflexos da autorização do funcionamento das bets para além da simples utilização do dinheiro e da arrecadação que isso poderia ensejar. É mais uma situação em que se constata como a estrutura consolidada de nosso Estado age de forma ofensiva sem nem ao menos ponderar os impactos de certas atitudes sobre as mulheres. A concepção do padrão passa ao largo dos interesses e necessidades daqueles que são tidos como socialmente minoritários. Enquanto elas se veem compelidas a cuidar dos filhos, privar-se de uma vida similar àquela franqueada aos pais dessas crianças, já que a elas não se confere a discricionariedade de simplesmente abandonar os filhos como fazem os homens, são obrigadas a, de qualquer maneira, prover o sustento de sua prole. Aos pais, o inadimplemento dos deveres alimentares no máximo pode culminar com uma pena de prisão de 3 meses. A elas, o não cumprimento dos deveres financeiros dos pais para com seus filhos impõe que venham a tomar as medidas necessárias em busca do dinheiro para que eles tenham as condições mínimas para sua subsistência. São elas que acabam se vendo levadas a buscar acesso a empréstimos, pelas vias formais e por vezes até mesmo pelas mãos de agentes que atuam fora do mercado, colocando em risco não só o pouco patrimônio que possuem mas também sua integridade. Também são elas que muitas vezes se encontram sem outra alternativa que não seja prestar serviços sexuais mediante pagamento para que consigam garantir o mínimo para a subsistência dos filhos.  Não sei se alguém conhece algum caso, mas eu, particularmente, nunca ouvi falar de um homem que teve que se prostituir para garantir o sustento dos filhos.  Para afastar de pronto qualquer tipo de tecnicidade que pode vir de algum sujeito descolado da realidade, não me venha falar em buscar outros meios para o sustento, que poderiam promover ação de alimentos ou a execução desses, até mesmo com a possibilidade de prisão do devedor. O fato é que o mundo da teoria em que alguns vivem tem uma dinâmica distinta daquele em que estão as pessoas de verdade que veem seus filhos passando necessidades ante ao não adimplemento dos deveres oriundos do poder familiar de pais que não cumprem com o que lhes cabe. E agora ainda temos que lidar com mais um obstáculo: o vício em apostas, que ganha mais espaço em nossa sociedade ante a liberação do Poder Público. Talvez não seja possível afirmar nesse momento, ante a ausência de dados estatísticos, que o Estado está fomentado inadimplemento dos deveres alimentares, mas certamente está proporcionando meios para que isso ocorra.  Essa escolha pela liberação das apostas que ignora os interesses e a especial proteção que deve ser destinada a crianças e adolescentes, prevista na CF/88, não pode restar incólume. Mais uma vez vemos os efeitos do Estado esquizofrênico13 atingindo de forma mais impactante aqueles mais vulnerabilizados, numa manifesta expressão de uma estrutura estatal que institucionaliza a escolha por majorar os riscos enfrentados por aqueles que mais precisam de proteção. A sobreposição de vulnerabilidades atingida abarca não só as mulheres, mas se estende às crianças/adolescentes, além de ter um impacto ainda mais nefasto sobre os mais pobres. Mas os interesses econômicos e a possibilidade dos ganhos na arrecadação se sobrepõem à saúde e à higidez daqueles mais vulnerabilizados, como ordinariamente acontece.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 DELOSSA, Georgia; BROWNE, Matthew. The influence of age on gambling problems worldwide: A systematic review and meta-analysis of risk among younger, middle-aged, and older adults. Journal of Behavioral Addictions. V. 13, N. 3, 2024. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O herdeiro ilegal

Uma afirmação constante em meus estudos, escritos e palestras é que é impossível se pensar em qualquer questão que envolva a vida de um ser humano em que um elemento vinculado à sexualidade não esteja, direta ou indiretamente, associado, podendo se fazer presente até mesmo antes do nascimento, com a definição de enxoval e nome do bebê1. A sexualidade, "compreendida como uma ideia ampla e abrangente que se refere a toda sorte de manifestação vinculada ao sexo, em concepção que se espraia desde as características física do indivíduo até a percepção quanto ao seu gênero e destinação de atração sexual"2, está presente em um amplo espectro de direitos, impondo a necessidade de que todos venham a se apoderar dos conceitos que a circundam. Contudo, por ser algo que faz parte da vida de todas as pessoas, muitas vezes acaba recebendo menos atenção do que seria necessário, inserindo-se em um perigoso campo no qual muitos sentem que não precisam de qualquer conhecimento específico, bastando aquilo que assimilou durante toda a sua história. Esse menosprezo por algo que pode ter desdobramentos tecnicamente tão relevantes, acaba fazendo com que algumas situações sejam manifestamente ignoradas, permitindo que se estabeleça uma insegurança jurídica que se origina de uma falta de atenção a aspectos científicos consolidados. É parte integrante da tradição jurídica, seja na doutrina ou na elaboração de normas, uma repetição de conceitos sem muito senso crítico, ignorando muitas vezes questões plenamente conhecidas já de muito tempo, o que deságua em situações teratológicas3. No presente texto trarei um fato inusitado que tem relação com a sexualidade de uma forma muito mais primal do que os parâmetros que normalmente norteiam essa coluna. E a mera leitura atenta da legislação vigente bastaria para se perceber a perigosa lacuna existente. Desde meados do século passado existe uma compreensão cientifica sólida de que há um lapso temporal entre a prática do ato sexual e a concepção do ser humano, de sorte que hoje há um entendimento firmado de que pode se passar ao menos 5 dias entre uma relação sexual e uma gravidez dela decorrente. Sob uma perspectiva jurídica essa informação mostra-se relevante segundo o preceito de que quando se dá a nidação é que se tem a figura do nascituro, ou seja, no momento em que ocorrer a implantação do óvulo fecundado na parede do útero é que se entenderá que existe uma "pessoa em potencial". Nos termos dispostos no art. 2º do CC, a partir do momento em que essa pessoa for considerada concebida será a ela garantidos direitos, desde que venha a nascer com vida. A compreensão da condição de nascituro é uma das primeiras informações apresentadas aos estudantes de direito na faculdade, de forma que são introduzidos no complexo universo das relações biojurídicas tão logo começam a aprender Direito Civil e quase nunca se dão conta disso. No entanto, após esse contato precoce com essa questão que impõe a análise de elementos das ciências biológicas associados a aspectos jurídicos, o tema apenas retorna para a esfera de atenção dos estudantes no final do curso, quando passam a estudar Direito das sucessões, salvo as raras hipóteses em que tem contato com a figura da doação em favor de nascituro (art. 542 do CC). Em sede de sucessão, retoma-se a compreensão do que venha a ser o nascituro para se afirmar, com base no art. 1.798 do CC, que "Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão". Dessa forma, a conclusão que se apresenta é que se o nascituro estiver na linha sucessória do falecido ele haverá de ser entendido como herdeiro, desde que venha a nascer com vida. O exemplo para fechar com chave de ouro a explicação do dispositivo legal é: "Se a mulher estiver grávida e o pai da criança vier a falecer, o bebê tem direito à herança caso venha nascer com vida". Hermenêutica básica. Contudo existe uma questão científica elementar que pode gerar um enorme problema prático: não existem meios técnicos a afirmar com precisão o exato momento em que se deu a tal nidação, de sorte que não se sabe exatamente em que momento se deixa de ser um óvulo fecundado e passa-se a um nascituro. E a distinção entre uma coisa e outra é o que define se há ou não direitos sucessórios. Acredito que a construção do texto já tenha levado o leitor à questão que pretendo trabalhar. Mas para não correr qualquer risco, é melhor expô-la expressamente: Se o sujeito vier a falecer logo após a relação sexual não haveria nidação, ato contínuo, não teria nascituro e, portanto, aquela pessoa não teria vocação hereditária. Por mais que possa parecer uma situação de difícil caracterização prática, basta se considerar que um estudo alemão que analisou 32 mil mortes súbitas, num período de 33 anos, constatou que 0,2% dos casos se deu durante a atividade sexual, vitimando, em sua absoluta maioria, homens (92,6% dos casos)4. Contudo sequer há a necessidade de que tenha acontecido algo tão específico, bastando que esse sujeito tenha falecido na janela temporal entre a prática do ato sexual e a nidação que, como exposto, pode ser consideravelmente ampla. Basta que se esteja no âmbito do possível para que seja necessário se ponderar a sua ocorrência. Note que aqui não se está tecendo qualquer tipo de discussão acerca da filiação, a qual pode ser presumida caso o falecido seja casado com a mulher que deu a luz à criança (art. 1.597 do CC). E mesmo que não incida as previsões legais de presunção, um simples exame de DNA seria o suficiente para estabelecer a relação de parentesco entre o falecido e seu filho. Contudo estamos diante de uma situação delicada e que pode trazer consequências jurídicas bastante sérias. Mesmo que seja, inquestionavelmente, filho do falecido não possui vocação hereditária, já que não estava concebido quando da abertura da sucessão. Afirmar que o filho do falecido não teria direito à herança ofende a compreensão ordinária que orienta o direito das sucessões, especialmente em se considerando que não há aqui qualquer menção a hipóteses de exclusão do herdeiro (indignidade ou deserdação). Tal tema ganhou muita atenção a partir das técnicas de reprodução humana assistida que geram a possibilidade de uma inseminação artificial post mortem5, exigindo uma atenção daqueles que lidam com essa área do direito. Desde a CF/88 é possível se encontrar uma solução para tal conflito, ante a premissa existente no art. 227, § 6º, que veda a existência de distinção entre filhos. Com isso pode-se asseverar que, ainda que o CC tenha deixado uma lacuna em que um filho não teria direito à herança do pai, a CF/88 afasta o risco de que isso venha a ocorrer, ante a uma interpretação sistemática, lastreada na necessidade de que a legislação infraconstitucional com ela não conflite. Porém a solução baseada na CF/88 não consegue resolver outras situações idênticas em que não se esteja a discutir sobre a herança do pai daquele sujeito, como no caso em que o autor da herança seja um outro parente. Para elucidar, considere que uma determinada pessoa venha a falecer sem deixar descendentes, ascendentes ou cônjuge/companheiro, o que faria com que sua herança fosse destinada a seus colaterais. Imagine que, nessa circunstância, o sujeito tivesse como único parente um irmão (parentesco de 2º grau) que faleceu um dia antes do seu passamento, cuja esposa venha a descobrir que está grávida, decorrente de uma relação havida com seu cônjuge na noite anterior à sua morte. Evidentemente que será possível se demonstrar que essa criança é filha do irmão do autor da herança (sobrinha do morto, portanto), contudo sendo demonstrado que a relação sexual que culminou na gravidez ocorreu anteriormente à morte, constata-se que esse sobrinho não era um nascituro quando da abertura da sucessão de seu tio, o que retiraria dele a vocação hereditária. Valendo-me de uma "neurose de clareza" similar àquela que sempre expressa o meu colega de Universidade Federal da Bahia Pablo Stolze Gagliano, coloco a hipótese de forma ilustrativa: Antônio falece um dia depois de seu irmão Benedito; Benedito era casado com Carla; Após o falecimento de Benedito, Carla descobre que engravidou da relação sexual que teve com Benedito ocorrida na noite anterior à morte dele. Carla dá a luz a Denise, sua filha com Benedito. Denise é a única parente viva que Antônio possui No exemplo aqui apresentado Denise não teria direito à herança e todo o patrimônio de Antônio seria direcionado ao Poder Público, pois configuraria uma hipótese de herança jacente que, após a vacância, passaria a incorporar o Erário. Importante se considerar que no caso da sobrinha do falecido não é possível valer-se da previsão constitucional do art. 227, § 6º para que ela venha suceder o de cujus, impondo-se a simples aplicação do disposto no art. 1.789 do CC que estabelece a vocação hereditária. No entanto, na prática, desconheço a existência de um processo em que se tenha discutido a falta de vocação hereditária desse sobrinho. Provavelmente a ele será destinada a herança do falecido. Pode-se pensar em inúmeras outras circunstâncias similares nas quais é bem plausível que sua condição de herdeiro não seria questionada, como, por exemplo, quando estivesse concorrendo com outros sobrinhos do falecido ou como detentor de direito precedente sobre outros parentes colaterais de 3º (tios) ou 4º graus (primo, tio-avô ou sobrinho-neto). Coerente que o legislador ao elaborar o CC de 1916 não tivesse como considerar tal hipótese em razão do estado da arte relativo às questões atinentes à reprodução humana naquela época, contudo já não se pode dizer o mesmo com relação ao texto atualmente vigente, ainda que seja um projeto dos anos 1970, mas cuja vigência se inicia nesse século. Preocupante constatar que nem mesmo o atual projeto de reforma do CC em trâmite se atentou ao tema, conferindo ao art. 1.798 redação que apenas se atém às hipóteses de inseminação artificial post mortem, ainda que se possa tentar resolver o problema aqui exposto ante a uma interpretação ampliativa do disposto no § 1º proposto, que determina que "Aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até cinco anos a contar dessa data, é reconhecido direito sucessório". Contudo a expressão "gerados" que consta do referido parágrafo está associada a "gerados por técnica de reprodução humana assistida post mortem" que consta do caput, revelando que o lapso temporal entre a relação sexual e a nidação não estava no foco do ajuste proposto pela reforma. A inquietação que procuro compartilhar no presente texto é que é possível que um parente do falecido possa ser tido como um herdeiro sem ser, configurando-se como um "herdeiro ilegal" que apesar de ser um parente do autor da herança não possui direitos sucessórios por questão de horas ou dias, por não poder ser considerado como nascituro quando da abertura da sucessão, mas que provavelmente acabará recebendo a herança por não se ter a devida atenção aos preceitos legais previstos. Se esse sobrinho nascer dentro de um período em que se tenha por "plausível" que sua mãe já estivesse grávida quando do falecimento do tio, dificilmente se aventará quanto a sua vocação hereditária, mormente por se tratar de um colateral do falecido que consta do conjunto de herdeiros previstos no art. 1.829 do CC. De outra sorte, se ele nascer 1 ano após a morte do tio, ninguém cogitará a possibilidade de que ele seja seu herdeiro. Assim o que questiono é: na primeira hipótese não se discutirá a vocação hereditária desse indivíduo por entender que ele tem efetivamente direitos sucessórios ou por não ter ciência da vedação que o apartaria da herança? Se a compreensão é a de que ele teria direito à herança, qual seria o fundamento legal? Ainda que essa seja uma situação hipotética extrema, na qual é necessária a concomitância de dois falecimentos próximos (a), a ausência de herdeiros necessários (b), a existência de um parente que por pouco tempo não poderia ser considerado um nascituro quando da abertura da sucessão (c), ela apresenta um fundo técnico bastante relevante e que pode mudar todo o curso de uma sucessão. E tudo isso por uma questão de caráter científico que aparentemente segue passando ao largo da apreciação do legislador. Mas o cerne de tudo está, como bastante recorrente, na falta de conhecimento de uma premissa científica atrelada a elementos associados à reprodução humana que, obviamente, tem lastro na sexualidade. Aqui a leniência legislativa6 expõe mais uma das suas facetas, com uma legislação que não é atualizada considerando o conhecimento cientifico existente, conferindo uma insegurança jurídica que nasce do simples fato de não se atentar àquilo que já está demonstrado cientificamente, e que permite que qualquer um questione se há "justiça" em ser herdeiro o filho não concebido de seu pai, mas o sobrinho não o ser de seu tio, em uma situação fática idêntica. E, como é sempre trazido nessa coluna, o cerne desse problema identificado está em um elemento que pode ser associado à sexualidade em seu sentido amplo. É plausível que a legislação ignore conceitos básicos sobre a reprodução humana e com isso possa ensejar a possibilidade de que se estabeleça situação que ofenda a preceitos jurídicos básicos? _____ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I - IV, 2021. 4 Parzeller, M., Bux, R., Raschka, C. et al. Sudden cardiovascular death associated with sexual activity. Forens Sci Med Pathol 2, 109-114 (2006). https://doi.org/10.1385/FSMP:2:2:109 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS MACEDO, Andrea. Dos direitos sucessórios dos filhos havidos por reprodução humana assistida post mortem. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 2, n. 2, p. 1-18, 2023. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Racismo e o "Deus me livre de mulher CEO"

Já no final dos anos 60 do século passado Simone de Beauvoir afirmava ser a mulher vítima de uma opressão paternalista, "porque vê o homem de baixo para cima, como o lacaio vê o patrão"1. Trata-se de uma afirmação bastante forte e que seria de se esperar que atualmente, após tantos anos e com tanta evolução social, já se mostrasse superada. Contudo apesar de alguns avanços ainda vivemos em uma sociedade na qual as mulheres e a expressão do feminino seguem experienciando uma realidade de submissão imposta pelos homens e pelo masculino como um todo.  Nesse contexto teve considerável repercussão uma postagem no Instagram do empresário Tallis Gomes, fundador da Easy Taxi e presidente (até então) da G4 Educação. Questionado em um stories por um seguidor "se sua mulher fosse CEO de uma grande companhia, vocês estariam noivos?", respondeu: "Deus me livre de mulher CEO", rechaçando, de maneira veemente, que uma mulher viesse a ocupar o cargo mais elevado (CEO - Chief Executive Officer) de uma empresa. Complementa sua resposta da seguinte forma: "Salvo raras exceções (eu particularmente só conheço 2); essa mulher vai passar por um processo de masculinização que invariavelmente vai colocar meu lar em quarto plano, eu em terceiro plano e os meus filhos em segundo plano." "Vocês não fazem ideia da quantidade de stress e pressão envolvida em uma cadeira como a minha. Fisicamente você fica abalado, psicologicamente você precisa ser MUITO, mas MUITO cascudo para suportar."  "Na média, esse não é o melhor uso da energia feminina. A mulher tem o monopólio do poder de construir um lar e ser base de uma família - um homem jamais seria capaz de fazer isso. Pra quê fazer a vida dessa mulher pior dessa forma?" "O mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer o papel de homem. Hoje, vejo um bando de marmanjo encostado trabalhando pouco e dividindo conta com mulher. Eu entendo que temporariamente pode acontecer, eu mesmo já passei por isso no passado - mas tem que ser algo transitório". "Homem que tem condições de bancar sua mulher e não o faz, está perdendo o maior benefício de uma mulher, que é o uso da energia feminina nos lugares certos, lar e família". Posteriormente, após ampla repercussão negativa, se retratou afirmando: "Errei feio num texto aqui no Instagram. E quero reconhecer o erro e pedir desculpas. Muitas mulheres se sentiram machucadas pelas minhas palavras, e eu estou profundamente chateado por ter magoado essas pessoas". "Minhas mais sinceras desculpas por causar esse desconforto a todas vocês. O lugar das mulheres é onde elas quiserem estar. Seja na vida pessoal, seja no mercado de trabalho". Apesar de ter pedido desculpas, acabou perdendo o posto que possuía no conselho consultivo da Hope (marca de lingerie), afastado do cargo de CEO da G4 Educação e foi considerado "o cancelado da semana". O dinamismo das relações do mundo conectado fará com que a questão em breve esteja esquecida. Feito o relato, quem acessa essa coluna deve estar se questionando: o que esse caso tem a ver com racismo?  Sustento que, ao discriminar todas as mulheres em sua postagem, estaria configurada a conduta tipificada como racismo. Tenho plena consciência que essa concepção não agrada a todas as mulheres, tampouco aos diversos feminismos ou mesmo aos defensores tradicionais da pauta racial. Entendo que uma grande parcela da população taxará essa coluna como "lacração", "mimimi", mais um dos reflexos do "politicamente correto" ou da "cultura woke". Esse é um preço que meu compromisso com a técnica me impõe. Fique livre para discordar, ignorar ou refutar a tese, contudo o faça de forma fundamentada e respaldada juridicamente. Que as ponderações que trago sejam um convite à reflexão. Se a afirmação publicada na rede social fosse "Deus me livre de preto CEO" parece cristalino que estaria configurada a hipótese de racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89. Porém a assertiva do empresário não tem qualquer vinculação com a cor da pele de quem quer que seja, o que, para a ampla maioria das pessoas, bastaria para que se afastasse plenamente qualquer tipo de conexão com tal tipo penal. Contudo por mais que se possa estranhar a vinculação do termo racismo com uma afirmação misógina é importante que se tenha em mente que, como já exposto anteriormente nessa coluna2, a concepção de racismo, sob a perspectiva jurídica, não se restringe a discriminações praticadas em razão da cor da pele das pessoas. Ainda que muitos sigam aferrados a ideias sombrias do século passado há que se ressaltar que já se encontra perfeitamente consolidado o entendimento de que os seres humanos pertencem todos a uma mesma raça, sendo incabível se afirmar, cientificamente, que prevaleça uma classificação racial segundo a cor da pele ou características fenotípicas das pessoas, já que todos os seres humanos compartilham a maior parte do seu código genético, de sorte que o racismo atualmente existente reside na sua concepção social. O racismo social baseia-se na crença de um determinado grupo de que possui superioridade ante a outro, que entende como inferior e que pode ser subjugado3, menosprezado, a ponto de ter direitos reduzidos ou mesmo extirpados por não integrarem o grupo dominante4. O parâmetro de sua pretensa supremacia pode surgir dos mais variados motivos (físicos, morais, intelectuais, culturais, étnicos, religiosos, geográficos, entre outros) mas é o bastante para lhe conferir força suficiente para oprimir os demais das mais diversas formas, até mesmo privando-os do acesso a direitos ordinariamente franqueados a todos. Entendido em sua dimensão social o racismo revela-se como expressão de poder, não se restringindo a aspectos meramente biológicos ou fenotípicos, estando lastreado em bases tanto históricas quanto culturais e que tem por fim respaldar desigualdades consolidadas, destinando-se "ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade" dos que são tidos como "estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito" simplesmente por pertencerem a um grupo vulnerabilizado e por não gozarem do status de integrantes do grupamento social da posição hegemônica5.  A compreensão da dimensão social de raça e de racismo não é recente6, e já se mostra solidamente acolhida no STF desde o início dos anos 2000, quando do HC 82.424-2/RS (Caso Ellwanger), que tinha como questão de fundo a caracterização do crime de racismo em decorrência da divulgação material antissemita. Dessa forma, se a postagem fosse "Deus me livre de judeu CEO", estaria configurado o tipo penal do racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89. Como consta das discussões entabuladas quando do HC 82.424-2/RS (Caso Ellwanger), nos debates da Assembleia Constituinte "nunca se pretendeu [...] restringir [o racismo] ao negro7", ao que há de se acrescer que verba cum effectu sunt accipienda (não há palavra inútil ou supérflua no texto da lei), o que torna imprescindível que se entenda que quando o art. 5º da CF/88 veda a discriminação de raça e de cor está a tratar de elementos distintos.  Em meados de 2019, calcado na mesma premissa de concepção de raça em sua dimensão social, mas causando uma grita considerável (graças a todo o preconceito que ordinariamente acompanha discussões que envolvem a busca da garantia de direitos às minorias sexuais), o STF, no julgamento da ADO 26, considerou passível de apenação os atos discriminatórios praticados contra homossexuais e pessoas transgênero como crime de racismo. Consta expressamente da ementa que "ninguém pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual ou em razão de sua identidade de gênero"8. Para evitar deturpações clássicas é de se ressaltar que a ADO 26 simplesmente aplicou a dimensão social do conceito de raça, nos exatos termos do precedente do próprio STF9, respaldada "pela lógica do princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção insuficiente e os consequentes deveres de proteção e ação do estado relativamente à população LGBTI"10, em decisão que em nada se vincula com elementos como analogia ou interpretação ampliativa. Justo, assim, afirmar que, caso a referida postagem fosse "Deus me livre de gay CEO", "Deus me livre de lésbica CEO" ou "Deus me livre de trans CEO", tipificado estaria o crime de racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89, conforme entendimento da ADO 26. Apresentado o estado da arte das discussões sobre a configuração da perspectiva social de raça e do tipo penal do racismo com base no posicionamento do STF, é chegada a hora de estabelecer a sua conexão com o evento que motiva a presente coluna. Como já sustentado anteriormente é inafastável que o entendimento que norteou a configuração do racismo e da injúria racial contra alguns dos integrantes das minorias sexuais seja estendida a toda a gama de grupos minoritários em razão de aspectos vinculados à sexualidade11.  Tendo por lastro a construção da sexualidade segundo 4 pilares básicos (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero) é patente que em todos os seus critérios é possível se vislumbrar a presença de um grupo que se tem como majoritário e detentor do poder, de sorte que se pensarmos segundo as bases do sexo e do gênero é evidente a condição de vulnerabilidade enfrentada pela mulher/fêmea e pelo feminino12. Ainda que presente em estudos estrangeiros a constatação de que a mulher/fêmea e aquela que expressa feminino padecem de um status racializado de inferioridade13, uma mera análise de sua condição social nos dias de hoje basta para perceber que elas seguem sendo vistas como seres humanos de uma classe inferior.  Uma enorme parcela delas ainda se vê inserida em um mundo no qual não tem o poder de ser dona de seu destino, pois, mesmo ciente de que não é inferior ao homem acaba "aceitando a ideia de sua inferioridade" socialmente imposta14. Salários inferiores, trabalho não remunerado, obrigação quanto aos deveres de cuidado, falta de acesso a cargos de chefia/liderança, violência são alguns dos fatores que revelam de forma incontestável a submissão que lhes é infligida e contra a qual lutam de forma árdua. Assim é indiscutível que por serem mulheres ou por expressarem o feminino acabam sofrendo injusta e lesiva exclusão do "sistema geral de proteção do direito", em patente manifestação de poder que busca perpetuar controle ideológico, a dominação política, a subjugação social e a negação da alteridade, da dignidade e da humanidade que marca o racismo social, sofrendo das consequências abjetas da inferiorização e de estigmatização, nos moldes que traz a ADO 26. Assim, a conclusão é que tanto mulheres/fêmeas quanto quem expressa o feminino podem, independentemente de qualquer outro marcador, ser entendidas como vítimas de racismo, em sua dimensão social, pelo simples fato de serem mulheres/fêmeas ou por expressarem o feminino. Caso o texto da publicação do empresário nas suas redes sociais fosse "Deus me livre de preto CEO", "Deus me livre de judeu CEO", "Deus me livre de gay CEO", "Deus me livre de lésbica CEO" ou "Deus me livre de trans CEO" pouca discussão haveria quanto a prática do crime de racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89, a ser punido com pena de reclusão de 2 a 5 anos por ter sido praticado por intermédio de publicação em redes sociais (§ 2º). Por qual motivo haveria de ser diferente quando a afirmação fosse "Deus me livre de mulher CEO"? Se sustentamos que mulher é vitima de racismo (art. 20) ou injúria racial (art. 2º-A) quando discriminada em razão da sua condição de mulher/fêmea ou por expressar o feminino15, impõe-se que a conduta do empresário seja enquadrada nos termos da lei 7.716/89.  Se ele se desculpou, perdeu seu cargo na empresa, foi cancelado no mundo virtual, não seria exagerado se afirmar que ele cometeu um crime? Haveria motivos para fazer tanto alarde com isso? Não seria um exagero? Infelizmente essa forma de pensar é muito mais recorrente do que imaginamos. Bastante comum que surjam, logo após a exposição de casos como esse, as lamúrias dos homens de que estariam sendo atacados, culpando "o feminismo" pela "derrocada" da sociedade e da família tradicional, já que, segundo esse ideário, o movimento feminista teria até mesmo obrigado a mulher a "fazer o papel de homem".  Por vezes tentam se escusar em um paternalismo tacanho de que seria uma declaração que teria por fim expressar uma ideia de proteção da mulher ou de que apenas se buscaria o melhor para ela. Contudo, ainda que de forma escamoteada, o que se constata é a presença de manifestações que buscam perpetuar uma eterna submissão das mulheres. Nota-se que das palavras do empresário se pode extrair ideias que vão da existência de um "lugar" adequado para a mulher, de imposição de um dever de cuidado do lar, filhos e marido, como também de uma propriedade que recairia sobre ela que conferiria ao marido o poder de decidir onde melhor alocar a energia daquela mulher. Realmente parece que estamos lendo alguma versão anacrônica do Manual da Boa Esposa (The Good Wife's Guide) elaborado nos anos 50. Essa ideia que ainda hoje dá lastro ao que muitos sustentam ser a "tradicional família brasileira" nada mais é do que um discurso misógino e discriminatório que tem por fim garantir a manutenção desse status quo no qual a mulher há de ser mantida em uma condição de inferioridade em relação ao homem. É apenas mais um dos desdobramentos de uma estrutura patriarcal que produz pérolas como: "lugar de mulher é na cozinha", "a legítima defesa da honra" do homem traído, ou "gay/trans panic" como argumento de defesa16. Não há como ler todas essas sandices e não vislumbrar a manifesta presença da masculinidade hegemônica17 ou masculinidade frágil, um pavor de que a igualdade entre homens e mulheres seja efetivamente implementada e que esses "senhores" venham a ser finalmente privados do poder que acreditam possuir sobre as mulheres. Importante, ainda, se afastar qualquer tentativa de escusa pueril de que essas declarações seriam meras opiniões ou estariam albergadas pelo exercício de liberdade de expressão, já que elas encontram limitação legal na prática de crimes. Tampouco caberia se admitir o arrependimento ou uma mera retratação como ato bastante para afastar a punibilidade do crime cometido. Ressalto que as ponderações aqui apresentadas não se circunscrevem ao evento específico do "Deus me livre de mulher CEO", mas devem ser consideradas todas as vezes em que forem praticadas condutas desse jaez. Evidente que a melhor solução para que tais atos discriminatórios cessem não está no encarceramento mas sim em uma ampla conscientização dos impactos decorrentes da discriminação das mulheres e do feminino, contudo, no presente momento, não se pode ignorar que há lei que criminaliza as discriminações fundadas na raça, e que essa há de ser entendida segundo sua dimensão social. Aceitar as premissas e conclusões aqui apostas passa muito mais por superar o entendimento tradicional do que seja raça do que por uma construção hermenêutica de elevada complexidade. Contudo esse tema é permeado por uma série de aspectos sociais, históricos e culturais que tornam extremamente conflituosa a sua compreensão. Seja como for, sigo pautado pelos parâmetros mais basilares dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais, peleando pela efetivação da proteção daqueles que são vulnerabilizados em razão de aspectos vinculados à sexualidade. A questionar, de outra sorte, como o Poder Público agirá. Continuará sendo o Estado Esquizofrênico18 que cria normas para proteger os vulnerabilizados e não as cumpre ou fará valer os preceitos nucleares de um Estado Democrático de Direito? E a sociedade brasileira, continuará normalizando e minorando a discriminação contra as mulheres e quem expressa o feminino enquanto vivemos num país em que a cada seis horas uma mulher é vítima de feminicídio19? Ou tomará uma atitude e se colocará contra tais condutas, exigindo a aplicação da lei? E você? De que lado se coloca? ___________ 1 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. v. 2. p. 381. 2 JORDE, L. B.; WOODING, S. P.. Genetic variation, classification and 'race'. Nature Genetics, 36(11 Suppl), 2004. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 170. 4 Pode haver racismo contra quem não é negro? Os contornos de raça atribuídos pelo STF para a sexualidade. Disponível aqui.  5 ADO 26, Supremo Tribunal Federal, julgado em 13.06.2019. 6 MONTOYA, María de los Ángeles. Las claves del racismo contemporáneo. Madrid, Libertarias/Prodhufi. 1994. 7 HC 82.424-2/RS, Supremo Tribunal Federal, julgado em 17.09.2003. 8 ADO 26, Supremo Tribunal Federal, julgado em 13.06.2019. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 233. 10 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF, a homotransfobia e o seu reconhecimento como crime de racismo. Bauru, SP: Spessotto, 2020. p. 23. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 12 Reitera-se aqui a relevância da distinção entre sexo e gênero, nos exatos temos expostos em coluna anterior. Disponível aqui. 13 MONTOYA, María de los Ángeles. Las claves del racismo contemporáneo. Madrid, Libertarias/Prodhufi. 1994. SOLANA, José Luis. Sobre el racismo como ideología política. El discurso anti inmigración de la nueva derecha. Gazeta de Antropología, Nº 25 /2, 2009. p. 11-12 14 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. v. 2. p. 73. 15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245. 16 CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W.. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282, 2013. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 55. 18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 19 Disponível aqui.
É bastante comum no Direito Civil que os alunos dos cursos de graduação nada (ou quase nada) estudem sobre questões vinculadas a elementos de gênero ou quanto a sexualidade como um todo, segundo uma premissa de que haveria a prevalência de uma perspectiva de igualdade segundo a qual, para efeito de aplicação da lei, não existiria qualquer distinção entre alguém do gênero masculino ou feminino. Um dos raros momentos em que o estudo do Direito Civil menciona aspectos da sexualidade é no Direito de Família, muito em decorrência da concepção clássica de que a família, base da sociedade, seria constituída pelo casamento o qual, por natureza, seria entabulado entre um homem e uma mulher1. Hoje encontra-se consolidada, até mesmo constitucionalmente, a perspectiva de que a família pode ser estruturada não apenas por meio do matrimônio, mas também pela união estável ou pelas entidades monoparentais, persistindo a arrogância do Direito de querer definir o que é uma situação de fato como a família2. Reconhecido também o pleno afastamento da necessidade de diversidade sexual para a constituição de entidades familiares, nos termos reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 42773. A indissolubilidade do matrimônio existente outrora também foi soterrada, com a prevalência do entendimento atual de que a possibilidade de por termo ao casamento revela-se como um direito potestativo4, o qual pode ser exercido por qualquer dos cônjuges a qualquer tempo e independentemente de comprovação de um dado motivo especificado no texto da lei. Ainda que todos esses assuntos estejam permeados por elementos eminentemente sociais, com um forte recorte de gênero, essa perspectiva é pouco abordada na prática, com uma quantidade tímida de trabalhos versando sobre como homens e mulheres são impactados de formas diferentes pela aplicação da lei. Quando tais distinções são apresentadas o mais recorrente é que o sejam para meramente indicar quem mais acorre ao Poder Judiciário em busca da aplicação deste ou daquele preceito jurídico, sem que se teça considerações mais aprofundadas sobre as consequências para as pessoas segundo seu gênero. A questão do divórcio é um dos pontos em que a perspectiva de gênero tem maior incidência, tendo ela já sido objeto de apreciação até mesmo nessa coluna, quando tratei da figura do divórcio tardio (gray divorce) e como ele atinge de forma mais severa as mulheres5. E é, mais uma vez, esse meio de dissolução do casamento que será analisado sob lentes de gênero, mas agora considerando uma modalidade que vem ganhando atenção nos últimos tempos, e sobre a qual já tenho me manifestado há mais de 5 anos. Muito se publicou nos últimos tempos em redes sociais, especialmente em perfis de profissionais da área jurídica e voltados para o público do direito, sobre a figura do divórcio post mortem, notadamente com as discussões entabuladas com relação à reforma do Código Civil e à decisão do Superior Tribunal de Justiça que a aplicou6. Nos termos do que apresento em trabalho publicado pela Revista dos Tribunais intitulado de "Divórcio Post Mortem", desenvolvido em parceria com Vivian Assis, em 20197, bem como em live realizada com o estimado amigo e colega de Universidade Federal da Bahia, Rodolfo Pamplona Filho8, em 2020, a ideia básica é que a morte de um dos cônjuges, após iniciado o processo de divórcio, não pode ensejar em extinção do processo sem julgamento de mérito por perda do objeto (art. 485, IX do CPC). A relevância do tema também foi reconhecida na proposta de reforma do Código Civil atualmente em trâmite. E acredito que com alguma influência do referido artigo científico citado e da sugestão que apresentei (ainda que não tenha sido expressamente comunicado de que tenha ela sido efetivamente aceita)9, já que consta a inclusão do divórcio post mortem no texto do que seria o novo § 4º do art. 1.571, com redação bastante próxima daquela que propus10. Ainda que a morte de um dos cônjuges encerre em si uma forma de dissolução do casamento, o que poderia conduzir à ideia de que o pleito de divórcio não mais teria relevância, não se pode ignorar que existem diferenças consideráveis entre ser casado e divorciado do falecido, especialmente quanto aos aspectos sucessórios. Em uma análise bastante célere é de se afirmar que aquele que se encontra divorciado do falecido não possui direitos sucessórios, de forma que se o processo de divórcio for julgado procedente, mesmo após a morte de um dos cônjuges, com seus efeitos retroagindo à data do óbito ou do término do convívio do casal, haveria o afastamento do ex-cônjuge da herança. Para fins práticos é de se entender que o divórcio post mortem acaba sendo uma situação que importará em um manifesto benefício dos demais herdeiros em detrimento do cônjuge separado (judicialmente ou de fato) cuja sentença de divórcio ainda não fora prolatada. Em suma, havendo a extinção do processo de divórcio ante à eventual perda do objeto, o cônjuge continuaria sendo cônjuge, viraria viúvo em decorrência da morte e seria, a princípio, herdeiro do falecido. Com a configuração do divórcio post mortem esse cônjuge perderia o status de casado, em decisão que retroagiria e faria com que ele deixasse de gozar da condição de sucessor do de cujus. Isso se dá vez que o Código Civil, ao discorrer sobre a ordem de vocação hereditária (art. 1.829), prevê a presença do cônjuge como herdeiro, atendidos alguns requisitos, em concorrência com os descendentes. Estabelece também que na ausência desses, concorre com os ascendentes (até mesmo com cota mínima garantida) e precede aos colaterais se o falecido não tiver deixado parentes em linha reta. Contudo para que possa ser herdeiro esse cônjuge, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, não pode estar separado judicialmente, nem mesmo de fato (há mais de 2 anos, salvo se for inocente pela ruptura). Como a premissa para que tenha direitos sucessórios é que seja cônjuge, se for divorciado não estará entre os que tem vocação hereditária legítima. Considerando os impactos econômicos distintos que recaem sobre homens e mulheres, especialmente quando o divórcio se dá em uma idade mais avançada11, faz-se necessário ponderar como o afastamento do cônjuge do gênero feminino da sucessão, em decorrência do divórcio post mortem, trará efeitos mais profundos para as mulheres do que para os homens. Para além de vir a perder quem eventualmente ainda lhe conferia suporte econômico, decorrente de dever de alimentos, o afastamento da condição de herdeiro vai privar esse cônjuge não só do acesso aos bens do falecido, mas também do direito real de habitação ao qual poderia, em dados casos, fazer jus (art. 1.831 do Código Civil). A razão óbvia para se pensar nas mulheres como as que mais sentirão os efeitos do divórcio post mortem repousa no fato de que sua expectativa de vida (79 anos) é superior que aquela apresentada pelos homens (72 anos)12, de sorte que há uma maior probabilidade prática de que, nos relacionamentos entre pessoas de gêneros distintos, o cônjuge supérstite seja aquele do gênero feminino. Por certo que não se está aqui afirmando que existe qualquer tipo de conduta que tenha o intuito de prejudicar ainda mais as pessoas do gênero feminino ao se pugnar pela aplicação do divórcio post mortem. Trata-se apenas de uma constatação fática de que a aplicação da lei com acuidade técnica tende a impor um maior gravame a um grupo que é socialmente mais vulnerabilizado. Mas esse fato não pode ser ignorado, tampouco ser tido como um mero efeito colateral que acaba por vitimar mais uma vez aquela que normalmente já padece de uma série de perdas em decorrência da fria aplicação do texto legal. É preponderante que a condição de vulnerabilidade da mulher seja parte dessa equação para que não venha a ter contra si a imposição de um ônus que apenas reforçaria todas as iniquidades pelas quais passa. Compreender o contexto e considerar todo o entorno que envolve a situação há de ser um fator crucial para a justa aplicação dos efeitos decorrentes do reconhecimento do divórcio post mortem. Imagine que uma mulher, vítima de violência doméstica, proponha ação de divórcio e, na primeira hipótese, o cônjuge que a agrediu, de forma maliciosa, tente protelar ao máximo a prolação da sentença com o intuito de manter a condição de herdeiro no caso da morte iminente da vítima. A imposição dos efeitos do divórcio post mortem impediriam que esse agressor viesse a se beneficiar de sua própria torpeza. Porém, nesse mesmo contexto, se o agressor vier a falecer, essa vítima estaria afastada dos direitos sucessórios, podendo o patrimônio, em certas circunstâncias, até mesmo ser encaminhado para o Estado ante a uma caracterização de jacência e vacância. É premente que se tenha o cuidado para que a efetiva implementação do divórcio post mortem não venha a gerar uma maior vulnerabilização das mulheres, impondo-se que a incidência dos seus efeitos esteja vinculada aos parâmetros fixados pelo Conselho Nacional de Justiça no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero13. Seguindo a diretriz que orienta magistrados(as) a considerarem desigualdades e vulnerabilidades de gênero em seus julgamentos caberia a aferição das circunstâncias vividas por aquele cônjuge supérstite para se determinar se caberia ou não a incidência dos efeitos do divórcio post mortem e se, ato contínuo, ele haveria de ser afastado da condição de herdeiro. Exatamente para tentar mitigar o risco de uma ampliação dos gravames enfrentados por aquele que é a vítima das violências nos relacionamentos a proposta que apresentei para a reforma do Código Civil previa apenas a incidência do divórcio post mortem quando do falecimento do autor do pleito de dissolução do casamento. Talvez essa não fosse a formulação perfeita mas aparentemente reduziria a possibilidade de que a vítima fosse prejudicada pela morte do agente das condutas ofensivas. O aspecto delicado a ser ponderado nesse contexto de afastamento dos efeitos do divórcio post mortem é que muitas vezes os maiores beneficiados com a exclusão do cônjuge da sucessão poderiam ser outros grupos vulnerabilizados, como descendentes na condição de crianças/adolescentes ou mesmo de ascendentes idosos. Trata-se, portanto, de questão extremamente intricada e que merece um olhar bastante acurado da doutrina, bem como uma aplicação consciente do Poder Judiciário, a fim de que aqueles que merecem proteção especial não sejam ainda mais vulnerabilizados. Não há como se pensar em uma incidência cega dos efeitos concebidos para o divórcio post mortem pois isso poderá acarretar em manifesta injustiça, afrontando claramente os preceitos norteadores do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero ou a princípios constitucionais caros a um Estado Democrático de Direito.  Entender e aplicar as leis tendo a Justiça como norte exige do operador do direito muito mais do que o mero conhecimento da técnica. Impõe também, entre outras coisas, uma compreensão elementar dos alicerces da sexualidade, como tenho indicado de forma contínua nessa coluna.  O manejo dos institutos jurídicos vai além da letra fria da legislação. E nossa doutrina e Judiciário ainda não se mostram plenamente capacitados para tanto já que é recorrente uma completa marginalização dos elementos vinculados à sexualidade que são indispensáveis para a efetivação da Justiça. __________ 1 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, n. 1, p.III - VII, 2022. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 130. 5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS, Vivian S. Divórcio post mortem. Revista dos Tribunais. São Paulo. Impresso, v.1004, p.51 - 60, 2019. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Texto proposto: "O falecimento do cônjuge que formulou o pedido de divórcio não extingue o processo, devendo o pedido ser julgado, com seus efeitos retroagindo à data da morte, em caso de procedência" Texto aprovado: "O falecimento de um dos cônjuges ou de um dos conviventes, depois da propositura da ação de divórcio ou de dissolução da união estável, não enseja a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data estabelecida na sentença como aquela do final do convívio" Apesar do texto da proposta indicar que os efeitos da sentença retroagiriam à data do "final do convívio", o relatório final traz que "o falecimento de um dos cônjuges depois da propositura da ação de divórcio não ensejaria a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data do óbito." 11 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui.
quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Sexualidade virtual

O atual estado da arte no que se refere à inserção das pessoas no chamado mundo virtual tomou tamanha grandeza que já se pode afirmar, tranquilamente, que muitas pessoas têm uma existência nesse universo que se mostra desvinculada daquela que marca a sua realidade enquanto pessoa natural que compartilha fisicamente os espaços públicos com os demais seres humanos. Nesse plano existencial paralelo já há quem experiencie algumas perspectivas próximas àquelas concebidas apenas em contos fantasiosos e na ficção científica. Circunstâncias similares às trazidas em filmes como "Substitutos" (2009), ou "Jogador nº 1" (2018), ou ainda em séries como "Periféricos", da Amazon Prime já não parecem tão distantes, especialmente para aqueles que acessam metaversos como Decentraland, Fortnite, Horizon Worlds, Second Life, entre outros. Esses mundos virtuais são concebidos de forma bastante peculiar, possuindo normas de conduta a serem seguida e até mesmo moeda própria. Aqueles que fazem parte desses universos contam com a possibilidade de estabelecerem as características que os representarão enquanto inseridos naquele contexto virtual, sendo permitido que construam os caracteres que identificarão sua existência online. E nesse ponto se confere a esse sujeito a liberdade de construir a sua persona virtual sem que as amarras da realidade física o limitem, inexistindo qualquer obrigatoriedade de que haja uma compatibilidade com o que essa pessoa expressa na vida real, de sorte que já se trabalha com a perspectiva da existência de um corpo eletrônico distinto daquele. A concepção de um corpo eletrônico já é objeto de inúmeros estudos, em diversas áreas do conhecimento, sendo de se ressaltar, no âmbito jurídico, a atenção destinada ao tema por Stefano Rodotá1, tratando dos dados existentes de cada pessoa no mundo virtual. Contudo aqui estamos pensando em algo mais "materializado", na existência de uma personalidade específica daquela pessoa naquele universo, separada da realidade da vida off-line. Essa persona presente no mundo virtual possui um anonimato2 que afasta a possibilidade imediata de se questionar se ela traz um correlato exato com o que caracteriza o usuário no mundo físico. A ausência da obrigatoriedade de identidade entre a representação virtual e a física atribui a cada pessoa uma autonomia de poder construir-se nesse novo ambiente segundo suas vontades e percepções, sem a existência de uma patrulha social a cercear a sua liberdade. Ao estabelecer sua representação virtual pode expressar desejos e anseios existentes no mundo físico, de forma que alguém pode apresentar-se como uma pessoa de 1,94m de altura quando na verdade tem apenas 1,60m, sem que isso seja um problema. Assim pode construir seu avatar com elementos distintos daqueles do mundo físico, contemplando vontades muitas vezes reprimidas ou impossíveis de serem satisfeitas. Ao montar o seu "eu virtual" é usual que se confira a possibilidade de que o usuário estabeleça suas características vinculadas à sexualidade, momento em que está livre para indicar aspectos associados ao sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero que o definirão enquanto estiver naquele universo, estabelecendo-se uma "sexualidade virtual" atrelada ao seu avatar. Essa sexualidade virtual, distinta daquela expressada no mundo físico, é tema que já recebe atenção em alguns países, com estudos desenvolvidos em diversas áreas do conhecimento, mas que se mostra ainda bastante incipiente no Brasil. A vertente jurídica desse viés da sexualidade é praticamente ignorada, o que fez com que me sentisse compelido à análise do tema em um capítulo específico do meu Manual dos Direitos Transgênero3. A concepção da existência de uma sexualidade virtual, apartada daquela expressada no mundo físico, ganhou certa notoriedade quando se veiculou na mídia a ocorrência de um estupro coletivo na plataforma Horizon Venues, um metaverso vinculado à Meta, que teve como vítima a britânica Nina Jane Patel, em novembro de 20214. Tal fato pode ser visto como mais um dos elementos a atestar a conexão entre mundo físico e virtual, corroborando a preocupação demonstrada já de longa data de que aquele mundo não estaria livre das piores características do "mundo real"5. De toda sorte é inafastável que a sexualidade virtual seja um fato e que o anonimato caracterizador da constituição do avatar do usuário possibilita a expressão de caracteres sexuais distintos dos manifestados no mundo físico. A escolha de indicativos de sexualidade virtual dissociados dos ostentados no mundo físico ou mesmo a opção por personagens que não representem fielmente aquela pessoa pode não significar qualquer tipo de elemento vinculado à sexualidade daquele indivíduo. O "gender-swapping" (troca de gênero) na representação virtual não tem necessariamente uma vinculação com a identidade de gênero daquela pessoa6, de sorte que um garoto que jogou Street Fighter com a Chun-Li, ou mesmo uma garota que optava por lutar como o Ryu não poderiam ser compreendidos como pessoas transgênero apenas por isso. Ali ela não se vê necessariamente representada pelo personagem que está controlando, sendo certo que sua escolha muito possivelmente está baseada nas habilidades demonstradas por esses personagens na dinâmica do jogo ou nos benefícios que pode ter enquanto está inserido naquele universo, sendo uma escolha meramente uma estratégica7. Contudo o estímulo para a escolha pode ser exatamente o desejo de se ver representado, ainda que no mundo virtual, de forma que não "pode" se expressar no mundo físico, conferindo-lhe a realização, ainda que efêmera, de ser quem entende que é no que concerne à sexualidade. Não são poucos os relatos de pessoas integrantes de minorias sexuais, especialmente homossexuais e transgêneros, que puderam expressar pela primeira vez socialmente sua sexualidade no universo online, sem os perigos que essa revelação ordinariamente traz no mundo offline. Por vezes a situação pode se colocar em um lugar extremamente conflituoso e delicado para a compreensão da sexualidade, como retratado no episódio "Striking Vipers" de Black Mirror (5ª temporada), onde dois rapazes heterossexuais na vida real têm seus avatares (um masculino e o outro feminino) se envolvendo amorosamente no universo de um jogo virtual. Quem está nutrindo um sentimento é a pessoa no mundo físico ou a sua persona no metaverso? Há como apartar as duas nesse momento? Importante deixar bastante claro que não estou aqui tratando da conduta deliberada de apresentar-se como alguém de outro gênero com o objetivo de ludibriar ou obter de benefícios econômicos, o que se costuma denominar de "catfish", o que afasta a discussão acerca do tipo penal do estelionato. O intuito é trazer para discussão a compreensão do que denomino de "transgênero virtual", figura que se assentaria na "incongruência entre o gênero da vida física e o da persona/representação/avatar criado em alguma plataforma de realidade virtual ou jogo"8, similar ao conceito de "gender switching" ou "online travestism" utilizados por Lynne D. Roberts e Malcolm R. Parks9. Toda a construção aqui desenvolvida tem por fim desembocar na assertiva de que todo o arcabouço da sexualidade virtual goza das mesmas proteções que ordinariamente se confere àquela apresentada no mundo físico10, de sorte que qualquer tipo de preconceito, segregação ou discriminação praticados em decorrência da constatação de que se trata de uma pessoa "transgênero virtual" ou "trans virtual" haverá de ser tratado com os mesmos rigores existentes com relação aos praticados contra uma pessoas transgênero no mundo físico11. Ainda que estejamos distantes de uma sociedade que efetivamente compreenda os parâmetros mínimos do que é a sexualidade e seus alicerces constitutivos não se pode ignorar que é necessário começar a expor desdobramentos mais complexos do tema. Discutir a sexualidade virtual (ou seria a sexualidade 2.0?) na perspectiva jurídica em uma realidade em que preceitos elementares sobre o tema ainda não são dominados pela população de forma geral é um desafio, mas não posso fugir do encargo de enfrenta-lo. Esse é um mister que me compete. __________ 1 Stefano Rodotà. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017. 2 Lynne D. Roberts; Malcolm R. Parks. The social geography of gender-switching in virtual environments on the internet. Information, Communication & Society, London, n. 2, v. 4, 2009, p. 524. 3 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024. 4 Disponível aqui. Acesso em: 28 dez. 2022 5 Anita L. Allen. Gender and Privacy in Cyberspace, Stanford Law Review, v. 52, 2000, p. 1179. 6 Haeyeop Song; Jaemin Jung. Antecedents and Consequences of Gender Swapping in Online Games, Journal of Computer-Mediated Communication, Volume 20, Issue 4, 1 July 2015, p. 434-449 7 Rosa Mikeal Martey; Jennifer Stromer-Galley; Jaime Banks; Jingsi Wu; Mia Consalvo. The strategic female: gender-switching and player behavior in online games. Information, Communication & Society, 17:3, p. 286, 2014. Tradução livre do autor. 8 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024. 9 Lynne D. Roberts; Malcolm R. Parks. The social geography of gender-switching in virtual environments on the internet. Information, Communication & Society, London, n. 2, v. 4, 2009, p. 521. 10 Juliana Luiza Mazaro. A tutela jurídica e o reconhecimento da 'pessoa virtual' e da 'sexualidade virtual' no ciberespaço. 285 f. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Ciências Jurídicas da Universidade Cesumar, 2023. 11 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 172.
quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Jogos olímpicos e sexualidade

Com o fim dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 é possível se fazer algumas pequenas digressões acerca do poder que as competições esportivas dessa grandeza têm de mobilizar a sociedade em torno não só dos esportes, mas também de questões social de elevada relevância. Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 nos brindaram com inúmeras celeumas que tangenciaram aspectos da sexualidade, colocando um enorme holofote sobre temas extremamente importantes mas que são ordinariamente ignorados pelas pessoas como um todo. Evidente que o mundo dos esportes representa um campo em que a sexualidade é explícita como elemento distintivo, haja vista que poucas são as modalidades esportivas disputadas de forma não segregada pelo sexo dos participantes1. Ainda que segregada pelo sexo (parâmetro biológico) ordinariamente se costuma nomear as modalidades de masculinas ou femininas, prevalecendo o padrão da binaridade de gênero2. Mas essa questão da divisão dos competidores segundo o sexo visando garantir um equilíbrio esportivo será relevada, nesse primeiro momento, a uma análise mais ampla e social envolvendo a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, que apresentou uma série de elementos direcionados à inclusão e diversidade que assustaram os mais conservadores. Mas, em verdade, não aconteceu nada demais. Apenas se deu alguma visibilidade às minorias sexuais, fato que nunca acontecera anteriormente. Assim, a cerimônia de abertura não foi uma inovação por revelar algo desconhecido, mas sim por conferir espaço a quem normalmente não tem, fato esse, sim, que pode ser considerado um marco. A chamada Cidade Luz direcionou seu olhar e deu espaço para que não só a belíssima arquitetura parisiense fosse demostrada ao mundo, mas também permitiu que muitos constatassem a existência de um enorme grupo de pessoas que são reiteradamente ignoradas e ocultadas do chamado mainstream. Dessa vez as discussões sobre a sexualidade foram para além da tradicional situação do atleta samoano usando saias. Corpos dissonantes e diversos foram apresentados para milhões de pessoas em um dos eventos mais assistidos do planeta, suscitando questionamentos e dúvidas quanto aquelas pessoas que não se enquadravam no normal e que estavam aparecendo nas telas de cada um. Uma série de afrontas ao padrão binário foram simplesmente colocadas à visão de todos, gritando que aquelas pessoas podem até ser distintas do padrão mas que elas efetivamente se fazem presentes em nossa sociedade. São expressões da sexualidade que se apartam do tradicional mas que nem por isso deixam de existir e de merecer toda a guarida jurídica que há de ser ofertada a toda e qualquer pessoa3. Pessoas com vestes tidas por femininas, cabelos longos e com barba no rosto causaram questionamentos: homem ou mulher? A confusão se instalou em diversas pessoas que não conseguiram inserir aqueles corpos dentro dos dois parâmetros que estão acostumadas. Porém o fato de não conhecerem essa diversidade ou não estarem acostumadas com a sua existência não faz com que essas pessoas não se façam presentes em nossa sociedade. Desconhecer que algo existe não é culpa desse "algo", mas sim uma carência de interesse em buscar saber sobre o que mais há no mundo além dos limites da bolha em que se está. A cerimônia ganhou contornos ainda mais subversivos quando alguns vislumbraram uma ofensa a símbolos religiosos, um ataque ao cristianismo pois teria ocorrido uma reprodução caricata do quadro "A última Ceia" de Leonardo Da Vinci, ao se colocar uma série de pessoas LGBTQIAPN+ dispostas diante de uma mesa, enquanto um personagem azul cantava. No entanto a passagem retratava o Deus grego Dionísio (Baco) em uma grande festa pagã, como manifestou o diretor criativo da cerimônia, ao mesmo tempo em que inúmeras pessoas associaram a imagem com outras obras de arte, como "A festa dos deuses" de Giovanni Bellini ou a de Jan van Bijlert.  Nesse ponto é preponderante se consignar que há uma grande quantidade de variações da obra de Da Vinci que já foram produzidas em tom jocoso, mas como não traziam qualquer elemento de sexualidade, não enfrentaram tamanha ojeriza dos mais religiosos. Há imagens acessíveis na internet em que a mesa da última ceia está composta de personagens da cultura dos anos 80 (com o ET de Steven Spielberg ao centro), cozinheiros famosos, personagens de desenhos animados (Simpsons), entre outros, e nenhuma delas encarou tamanha rejeição dos religiosos. Com uma audiência estimada em 1 bilhão de pessoas no mundo todo a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 trouxe ao chamado grande público, não sem pagar um preço por isso, uma série de expressões da sexualidade que não são ordinariamente apresentadas nos grandes veículos de comunicação, o que pode explicar o motivo de parte das reações refratárias enfrentadas. Já após a abertura surgiram questionamentos relacionados à sexualidade envolvendo os esportistas que lá estavam para disputar os Jogos Olímpicos. Pudemos ver ponderações sobre a guarda da prole de uma competidora de atletismo, a velocista Flávia Maria de Lima, competidora da prova de 800m rasos, que afirma que o pai de sua filha tenta usar a participação dela em competições esportivas para questionar a guarda da filha4. Houve também o relato de Caio Bonfim, que conquistou a medalha de prata na marcha atlética 20km, que revelou ter enfrentado o preconceito com xingamentos desde a primeira vez que foi marchar na rua e foi xingado por "rebolar", em alusão à forma característica que identifica a modalidade por ele praticada5. Ganhou alguma visibilidade também a questão de um dos atletas do vôlei de areia da Holanda que foi constantemente vaiado pela torcida por ter sido condenado em 2016 pelo estupro de uma garota de 12 anos (ele tinha 19 anos na época dos fatos) e que não pode ficar na Vila Olímpica, por decisão do Comitê Olímpico Holandês6. Contudo o assunto olímpico que realmente ganhou notoriedade estava revestido de uma aura de "justiça competitiva" mas que em verdade foi uma clara expressão da ignorância e preconceito que acompanham as minorias sexuais. Trata-se do caso das boxeadoras, Lin Yu-ting (Taiwan) e Imane Khelif (Argélia), que tiveram questionado seu sexo/gênero e, ato contínuo, a regularidade de sua participação nos Jogos. A exposição e os ataques sofridos por Imane Khelif ganharam uma dimensão maior em razão da desistência da atleta italiana Angela Carini logo no início da luta contra ela, tendo afirmado nunca ter sentido um soco tão forte. Daí seguiu-se uma série de questionamentos acerca do sexo, gênero e identidade de gênero da atleta argelina, com alegações de que ela não seria mulher e que não seria justo um "homem" lutar contra mulheres. A situação foi ainda mais agravada quando começaram a apresentar como fundamento o fato de Imane Khelif (e Lin Yu-ting) ter sido desqualificada pela Associação Internacional de Boxe (IBA) do Campeonato Mundial de Boxe de 2023, segundo o argumento de que não atendia os "critérios de elegibilidade" fixados pela entidade. Ocorre ainda que a entidade, que sequer apresentou os resultados dos exames realizados, desde 2019 não é mais reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional, tendo este assumido a organização da modalidade desde os Jogos de Tokio 2020. Consigne-se que tanto Imane Khelif quanto Lin Yu-ting participaram dos Jogos Olímpicos de Tokio 2020 mas a sexualidade das atletas não foi objeto de atenção à época, muito provavelmente por que elas foram derrotadas nas fases iniciais (Imane na 1ª fase e Lin na 2ª) e não chegaram a disputar medalhas7. Evidente que mais do que a vitória ou as conquistas o que chamou a atenção daqueles que se insurgiram contra Imane Khelif está no universo da passabilidade8, na alegação do fato de que ela "parecia homem", havendo até mesmo quem compartilhasse vídeos em redes sociais com "evidências" de que seria possível se constatar um volume sob o calção da boxeadora que seria seu pênis. Aqui percebe-se claramente o impacto da passabilidade como critério crucial quando das análises sobre a sexualidade das minorias sexuais, haja vista que se a atleta expressasse socialmente características tradicionalmente associadas à feminilidade, especialmente nos parâmetros esculpidos pela sociedade eurocentrada, certamente a questão não seria suscitada, sendo tão somente enaltecido o seu elevado potencial atlético. O que se tem de informação efetivamente é que Imane Khelif seria uma pessoa intersexo. Mas a compreensão disso não se mostra nada simples, bastando que se tenha em mente que podem haver 150 hipóteses distintas de tal condição, como revela obra recentemente lançada por Thais Emilia de Campos dos Santos, Céu Ramos Albuquerque e Dionne do Carmo Araújo Freitas9. Em linhas bastante singelas tem-se por intersexo aquelas pessoas que apresentam uma condição vinculada ao sexo que não se insere "perfeitamente nos parâmetros estabelecidos do homem/macho e mulher/fêmea, seja fenotipicamente ou genotipicamente", colocando-a em um espectro distinto do critério cromossômico binário XX/XY ou daquele de correspondência direta do "homem/macho com pênis e bolsa escrotal ou mulher/fêmea com vagina, útero e ovário, revelando um sexo anatômico atípico"10. O desconhecimento acerca do que seja a intersexolidade (condição experienciada por quem é intersexo) é tamanho que o primeiro argumento apresentado por aqueles que atacaram a atleta era de que se tratava de uma pessoa transgênero, com questionamentos acerca do fato de ter ela realizado ou não o processo transgenitalizador. Não foram poucos os arautos do saber adquirido no mundo das redes sociais que asseveraram que "bastava olhar se ela tinha pênis ou não". Imane Khelif não é uma pessoa transgênero, não expressando uma incompatibilidade entre o gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento e aquele ao qual entende pertencer11, contudo até mesmo se fosse essa a sua condição não se admitiria uma ponderação tão pueril quanto a de se olhar a genitália da atleta, como trago no meu Manual dos Direitos Transgênero, com um capítulo todo dedicado à questão dos esportes. A intersexolidade (característica de quem é intersexo, distinta da intersexualidade, aspecto atrelado à identidade de gênero)12 é condição que atinge, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 1,7% da população mundial, contudo tal número é questionado considerando que existe uma larga parcela da população que jamais realizou exames para constatar a composição exata de seu cariótipo. Assim, provoco a quem está acessando a esse material a responder a um questionamento: você tem certeza de que é homem ou mulher? Como sabe que possui um cromossomo XX ou XY? Com a amplitude das condições intersexo e a baixa incidência de exames realizados é bem possível que muitos que estão tecendo suas manifestações contrárias a pessoas intersexo também o sejam e não saibam. Basta considerar, por exemplo, que quem apresenta Síndrome de Insensibilidade Androgênica Completa tem uma genitália externa típica de uma mulher/fêmea ao nascer, além de aparentarem ser "mulheres mais femininas", ainda que seu genótipo seja XY, tradicionalmente atribuído ao homem/macho. Retornando os questionamentos esportivos o que se poderia discutir é se tais pessoas, com tal característica genética, gozariam de algum benefício que atentaria contra o equilíbrio esportivo. E é evidente que as características físicas das pessoas constituem um diferencial que pode impactar em seu desempenho, contudo não se estabelece nenhuma celeuma com relação aos esportistas que se mostram mais altos ou mais fortes que os demais. Porém se há algum elemento que possa ser relacionado com a sexualidade que venha a conferir uma melhora no desempenho o tradicional preconceito com relação a quem não se enquadra no padrão ganha espaço, fazendo com que possamos questionar se o cerne da discussão está no equilíbrio esportivo ou em um preconceito velado13. De toda sorte é de extrema importância se afirmar que tecnicamente é um enorme equívoco chamar os exames e verificações realizados em competições esportivas como "teste de gênero". O que se realiza, em verdade, é um exame para se aferir a quantidade de testosterona presente no sangue daquela pessoa, e, em seguida, se verifica se os valores encontrados estão em consonância com um padrão estabelecido do que seria o "normal" para homens e para mulheres. Não se trata de verificar, portanto, se aquela pessoa é homem ou mulher (seguindo os parâmetros do sexo), tampouco se é do gênero masculino ou feminino (já que o gênero está relacionado com a expressão social da sexualidade daquele indivíduo). O que está em foco é se a produção hormonal constatada é compatível com o que é tido como padrão para aquele sexo, o que nada tem a ver com o gênero. No caso de Imane Khelif é interessante notar que as desculpas para fundamentar o preconceito vão mudando, sempre com o objetivo de conferir alguma fundamentação técnica à discriminação que se está praticando. Primeiro se afirmava que ela não parecia mulher ou feminina o suficiente, depois que seria uma pessoa transgênero, em seguida que ainda que não fosse transgênero parecia ser um homem e, finalmente, que até poderia ser mulher mas os hormônios. Trata-se de uma construção muito próxima daquela apresentada contra a participação de pessoas negras em certas modalidades esportiva. Preponderante que se tenha em mente que em território brasileiro as condutas que tenham como fundo uma ofensa com base na condição de minoria sexual são passíveis de serem englobada no que prevê a ADO 26, e, portanto, configurando racismo ou injúria racial. Assim, falas e publicações em redes sociais realizadas no Brasil podem configurar um tipo penal imprescritível, inafiançável e de ação pública incondicionada, como trouxemos em coluna anterior14. Ainda que muitos tentem blindar suas manifestações e escusar seu preconceito nas redes sociais com a carta da liberdade de expressão, com afirmações do tipo "eu acho" ou "na minha opinião", é premente que, mais uma vez, se consigne que não se trata de tema em que as concepções pessoais devam prevalecer ou gozem de qualquer relevância. Vivemos dias que milhares se manifestaram nas redes sociais como se fossem especialistas em sexualidade, fisiologia, hormônios sem nunca terem estudado sobre tais temas. São questões técnicas que não comportam a expressão de opinião, sendo as "opiniões" expostas apenas a mais pura revelação do tamanho da ignorância e do preconceito. "Não sei, não estudei, não sou especialista mas na minha opinião.". Sua opinião sem fundamento técnico apenas fomenta a desinformação, revela preconceito e pode caracterizar sua homotransfobia. Em suma, podemos considerar que esses Jogos Olímpicos de Paris 2024 tiveram uma dimensão distinta daquela que era de se esperar ao menos no campo da sexualidade, propondo para a população a busca de informações sobre as minorias sexuais. Agora, se a pessoa foi apresentada a tais elementos e preferiu não se inteirar do tema, passando a uma realidade distinta daquela obscura em que vivia, e segue professando sua miríade de ofensas às minorias sexuais, estamos evidentemente diante de alguém que escolheu o preconceito, a segregação, a discriminação e a violência às minorias, em frontal ataque aos princípios mais essenciais de um Estado Democrático de Direito. E isso diz muito sobre essa pessoa. __________ 1 Nos Jogos Olímpicos Paris 2024 apenas as modalidades de hipismo foram disputadas sem distinção de gênero. 2 Disponível aqui. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Ambas se sagraram campeãs olímpicas nessa edição dos Jogos. 8 Disponível aqui. 9 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; ALBUQUERQUE, Céu Ramos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. 150 variações intersexo. Paraná: CRV, 2024. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui.
Em um momento social em que se tem ampliado as discussões sobre as novas modalidades de relacionamentos interpessoais ganha cada vez mais espaço na mídia suas novas modalidades contratualizadas, com uma grande ênfase nos últimos tempos à figura do malfadado contrato de namoro. O interesse de estabelecer regras específicas e feitas sob medida para os desejos de cada "casal", atrelado à falta de uma regulamentação legal que vá além das figuras de constituição de entidades familiares (casamento e união estável), vem fomentando um alargamento dos embates acerca dos limites do que vem sendo chamado de contratualização do Direito de Família. Todavia vemos também que, ainda que não se possa configurar como uma hipótese atrelada ao Direito de Família, outras discussões vêm a reboque, pois tangenciam, em alguma medida, relacionamentos interpessoais que se assentam em convivência mútua, afeto, carinho, desejo, amor e relações sexuais.  Nesse universo amplificado do Direito de Família, com contatos com o Direito Contratual e muita presença de aspectos vinculados com preceitos de moral, surgem os Relacionamentos Sugar.1 Em linhas bastante singelas podemos nomear como tal a avença estabelecida entre uma pessoa que se compromete a remunerar a outra por sua companhia, sendo que tais contrapartidas podem ser ofertadas em espécie ou pelo intermédio da entrega de bens. Por meio dessa avença as partes expressam que, inquestionavelmente, não almejam a constituição de um relacionamento afetivo-amoroso, o estabelecimento de uma entidade familiar ou mesmo qualquer hipótese similar. Manifestam sim o desejo de obtenção de benefícios mútuos, através de uma relação eminentemente contratual, baseada simplesmente na liberdade de contratar. Não fosse pelo fato de tratar-se de um negócio jurídico que tangencia aspectos de natureza afetiva/sexual não atiçaria a sanha dos "auditores da moral e dos bons costumes" existentes em nossa sociedade tão deturpada. Não se trata de uma hipótese de tentativa de constituição de família, o que automaticamente a apartaria de qualquer vínculo com o Direito de Família, mas tudo o que envolve a possibilidade da existência de uma relação de afeto ou sexual acaba recebendo uma atenção diferenciada. Apesar de parecer uma discussão recente a hipótese que permeia o chamado relacionamento sugar, com algumas variáveis, é realidade fática vetusta, que encontra grande similitude com situações bastante conhecidas, como a das "teúdas e manteúdas" e das acompanhantes contratadas por famílias ricas para ocultar a sexualidade dos filhos. Porém o fato de alguém se disponibilizar a ser companhia de outrem mediante pagamento remete à uma concepção de que tal convivência importará em manutenção de relações sexuais, conduzindo a discussões que se vinculam à moral e aos bons costumes, fazendo com que muitos venham a expressar algum tipo de desconforto com relação a tal negócio jurídico. Logo de plano é importante que se consigne que a melhor forma de fazer com que tal desconforto seja apaziguado está na ciência de que é plena a liberdade que se confere a essas pessoas de não firmar tal tipo de contrato. Ante a prevalência da autonomia, se tal negócio não lhe atrai basta que não se vincule a ele, deixando-o apenas para aqueles que por ele se interessarem. Simples como tal. Inexiste no ordenamento jurídico pátrio qualquer tipo de imposição coercitiva que determine que quem quer que seja estabeleça um contrato desses. Se os incomodados simplesmente não entabularem esse contrato certamente seu incomodo há de desaparecer.  Contudo bem sabemos que não basta isso na nossa atual sociedade da informação, que tenho pensado ser mais de manifestação do que de informação. Poucos se informam adequadamente, com robustez científica, mas muitos (ou quase todos) sentem-se plenamente confortáveis para se manifestarem sobre todo e qualquer tema, como se detentores de uma expertise que os permitiria pleitear um título de doutorado. Os "livre docentes" das redes sociais, empertigados com suas concepções baseadas em um senso comum altamente enviesado, avocam para si o direito de expressar seu pensar com tons de uma certeza que apenas os tolos revelam. Sua moral, seus princípios, seus preceitos religiosos são de tal grandeza que devem ser postos como universais e subjugar as demais individualidades, já que supremos detentores de todo o saber. Superada toda a ironia que acompanhou os últimos parágrafos, é primordial se tratar o tema sob lentes técnicas, conferindo todo o aporte jurídico pertinente para tal realidade social. Por meio do contrato que estabelece o relacionamento sugar a parte que contrata a companhia e se compromete a oferecer benesses em decorrência disso é chamada de "sugar daddy", se do gênero masculino, ou "sugar mommy", caso seja do gênero feminino. Trata-se do detentor do poder econômico, que ordinariamente é uma pessoa mais velha, já estabelecida financeiramente, e que está disposta a ofertar parte do seu patrimônio pela experiência de ter a pessoa contratada em sua companhia. De se consignar que não existe uma "regra" insuperável nesse sentido, não encerrando uma hipótese de invalidade do contrato se for alguém mais novo ou sem uma condição econômica exacerbada, sendo esses apenas os traços tradicionais dessa modalidade de avença. No outro polo desse contrato está a pessoa que oferece a sua companhia, que ganha o nome de "sugar baby", e que normalmente é uma pessoa mais nova e dotada de atributos físicos que lhe inserem no conceito tradicionalmente posto de uma pessoa bela e atraente. Novamente não há que se falar em desnaturação do contrato se não se tratar de uma pessoa jovem ou que não se enquadre no padrão de beleza esperado. Relevante se ressaltar que tais características são apenas as usuais e não gozam de obrigatoriedade, mormente por estarmos diante de um tema onde facilmente algum rábula possa emergir em sua proeminente sapiência e asseverar que uma dada pessoa não é nova ou velha o suficiente, rica ou bela o bastante para que os parâmetros de um relacionamento sugar se estabeleçam. Reitera-se: Não há previsão entre os contratos típicos do Código Civil da figura do contrato sugar, portanto não existem requisitos legais específicos para a sua configuração e validade. A natureza da contrapartida oferecida pelo "sugar daddy" ou pela "sugar mommy" é uma questão relevante, pois pode ser convencionada em uma quantia específica em moeda correte, mas pode também fixar que caberá ao contratante o dever de pagar contas da pessoa contratada, como aluguel, contas de consumo (telefonia, energia elétrica, internet, streaming, etc.), bem como a presenteá-la com joias e viagens. Sob uma perspectiva eminentemente técnica, considerando os parâmetros firmados em sede de direito das obrigações, é de boa técnica que ao elaborar o contrato esteja perfeitamente estabelecido os valores e a quem compete escolher os presentes e viagens a serem ofertadas, sob pena de incidir os delicados parâmetros que regem as obrigações de dar coisa incerta (art. 243 e seguintes do Código Civil). A extensão da companhia ofertada pela/o "sugar baby" revela-se como um ponto nevrálgico na análise dos contratos sugar. De forma geral as plataformas que facilitam o contato entre os interessados são veementes em ressaltar que o que compreende a companhia que será oferecida pelo contratado está vinculado à discricionariedade de cada pessoa. Tal ponto é crucial pois da mesma forma que tal companhia pode se dar para que as partes desfrutem os prazeres de um jantar em um restaurante, de uma ida ao cinema, teatro ou museu, pode também acabar em alguma intimidade entre elas, e que pode se consumar em beijos, abraços ou até mesmo na manutenção de relações sexuais. E aqui se tem um ponto delicado para os "censores da sexualidade alheia". Mesmo que já estejamos longe de um tempo em que a Igreja regia oficialmente a estruturação do Estado é evidente que muitos ainda ignoram a mais do que centenária separação, sem falar daqueles que anseiam e lutam, de forma explícita ou escamoteada, pelo estabelecimento de um Estado Teocrático. Nesse mundo paralelo a liberdade sexual, especialmente das mulheres, não tem espaço, resistindo um preceito romantizado de que as relações sexuais apenas podem existir quando lastreadas no amor, especialmente constituído em sede de um casamento, de sorte que relações sexuais baseadas em contrato seriam uma aberração imoral, ainda mais quando vinculadas a algum tipo de contrapartida. Contudo a visão hipócrita não revela qualquer incômodo com os casamentos arranjados, aqueles em que os cônjuges não mais nutrem (se é que um dia tiveram) nenhum tipo de sentimento de afeto/amor pelo outro, ou mesmo naquelas relações tidas como ideais segundo alguns em que a mulher se vê obrigada a manter-se em casa, recebendo o dinheiro que o "varão" provedor lhe oferta, sendo obrigada a manter relações sexuais com ele, ainda que não o deseje. Como pontuava Simone de Beauvoir em alguns casos a linha que separa o casamento da prostituição é absurdamente tênue, pois "'entre as prostitutas e as que se vendem pelo casamento, a única diferença consiste no preço e na duração do contrato'... Para ambas, o ato sexual é um serviço; a segunda é contratada pela vida inteira por um só homem; a primeira tem vários clientes que lhe pagam tanto por vez."2 É exatamente na existência da possibilidade ou na previsão de que deva haver relações sexuais entre contratante e contratado nos relacionamentos sugar que se vê alguns fazerem um alvoroço, pontuando que tal avença é apenas uma prostituição com roupagem nova. E se for. qual seria o problema? A questão problemática não se assenta na relação sexual mediante pagamento. O que há de se discutir é o nível de autonomia da pessoa que oferece seus préstimos sexuais, quão vulnerabilizada está, se não está sendo vítima de alguma agressão física ou psicológica para estar ali. Existem inúmeras outras formas de prestação de serviço em que se oferta o corpo para o empregador que se mostram muito mais ofensivas aos parâmetros mais elementares da dignidade humana que seguem sendo autorizados, a bem da liberdade econômica, de sorte que a única razão para as restrições impostas às profissionais do sexo (com claro recorte de gênero) é o preconceito. Gostaria de estar equivocado e que o objetivo real de quem apresenta objeções ao trabalho oferecido pelas profissionais do sexo fosse efetivamente proteger as pessoas que se veem compelidas a prestar tal tipo de serviço em razão de sua vulnerabilidade. Mas, como já bastante consolidado, minorias e grupos vulnerabilizados por motivos associados à sexualidade têm sua condição reconhecida, na prática, para que sejam vítimas de discriminação, e não para serem destinatárias da especial proteção preconizada por um Estado Democrático de Direito.3 Basta se considerar que ainda hoje as profissionais do sexo seguem não encontrando respaldo legal para cobrar os serviços por elas prestado, pois continua se entendendo que o objeto do negócio jurídico por ela firmado seria atentatório à moral e aos bons costumes, ofendendo ao disposto no art. 104, II do Código Civil, encerrando em invalidade, por nulidade, daquele negócio jurídico (art. 166, II). Essa interpretação vetusta e discriminatória impõe que não se possa simplesmente exigir a satisfação do contrato. A solução "técnica" dada é que se pode superar essa impossibilidade por meio de uma ação de indenização baseada no enriquecimento sem causa experimentado por quem se beneficiou do seu serviço e que não lhe ofertou a contrapartida esperada. Tecnicamente lindo, mas de efetividade questionável, especialmente por considerar que nem sempre a profissional conta com condições econômicas para contratar um advogado ou mesmo terá meios de fazer prova de suas alegações. E essa mesma interpretação teratológica tende a se abater sobre os contratos sugar, o que mais uma vez revela a discriminação que ordinariamente recai sobre tudo o que tangencia a sexualidade.  O crucial aqui é que os contratos firmados a fim de convencionar um relacionamento sugar, sejam eles escritos ou não, vinculam as partes que o firmaram, criando, bilateralmente, direitos e deveres a serem cumpridos, lastreados na discricionariedade das pessoas que a ele se atrelaram, respeitada sua natureza contratual e os limites do pacta sunt servanda. Dotado de uma boa-fé e transparência que muitas vezes é capaz de superar aquela que se constata em casamentos e uniões estáveis, as relações sugar merecem a devida atenção, sem que sejam sobrepujadas por uma visão de terceiros que nenhuma relação possuem com o caso concreto. E, por fim, retomando o pensamento de Simone de Beauvoir, quantos casamentos e uniões estáveis não são, em verdade, relacionamentos sugar com um nome socialmente aceito? O nome atribuído à situação fática não lhe retira ou transmuda a essência... Para questionar a coerência dos aurores dos bons costumes se pergunta: O repúdio aos casamentos de fachada é o mesmo destinado aos relacionamentos sugar? ____________ 1 Atribui-se a origem da nomenclatura ao relacionamento de Adolph Spreckles, um famoso herdeiro da maior fábrica de refinamento de açúcar do mundo nos idos de 1908, que se casou com Alma de Bretteville, uma moça 24 anos mais jovem que ele, em que chamava a atenção os presentes vultosos que ele dava a ela, sendo ele chamado de Sugar Daddy e ela de Sugar Baby. 2 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: 2. A experiência vivida, 2. ed., São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 324. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
A utilização de banheiro é algo tão prosaico que nos faz questionar se somos uma sociedade evoluída a ponto de já termos resolvido todos os problemas centrais existentes que podemos nos permitir discutir acerca de qual o preceito adequado a definir onde cada pessoa deve fazer suas necessidades fisiológicas ou se estamos atrasados de tal maneira que ainda nos preocupamos com o local onde as pessoas urinam e defecam.1 De qualquer sorte ainda que não se tenha legalmente estabelecido se o que define a utilização de banheiros segregados é o sexo (a compleição física da pessoa) ou o gênero (expressão sociocultural de sexualidade), esse é um tema cuja discussão gera muita celeuma. Sequer há uma definição na nomenclatura distintiva a ser utilizada nesses espaços, o que acaba se constituindo em um problema social. Evidente que a questão não reside na utilização em si de um vaso sanitário mas sim da presença de pessoas de sexo/gênero distintos no mesmo local, o que revela em si o nosso fracasso como sociedade já que a mera presença de pessoas distintas no mesmo espaço se configura como um potencial risco. O posicionamento adotado pela maioria das pessoas lastreia-se em meros achismos ou mesmo no terror criado contra a existência das pessoas que não se enquadram no padrão de normalidade posta. Trata-se de uma questão que gera enorme impacto para a existência das pessoas transgênero, causando inúmeros problemas de saúde e sociais.2 Uma situação envolvendo a utilização de banheiro por pessoas transgênero chegou ao STF, no RE 845.779. A decisão recorrida tinha como pano de fundo o pleito de indenização por danos morais decorrente da vedação de que uma mulher transgênero usasse o banheiro vinculado à sua identidade de gênero. O fato ocorrido em um shopping em Florianópolis acabou com a pessoa fazendo suas necessidades fisiológicas na roupa e tendo que retornar para sua casa com as roupas sujas. Em 1ª instância houve a condenação do shopping, contudo o TJ/SC entendeu que o fato teria configurado apenas um "mero dissabor", afastando a incidência de qualquer dano moral. Já no STF, em 2014, reconheceu-se a repercussão geral da matéria (Tema 7783), entendendo se tratar de "Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 1º, III, 5º, V, X, XXXII, LIV e LV, e 93 da Constituição Federal, se a abordagem de transexual para utilizar banheiro do sexo oposto ao qual se dirigiu configura ou não conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade, indenizável a título de dano moral". Em 2015 o ministro Luis Roberto Barroso, relator do recurso, votou fixando a tese que pessoas transgênero "têm direito a serem tratadas socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público", acompanhado em seu voto pelo ministro Edson Fachin. Na sequência o ministro Luiz Fux pediu vista, restando o processo parado até 2024. Na apresentação de seu voto-vista, quase 10 anos depois, o ministro Luiz Fux manifestou-se entendendo que não haveria no caso concreto um elemento constitucional, mas somente uma questão de cunho fático vinculado a danos morais, de forma que teria de negar-se seguimento ao recurso, cancelando-se, ato contínuo, a repercussão geral conhecida. Em seguida os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes acompanharam o voto-vista, tendo a ministra Cármen Lúcia seguido o voto do relator. Trazidos os elementos fundamentais do tema cumpre destacar que o presente texto não tem por objetivo discutir o mérito em si da decisão proferida pelo STF, nem mesmo discorrer profundamente sobre o seu objeto. O que se questiona é quais os sinais que uma decisão desse jaez passa para a sociedade no atual momento. Não se questiona a existência da possibilidade de que ocorra uma revisão de uma decisão que tenha reconhecido repercussão geral, conforme disposto no art. 323-B do Regimento Interno do STF. Compreende-se também a premissa que pautou o voto-vista do Min. Luiz Fux de que a decisão recorrida, proferida pelo TJ/SC tenha se lastreado na falta de provas de que a abordagem à recorrente tenha se dado de forma "rude ou impulsionada por preconceito ou transfobia". Há também respaldo para a assertiva trazida no voto-vista de que o STF há de estar atento aos limites impostos pela sistemática processual e que a competência recursal seja respeitada. Contudo impõe-se a atenção ao argumento consignado pelo ministro Luis Roberto Barroso de que o reconhecimento da repercussão geral se atem à compreensão de que o fato revela uma natureza constitucional e que o preconceito contra pessoas transgênero é claramente um fato constitucional. Encerrar o julgamento do RE 845.779 sem apreciar o mérito depois de tanto tempo tem um impacto social terrível. Além da óbvia consequência de manter a questão sem uma solução traz uma impressão para a sociedade de que o tema é irrelevante, além de permitir que se deturpe a questão possibilitando que pessoas mal-intencionadas manipulem a informação e induzam os menos versados a acreditar que o STF teria negado o direito às pessoas transgênero. Manter um processo parado por quase 10 anos para depois encerrá-lo por uma questão técnica não configura em si nenhuma ilegalidade mas expressa claramente o tipo de consideração que recorrentemente se destina a temas que se relacionam com os direitos e interesses das minorias sexuais. Inusitado se ponderar que a justificativa apresentada pelo ministro Luiz Fux para o pedido de vista que interrompeu o julgamento em 2015 assentava-se na assertiva de que seria necessário que a sociedade fosse ouvida pois o tema do uso de banheiro por pessoas transgênero encerraria "desacordo moral razoável". O desvio que recai sobre os direitos das minorias sexuais é tamanho que se considera pertinente que a manifestação da opinião pública possa gozar de algum impacto na sua concessão.4 Mais uma vez é possível se vislumbrar o manejo da legislação processual como um meio de perpetuar a exposição das pessoas transgênero, mantendo-a vulnerabilizada e apartada do acesso aos direitos mais fundamentais. Não foi um aspecto processual que fez com que o ministro Luiz Fux pedisse vista. Reter o andamento do processo por quase 10 anos tampouco goza de plausibilidade. Parâmetros processuais puderam ser ignorados enquanto desfavoreciam pessoas transgênero, contudo esses se tornaram intransponíveis para lhes conferir a proteção que a Constituição Federal garante. O alegado risco de vulgarização da jurisdição constitucional não pautou o posicionamento do STF durante todo o período que o recurso ficou parado, permitindo que a condição de genocídio vivenciado pelas pessoas transgênero5 em nosso país persistisse e se aprofundasse. Mais vale não "vulgarizar a jurisdição constitucional" do que garantir a existência de um grupo social? Então pode-se permitir que todas as mazelas sigam recaindo sobre as pessoas transgênero? Pode a instrumentalidade processual sobrepor-se à proteção das pessoas? Não parece ser esse o preceito nuclear de um Estado Democrático de Direito. Entre proteger a aspectos processuais e resguardar os ditames nucleares da Constituição Federal é inquestionável que esse último há de prevalecer. Toda preliminar processual é transponível quando se trata de fazer valer o objeto fundante do texto constitucional. A todas as pessoas a Constituição Federal assegura os direitos fundamentais, contudo se essa pessoa for uma pessoa transgênero haveria algum tipo de análise a ser realizada, lastreada na opinião pública, para que a sua dignidade humana seja respeitada... Como se pudesse ser suscitado algum questionamento acerca de se conferir às pessoas transgênero os direitos mais elementares que são ofertados a toda e qualquer pessoa.6 Contudo não se pode jamais olvidar que toda essa questão tem como lastro a absurda leniência legislativa7 que marca o nosso Estado Esquizofrênico.8 Exigir que o Tribunal Constitucional se manifeste sobre temas tidos por ordinários mas que alçam um "grau de complexidade" extremo apenas por se tratar da busca da proteção de minorias sexuais é uma constante em nossa realidade. Basta considerar que em 2011 do STF teve que se manifestar sobre a adequação de se aplicar analogia em um caso de lacuna da lei, fato que dificilmente chegaria às suas mãos caso não se tratasse de uma questão atrelada à sexualidade e aos direitos das minorias sexuais, como se deu no julgamento da ADI 4.277 que reconheceu a possibilidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo.9 Não busco questionar a tecnicidade que envolve a decisão mas é preciso ressaltar que o fim precípuo do STF de defensor da Constituição Federal restou ignorado. Infelizmente faltou sensibilidade ao guardião do Estado Democrático de Direito que negou a uma das parcelas mais vulneráveis da população o reconhecimento de seus direitos fundamentais, aprofundando sua marginalização ao não se posicionar de forma a simplesmente resguardar os direitos mais basilares que existem. Negar a efetivação dos direitos fundamentais a um grupo vulnerabilizado sob o argumento de um eventual risco de vulgarização da jurisdição constitucional parece ser uma escolha muito simples e que foge do cerne da questão. Há de se garantir a vida e a existência daqueles que claramente vivenciam uma situação de estado inconstitucional de coisa. Entre a proteção de uma preliminar processual, como fundamentado no voto vencedor, e as bases da democracia, evidentemente devemos pugnar pela vida das minorias. Enquanto persistir essa realidade de oferta seletiva dos direitos fundamentais estaremos atentando contra as premissas mais básicas de uma democracia, e será primordial que se continue a repetir que pessoas transgênero existem, são cidadãos e merecem ver garantidos a si os mesmos direitos franqueados a todos. _________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. RIOS, Vinícius Custódio. Mercado transgênero e a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva do capitalismo humanista, Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, v. 105, n. 972, p. 165-184, out. 2016, p. 167. 2 HERMAN, Jody L.. Gendered restrooms and minority stress: The public regulation of gender and its impact on transgender people's lives. Journal of Public Management & Social Policy, 19(1), 65-80. 3 Tema 778: "Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente" 4 Disponível aqui. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A vara de família é a competente para apreciar e julgar pedido de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva. Revista DOS Tribunais (São Paulo. Impresso), v.984, p.305 - 315, 2017.
quinta-feira, 20 de junho de 2024

Crianças trans existem?

SIM. Talvez essa coluna devesse acabar aqui com essa resposta simples. Exatamente por se tratar de uma pergunta que não precisaria de maiores considerações para que fosse respondida. Contudo esse questionamento vincula dois temas sensíveis (crianças e sexualidade), o que impõe a necessidade de um aprofundamento na sua apreciação para que aqueles que não se sentiram satisfeitos com a resposta dada não possam simplesmente transformarem-se em detratores também desse texto baseados exclusivamente em seus "achismos"1. Como tenho manifestado de forma reiterada na presente coluna um dos grandes problemas de nossa sociedade atual é que vivemos uma era em que todas as pessoas se sentem confortáveis para expor sua opinião pessoal sobre temas acerca dos quais não cabe qualquer ponderação fundada no que ela pensa2. Não se trata de uma discussão sobre liberdade de expressão ou direito de se manifestar, mas apenas sobre senso crítico. O acesso à informação e a possibilidade de se expressar potencializados pela era da informação e pela universalização do acesso à internet tem, inegavelmente, o seu lado ruim. Eu sou um jurista e certamente não faz nenhuma diferença as eventuais considerações e opiniões que eu possa ter sobre física quântica, por exemplo. Qual valor deve ser dado para uma assertiva que eu venha a fazer de que "a física quântica não existe~? Certamente não faria qualquer diferença e seria solenemente ignorada pelos cientistas e também pela sociedade já que não possuo qualquer respaldo para tecer considerações sobre esse assunto. Contudo algumas áreas, apesar de apresentarem uma complexidade elevada, aparentam ser mais acessíveis à população como um todo, a ponto de muitos se sentirem autorizados a expressar o seu pensamento coloquial sobre uma questão técnica. E o fazem de forma indiscriminada, sem qualquer compromisso e sem sofrerem quaisquer consequências por desinformarem. Quando questionados pelas sandices que expressam defendem-se com escusas como: "essa é a minha opinião". Nem mesmo se atentam que se trata de uma questão que não comporta opiniões, por ser calcada em fatos científicos. Hoje tem sido cada vez mais recorrente as pessoas parecerem orgulhosas de sua ignorância e desconhecimento, asseverando que não precisam estudar ou se dedicar a aprender, bastando externalizar o seu pensamento construído com o que ela "sabe". Arvoram-se a expor sua opinião sobre o que não dominam, o que é ainda mais preocupante ao se considerar que não se trata de algo que admita uma "opinião". Nesse contexto que se encontram aqueles que negam a existência de crianças transgênero. No âmbito da sexualidade pode-se afirmar que trata-se do equivalente a afirmar que a Terra é plana, como afirmo no meu Manual sobre Direitos das Pessoas Transgênero que será lançado em breve. A razão para uma afirmação tão contundente é bastante corriqueira: em sede ciência médica é consolidado o entendimento de que a transgeneridade se faz presente entre crianças. Para trazer luz aos "céticos" quanto a essa afirmação o primeiro passo é se apoderar da premissa básica, sem a qual mostra-se impossível que se estabeleça qualquer diálogo sobre o tema, especialmente porque a maioria das manifestações contrárias à existência de crianças transgênero partem de pessoas que não têm a mínima ideia do que é identidade de gênero e transgeneridade. Sabendo-se que a identidade de gênero "está atrelada ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino)3, independentemente da sua constituição física ou genética"4, pode-se conceber, com base nesse pilar da sexualidade, que as pessoas são entendidas como sendo cisgênero ou transgênero. Tem-se por cisgênero aquele indivíduo que não revela qualquer dissonância entre o gênero esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento e o gênero ao qual entende pertencer5. É quem teve a si atribuído o sexo homem/macho ao nascer e entende-se como alguém do gênero masculino, ou nasceu mulher/fêmea e sente-se do gênero feminino. Os transgêneros, por sua vez, são aqueles que apresentam uma incompatibilidade entre o gênero esperado em razão do sexo que lhe foi indicado ao nascer e o gênero ao qual se entende pertencente6, de forma que esperava-se que fosse do gênero masculino por terem o sexo homem/macho mas sentem-se como alguém do gênero feminino (chamados de mulheres transgênero), ou quem se suponha que haveria ser do gênero feminino mas sente-se como do masculino, apesar de ter-lhe sido atribuído quando do nascimento o sexo mulher/fêmea (homens transgêneros)7. Devidamente definida a condição sobre a qual a discussão se assenta cabe afirmar que sua existência é inquestionável, plenamente reconhecida pela medicina, com sua incidência podendo se manifestar desde os primeiros anos de uma criança. A mera verificação do conteúdo da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), documento médico utilizado em todo o mundo para padronizar a indicação das condições clínicas e patológicas existentes, traz expressamente a incongruência de gênero na infância ou na adolescencia como uma doença passível de ser diagnosticada (código HA60 - incongruência de gênero na adolescência ou na idade adulta e código HA61 - incongruência de gênero na infância). Essa tal incongruência de gênero descrita nessa classificação elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com a contribuição dos maiores especialistas em diversas áreas da saúde, é caracterizada pelo sofrimento psicológico que pode ser apresentado por quem revela a incompatibilidade físico/psicológica que caracteriza a transgeneridade, constituindo-se como uma condição que merece acompanhamento médico com o fim de tratar essa angústia. Será que todos esses profissionais que dedicaram sua vida à medicina estão errados em afirmar que existem crianças transgênero? Há também o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA), que também prevê a existência de sofrimento em decorrência da transgeneridade em crianças (código 302.6) e em adolescentes (código 302.85). Nesse mesmo documento há a afirmação expressa de que essa sensação de desconforto psicológico normalmente tem início na infância8, o que torna evidente que a transgeneridade se faz presente naquele momento, já que não há como experienciar a consequência antes da causa se instalar. Estariam também esses profissionais equivocados? No âmbito nacional o Conselho Federal de Medicina (CFM) afirma expressamente a existência da chamada incongruência de gênero. A Resolução 2265/19, que dispõe   sobre   o   cuidado   específico   à   pessoa   com incongruência   de   gênero   ou   transgênero, prevê no Anexo III, que versa sobre o acompanhamento psiquiátrico, que a identidade de gênero se configura por volta dos 4 (quatro) anos, cominando que os eventuais efeitos psicológicos daí decorrentes deverão ser verificados ante acompanhamento a ser realizado durante a infância daquela criança9. O Conselho Federal de Medicina (CFM) também não sabe o que está dizendo? Em mapeamento realizado no Município de São Paulo cerca de 70% dos entrevistados afirmaram que deixaram de identificar-se com o gênero a eles imposto em decorrência do sexo que lhes foi designado ao nascer até os 15 anos de idade (26% entre os 6 e 10 anos e 36% entre os 11 e 15 anos)10. Estariam essas pessoas mentindo? Qual seria o seu mote para inventar uma condição que só lhes traz prejuízo e segregação? Importante que fique bastante claro que apesar de constar de documentos médicos a transgeneridade não é uma doença.  E isso precisa ser evidenciado para que não se queira retornar a um período já superado de patologização11. O apagamento enfrentando pelas pessoas transgênero, tão nefasto e que coloca em risco a sua integridade12, se mostra ainda mais forte com as crianças transgênero, pois ao se negar sua existência se está negando que elas tenham acesso aos direitos mais elementares, já que aquele que não existe não precisa de proteção. O preconceito e a ignorância quanto as questões atinentes à sexualidade fazem com que até mesmo um dos preceitos mais nucleares no que tange a crianças e adolescentes seja ignorado, pois tal negativa rechaça a efetivação da determinação constante do art. 227 da Constituição Federal que assevera ser "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade" seus direitos elementares. Uns negam a existência de crianças transgênero sob a simples alegação que nunca as viu, como se o contato com uma determinada situação fosse o parâmetro científico para que ela viesse a existir.   Crianças trans existem e essa é uma afirmação que não se reveste de nenhuma conotação moral, política ou religiosa. Não posso crer que ainda nos permitimos considerar como dignas de leitura afirmações como a de que crianças trans não existem principalmente quando expressadas por pessoas que não têm o menor conhecimento técnico científico sobre o tema. Essa negativa despropositada fomenta o preconceito e a discriminação, fatores preponderantes para a absurda taxa de suicídios que recai sobre as pessoas transgênero, ainda mais quando se considera que os pensamentos suicidas se manifestam inicialmente antes mesmo dos 18 anos (84% dos casos), como constatado em pesquisa realizada no Chile13. A existência de crianças trans é um fato, e penso que tenha ficado evidente que isso não é uma opinião. Não cabe falar de opinião ou liberdade de expressão, mormente quando se trata de um tema em que a desinformação pode matar. Então não permita que manifestações inconsequentes e falsas continuem sendo propagadas. Compartilhe o conhecimento trazido nessa coluna para que ao menos consigamos afastar o risco de que alguém continue a negar fatos cientificamente comprovados. Porém, se mesmo assim alguém que pode ter contato com esse material o ignorou e segue negando a existência de crianças transgênero estará comprovado que se trata de alguém mal intencionado, criminoso e ignóbil. Queiram ou não aqueles que apresentam um viés religioso extremista ou moralista ignorante, a resposta para o título da presente coluna é elementar: CRIANÇAS TRANS EXISTEM14. __________ 1 Preocupação que tem sido constante nos textos dessa coluna. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Informações jurídicas imprecisas na mídia e redes sociais: o risco de danos para a sociedade. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 1, p. III-VI, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 jun. 2024. 3 A indicação aqui apresentada está simplificada, considerando a visão binária do gênero, mas não ignoramos toda a gama de expressões de gênero existentes. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 6 Disponível aqui. 7 Reitero o posicionamento adotado desde sempre nessa coluna de que o sexo binário há de ser nomeado de homem/macho ou mulher/fêmea, e não masculino ou feminino. 8 Disponível aqui. Acesso em 12 jan.2024. 9 Disponível aqui. Acesso em: 17 jan.2024. 10 CEDEC - CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa. São Paulo, 2021, p. 25. Disponível aqui. Acesso em 01 mai.2023. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 36. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 13 Resumen Ejecutivo Encuesta-T 2017, p. 23-24. 14 Muitas famílias de crianças trans apresentam trabalhos interessante de conscientização, como é o caso da ONG Minha Criança Trans.
Compreender a dinâmica da sociedade contemporânea é imprescindível para que se possa assimilar alguns elementos técnicos que transpõem o entendimento ordinário das pessoas. Sob o holofote dos parâmetros estatuídos em um Estado Democrático de Direito é primordial que achismos e lugares comuns não influenciem discussões técnicas. Dentre esses um dos mais intrincados é a compreensão do conceito de raça e, consequentemente, de racismo. Tradicionalmente se tinha a concepção de que os seres humanos poderiam ser divididos, segundo aspectos biológicos, em raças, o que já se mostrou cientificamente superado após estudos de sequenciamento genético que constataram que todos os seres humanos pertencem a uma mesma e única raça. Brancos, pretos, pardos, amarelos ou qualquer outra designação que tenha existido para distinguir as pessoas a partir da cor de sua pele não tem respaldo nas ciências biológicas. Contudo, mesmo sendo entendimento consolidado, as distinções lastreadas na cor da pele das pessoas seguem pautando nossa sociedade, revelando, indubitavelmente, que a segregação que existe em razão das chamadas "raças" em verdade não está calcada em elementos biológicos mas sim em parâmetros bem diferentes. De sorte que é bastante plausível se questionar: Se não existem raças como é possível que se continue a discutir o racismo e seus desdobramentos? A resposta é simples: O racismo não está lastreado no conceito biológico de raça. A definição mais comum para o termo raça, bem como para racismo, está associada a características físicas (cor de pele, cabelo, constituição facial, etc), sendo as chamadas pautas raciais direcionadas à efetivação, em favor população negra, das garantais constitucionalmente asseguradas a todas as pessoas. Essa construção que vincula raça às pessoas pretas e pardas mostra-se assentada no campo da sociologia e de muitas outras ciências, contudo, para o mundo jurídico, o termo tem uma amplitude diferente. Inicialmente é primordial se pontuar que a Constituição Federal é expressa ao distinguir raça de cor (de pele) já que consta do texto do art. 5º as duas expressões de forma concomitante. Partindo da premissa de que não há palavra inútil ou supérflua no texto da lei (verba cum effectu sunt accipienda) é inquestionável que tais palavras não são sinônimas e encerram em si concepções distintas, de maneira que pode-se afirmar de forma peremptória que para fins constitucionais raça e cor são aspectos distintos e que gozam de proteção, não se admitindo discriminações baseadas nem em uma, nem na outra. O ordenamento jurídico pátrio toma por base a concepção social de raça, que deságua na figura do racismo social, que se estabelece segundo uma crença de superioridade de um grupo face a outro, tido por inferior e, portanto, passível de discriminação e segregação, baseado não apenas em aspectos físicos mas também em critérios morais, intelectuais, culturais, étnicos, religiosos, geográficos, entre outros.1 Essa opção legislativa que criminaliza como racismo condutas ofensivas calcadas não só na cor da pele da pessoa resta evidenciada no texto positivado. A lei caó (lei 7716/89) que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor segue firmando a distinção, asseverando que o crime de racismo configura-se ao "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional" (art. 20), tipificando ainda "injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional" como injúria racial (art. 2º-A). Estando patente que raça não é o mesmo que cor, e que racismo não se restringe somente a ofensas e discriminações fundadas nos caracteres fenotípicos de uma pessoa de pele negra é premente que se discorra sobre o que efetivamente comporta, para fins jurídicos, tais expressões. Fundado na concepção social de racismo que parte da premissa de um determinado grupo que se considerada superior a outro que não expressa as mesmas características que as suas, e, em razão disso, passa a agir de forma a subjugar, menosprezar, reduzir direitos, e até mesmo extirpar da sociedade sua presença, é evidente que racismo, sob o viés legal, vai além do genocídio do povo negro.2 Sem que se estabeleça qualquer tipo de comparação ou equivalência, que em nada ajuda nessa análise e acaba por criar celeumas que apenas fortalecerão as maiorias, a nossa realidade revela que existem outros grupos sociais que também padecem dessas mesmas mazelas, razão pela qual a legislação que pune as condutas racistas sanciona também atos discriminatórios que se lastreiam em aspectos diversos da cor. Ainda que haja alguma resistência por parte daqueles que se dedicam às pautas raciais (segundo o parâmetro tradicional), temendo que a utilização da expressão para tratar de situações que não se direcionam ao preconceito fundado na cor da pele e características físicas a ela associadas ensejaria no enfraquecimento da sua luta, o fato é que atualmente a legislação pátria abarca no conceito de raça e racismo mais do que o usualmente entendido. Mesmo sensível aos reclames dos que defendem os interesses das pessoas negras não há como se conceber a exclusão de outros grupos vulnerabilizados da proteção oferecida pela legislação destinada à apenação do crime de racismo e injúria racial. Uma luta não invalida a outra, tampouco um grupo deve ficar desprotegido para que as necessidades do outro sejam reconhecidas. Comungo da ideia de que seria salutar a existência de uma legislação específica visando a proteção dos direitos de cada um dos grupos vulnerabilizados, atendendo às idiossincrasias inerentes a cada um deles. Contudo não alcançamos tal estágio de evolução civilizatória, fator que nos conduz a albergar sob a proteção da lei mais abrangente todos aqueles que são vítimas de uma tentativa de redução por parte de um grupo detentor de poder. O STF, consoante ao acima exposto, reconheceu no início dos anos 2000, no julgamento do que ficou conhecido como Caso Ellwanger (HC 82.424-2/RS), que a configuração do crime de racismo não se restringia apenas a práticas discriminatórias baseadas na cor de pele das pessoas, condenando o editor Siegfried Ellwanger por divulgar material antissemita e negar o holocausto através de sua editora. Foi esse também o posicionamento adotado pelo STF quando do julgamento da ADO 26, entendendo pela aplicação das penas previstas para o racismo e para a injúria racial às condutas de homofobia e transfobia. No entanto é de se notar que nesse caso houve uma maior resistência em se admitir a utilização da concepção social de raça. Como de costume, quando as questões tangenciam elementos da sexualidade, especialmente em se tratando das minorias sexuais, há sempre uma objeção à concessão de direitos a tais grupos vulnerabilizados, em clara expressão à fragilidade masculina, cisgênero e heterossexual existente.3 Reconhecer que publicações antissemitas configuravam racismo, como no Caso Ellwanger, não gerou tantas oposições quanto as vistas de certos setores da sociedade e mesmo do mundo jurídico quando da criminalização da homofobia e da transfobia, o que pode ser atribuído ao desconhecimento e ao preconceito. Configura-se a homofobia quando a homossexualidade, enquanto atributo concernente à orientação sexual, é usada como elemento a fundamentar práticas segregatórias e discriminatórias respaldadas na crença de que em razão dessa característica a pessoa possa ser ofendida ou subjugada, ante a compreensão de que não é merecedora dos mesmos direitos garantidos a todas as demais. Caso o fundamento da conduta seja a transgeneridade da vítima, estamos diante da transfobia. O reconhecimento de que homossexuais e pessoas transgênero às quais são direcionadas manifestações discriminatórias, baseadas em sua orientação sexual ou identidade de gênero, são vítimas de racismo ou injúria racial não tem nenhuma relação com interpretação por analogia que, por determinação expressa da lei, não cabe na hermenêutica aplicável à legislação penal. Como pode ser facilmente constatado da decisão proferida na ADO 26 o que se deu foi a delimitação do conceito de raça, reconhecendo também a necessidade de que seja elaborada a legislação específica, mas que, enquanto essa não for apresentada, impõe-se a aplicação dos preceitos atrelados ao crime de racismo às condutas discriminatórias praticadas contra homossexuais e pessoas transgênero. Contudo é relevante se ponderar a situação segundo uma perspectiva que contemple a adequada compreensão dos elementos associados à sexualidade, mormente ao se considerar que entre as minorias sexuais existem outros grupos que não apenas homossexuais e pessoas transgênero. No âmbito da identidade de gênero é de se entender que ao ter utilizado a expressão transgênero a decisão valeu-se do termo guarda-chuva que reúne em si todos aqueles que apresentam uma percepção de gênero distinta daquela esperada em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do seu nascimento.4 Contudo ao trabalhar apenas com a ideia de homossexuais quando se deteve a tratar da orientação sexual acabou deixando de fora outros grupos minoritários e vulnerabilizados. De sorte que, por um critério de coerência e primando pela igualdade, é inafastável que bissexuais, assexuais e pansexuais também tenham para si reconhecida a proteção da legislação que tipifica o racismo e a injúria racial. Nesse mesmo contexto da sexualidade e seus elementos componentes é possível se sustentar ainda que o feminino, enquanto aspecto de gênero, há de ser compreendido também como uma condição passível de ser reconhecida como um elemento de raça, segundo a perspectiva social, nos exatos termos reconhecidos pelo STF em favor da orientação sexual e da identidade de gênero. Ao se considerar toda a realidade que perpassa pelo feminino, com salários menores mesmo exercendo as mesmas funções, imposição social de responsabilização pelos deveres de cuidado, elevada taxa de homicídios simplesmente pelo fato de expressarem socialmente o feminino, bem como toda sorte de violência sexual, fica clara a presença de uma situação na qual o homem/masculino age como um grupo majoritário que subjuga e mitiga direitos delas. Mulheres são vítimas de agressões pelo simples fato de expressarem o feminino, podendo-se afirmar que, em alguma medida, padecem dos mesmos riscos enfrentados por pessoas transgênero e homossexuais, ainda que se tenha muito por cristalino que em um estágio de luta mais desenvolvido. Pessoas transgênero e homossexuais estão em um estágio mais embrionário na busca pela garantia dos direitos que lhes são imprescindíveis do que quem expressa o feminino, contudo não há como se negar toda a discriminação que ainda recai sobre elas. Finalmente é necessário que se aprecie o tema segundo o alicerce do sexo, mais especificamente com relação às pessoas intersexo, que são aquelas que, por seus aspectos físicos ou genéticos, não se adequam perfeitamente aos padrões clássicos atribuídos ao homem ou à mulher, nos termos trazidos em colunas anteriores.5 Em razão de sua condição também é bastante comum que pessoas intersexo sejam vitimadas por racismo social, nos exatos termos anteriormente expostos, de forma que a si também há de ser conferida a proteção penal específica. Assim, considerando os preceitos balizadores da concepção jurídica de raça e de racismo, conforme já reconhecido pelo STF, não há hermenêutica admissível que afaste a compreensão de que todo aquele que integra uma minoria sexual pode ser inserido como vítima do tipo penal que busca coibir o racismo. Para que não reste dúvidas o que estou afirmando é que pessoas transgênero, homossexuais, assexuais, bissexuais, pansexuais, mulheres e pessoas intersexo são vítimas de racismo, independentemente de sua cor de pele, apenas e tão somente em razão de sua condição de integrantes de uma minoria sexual. Proteger as minorias sexuais com a tipificação penal serve para revelar de forma patente o nível de vulnerabilidade por elas vivenciado, impondo a necessária reflexão de quais os rumos que nossa sociedade está tomando, já que em algumas searas ainda seguimos vivendo na Idade Média. Muitos tem revelado o medo de que a IA possa colocar em risco a humanidade, mas seguem ignorando que os maiores predadores dos seres humanos continuam sendo os seres humanos... _______ 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 170. 2 Abdias do Nascimento. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 3 O tema da fragilidade cisgênero é abordado em nosso Manual dos direitos transgênero, da Editora Saraiva. 4 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 5 Leandro Reinaldo da Cunha, Thais Emilia de Campos dos Santos e Dionne do Carmo Araújo Freitas. Intersexo, intersexual e a importância da distinção para fins jurídicos. Disponível aqui.
Para além do mundo espetacularizado e de extensa exposição das redes sociais existe um outro no qual a grande maioria da população de verdade vive. E nele é possível se sentir os respingos das manifestações provenientes daquela sociedade paralela constituída por seres que de tudo sabem e sobre tudo opinam. Situações corriqueiras que tangenciam aspectos da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)1 podem ganhar contornos delicados quando expostas a lentes capazes de distorcer de maneira tão substancial a realidade. Na sociedade da informação em que estamos inseridos, em que a superexposição passou a ser a normalidade para uma grande parcela das pessoas, uma conduta que outrora seria considerada ordinária ou não chegaria ao conhecimento de todos pode passar a ser objeto de escrutínio público. Sob o olhar dos detentores do poder conferido pela ágora dos tempos modernos, norteados pelo viés de confirmação que satisfaz a dopamina que é diretriz dos algoritmos atuais, associado ao comportamento de manada, vivemos uma era de inquisição 2.0, com julgamentos dos mais variados e vereditos fundamentados exclusivamente em ignorância, preconceito, achismos e lugares comuns. Não são poucas as hipóteses em que a validação pública da conduta alheia se faz presente, especialmente quando associada a temas conexos com a sexualidade, como trazido na última coluna ao tratar da intimidade dos desejos expressados na constância de um relacionamento. Contudo nesse momento me aterei a uma das mais espinhosas correlações que se pode estabelecer em sede de sexualidade: A sexualidade de crianças/adolescentes. Dentro desse tema amplo e complexo a presente coluna fará um direcionamento ainda mais pontual, ponderando sobre a incongruência com que certas situações são analisadas, seguindo parâmetros que vão da extrema proteção à criança e ao adolescente ao seu ponto diametralmente oposto de total menosprezo. Alguns preceitos básicos de sustentação dessa matéria precisam ser fixados para ao menos mitigar o risco de que o texto não seja compreendido, em que pese a certeza de que muitos poderão criticá-lo sem nem mesmo chegar a ler essa frase em específico, seguindo a tradição já estabelecida de atacar o todo apenas com a leitura do título. De qualquer sorte é essencial que se tenha patente que a sexualidade é aspecto inerente a todas as pessoas, evidenciando, por óbvio, que ela está presente também nas crianças e nos adolescentes, de maneira muito mais elementar do que podem sugerir pensamentos enviesados. Considerando a sexualidade em sua acepção mais ampla, bem como em seus desdobramentos abrangentes, convido-lhes a ponderar quanto a 3 situações distintas para se aferir a seletividade da indignação das pessoas conforme a natureza do fato apresentado, o que nos conduz a questionar: Por que certas questões são naturalizadas e colocadas em um locus de irrelevância enquanto outras são execradas? 1. Qual a idade em que a criança/adolescente pode começar a ter um relacionamento amoroso? Numa análise lastreada na legislação vigente pode-se afirmar que inexiste previsão expressa. O ordenamento jurídico tipifica as relações sexuais com menores de 14 anos como estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), o que leva à conclusão que, de início, quem não for menor de 14 anos pode manter relações sexuais, sem que nos aprofundemos nas discussões havidas relativas à consciência e ausência de vulnerabilidade reconhecida pelos tribunais em certos casos em que a prática sexual ocorre de forma consentida por quem não tenha atingido esse marco etário. Tem-se também a vedação expressa ao casamento de menores de 16 anos (art. 1.520 do Código Civil) que, conforme já defendemos em coluna anterior2, parece referir-se muito mais ao impedimento para a celebração do ato solene denominado casamento do que para a constituição de uma família. Resta, assim, válida a pergunta: Com qual idade pode começar a namorar? Socialmente podemos encontrar as mais variadas respostas, que serão influenciadas por elementos diversos: O respondente é do gênero masculino ou feminino? Tem ou não filhos? Estes são do gênero masculino ou feminino? A pessoa em questão integra a sua prole ou está entre seus parentes? Mas ao mesmo tempo é relevante se questionar com qual idade as crianças começam a ser expostas a perguntas dos adultos quanto aos "namoradinhos(as)". Para evitar maiores digressões, tomemos o início da educação formal como parâmetro. São comuns os casos em que os pais referem-se a um determinado coleguinha de escola como sendo o "namoradinho(a)" de seu filho(a). Por mais inocente que possa parecer tal comentário, mesmo que desprovido de uma real intenção de conferir uma conotação amorosa à frase, acabam por normalizar algo que não pode ser naturalizado. Crianças, na acepção técnica da expressão, não devem namorar, tampouco se pode ter como plausíveis tais perguntas para que essas crianças não tenham como coerente a ideia de que é normal ter um "namoradinho(a)" já naquela idade. Até mesmo os autointitulados defensores da "família e dos bons costumes" são contumazes em manifestações desse jaez, que acabam por inferir uma perspectiva de sexualidade não desejada em crianças. Não pergunto qual a idade ideal para que uma pessoa comece a namorar mas sim qual a juridicamente aceita. E pontuo que a resposta pode desencadear discussões severas entre, por exemplo, pais separados com relação à educação dos filhos, nos moldes do fixado pelo poder familiar (art. 1.634 do Código Civil). A reboque da dúvida primária posso trazer outras que lhe são decorrentes: Com qual idade o(a) pai/mãe pode autorizar que seu filho/filha possa dormir em casa com namorado(a)? Ou qual a idade que pode dormir na casa do(a) namorado(a)? Com quantos anos deve permitir que tenha relações sexuais em sua casa? Havendo negativa do(s) genitor(es) essa criança ou adolescente poderia pleitear judicialmente a autorização para tanto? Em caso de conflito entre o entendimento do pai e da mãe quem o dirimiria? Com que base legal? Não sou partidário de que a legislação estabeleça qual seria a idade correta para se começar a ter um relacionamento amoroso, contudo não posso ignorar o fato de que a ausência de um marco temporal traz reflexos. 2. Com qual idade uma criança/adolescente pode começar a ter preocupações estéticas? Inúmeras são as possibilidades que as pessoas têm para alterar a sua aparência com o objetivo de tornar-se mais bela ou atraente. Algumas dessas condutas são comuns e realizadas desde a mais tenra idade, ainda que possam apresentar uma conotação sexualizada que não se mostra apropriada para uma criança ou adolescente. Com o desejo de ostentar uma imagem tida socialmente como mais bonita ou mesmo adequada a certos padrões as pessoas acabam valendo-se de meios que podem majorar marcadores de gênero, enaltecendo caracteres físicos que podem gerar um maior interesse em razão da atração afetivo/amorosa/sexual que podem expressar. Quando apreciado com relação a crianças ou adolescentes, principalmente do gênero feminino, corre-se o risco de que tais práticas possam encerrar uma sexualização infantil, o que nos impõe considerar qual a faixa etária em que agir de tal forma pode ser considerado juridicamente apropriado. Com qual idade uma menina pode começar a usar maquiagem? Ou a fazer procedimentos visando alterar a estrutura dos seus fios de cabelo? Ou mesmo a se depilar? A maquiagem é para ficar mais bela para ela, para atender a uma "moda" ou para ressaltar característica com o fim de seduzir alguém? Qualquer das respostas pode ser admissível para uma pessoa adulta, todavia a última delas se mostra totalmente vedada caso se esteja diante de uma criança. Mas de uma criança de que idade? Com qual idade passa a ser adequado se permitir que uma menina venha a se maquiar? Ou qual seria a idade que se mostraria admissível se presentear uma menina com um kit de maquiagem? Seria coerente se pensar em "maquiagem infantil"? Me parece que a indústria não se preocupa muito com isso. Talvez até mesmo muitos considerem meus questionamentos excessivos ou alarmantes, contudo reitero o meu convite a que ponderem sobre os aspectos levantados. Alguns desses temas situam-se em uma região em que se poderia sustentar o argumento de que a questão seria de saúde ou higiene, contudo ainda assim é de se considerar a manifesta presença do traço estético, como é o caso da depilação. Novamente trabalhando com um recorte de gênero claro, questiono: com que idade é admissível se pensar em depilação em meninas? A resposta muda se essa depilação for das axilas, pernas, rosto ou se for uma depilação íntima, dos pelos da região genital? Se foi o pai quem levou a menina para a prática de tal ato e não a mãe, a resposta será diferente? Alterações na aparência física de uma pessoa podem advir da mera vontade de mudar, de pressões sociais ou culturais, de influências do meio, de necessidades de saúde. Mas seja qual tenha sido a razão é evidente que elas podem revelar um caráter sexualizador que não se mostra desejável quando se tratar de uma criança. Agora, para aprofundar o nível de complexidade, considere se todos esses atos forem praticados por uma criança com o objetivo de afirmação de seu gênero de pertencimento por se tratar de uma criança transgênero? Acrescente-se que, refutando a ciência consolidada, há até mesmo quem negue a existência de crianças que divirjam a cisgeneridade... A premissa básica que conduz essas considerações está na concepção de sexualização lastreada no entendimento de que condutas que têm o potencial de reforçar ou enaltecer marcadores de gênero tradicionalmente associados ao masculino, mas principalmente ao feminino, têm o condão de gerar uma exposição de um caractere vinculado à sexualidade. A amplificação da visibilidade dada pode ser tomada por quem a constata com uma conotação que evoque a um interesse afetivo/amoroso/sexual, algo totalmente contrário aos preceitos norteadores da proteção de crianças e adolescentes. 3. Qual a idade em que a criança/adolescente pode realizar intervenções cirúrgicas vinculadas à sua sexualidade? De forma geral as pessoas mostram-se contrárias a toda intervenção cirúrgicas desnecessárias em crianças, ainda mais em tenra idade. Caso tal procedimento tenha alguma relação com aspectos da sexualidade surge uma repulsa a qualquer menção ao tema, sem ao menos sequer se suscitar a existência de uma necessidade médica. Os inúmeros especialistas em sexualidade humana forjados nas profícuas academias das redes sociais lançam mão de seus achismos para vaticinarem o que pode ou não pode. E dificilmente estão dispostos a efetivamente estudar sobre o tema, muitas vezes vangloriando-se de sua ignorância ou mesmo fundando seu conhecimento médico com base na Bíblia ou em conceitos religiosos. Esse enorme cabedal de saber qualificado é que nos leva a absurdos como a imposição de que crianças intersexo que apresentem características físicas que não permitem que sejam enquadradas nos parâmetros tradicionalmente estabelecidos para uma genitália associada ao corpo do homem ou da mulher sejam submetidos a intervenções cirúrgicas de cunho estético para que sua compleição física seja padronizada.3 A intervenção se dá por estética e não por uma necessidade de saúde, o que pode gerar sérias consequências para o futuro dessa criança. Também se tem como perfeitamente autorizada a circuncisão de crianças cujos pais tenham suas raízes religiosas no judaísmo sem que isso seja um problema. É pratica socialmente respeitada por representar uma tradição religiosa/cultural, contudo o mesmo proceder não se vê com relação a práticas de mesma natureza e bem menos invasivas quando oriundas de religiões de matriz africana. Uma dada religião professada pelos pais dá sustentação para uma intervenção genital em um recém-nascido, em total desapreço à autonomia dessa criança de poder definir no futuro se quer ou não seguir os preceitos da crença dos pais. Aos pais se confere o poder de mutilar para atender a religião. Até por mera estética se permite que menores de 18 anos alterem seus corpos, como a possibilidade que meninas de 16 anos, mediante autorização dos pais, façam implante de silicone nos seios.4 Mas aos pais não se dá o direito de atender a necessidades dos filhos de alteração corpórea baseadas em sua identidade de gênero. Uma menina transgênero não conseguiria fazer o tal implante, seja pela previsão do CFM - Conselho Federal de Medicina, que fixa que essas intervenções apenas podem acontecer a partir dos 18 anos, ou do ministério da Saúde que estabelece que o SUS apenas subvenciona procedimentos cirúrgicos visando a afirmação de gênero após os 21 anos, em manifesta afronta ao fato de se atingir a maioridade civil aos 18 anos como preconiza o Código Civil de 2002.5 Tornar um corpo feminino mais sexualizado com implantes de silicone não é vedado, mas conferir maior conformidade a um corpo, com fins terapêuticos, em razão da identidade de gênero, não é permitido, mesmo que se tenha consolidado o grande risco de suicídio que acompanha uma pessoa transgênero, com a primeira das tentativas ocorrendo, em sua maioria, até os 18 anos.6 Feitas as breves considerações sobre as perguntas condutoras da discussão proposta é importante que quem se dispuser a pensar sobre o tema tente assumir um comportamento que seja o mais imparcial possível, sem reagir aos questionamentos ao sabor de seus interesses, mantendo uma linearidade lógica. Evidente que as características individuais de quem analisa o presente texto podem ser primordiais para a compreensão de todas as situações aqui trazidas. Muito mais do que nas demais situações às quais somos confrontados, considerando que nem sempre é fácil manter a técnica quando se é exposto a uma hipótese que nos toca pessoalmente. Mas a conveniência não pode nortear o pesquisador.7 Como já é tradicional nessa coluna, trago mais inquietações e dúvidas do que certezas. Mas o faço por entender que são questões que merecem atenção e uma apreciação ampla e técnica, a fim de se chegar a algumas diretrizes que se apartem de individualismos lastreados exclusivamente em interesses e convicções permeadas de preconceitos. Ante a previsão constitucional de que a criança e o adolescente têm seus direitos básicos assegurados com prioridade absoluta (art. 227), associado aos inúmeros conflitos que podem se estabelecer entre os pais, entendo que todas as dúvidas aqui expressadas são relevantes tanto socialmente quanto juridicamente. Assim, cabe a pergunta final: Crianças e adolescentes estão efetivamente resguardados quando o tema é sexualidade? _________ 1 Leandro Reinaldo da Cunha. A sexualidade como elemento juridicamente relevante e a necessidade de compreensão de seus aspectos básicos. Disponível aqui. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. O necessário reconhecimento da união estável de menores de 16 anos passando por uma perspectiva de gênero. Disponível aqui. 3 Thais Emilia de Campos dos Santos; Leandro Reinaldo da Cunha; Raul Aragão Martins. O registro de crianças intersexo no Brasil. Revista Contemporânea, v.3 n.9, p.14270 - 14294, 2023. 4 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 115. 5 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 272. 6 Leandro Reinaldo da Cunha. População transgênero, direitos fundamentais e responsabilidade civil. In: Nelson Rosenvald; Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho; Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk. (Org.). Responsabilidade civil e a luta pelos direitos fundamentais. 1ed.Indaiatuba: Editora Foco, 2023, v. 1, p. 275-290. 7 Interessante notar que quando coloquei algumas das discussões que se seguirão para meus alunos do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) alguns experienciaram o interessante conflito existente entre manifestar-se como pai/mãe ou como um profissional da área jurídica. Foi realmente um diálogo muito profícuo.
Da mesma forma que um traço social reconhecido dos seres humanos é a busca pela convivência com outras pessoas, estabelecendo vínculos baseados no afeto, a ruptura desses relacionamentos também é uma realidade. Especialmente após uma liberação das amarras morais e religiosas que impunham uma perspectiva de relacionamentos vitalícios a sociedade atual se caracteriza pela existência de vínculos rompidos. A positivação do divórcio como meio jurídico a colocar termo ao casamento e viabilizar a constituição de novas núpcias consolidou não só a possibilidade de que a mesma pessoa tenha experienciado a convivência com várias famílias (a atual e as anteriores) mas também criou uma modalidade de vínculo diferenciada: Os "ex". Numa perspectiva que foi idealizada com base em preceitos religiosos e morais, as pessoas teriam apenas um envolvimento amoroso/afetivo/sexual durante toda a vida. Em verdade, em um recorte claro de gênero, não seriam todas as pessoas, mas sim as mulheres que estariam presas a essa condição, vez que jamais se institucionalizou a possibilidade de "devolução" do homem que já tivesse sido deflorado antes do casamento como ocorria com as mulheres na vigência do Código Civil de 1916. Saímos de um período em que, em teoria, as pessoas só se relacionariam se fosse para casar para uma realidade em que há uma plena liberdade e autonomia para estabelecer vínculos amorosos/afetivos/sexuais mais ou menos duradouros. Nessa nova configuração social surge a possibilidade de que ocorra uma ampliação do número de pessoas que têm acesso a aspectos personalíssimos da vida de outrem, o que tem o manifesto potencial de fazer com que as linhas da privacidade sejam atenuadas, quando não totalmente extintas, entre os que compartilham momentos íntimos. Uma consequência desse compartilhamento é a majoração do risco de que informações resguardadas pelo direito à privacidade e à intimidade passem a estar na posse não apenas do destinatário de tais proteções legais1. E quanto maior foi a quantidade de pessoas com quem esteve maior será o risco exposição. Em termos práticos o grande problema no pós-ruptura de um relacionamento está em como conseguir reestruturar a integridade desse direito à privacidade e à intimidade que fora, no mínimo, mitigado. Tudo o que foi compartilhado e vivenciado enquanto juntos é material potencialmente lesivo caso venha a ser exposto para a sociedade como um todo. A forma pela qual se constitui esses relacionamentos pode impactar nas bases sobre as quais a presente discussão se assenta, considerando que em sede de casamento e união estável existe algum regramento legal, coisa que não se vislumbra quando as pessoas estão envolvidas em um namoro ou em relacionamentos furtivos. Enquanto casamento e união estável estão pautados, nos termos da lei, em um respeito mútuo (art. 1.566, V e 1.724 do Código Civil) não existe a previsão de que tal dever se aplica às demais formas de relacionamentos. No entanto nem isso confere qualquer respaldo a cônjuges e companheiros a partir do instante em que se convertem em "ex", haja vista que a dissolução do casamento ou união estável põe termo em todos os direitos/deveres previstos no art. 1.566 do Código Civil. Assim, ainda que se possa aventar a existência de previsão legal de respeito na constância do casamento ou união estável, tais deveres não se imporiam com a sua dissolução. A situação de fato é que não há previsão legal expressa de manutenção do dever de respeito mútuo para o momento posterior à ruptura do casamento ou união estável, de forma que em toda sorte de relacionamento findo se instala o risco de que venha a ocorrer uma exposição de uma questão que estaria resguardada pelo direito à privacidade ou à intimidade. Hipóteses existem nas quais o conhecimento de elemento pertencente à vida íntima alheia se dá de forma indevida, como pela invasão não autorizada de dispositivo eletrônico de outrem, fato esse até mesmo tipificado (art. 154A do Código Penal). Contudo mesmo que o acesso à informação íntima tenha se dado de forma lícita ou compartilhada a sua exposição é situação extremamente delicada e que merece atenção. Mesmo que inexista uma previsão específica em nosso ordenamento jurídico determinando a manutenção de um dever de respeito mútuo que vedaria a exposição da intimidade do ex-cônjuge, ex-companheiro ou daquele com quem tenha se relacionado, após o fim desse envolvimento há de incidir as regras de fundo genérico que aplicam-se a todas as situações. Especificando ainda mais a perspectiva que rege a presente coluna, uma grande parte dessas questões personalíssimas que fogem da esfera exclusiva de controle da pessoa tem conexões com elementos vinculados à sexualidade. Fatos que envolvam exclusivamente a intimidade do outro (desejos, preferências e fantasias) ou que estejam inseridos contexto comum a ambos (relacionamento aberto, troca de casais, frequentar festas liberais ou casas de swing) seguem sendo resguardados pelo direito à privacidade e à intimidade. Partindo-se do pressuposto de que o direito à privacidade e à intimidade estão inseridos entre os Direitos Humanos, fundamentais e da personalidade, dos quais não se pode ser privado sob pena de ataque direto aos preceitos nucleares da sua essência enquanto pessoa, é inadmissível que se postule que alguém possa expor informação que goza de viés tão personalíssimo pelo simples fato de ter tido contato com ela. O direito à privacidade e à intimidade, ainda que relacionados a fatos compartilhados com outrem, devem imperar, não podendo ser afastados em nenhuma circunstância sob pena de redução da humanidade daquela pessoa, colocando em risco a sua própria existência. A ocorrência de qualquer ameaça ao direito à privacidade ou à intimidade, praticado por quem quer que seja, há de ser rechaçada de maneira exemplar, cabendo a devida indenização quando importar em efetiva violação, principalmente ao se entender os meios pelos quais tais informações personalíssimas foram obtidas. Ainda que entenda ser perfeitamente viável a inclusão de cláusulas impondo o respeito e preservação à intimidade do cônjuge ou companheiro em pacto antenupcial ou em documento similar direcionado à união estável essa previsão apenas teria o poder de se impor para a constância do casamento. No entanto, para o pós-ruptura, é possível que uma previsão dessa natureza seja inserida como cláusula do divórcio ou da dissolução da união estável, contudo é preciso explicitar de forma incontestável que em se tratando de temas afeitos à sexualidade os danos de uma exposição como essa dificilmente serão dimensionado com a amplitude das suas consequências e se o forem, correrão o risco de serem questionados sob a alegação de excesso, considerando as pífias indenizações que ordinariamente são deferidas. Tampouco se olvida a possibilidade de que tais informações sejam utilizadas com o fulcro de tentarem romper os laços que unem tais pessoas a seus filhos, em um contexto de alienação parental,2 situação revestida de enorme potencial lesivo tanto para a pessoa como para sua prole. Ainda que se possa ponderar quanto a possibilidade da perda do poder familiar em decorrência de uma conduta dessas, como preconiza o Código Civil no art. 1.638, III, é sabido que tais violências são recorrentes A existência de um relacionamento prévio com a pessoa cuja intimidade está sendo exposta não confere a ela a prerrogativa de atingir direitos essenciais de quem quer que seja, sendo de se ponderar até mesmo uma majoração no montante da indenização em razão do abuso. A alegação de que se trata de um fato do qual a pessoa causadora do dano participou e que estaria apenas relatando sua realidade não lhe confere uma excludente de ilicitude, apenas permite a constatação de que houve um abuso de direito, fator também ensejador de dano e, ato contínuo, responsabilização civil. Tampouco poderá eximir-se de responsabilização sob a alegação do exercício de liberdade de expressão, mormente ao se entender que tal direito não poderá refutar o direito fundamental de proteção à privacidade e à intimidade, constituindo-se a prática da exposição sob esse argumento em um manifesto caso de abuso de direito. Nem mesmo se sustentaria a tentativa de escusa calcada na afirmação de que o que se está a revelar é a verdade, pois um eventual direito de tornar a verdade pública não se sobrepõe à defesa dos direitos essenciais à existência da pessoa. Considerando o caráter vinculado a questões atreladas à sexualidade não se pode olvidar que tais elementos, em decorrência de todo o preconceito que os permeia, devem ser protegidos de forma real, e não meramente material, impondo que o dever de indenizar atinja a plenitude dos danos sofridos pela vítima. Não se pode naturalizar condutas que exponham a privacidade ou intimidade das pessoas, ainda que socialmente tais atos sejam minimizados e colocados no campo das meras "fofocas". A vida íntima há de ser respeitada, não se admitindo a sua exposição indevida, merecendo especial atenção os aspectos dessa natureza que se mostrem vinculados à sexualidade. Expor a intimidade alheia ou é conduta dolosa que tem o animus de causar dano ou é conduta culposa que não dimensiona o tamanho do prejuízo que tal leviandade pode encerrar. Mas o mais basilar é se entender que se trata de uma falta de respeito que não se prosperar, ainda mais partindo de alguém com quem se compartilhou momentos amorosos, afetivos ou sexuais. O desgosto e as feridas decorrentes do fim de um relacionamento ou de um envolvimento fortuito não são autorizadores para a prática de uma ofensa a um preceito tão caro como o direito à privacidade e à intimidade. __________ 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero, dever de informar e responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 1, 22 maio 2019. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 237.
É fato que estamos hoje diante de uma sociedade que, ao menos em teoria, se mostra em alguma medida um pouco menos ignorante com relação à existência das minorias sexuais. Até mesmo a extensão da sigla que usamos para indicar essa população (LGBTIANP+), que muito se utiliza para argumentar que torna impossível que se saiba exatamente quem são essas pessoas, conseguiu atribuir um pouco mais de visibilidade à comunidade com um todo. Constantemente vemos nas redes sociais e veículos de comunicação que há uma maior acolhida à diversidade, ainda que estejamos absurdamente distantes de atingir os parâmetros mais elementares de igualdade e dignidade da pessoa humana preconizados em um Estado Democrático de Direito. Não se pode ignorar que pequenos avanços têm acontecido. A enorme dificuldade para se obter essas pequenas vitórias faz com que toda vez que elas acontecem surja uma grande alegria e comoção, que nos confere um sopro de alento, uma crença de que pode haver um futuro melhor para nós como sociedade. Contudo o que é amplamente ignorado é a fragilidade de tais conquistas. Normalmente acompanhadas de uma atitude presunçosa daqueles que são detentores do poder, os parcos direitos que se atribui às minorias sexuais surgem quase que como uma benesse praticada pelos "seres magnânimos" que regem nossa sociedade. Seria a expressão de sua tolerância, permitindo que o "anormal" possa permanecer na sociedade, mas apenas se reconhecer que é inferior e que "deve" a ele essa oportunidade de seguir entre os demais. Uma demonstração dessa natureza revela-se no simples fato de que tais "ofertas" de direitos apenas se dão de forma transversal, nunca ante a positivação legislativa, o que encerra em si o perigo claro de que as concepções que as sustentaram venham a ser atacadas a qualquer momento e elas se esfacelem. Nossa democracia é tão míope que o Poder Legislativo não pauta questões vitais para minorias sexuais por entender que faltaria sustentação popular para tanto, olvidando-se que certamente as minorias dificilmente terão apoio da coletividade, a qual não costuma se mobilizar com o fim de assegurar direitos a quem não seja ela mesma. Evidentemente que não é o simples fato de o Poder Legislativo cumprir seu mister e elaborar a legislação pertinente que fará com que os graves problemas enfrentados pelas minorias sexuais venham a deixar de existir, contudo é claro que a existência de uma base legislativa é premissa elementar para a garantia de direitos. A possibilidade de alteração de nome e sexo/gênero nos documentos de pessoas transgênero, por exemplo, é direito que foi alcançado mediante decisão dos Tribunais Superiores, culminando com a elaboração do Resolução 73 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualmente incorporada pela resolução 149/23 que criou o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra). Nunca é excessivo se ponderar que os regramentos provenientes do CNJ não se revestem de força cogente para toda a população, sendo diretrizes estabelecidas para aqueles que estão subordinado àquele conselho. Contudo face à ausência de legislação muitas vezes acabam se mostrando como o mais próximo que temos a uma lei sobre dados temas. Da mesma forma que a alteração do nome e sexo/gênero de pessoas transgênero pode-se suscitar que questões como a indicação de "intersexo" no campo destinado ao sexo no RCN - Registro Civil de Nascimento, registro de filho com dois genitores do mesmo sexo/gênero, ou direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero não encontram-se legisladas. Em que pese todas as ponderações que podem ser feitas sobre tais temas é de se consignar que ainda que não estivessem expressamente proibidos na lei acabaram necessitando de uma confirmação do Poder Judiciário para que pudessem ser efetivados na prática, sendo emblemática a decisão na ADI 4.277 em 2011 que, ao fim e ao cabo, simplesmente reconheceu que, em sede de uniões entre pessoas do mesmo sexo/gênero, prevalecem as mesmas regras fixadas para relacionamentos entre pessoas com sexo/gênero distintos, havendo de se aplicar a analogia para suprir a lacuna da lei, questão que jamais chegaria ao STF caso não estivesse atrelada a um elemento vinculado à sexualidade. Ainda que se sustente que conquistas dessa natureza não possam vir a ser suprimidas em decorrência do princípio da vedação do retrocesso é evidente que eventuais ondas que confundem eliminação da diversidade com conservadorismo venham a tentar vedar o acesso a direitos elementares a pessoas "diferentes" apenas por serem elas "os outros" e não estarem inseridas no padrão ao qual a lei "genericamente" costuma referir-se. O grande risco decorrente de se resignar com as conquistas obtidas ante a manifestação do Poder Judiciário vai muito além das absurdas alegações de que estaria havendo um ativismo judicial. Não há que se falar em conduta indevida do Poder Judiciário quando ele cumpre sua incumbência, nos termos exatos previstos na LINDB - Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, conferindo solução ao caso concreto ao ser instado a se manifestar sobre um tema ainda não especificamente legislado. O real perigo é que face a composição dos diversos planos do Poder Judiciário é possível que em razão da mudança de seus integrantes posicionamentos que resguardam direitos humanos, fundamentais e da personalidade das minorias sexuais venham a ser atingidos pela alteração de viés dos julgadores. Todos somos influenciados pelas circunstâncias que nos tangenciam e dificilmente se tem de fato uma análise fundada em imparcialidade real do julgador, sendo utópica a crença da existência de um "juízo neutro" dos magistrados. De se notar que a leniência legislativa1 que grassa em nosso Estado Esquizofrênico2, especialmente demonstrada com relação a questões que referem-se à efetiva garantia dos direitos fundamentais às minorias sexuais é sintoma consolidado em nosso Estado que recorrentemente institucionaliza atitudes discriminatórias. E não legislar especificamente em favor das minorias sexuais é mostrar toda a fragilidade que acompanha os detentores dos privilégios. Nossa democracia, historicamente recente, recorrentemente sob ameaça, sofre influências das mais variadas, muitas vezes contrárias aos seus alicerces estruturantes e que podem fazer com que se entenda que as minorias não mereçam mais proteção, sendo passiveis de extermínio. Os olhares deturpados dos eternos vencedores são capazes de enxergar na imposição de que a igualdade seja conferida e se atribua às minorias iguais direitos aos detidos pelas maiorias um excesso. Sua fragilidade é tamanha que teme pelo fato de que permitir que os "outros" alcancem as mesmas prerrogativas que já são previstas em favor de todos mas que não conseguiam acessar em razão de todo o preconceitos e discriminação que experienciam possa culminar em uma perda de seus próprios direitos. O medo de não mais gozar dos benefícios que a discriminação lhes confere faz com que sejam contra a garantia dos direitos mais elementares aos mais vulnerabilizados. Absurdo, mas real. Há tantas camadas de preconceito sobrepostas que faz com que certos grupos sociais venham a ser desumanizados, retirando-lhes, aos olhos dos detentores do poder, a própria condição de pessoas, fazendo com que se tenha que manifestar de maneira pungente, visando afastar toda essa opacidade imposta, clamando que ainda que minorias são sim pessoas e, portanto, destinatárias de todas as garantias inerentes a tal condição. A inércia em proteger a todas as pessoas, sem discriminações excludentes, é que impõe que se levantem bandeiras constantemente com o fim de que aqueles que não são considerados pelos tidos por normais como pessoas possam vir a "desfrutar" das benesses dos direitos ordinariamente conferidos a todos. É primordial que tenhamos claro que a defesa dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade de todas as pessoas, mas em especial dos grupos vulnerabilizados, depende de uma luta constante. Por não reinarem na condição de "meras pessoas" genéricas, estando sempre acompanhadas de expressões que as qualifica, é importante que o resguardo de seus interesses receba uma atenção diferenciada. Todas as vidas importam, mas quanto as vidas das minorias e grupos vulnerabilizados é sempre relevante se ressaltar que elas também importam, já que nem sempre as pessoas as veem inseridas no conceito universalizante de pessoas. Para além de lutar pela garantia dos direitos em favor das pessoas, é importante que se pontifique que esses direitos devem ser efetivamente franqueados às pessoas que a sociedade vê como sendo "menos pessoas". O reconhecimento como minoritário há de servir para que se ofereça proteção especial, jamais para se fomentar ainda mais a discriminação3. Por tal razão é premente a atenção do Poder Legislativo na garantia dos direitos de pessoas intersexo, mulheres, aquelas que integram a concepção do feminino, transgêneros, homossexuais, bissexuais, assexuais, pansexuais e toda a gama de pessoas divergentes presentes em nossa sociedade. Para elas a existência de direitos para "pessoas" não basta. O que se está a ponderar aqui não é sobre a existência de uma contraposição entre pautas conservadoras ou progressistas, de direita ou de esquerda. Trata-se não de uma questão de governo, mas sim de Estado. E é muito mais amplo do que os meros limites das fronteiras de uma Nação. É tão somente uma questão de humanidade e de preservação de quem somos no universo. Impõe-se a necessidade de que se positive os direitos para aqueles que os tem em teoria mas que, de fato, não os possui. -------------------- 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 3 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
O desejo de perpetuar sua existência leva as pessoas a buscarem as mais diversas formas de fazer com que sua presença permaneça no mundo mesmo após a sua morte, valendo-se de diversos meios para atingir tal objetivo, sendo uma das maneiras mais ordinárias para tanto a constituição de uma prole, tornando possível que traços daquela pessoa (crenças e valores ou mesmo aspectos genéticos) mantenham-se vivos para a posteridade. Tradicionalmente a prole estava atrelada, ao menos para fins legais, à constituição de uma família, lastreado na premissa de que as pessoas apenas poderiam manter relações sexuais entre si após o casamento. Mesmo com a consolidação da laicidade do Estado tais preceitos de raízes eminentemente religiosas seguem presentes em nosso ordenamento jurídico, que continua replicando de forma anacrônica concepções arraigadas em uma realidade social que já de longa data não mais se verifica1. O Código Civil, mesmo que seu texto vigente tenha sido incorporado ao ordenamento jurídico no início dos anos 2000, está repleto de previsões que se mostram dissociadas da realidade atual, bem como desconhece uma ampla quantidade de situações fáticas já existentes à época e que hoje fazem parte do cotidiano da população. Um dos temas ignorados (quase que plenamente) pelo Código Civil e que ainda não foi contemplado por nenhuma legislação específica, em que pese estar vinculado com a perspectiva de planejamento familiar (art. 227, §7º da Constituição Federal e Lei nº 9.263/1996) é o da reprodução humana assistida (RHA), assim entendida toda a gama de métodos que buscam auxiliar a viabilizar uma gestação e, consequentemente, o nascimento de um filho, quando tal intento não se atinge pelas formas chamadas de naturais. Assim, em linhas bastante panorâmicas, a reprodução humana assistida (RHA) se presta a possibilitar que pessoas que não podem ter filhos segundo os parâmetros usuais consigam alcançar esse objetivo, normalmente ante a utilização de técnicas baseadas em ciência que viabilizem a gravidez e o nascimento da criança. A leniência legislativa2 que faz com que temas extremamente importantes restem não positivado, conduzindo a uma série de discussões exatamente face a ausência de diretrizes normatizadoras, também aqui se faz presente. Como a questão tangencia elementos de cunho médico, como já virou um costume, o Poder Legislativo se acomoda e não desempenha seu mister, fazendo com que, muitas vezes, as previsões deontológicas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) acabem sendo assumidas como se tivessem o poder de regulamentar a questão para toda a população3. Além de uma manifesta impropriedade técnica ainda dá força a manifestações e diretrizes concebidas no âmbito do Conselho Federal de Medicina (CFM) que extrapolam suas atribuições, tocando em pontos que estão além das considerações meramente médicas, imiscuindo-se em temas que estão totalmente fora de seu escopo, como, por exemplo, definir quem pode ser o paciente da reprodução humana assistida (RHA)4 ou quem poderá gestar em uma gestação em substituição, para além de parâmetros eminentemente clínicos. Para as hipóteses em que as técnicas de reprodução humana assistida (RHA) venham a ser realizadas por um profissional da área médica há o regramento elaborado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelecendo os parâmetros médicos atinentes ao tema, aos quais os profissionais vinculados a esse conselho de classe estão sujeitos (Resolução CFM nº 2320/22). Feitas essas ponderações introdutórias passo a efetivamente me debruçar sobre o grande tema acerca do qual tecerei considerações relacionadas à sexualidade. O pano de fundo do presente texto é o que se tem nominado como inseminação caseira, uma resposta imediata5 que acaba restando para quem deseja engravidar e não possui condições arcar com os elevados valores cobrados pelos serviços ofertados por clínicas e profissionais especializados em reprodução humana assistida (RHA). Assim ao lado da reprodução humana assistida (RHA) realizada com base em elementos afeitos à técnicas desenvolvidas por profissionais da área médica há também uma outra vertente, que denomino, genericamente, de técnicas de reprodução humana assistida caseira, que comporta as hipóteses de tentativa de gravidez acompanhadas de um elemento negocial específico direcionado a esse fim. Fugindo do modelo tradicional se está diante de uma avença por meio da qual as partes comprometem-se a atividades que levam a uma gravidez. De forma bastante resumida a reprodução humana assistida caseira baseia-se em um negócio jurídico por meio do qual um indivíduo se compromete a entregar seu esperma para que a mulher venha a engravidar6. Nesse universo que surge a discussão das chamadas formas de inseminação caseira. Nela há o estabelecimento de um acordo de que alguém fornecerá a quem deseja engravidar, as chamadas "tentadoras", o seu esperma para que ela o inocule em seu corpo (com uma seringa) e tente ficar grávida. A ideia de uma gravidez decorrente de se introduzir, de forma "não natural" o esperma na vagina de uma mulher, sem o emprego de técnica médicas, não é uma realidade nova. Basta lembrar o caso que ganhou espaço na mídia brasileira no início dos anos 2000 quando a cantora mexicana Glória Trevi, presa nas dependências da Polícia Federal, sem direito a visitas íntimas, engravidou e se afirmou, à época, que ela teria sido "fecundada com a ajuda de uma caneta Bic"7. Contudo não se pode ignorar que por vezes a reprodução humana assistida caseira se dá de uma maneira ainda mais prosaica. Em busca de uma maior probabilidade de êxito a negociação entabulada prevê simplesmente que as partes manterão uma relação sexual com o mero fim de que a "tentante" venha a engravidar, afastando do contexto qualquer elemento de cunho afetivo ou amoroso que possa envolver uma relação sexual. O ato é praticado com o simples fulcro de engravidar, numa versão atual do que antigamente se costumava chamar de "produção independente". Apenas para manter o tom provocador que marca essa coluna proponho que quem me lê pense: em nossa sociedade, considerando toda a estrutura moral que a rege, como seria vista a hipótese em que a mulher não possa ter filhos e permita que seu cônjuge mantenha relações sexuais com outra para que ela engravide e depois lhe entregue o filho. Tal solução seria bem recebida pela sociedade? Seria uma forma "natural" de gestação em substituição? A inexistência de legislação sobre esses temas cria mitos que são replicados pelas pessoas leigas, pela mídia, e até mesmo por iniciados no mundo jurídico. Mesmo não havendo qualquer previsão expressa na lei quanto ao tema, muitos asseveram que, ante a vedação de cobrança para doações prevista pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) haveria a proibição da pagamento pela oferta de esperma. Contudo se não há a participação de profissional da área médica não há a incidência do regramento do Conselho Federal de Medicina (CFM). Mas é importante se questionar: há de fato uma doação? Qual seria o objeto da doação? O que é doado é efetivamente um bem? Isso que teria sido doado poderia ser objeto de doação? A questão encontra restrição na lei de doação de órgãos e tecidos (Lei 9.434/97)? As restrições constantes na Lei de Biossegurança se aplicam nesses casos? Pode haver uma interpretação ampliativa para restringir direitos? Aquele que oferta seu esperma tem deveres e direitos com relação à criança? O caráter altruístico da conduta tem impacto na apreciação da negociação entabulada? Todos esses temas serão tratados de forma aprofundada em trabalhos futuros, cabendo-me, nesse momento, direcionar a análise para os fins aos quais me propus. O objetivo nesse texto não é discutir os riscos para a saúde em razão de tal tipo de prática (transmissão de doenças ou o risco de uma grande quantidade de crianças filhas do mesmo doador, gerando o perigo de um "incesto acidental", por exemplo), tampouco a possibilidade de que se venha a deparar com pessoas inescrupulosas que queiram se aproveitar da vulnerabilidade apresentada por quem quer engravidar (exigindo benefícios indevidos ou forçando a manutenção de relações sexuais). O que se coloca é: se tais situações de reprodução humana assistida caseira existem, como pode se constatar dos inúmeros grupos em redes sociais nos quais é possível encontrar a oferta de esperma para esse fim8, bem como em decisões judiciais, como fica a definição de quem serão os genitores dessa criança? A resposta desse questionamento passa, na prática, por uma análise que incide sobre elementos atrelados à sexualidade, já que as consequências serão distintas dependendo das características expressadas pelas pessoas envolvidas. Se a "tentante" que realizou a reprodução humana assistida caseira não estiver em um relacionamento com quem quer que seja e seu intento seja figurar sozinha como genitora daquela criança a existência prévia de uma inseminação caseira sequer será suscitada. Ao nascer ela poderá, dotada simplesmente da Declaração de Nascido Vivo (DNV), registrar a criança como sua filha sem questionamentos quanto a forma como se deu sua gravidez. No caso da "tentante" ter um relacionamento consolidado, como um casamento, também poderá dirigir-se sozinha ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e realizar o registro de nascimento daquela criança indicando como genitores, no campo destinado à filiação, ela e seu cônjuge, face à presunção de paternidade existente no Código Civil (art. 1.597). Ainda que eu questione profundamente os parâmetros que norteiam tal presunção não se pode olvidar que ela existe e goza de aplicabilidade prática. Se, porém, a tentante viver em união estável não haverá a possibilidade de que venha a valer-se da presunção pois o Código Civil não abarca expressamente tal alternativa, podendo até mesmo se questionar judicialmente se esse dispositivo não há de ser garantido a quem vive em união estável, mormente ante a compreensão de que também caracteriza uma entidade familiar igual ao casamento, independentemente de ter sido estabelecida entre pessoas do mesmo sexo/gênero ou de sexo/gênero distintos, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 42779. Ainda assim é patente que tal sorte de restrição atingirá de maneira mais forte aqueles que estiverem em uma união estável com alguém do mesmo sexo/gênero, haja vista toda a discriminação que ainda incide sobre as minorias sexuais. Basta se considerar que para aqueles que estiverem em uma relação com alguém de sexo/gênero10 distinto será franqueada de forma inquestionável a possibilidade de que o companheiro da tentante compareça ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e reconheça a paternidade, o que poderá fazer sem que haja perguntas ou oposições, exatamente por ser uma declaração que se coaduna com os padrões postos de um relacionamento que se insere na cis-heteronormatividade vigente. Contudo se a tentante estiver em um relacionamento com outra pessoa do gênero feminino certamente enfrentará objeções para que a criança seja registrada também em nome de sua companheira. Nem mesmo tenho a convicção de afirmar que se fosse casada com alguém do mesmo sexo/gênero conseguiria tranquilamente valer-se da presunção de que o cônjuge de quem deu à luz à criança seria o outro genitor, seja pela estrutura que norteou o Código Civil, ou pela oposição de restrições de cunho moral ou até mesmo pela influência do Provimento 149/23 do Conselho Nacional de Justiça (art. 512 e ss.), que incorporou o conteúdo do Provimento 63/17. O que se pode concluir é que, mais uma vez, o fato de estar inserido em uma relação que foge do padrão normativo que segue sustentando o nosso ordenamento jurídico fará com que a pessoa se veja impedida de estabelecer uma relação paterno-filial em caso de reprodução humana assistida caseira, fator que não incide quando tal prática se estabelece por uma tentante que se relaciona com alguém do gênero masculino. Independentemente de todo o espectro que se possa suscitar para a compreensão da presente questão é primordial que se analise se tal vedação, que claramente ofende os parâmetros elementares da igualdade, estaria atendendo à premissa de que há de se assegurar, com absoluta prioridade, os direitos de crianças e adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Ao filho de um relacionamento furtivo se garante a possibilidade de que tenha ,em sua Certidão de Nascimento, o nome de quem manteve uma relação sexual com sua mãe Da mesma maneira que se garante que haja o reconhecimento, na prática, de um filho que não é seu (por equívoco ou mesmo intencionalmente). Afastar o estabelecimento de vinculação paterno-filial a quem ofertou o material para a inseminação caseira até pode gerar questionamentos com relação aos eventuais direitos dessa criança. Contudo não é esse o caso aqui, já que o objetivo é conferir a essa criança um "genitor". Obstaculizar que quem é fruto de uma reprodução humana assistida caseira seja registrado atende aos interesses de quem? Só o fazer quando se depara com uma relação entre pessoas que não se inserem no modelo clássico do envolvimento heterossexual entre um homem e uma mulher não configura discriminação? A mim parece que estamos diante da presença de mais uma, entre as inúmeras, situações de discriminação institucionalizada pelo Estado, que pode ensejar em uma conduta criminosa, por exemplo, do Oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN), inserida no contexto da criminalização da homofobia, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADO 26. A reprodução humana assistida (RHA) como um todo é tema que necessita de um regramento, não sendo admissível que o Poder Legislativo sig omitindo-se, haja vista a relevância social que recai sobre o tema. Mas como tudo o que tangencia elementos da sexualidade gera um verdadeiro pavor em certos setores da sociedade, seguimos relegados a laborar com princípios para solucionar questões que impõem um regramento tecnicamente sólido. Mas segue sendo mais cômodo para o Estado quedar-se inerte. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I - IV, 2021. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. In: Nelson Rosenvald; Joyceane Bezerra de Menezes; Luciana Dadalto. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. 2ed.: Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 307-321. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. MACEDO, Andreia Assis. Reprodução humana assistida post mortem e direitos sucessórios. Revista Conversas Civilísticas. Salvador, v.2, n.2, 2022, p. 4. 5 ARAÚJO, Ana Thereza Meireles. Projetos parentais por meio de inseminações caseiras: uma análise bioético-jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 24, p. 101-119, abr./jun. 2020, p. 102. 6 Não ignoro o fato de que quem possui útero pode engravidar, o que permite que, eventualmente, um homem transgênero possa vir ter uma gestação. Apenas para tornar a compreensão do tema menos complexa, seguirei me valendo da hipótese ordinária de sexo/gênero que pode engravidar. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da.  A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011 10 Apesar de entender que não deve haver a mistura das figuras de sexo e gênero, como descrito em colunas anteriores, tratarei as duas em conjunto para conferir uma compreensão ampla das hipóteses.