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A fragilidade das maiorias e o pânico LGBTQIANP+

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Atualizado em 9 de julho de 2025 08:50

Que tudo aquilo que não se insere perfeitamente na concepção da normalidade posta ou do padrão esperado1 causa alguma forma de espanto naqueles que repousam tranquilamente no universo das maiorias é um fato consolidado em nossa sociedade.

Quando tratamos dessa questão sob os parâmetros da sexualidade2, a figura adquire contornos ainda mais explícitos, com o surgimento de um pavor, com caracteres até mesmo associados a elementos mágicos. São vestes, cores, palavras ou números que teriam o poder sobrenatural de fazer com que a "anormalidade" pudesse se instalar e "transformar" alguém em integrante de uma das letras que compõem a sigla LGBTQIANP+3.

A sensação consolidada no inconsciente das maiorias de que ela é tão universal que independe de qualquer qualificação para indicá-la, necessidade que se impõe para descrever ou mencionar qualquer situação que não seja afeita a ela, já que é considerada como o padrão, "faz com que essas pessoas se sintam detentoras de todo um poder que lhes conferiria até mesmo a prerrogativa de "permitir" que as minorias existam"4.

Como possuidoras de um poder magnânimo, lhes seria atribuída a prerrogativa de permitir que os demais venham a compartilhar o mesmo espaço social, mas com a condição de essas pessoas se enquadrem nos seus parâmetros. Podem existir desde que ocultem suas características e expressem os "valores" da maioria, privando-as de ser quem elas são5.

Se quiser viver nessa sociedade, está autorizada, mas há de reprimir a demonstração pública de que é divergente, para não afrontar a maioria...

Nesse contexto é possível se vislumbrar que toda vez que as minorias conseguem acessar direitos básicos, garantidos a todas as pessoas6, surge entre uma parcela dos integrantes das maiorias uma sensação de que sua hegemonia estaria em risco, como se a oferta de direito a todos pudesse privar-lhes de alguns de seus direitos próprios7. Manifesto equívoco, que apenas se sustenta ao se ter em mente que o que alguns entendem por direitos próprios são, em verdade, privilégios indevidos e alcançados às custas da privação dos grupos vulnerabilizados.

A condição de "normais" ou "universais" assumida pelas maiorias as conduz a uma deturpada percepção de que tudo o que a elas se confere já é acessível a todos8, em uma clara distorção de que os míseros direitos ofertados às minorias seriam excessos, "havendo até mesmo a criação de uma narrativa de que esse acesso aos direitos garantidos de forma geral a todos, quando resguardados às minorias, estaria configurando um preconceito contra homens, heterossexuais e cisgêneros, figura similar à do racismo reverso, como se fosse possível que as minorias tivessem condições de impor algum tipo de opressão contra essas maiorias"9.

As poucas conquistas das minorias sexuais saltam aos olhos das maiorias, apesar de mostrarem-se extremamente frágeis10, especialmente ao se considerar que são oriundas de decisões judiciais e não de uma sólida legislação de caráter protetivo, em expressa demonstração da manifesta leniência legislativa11 que marca o nosso Estado esquizofrênico12.

Essa sensação experienciada pelas maiorias é tida como uma fragilidade calcada no medo de perda de seu status, tratada por Robin DiAngelo sob a alcunha de white fragility13 quando relacionada à raça pautada na cor de pele e no fenótipo14. No âmbito da sexualidade15 surge um pavor toda ver que "mulheres e intersexos (quanto ao sexo); femininos, não-binários e agêneros (quanto ao gênero); homossexuais, bissexuais, assexuais e pansexuais (quanto à orientação sexual); e transgêneros, em toda sua amplitude, que engloba, entre outros, transexuais e travestis (quanto à identidade de gênero)"16 conquistam qualquer direito.

Essa fragilidade masculina ou cisgênero17, assenta-se na "tendência a adotar posturas defensivas e de negação direta, minimizando preocupações caras às comunidades transgênero, enfatizando, ao mesmo tempo, suas boas intenções"18, revelando consequências que extrapolam o mero receio, com elementos de repulsa19. É um medo que acaba sendo incutido na cabeça das pessoas cisgênero de que sua posição hegemônica estaria em risco, em contexto realmente bastante similar à fragilidade branca20, haja vista sua conduta defensiva, repleta de raiva e medo, similar a que se vislumbra ante as conquistas da população negra21.

A fragilidade cisgênero expressa-se em condutas e opiniões refratárias às pautas que visam a proteção dos direitos fundamentais das pessoas transgênero, bem como na repulsa à presença de tais pessoas nos espaços tradicionalmente destinados aos "normais", reflexo de sua compreensão de mundo distorcida de que "a essas pessoas apenas seria conferida a presença em espaços ocultos ou de perversão"22.

Uma das consequências ordinárias desse sentimento experimentado pelas maiorias gera uma reação, que culmina na construção de um cenário que visa "criar pânico, normalmente fundado em alegações de que o 'crescimento' de direitos"23 às minorias sexuais encerraria no risco de uma destruição da estrutura tradicional de família ou num desvirtuamento das crianças, gerando um pânico moral como uma estratégia de controle24.

Incutir medo nas pessoas como forma de controle social é prática recorrente e pode ser constatada em discussões variadas que envolvem os interesses das minorias. Tome como exemplo toda a celeuma que se estabelece quanto a questão do banheiro adequado a ser usado pelas pessoas transgênero25, discussão que até mesmo engloba uma série de consequências de cunho econômico26.

Nessa seara há também a ideia de que haveria um acréscimo de violência sexual em razão da utilização de banheiros segundo a identidade de gênero, fato que não tem qualquer respaldo fático27, além de corroborar, quando se sustenta que predadores sexuais se transvestiriam para entrar nos banheiros, que efetivamente não se trata de uma questão afeita à identidade de gênero28.

O pavor criado é tamanho que tem culminado em agressões a mulheres cisgênero por serem "confundidas" com pessoas transgênero, em restaurantes29 e academias30.

Essa situação escala de tal forma que até mesmo se vislumbra a utilização da alegação desse medo de pessoas LGBTQIANP+, ou aquelas que a elas se assemelham, como excludente de ilicitude quando da prática de condutas típicas contra essas pessoas, em uma "manifesta tentativa de transferir a responsabilidade pelos atos ilícitos praticados, justificando a conduta em uma forma enviesada de legítima defesa"31.

A situação se faz tão preocupante que o chamado "gay panic", prática baseada em "exagerar coisas, considerar incidentes isolados como se indicassem problemas generalizados ou até mesmo inventar coisas"32 acaba sendo utilizada como defesa quando um heterossexual comete um crime violento contra uma pessoa que não seja heterossexual como ele (ou não aparente ser), sob a alegação de que apenas reagiu de forma descontrolada ou exacerbada ante ao que lhe pareceu uma tentativa de investida amorosa/afetiva/sexual33.

Em certa medida é de se considerar que tal sorte de argumento importa em afirmar que vidas LGBTQIANP+ seriam menos importantes que as demais34, sendo plausível até mesmo que elas sejam ceifadas quando alguém alega se sentir ofendido por uma eventual demonstração de interesse.

Essa defesa processual, a "LGBTQ+ panic defense", tentando fazer com que um júri considere a orientação sexual ou identidade de gênero da vítima como sendo a razão motivadora de uma reação violenta do réu, até em sede de homicídio, é expressamente proibida em alguns estados nos Estados Unidos da América35, revelando que vinha sendo uma prática recorrente.

No contexto da sexualidade como um todo, essa forma de pensar em muito se aproxima com a legítima defesa da honra, bastante suscitada no Brasil em casos de violência doméstica e feminicídio, e que já se mostra devidamente rechaçada, tendo sido declarada inconstitucional pelo STF na ADPF 779, por se mostrar atentatória à dignidade humana, à proteção da vida e à igualdade de gênero.

Essa perspectiva de que certas "condutas seriam permitidas contra minorias, bem como que atitudes praticadas por integrantes desses grupos sociais minoritários conferiria uma permissão para a prática de agressões, reforçando a vulnerabilidade que os acompanha"36 não pode prosperar.

É premente que nossa sociedade seja apresentada de forma real e efetiva a toda a plenitude da sexualidade e seus pilares37, apoderando-se dos conceitos e concepções que envolvem o sexo, o gênero, a orientação sexual e a identidade de gênero, o que permitirá que toda a ignorância, preconceito, estigma e discriminação que atingem a existência das minorias sexuais possa ser refutada38 e que tenhamos uma sociedade que efetivamente se mostre pautada pelos parâmetros elementares de um Estado Democrático de Direito.


1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 40.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308

3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sexualidade e o medo da magia. Revista Direito e Sexualidade, v.2, p. I - IV, 2021.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 55.

5 Robert Jaulin, La paz blanca. Editorial Tiempo Contemporaneo: Buenos Aires, 1973, p. 13.

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 312.

7 Leandro Reinaldo da Cunha. Não é tolerância. É respeito. Coluna Direito e Sexualidade - Portal Migalhas. Disponível aqui.

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 55.

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 56.

10 Disponível aqui. 

11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48.

12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

13 Robin DiAngelo. Não basta não ser racista: Sejamos antirracistas. São Paulo: Faro Editorial, 2020.

14 Disponnível aqui. 

15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308.

16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O discurso humorístico do comediante sobre minorias: crime ou exercício da profissão do humorista? Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 6, n. 1, p. 326-369, 2025, p. 329.

17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 6.

18 Carl G. Streed Jr; Jacob E. Perlson; Matthew P. Abrams;Elle Lett. On, With, By-Advancing Transgender Health Research and Clinical Practice. Health Equity, 7:1, p. 161.

19 Clifton Edward Watkins Jr; Christopher Blazina. On Fear and Loathing in the Fragile Masculine Self. International Journal of Men's Health, 9(3), 211-220, 2010, p. 213..

20 Zachariah Graydon Oaster, "Cisgender Fragility" (2019). Master's Theses, 2019, p. 9.

21 Cida Bento. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 112.

22 Leandro Reinaldo da Cunha. Não é tolerância. É respeito. Disponível aqui. Acesso em 15/1/24.

23 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 56

24 Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior. A travesti, o vaticano e a sala de aula. SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos - UFAM, ano 19, nº 1, Ago./Dez. 2019, p. 118-121.

25 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 148.

26 CUNHA, Leandro Reinaldo da. RIOS, Vinícius Custódio. Mercado transgênero e a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva do capitalismo humanista, Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, v. 105, n. 972, p. 165-184, out. 2016.

27 Bruna G. Benevides. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022 / Bruna G. Benevides (Org). - Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2023., p. 72.

28 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 259.

29 Disponível aqui.

30 Disponível aqui. 

31 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 259.

32 Disponível aqui. Acesso em 10/1/24.

33 Nicholas D. Michalski; Narina Nunez. When Is "Gay Panic" Accepted? Exploring Juror Characteristics and Case Type as Predictors of a Successful Gay Panic Defense. Journal of Interpersonal Violence, 37(1-2), 782-803, p. 782.

34 Disponível aqui. Acesso em 28/3/23.

35 Kijana Plenderleith. "Panic! At the Courthouse: A New Proposal for Amending Enacted Legislation Banning the LGBTQ+ Panic Defense." Vermont Law Review, vol. 46, no. 4, Summer 2022, p. 690.

36 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 246.

37 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 1.

38 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, 2024.