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Guarda (CC) x guarda (ECA): Uma distinção necessária entre os institutos

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Atualizado em 6 de agosto de 2025 09:41

Em meados do ano de 2025 as redes sociais e os veículos de comunicação, especialmente aqueles com vocação para discorrer sobre a vida das celebridades e "famosos", nos inundaram com uma discussão sobre um tema que a grande maioria da população brasileira acredita dominar: a "guarda".

Os holofotes foram direcionados a esse instituto em decorrência de uma disputa sobre a "guarda" do filho de Marília Mendonça, famosa cantora de música sertaneja, falecida em novembro de 2021, em um acidente aéreo.

O evento trágico que vitimou a artista gerou inúmeras considerações com conexões jurídicas: Quais os motivos que culminaram no acidente? Quem foram os responsáveis? Qual o destino das redes sociais da renomada artista? O que ocorreria com o seu "legado" musical?

Mas o que nos move no presente texto é algo que se vincula com uma consequência atrelada ao Direito de Família, e que foi, à época, resolvido de forma bastante tranquila, segundo o que se noticiou. Quem cuidaria do "filho da Marília Mendonça"?

Ainda que mencionado de forma recorrente como "filho de Marília Mendonça", a criança tem um pai, o cantor Murilo Huff, que a reconheceu e registrou, nos termos da lei. Evidentemente que a popularidade da mãe e o evento de seu falecimento tem grande influência nessa forma de se indicar aquela criança, mas também é fruto de uma perspectiva de gênero. A premissa social de que os filhos pertencem às mães segue tendo o seu peso...

Segundo o que foi divulgado, a criança permaneceria morando com a avó, mantendo-se na mesma casa em que já morava, em decisão conjunta de seus familiares.

Passados alguns anos, agora em 2025, surgem notícias de que o pai teria "tomado a criança da avó", passando a exercer a guarda unilateral, afastando a "guarda compartilhada" até então existente1.

Toda essa celeuma que acabou sendo noticiada revela a existência de uma manifesta confusão entre institutos jurídicos distintos, gerando uma compreensão equivocada sobre o embate estabelecido. O questionamento que se coloca é se é prevista, em nosso ordenamento, a hipótese de uma "guarda compartilhada" entre um dos pais e um dos avós.

Tal situação revela o quão relevante é uma análise mais acurada acerca da concepção jurídica do termo "guarda", expressão polisssêmica, com significados de valias distintas e que, para o objetivo desse texto, será apreciada segundo a sua acepção inserida no corpo do CC e também no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Em que pese terem, em ambos os diplomas, o escopo do exercício dos deveres de cuidado sobre uma criança ou adolescente, apresentam concepções bastante diferentes.

O sentido mais difundido e conhecido da expressão está associado ao contexto descrito no CC, vinculado ao direito/dever dos pais de ter seus filhos consigo, como uma expressão do poder familiar (art. 1.630 e ss.). Essa perspectiva apenas passa a ser considerada quando os pais não estão vinculados por um casamento ou união estável, ou, como usa o próprio texto legal, nos casos em que o "pai e a mãe não vivam sob o mesmo teto" (art. 1.583, § 1º).

Sendo uma das consequências ordinárias do término do casamento ou união estável a cessação da convivência more uxorio, é de praxe que um dos pais passe a ter o filho consigo, enquanto o outro exerce aquilo que tradicionalmente se nomeia de "direito de visitas". Evidente que em uma grande quantidade de situações jamais houve a convivência sob o mesmo teto dos pais, hipótese na qual nunca houve o compartilhamento fático da coabitação entre os pais e seus descendentes, sendo esse viés de guarda presente desde sempre na vida daqueles pais.

Seja como for, não havendo essa condição de habitação dos pais com seus filhos é de se estabelecer qual deles terá a companhia de sua prole, no que se convencionou intitular, como já mencionado, de guarda. Essa guarda, que por motivos a serem mencionados de forma mais qualificada a seguir, é tradicionalmente deferida à mulher/mãe, muito em decorrência da visão de que compete à mulher e ao feminino os deveres de cuidado, já que haveria até mesmo uma aptidão natural dela para "maternar".

A figura da guarda é trazida no art. 1.583 e seguintes do CC, que pode ser exercida de forma unilateral ou compartilhada, havendo de ser estabelecida quando os pais "não vivam sob o mesmo teto" (art. 1.583, § 1º). A análise dessa modalidade de guarda é complexa o bastante para ensejar estudos amplos, contudo não é esse o escopo da presente coluna, de sorte que nos restringiremos apenas a uma apreciação superficial do instituto.

Assim, a guarda descrita no CC é um atributo que compete exclusivamente aos pais, como um desdobramento do poder familiar.

Já a guarda prevista no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, a partir do art. 33, faz parte da seção direcionada à família substituta, e "destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros" (§ 1º), mas que pode também, excepcionalmente, ser deferida em outras hipóteses "para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados" (§ 2º).

Exatamente nesse contexto específico é que se vislumbra a utilização da guarda quando os pais, efetivos detentores do poder familiar e, portanto, responsáveis por tudo o que envolva seus filhos enquanto não atingirem a maioridade civil, encontram-se numa situação em que não podem efetivamente exercer, em toda a sua plenitude, os deveres que lhes compete.

Como meio de regularização de uma situação de fato, é recorrente a utilização do referido instituto com o fim de conferir a certos parentes, como avós, a possibilidade de exercício dos cuidados sobre crianças e adolescentes que não estão inseridas nos limites do seu poder familiar.

De se notar que a guarda, nos termos pensados pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, é, portanto, uma forma de concessão de direitos de cuidados que não tem, de inicio, o condão de afastar o poder familiar dos pais, salvo nas hipóteses em que se vislumbra a existência de algum motivo severo para que isso ocorra.

Todavia, quando há uma concordância dos pais para a conferência da guarda em favor de alguém, em situação convencionada, estamos essencialmente diante de uma outorga conferida por eles para que outra pessoa possa exercer certas atribuições que seriam exclusivas deles.

Ainda que a guarda esteja inserida no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente entre as figuras atreladas à família substituta, é de se entender que possa ser aplicada em sede de família extensa ou ampliada (art. 25, parágrafo único), oriunda de uma concessão dos pais, de um deles (na falta do outro) ou de uma imposição decorrente de uma determinação judicial.

Assim, quando os pais (ou um deles) conferem a um dos avós a prerrogativa de atuar em favor dos netos, na esfera que ordinariamente compete a quem é o detentor do poder familiar, estamos diante da figura da guarda descrita no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Para além da confusão decorrente da utilização de uma mesma expressão para designar institutos distintos, a própria legislação acaba contribuindo para que essa celeuma se estabeleça, conforme se depreende do disposto do § 5º do art. 1.584 do CC que assevera que "se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade", redação essa dada pela lei 13.058, de 2014.

No referido texto, ao se fazer uma análise técnica, é de se verificar que o termo guarda é usado por duas vezes, sendo que na primeira está em sua acepção de "atribuição que compete aos pais" como desdobramento do poder familiar, enquanto a segunda se insere na perspectiva concebida pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

O fato é que a regra é que todo o direito/dever decorrente do poder familiar compete aos pais, os quais apenas podem ser privados de seus efeitos caso venha a ocorrer uma das hipóteses previstas expressamente na lei para a suspensão ou extinção do poder familiar (art. 1.635 a 1.638 do CC). E, a autorização para que um dos avós venha a exercer a "posse de fato" daquela criança ou adolescente, não tem o condão, por si só, de por termo ao poder familiar.

Com isso, quem tem o direito/dever originário de estar com os filhos são seus pais e, excepcionalmente apenas, outras pessoas, de sorte que, havendo qualquer conflito entre pai e guardião, salvo a existência de motivos graves devidamente comprovados, há de prevalecer os efeitos que emanam do poder familiar, com a manutenção da criança ou adolescente com os pais, como reflexo da premissa de prevalência da família natural sobre a substituta, conforme descrito no próprio ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Assim, se estivermos diante de uma criança cuja mãe tenha falecido, mas que tenha pai, a prerrogativa de estar com essa criança é desse pai, o que se estabelece em sede de dever antes de mais nada. Caso tenha havido a concessão de um direito em favor de outra pessoa, esse é subsidiário e não se sobrepõe àquele que decorre do poder familiar, imperando apenas quando se demonstrar a existência de reais motivos para que tal direito não seja exercido por esse pai.

Quando se tem apenas um dos pais vivos, não há que se estabelecer qualquer discussão sobre a guarda, já que conforme previsto no art. 1.631 do CC, "durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade".

Menos razão ainda há para qualquer questionamento com base na guarda prevista no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Salvo se esse pai queira conferir a outrem poderes que ordinariamente competem a si.

Se houver alguma disputa entre um pai e uma avó com relação a quem pode ter uma criança consigo, é de se entender que a contraposição é entre o poder familiar do pai e a autorização dada por ele para a avó, outorga essa que pode ser retirada por ele a qualquer tempo.

Importante ainda se colocar que, diversamente do que chegou a ser mencionado por alguns nas redes sociais quanto ao caso de Marília Mendonça, não haveria o que a falecida mãe pudesse ter feito em vida para impor que seu filho ficasse sob a guarda de alguém que não o outro genitor. A previsão legal existente, passível de ser descrita em sede de testamento ou documento autêntico, seria de que se indicasse quem seria a pessoa a quem haveria de competir a tutela daquela criança, contudo essa hipótese apenas se efetiva quando ambos os genitores tiverem falecido ou não puder exercer seu poder familiar, nos termos do art. 1.634, VI.

Para arrematar a análise do presente tema, é premente que se ressalte a evidente perspectiva de gênero que impera nessa discussão como um todo. Há uma construção social de que caberia necessariamente ao feminino o dever de cuidado dos filhos, fator que é indiscutivelmente potencializado pela recorrente conduta masculina de omitir-se com relação ao cumprimento dos seus deveres face a sua prole.

Mesmo com a previsão legal da guarda compartilhada e a ideia de que ela deva ser o parâmetro ordinário, segue cabendo às mulheres, na maioria dos casos, a responsabilidade fática sobre os filhos2.

O importante é que se tenha claro que os deveres são efetivamente dos genitores, seja para o bem ou para o mal. Compete ao pai e à mãe o dever de cuidar dos filhos, tê-los em sua companhia, conferir-lhes o sustento e direcionar sua educação (art. 1.583 do CC), sendo a oferta dessas incumbências a quaisquer outras pessoas absolutamente excepcional, sem o poder de afastar, de per si, a incidência dos deveres e responsabilidade oriundos do poder familiar.

A situação mencionada no início da presente coluna é extraordinária para os padrões sociais postos, uma vez que estamos diante, segundo o que se veicula, de um pai presente e que se manifesta no sentido de efetivamente exercer seus deveres. O que era para ser a praxe mostra-se tão excepcional em nossa realidade que, quando ocorre, salta aos olhos, espanta e se converte em algo digno de nota.

Contudo, ainda que uma figura pouco usual, é relevante que se aproveite essa oportunidade para se clarear a questão, e asseverar que o poder familiar impõe a ambos os pais o dever de atuar visando cumprir a premissa de garantir os meios indispensáveis para que seus filhos possam se desenvolver e chegar à idade adulta com condições de regerem suas vidas por si só, de forma digna.

E para que se possa realizar uma análise abalizada sobre os aspectos jurídicos que envolvem a questão de quem deve ficar com a guarda do filho da Marília Mendonça é preponderante se entender que a guarda do CC é distinta daquela prevista no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa compreensão permite entender melhor os parâmetros que envolvem a "fofoca" jurídica que permeou a mídia recentemente.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.