Adultização, sexualidade e a responsabilidade dos pais pelos danos causados aos filhos
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado em 20 de agosto de 2025 08:36
Há pouco mais de um ano, no final do mês de maio de 2024, teci algumas considerações sobre a questão da sexualidade vinculada a crianças e adolescentes, nessa mesma coluna, em texto intitulado "Sexualidade de crianças e adolescentes: Uma realidade analisada sob lentes distorcidas"1. Na oportunidade, questionava: a. Qual a idade em que a criança/adolescente pode começar a ter um relacionamento amoroso?; b. Com qual idade uma criança/adolescente pode começar a ter preocupações estéticas?, e; c. Qual a idade em que a criança/adolescente pode realizar intervenções cirúrgicas vinculadas à sua sexualidade?
Anteriormente, em texto publicado em 2021, cujo título foi "O fenômeno do sharenting e o compartilhamento na Internet pelos pais de fotos de crianças com censura dos genitais: proteção ou sexualização?"2, discorri sobre a publicação de imagens dos filhos pelos pais com a utilização de elementos gráficos se sobrepondo a certas regiões do corpo de crianças.
A menção dos trabalhos acima serve apenas de norte para indicar a trajetória da pesquisa já publicada que tangencia um assunto que ganhou uma enorme atenção da sociedade brasileira, transpassando o mundo virtual e atingindo um status de "o maior problema social brasileiro" da semana: a adultização de crianças na internet.
Obviamente que ao me referir à questão dessa maneira não se tem o intuito de minorar sua importância, mas apenas expressar que é premente que se tenha por evidente que tal situação já vem sendo objeto atenção há tempos. Contudo o aspecto distintivo do momento atual está na amplitude e disseminação das manifestações.
E isso se deve, inegavelmente, à força das redes sociais pois, em caso, o seu fato gerador está na publicação de um vídeo de um influenciador digital, conhecido como Felca, que conferiu enorme visibilidade a um caso de exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais.
No vídeo denominado de "adultização", o influenciador traz casos de exploração e sexualização de menores através de material publicado em plataformas digitais. O cerne da celeuma está, portanto, na sexualização de crianças e adolescentes.
Entre os inúmeros desdobramentos decorrentes do que foi relatado no vídeo mencionado está, por exemplo, a aprovação na Câmara dos Deputados de requerimento de urgência para o PL 2628/22, que "cria regras para a proteção de crianças e adolescentes durante o uso de aplicativos, jogos, redes sociais e outros programas de computador", bem como "estipula obrigações para os fornecedores e garante controle de acesso por parte dos pais e responsáveis"3.
O objetivo da presente coluna, no entanto, não está na análise das responsabilidades das plataformas, que haveriam de ter uma atuação efetiva com o objetivo de resguardar as crianças e adolescentes, fazendo cumprir, ao menos, as regras por elas mesmo criadas de que apenas podem ser titulares de perfis maiores de 13 anos. O escopo aqui é discutir a conduta dos pais e as consequências de suas atitudes para seus filhos.
A premissa, ressalte-se, não é a de quem tem mais culpa ou quem está descumprindo de forma mais nefasta o disposto no art. 227 da Constituição Federal que estabelece, à família, à sociedade e ao Estado, o dever de assegurar a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes com absoluta prioridade. Apenas faço um recorte a fim de melhor direcionar as considerações que serão elaboradas.
Partindo dessa perspectiva, a base do que será considerado aqui está no poder familiar previsto no CC de 2002 a partir do art. 1.630 e que, em linhas bastante panorâmicas, impõe deveres e confere direitos aos genitores em relação a seus filhos4, determinando que lhes compete, entre outras cominações, a obrigação de criar e garantir o bom desenvolvimento daquela criança ou adolescente enquanto ele não atingir a maioridade civil.
Assim, é de se afirmar que cabe aos detentores do poder familiar o dever de garantir a integridade física e psicológica de seus filhos, o que, claramente, encontra-se em risco nos inúmeros casos em que se vislumbra a sexualização de crianças e adolescentes nas redes sociais, seja com seu consentimento ou conivência.
É inquestionável que fatos dessa natureza deveriam estar sob atenta vigilância Poder Público, que tem a incumbência de resguardar esse grupo vulnerabilizado e, uma vez constatadas e comprovadas condutas atentatórias aos parâmetros postos, haveria de agir, impondo até mesmo a perda do poder familiar a quem atuou dessa forma.
O fato é que essa exposição indevida de crianças e adolescentes nas redes sociais tem, por si só, um potencial lesivo já amplamente reconhecido, o qual se mostra exponencialmente elevado quando associado a uma sexualização, fato que pode ensejar em danos profundos, com severos reflexos patrimoniais e extrapatrimoniais.
Exatamente nesse contexto que a presente coluna pretende trazer alguma contribuição.
Essencialmente, nos termos do disposto no art. 186 do CC, aquele que causa dano a outrem, ainda que meramente moral, pratica ato ilícito, o qual há de ser indenizado (art. 927), sendo o mais corriqueiro que esse dever seja apreciado sob a vertente dos danos materiais (patrimoniais) e dos danos morais (extrapatrimoniais). Contudo, o fato é que a análise das consequências decorrentes de uma conduta de tal jaez são bastante mais complexas, não podendo restringir-se a uma apreciação superficial.
Pensando em uma perspectiva mais afeita às questões de cunho patrimonial, para além do tradicional dano material, é pertinente se analisar a situação sob a ótica do agente do ato.
Como já trabalhado em outros momentos5, a figura do enriquecimento sem causa, estabelece-se como uma das figuras que mais me é cara quando analisando as situações afeitas ao "universo da responsabilidade civil".
A perspectiva básica é que a situação fática impõe que se desloque o foco da figura dos danos sofridos pela vítima da conduta tida por ilícita e se passe a considerar também os benefícios indevidamente auferidos por aquele que agir de forma atentatória aos parâmetros legais postos.
Considerando especificamente as situações em que os pais expuseram a imagem dos filhos, ainda mais se considerando tal conduta praticada com um viés sexualizado de uma criança ou adolescente, é inconcebível se permitir que ele possa manter consigo todos os benefícios econômicos que tenha auferido ante a tal prática.
Não se pode jamais comungar com qualquer solução relacionada à exploração da imagem dos filhos, especialmente quando objetificando-os e conferindo contornos sexualizados, que ignore os eventuais benefícios que tenham sido auferidos por esses genitores. Ignorar os proveitos econômicos obtidos mostra-se atentatório a todo o nosso arcabouço jurídico, dando azo à consolidação da clássica visão de que "o crime compensa".
Evidentemente que não se ignora que inúmeras vezes esses benefícios acabem sendo direcionados, direta ou indiretamente, para aquelas crianças exploradas, contudo isso não pode ser visto como bastante para ignorar a ilicitude da conduta. O fato social de uma condição econômica que foi alterada em razão dos proventos eventualmente obtidos com a exposição indevida são relevantes e merecem atenção, contudo a proteção dessa criança ou adolescente há de se sobrepor à sua objetificação e sexualização precoce.
Nesse ponto é pertinente se consignar que o exame do tema é totalmente perpassado por um recorte de gênero, haja vista que essa sexualização precoce de crianças e adolescentes incide majoritariamente sobre meninas.
Outra vertente atrelada às consequências do dano decorrente dessa sexualização de crianças e adolescentes está afeita à perspectiva extrapatrimonial, cabendo uma análise que não há de se restringir ao dano moral, impondo-se a verificação da presença da figura do dano existencial.
A conduta dos pais de permitirem ou estimularem a sexualização de seus filhos pode ter severos impactos na vida daquela criança, com o manifesto potencial de protraírem-se no tempo e gerarem consequências severas, capazes de impedir que ela venha a alcançar objetivos que poderiam ser considerados até mesmo ordinários, com o manifesto comprometimento de um projeto de vida, bem como de sua convivência em sociedade nos moldes esperados.
É fato que a sexualização precoce de uma criança ou adolescente causa severos impactos psicológicos, os quais não podem restar ignorados, e, uma vez verificados, tornam imperioso o dever de indenizar. A atuação daquele pai que expõe seus filhos a uma condição que coloca em risco toda a sua vida adulta, inserindo na já tortuosa linha de seu desenvolvimento peças que manifestamente têm o poder de privar do acesso ao que seria de se esperar caso tivesse recebido aqueles cuidados mínimos impostos pele legislação, não pode restar incólume.
O presente texto, como de costume nessa coluna, não tem o objetivo de trazer uma análise exauriente. Longe de ser um ponto final é apenas um breve conjunto dos caracteres iniciais que merecem especial atenção.
O intuito é suscitar a discussão entre os pesquisadores, conduzindo os pontos aqui trazidos para considerações futuras, aproveitando-se, especialmente, do momento atual em que o tema ganhou um espaço de atenção de grande parte da sociedade.
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1 Disponível aqui.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da.; MENDONÇA, Júlia Fernandes. O fenômeno do sharenting e o compartilhamento na Internet pelos pais de fotos de crianças com censura dos genitais: proteção ou sexualização?. Revista de Direito Brasileira. , v.29, p.418 - 430, 2021.
3 Disponível aqui.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 121.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Lucro da intervenção e o uso exclusivo do imóvel do casal após a separação de fato. Revista IBERC, v.4, p. 52 - 64, 2021.