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A possibilidade do benefício da prestação continuada (BPC) para pessoas transgênero

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Atualizado em 7 de maio de 2025 11:44

Como tem sido tratado de forma recorrente na presente coluna a realidade das minorias sexuais é bastante delicada, sendo certo que em dados casos, como o que ocorre com a população transgênero, podemos até mesmo afirmar que nos encontramos diante de uma experiência de genocídio trans1.

Ainda que seja inquestionável que as pessoas transgênero são detentoras de todos os direitos que são garantidos como fundamentais a qualquer cidadão é evidente que, na prática, são condenadas a viver em uma constante luta para simplesmente sobreviver2, o que é manifestamente atentatório aos parâmetros mais elementares de um Estado Democrático de Direito que tem o ser humano e a sua integridade como centro.

Muito dessa situação tem origem em um Poder Público que expressa quase nenhuma consideração com relação às minorias sexuais, o que se manifesta de forma incontestável na leniência legislativa que é uma marca de um Estado que claramente não tem qualquer preocupação em resguardar a integridade e cidadania daqueles que não se inserem entre os detentores das rédeas do poder constituído3.

A proteção que é de se esperar que seja ofertada às minorias em uma democracia, considerando a essência do que caracteriza esse sistema de governo, se mostra totalmente apartada do que se pode constatar daquilo que é a vivência de uma pessoa transgênero na sociedade brasileira, já que a ela é reservada a imposição de conviver constantemente com ofensas e agressões que tem o condão de colocar em risco a higidez do tecido social que estrutura esse Estado4.

Uma das várias formas que acabam sendo institucionalizadas de torturae até mesmo de busca do extermínioda população transgênero está no seu estrangulamento econômico oriundo da evasão escolar, ínfima inclusão no mercado de trabalho formal, acesso apenas a profissões de baixa remuneração ou marginalizadas. Tais fatos ajudam a colocar as pessoas pertencentes a esse grupo em uma situação extremamente preocupante.

Considerando os deveres mais nucleares que norteiam um Estado Democrático de Direito é premente que o Poder Público atue visando conferir o elementar a essas pessoas. Contudo nada é feito, de sorte que nos cabe compreender os parâmetros atualmente existentes em busca de viabilizar o efetivo acesso aos direitos fundamentais a parcela da população tão necessitada.

Nesse contexto podemos buscar algum tipo de suporte no universo do direito previdenciário, calcado na premissa de que ele se baseia no âmbito dos direitos sociais, com o escopo básico de viabilizar condições mínimas para o sustento da pessoa quando esta não tiver condições, ou estas se mostrarem reduzidas, de desenvolver atividades laborais que possam garantir o seu sustento.

Ordinariamente as discussões nessa seara estão atreladas a uma aposentadoria por tempo de serviço, considerando todo o período que essa pessoa contribuiu para a previdência na expectativa de poder gozar dos benefícios de uma renda que lhe permita viver quando em uma idade na qual já não tenha mais as mesmas condições de atuar no mercado de trabalho.

Ocorre, contudo, que a possibilidade de que uma pessoa transgênero tenha condições para acessar ao INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, para requerer a concessão de uma aposentadoria é praticamente nula por duas razões básicas: a enorme violência que costuma vitimar as pessoas transgênero antes da idade em que poderiam se aposentare a ínfima inserção no mercado de trabalho já mencionada8.

Por tais motivos é que se constata a baixa incidência de estudos mais sólidos sobre o tema em nossa doutrina, sem a existência de uma jurisprudência versando sobre os direitos previdenciários das pessoas transgênero.

Todavia é de se mencionar uma perspectiva atrelada ao direito previdenciário que merece especial atenção e que vem sendo suscitada nos últimos tempos, como expressamente desenvolvo no Manual dos Direitos Transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis, que é a possibilidade de que uma pessoa transgênero possa acessar ao BPC - Benefício da Prestação Continuada.

A pequena presença das pessoas transgênero no universo de atuação do direito previdenciário leva a uma total carência de dados que possam indicar qual seria o efetivo impacto econômico da eventual concessão de qualquer benefício previdenciário9 a fim de conferir uma renda mínima que permita que essa minoria sexual possa ter uma existência digna[10], por meio da criação de um instituto específico para esse fim.

De qualquer sorte uma análise do sistema previdenciário nos permite vislumbrar a real possibilidade de que pessoas transgênero possam acessar a um benefício já existente, qual seja, o  BPC que, essencialmente, se destina àqueles que a lei considera como sendo "pessoa com deficiência", ou a maiores de 65 anos que não tenham conseguido contribuir de forma a garantir o direito ao benefício por incapacidade, e que esteja em condição de miserabilidade.

Com base na amplitude conferida à concepção do que possa ser considerado "pessoa com deficiência" para fins de se acessar ao BPC, considerando a sua perspectiva de estar vinculado a um programa assistencial de acesso universal e não contributivo, instituído com o fulcro de viabilizar a inserção social com contornos que podem incluir as pessoas transgênero que estejam expostas a um risco ou vulnerabilidade que inviabilize que ela possa exercer uma atividade laboral capaz de permitir a sua subsistência11.

Tal possibilidade está calcada em uma premissa decorrente da estigmatização enfrentada por pessoas transgênero que pode ser associada àquela que recai sobre portadores assintomáticos de HIV, situação essa que já encontra respaldo jurisprudencial12.

Essa associação com a ideia de deficiência não comunga com nenhuma perspectiva de retorno da patologização da transgeneridade, mas sim com o contexto mais abrangente que se tem dado à ideia do que poderia ser abarcado pela legislação específica do BPC - Benefício da Prestação Continuada, que trabalha com um conceito de vulnerabilidade social que a priva de "participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas" (art. 20, § 2º da lei 8.742/1993).

Em verdade é possível se constatar que a premissa elementar para a concessão do BPC está pautada na presença de uma situação de incapacidade laboral, a qual não está vinculada a uma dada condição física ou psicológica que restrinja o exercício de uma atividade laborativa13.

Dados como uma evasão escolar massiva (56% sem ensino fundamental, 72% sem ensino médio e somente 0,02% na universidade)14, baixa inserção no mercado de trabalho (4% da população transgênero feminina possui empregos formais, 6% em atividades informais/subempregos, e 90% encontra na prostituição a fonte primária de sua renda)15 é um manifesto reflexo da restrição socialmente imposta a que essas pessoas possam efetivamente ter condições de exercer uma atividade laborativa que lhe confira as condições mínimas de subsistência16.

A concessão do BPC para pessoas transgênero mostra-se inserida nos mais estritos critérios norteadores de tal instituto, em perfeita consonância com os objetivos constitucionais de proteção social aos mais vulnerabilizados e que sustenta a Assistência Social no Brasil.

O parâmetro econômico imposto de que a renda familiar não seja superior a 1/4 do salário-mínimo por pessoa, valor a ser calculado com base no que consta do CadÚnico - Cadastro Único e das demais informações existentes no sistema do INSS17 também não é uma restrição considerando a precária condição econômica que permeia a absoluta maioria das pessoas transgênero.

Em verdade esse requisito se mostra mais difícil de ser demonstrado pela enorme dificuldade que as pessoas transgênero seguem tendo de possuir todos os documentos oficiais respeitando sua identidade de gênero, restrição muito maior do que aquela que o restante da população encara para ter um RG, título de eleitor ou qualquer outro documento que se faça necessário para ser inserida no CadÚnico.

Ao se constatar a existência da concessão do BPC em casos que se mostram muito próximos daquele que atinge as pessoas transgênero, especialmente se considerando o contexto da segregação e estigmatização18 que as priva do efetivo acesso ao mercado de trabalho, é de se considerar que qualquer obstáculo que seja criado para o acesso ao referido benefício se mostra como a consolidação da institucionalização de um projeto de extermínio dessa minoria sexual19.

É notório que ideal seria a existência de uma política pública especialmente voltada para a eliminação da discriminação enfrentada pelas pessoas transgênero, que se mostrasse efetiva em garantir acesso à educação20, conferindo-lhes meios para poderem inserir-se no mercado de trabalho formal sem ter que lidar com todos os obstáculos que emanam da discriminação e estigma que encaram na sociedade, sem que precisassem recorrer a nenhum tipo de assistência governamental.

Contudo estamos ainda muito distantes dessa realidade, mesmo na proximidade de atingirmos mais de 1/4 do século XXI. Ainda vivemos em uma sociedade em que a identidade de gênero de uma pessoa, por não se mostrar inserida naquele padrão esperado, é suficiente para relegá-la a uma condição sub-humana.

Mas ainda há quem diga que as lutas das pessoas transgênero são "mimimi" ou que o objetivo é criar pessoas com super-direitos21, numa expressão clara da fragilidade que tradicionalmente caracteriza as maiorias22. Em verdade, a grande batalha travada é simplesmente conseguir que sejam reconhecidos como humanos e tenham acesso aos direitos humanos e fundamentais mais basilares, como sobreviver.

Porém, para muitos, a simples tentativa de ser visto como um ser humano por parte das pessoas transgênero é entendida como uma afronta.

Que eu possa, como um aliado da causa, seguir auxiliando nessa insistência afrontosa das pessoas transgênero em continuar existindo.

__________
1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504.

3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 216.

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 83.

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 59.

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A importância da verificação dos dados e o risco para a credibilidade das pautas LGBTIAPN+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.4, n.2, p. III - VIII, 2023.

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 195.

9 Heloísa Helena Silva Pancotti. Previdência social e transgêneros. Proteção previdenciária, benefícios assistenciais e atendimento à saúde para transexuais e travestis. Curitiba: Juruá, 2019, p. 121.

10CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 216.

11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 216.

12 Heloísa Helena Silva Pancotti. Previdência social e transgêneros. Proteção previdenciária, benefícios assistenciais e atendimento à saúde para transexuais e travestis. Curitiba: Juruá, 2019, p. 157.

13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 217.

14 Disponível aqui. Acesso em 30/4/23.

15 Disponível aqui. Acesso em 30/4/22

16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 217.

17 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 147.

18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 44.

19 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 59.

20 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 184.

21 Disponível aqui.

22 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 55.