Identidade de gênero e a resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina: Sólidas bases científicas ou cumprimento de uma agenda política?
quinta-feira, 24 de abril de 2025
Atualizado em 23 de abril de 2025 14:25
No dia 16/4/25 a sociedade brasileira foi apresentada a mais uma das manifestações do CFM - Conselho Federal de Medicina relacionada a questões vinculadas à sexualidade, com a publicação da resolução 2.427/25 que, segundo release que pode ser encontrado no próprio portal do conselho, "revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero"1.
O texto, apesar de se afirmar decorrente de um "longo processo de discussão e análise", tendo considerado "estudos clínicos sobre o assunto e experiências em outros países na tentativa de formular um documento moderno e ancorado em critérios técnicos sólidos" é, no mínimo, de qualidade questionável.
Farei aqui uma rápida análise sobre o conteúdo da resolução, sendo certo que em breve apresentarei um artigo científico com uma apreciação mais aprofundada.
O primeiro ponto que não pode ser ignorado é que a resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina, como era de se esperar, tem um viés evidentemente patologizante da identidade de gênero. Tanto é assim que logo no seu artigo inicial traz definições que pautarão o seu conteúdo.
Nesse contexto, define:
- Pessoa transgênero: Indivíduo cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo de nascimento, não implicando necessariamente intervenção médica;
- Incongruência de gênero: Discordância acentuada e persistente entre o gênero vivenciado de um indivíduo e o sexo atribuído, sem necessariamente implicar sofrimento;
- Disforia de gênero: Grave desconforto ou sofrimento que algumas pessoas experienciam devido a sua incongruência de gênero. O diagnóstico de disforia de gênero deverá seguir os critérios do DSM-5-TR - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou o que vier a atualizá-lo.
Em uma hermenêutica básica, e considerando que o próprio texto da resolução não indica na definição de quem seja uma pessoa transgênero qualquer elemento que possa ser associado a uma condição que exija tratamento em busca de uma "cura", nada do que dela consta se aplica a quem se identifica como uma pessoa transgênero, salvo quando expressamente o afirme, como o faz no art. 7º.
Assim, não se pode trazer qualquer interpretação restritiva com relação a acesso aos procedimentos ali descritos, estando suas determinações direcionadas especificamente para quem apresente uma incongruência de gênero, com "discordância acentuada e persistente", ou uma disforia de gênero, com um "grave desconforto ou sofrimento". Quando não o fizer expressamente, suas previsões não se estendem a pessoas transgênero, nos termos fixados na própria resolução (aquele que tenha uma "identidade de gênero que não corresponde ao sexo de nascimento").
Superada essa introdução de cunho hermenêutico, é possível se questionar a adequação das definições utilizadas, especialmente aquela que é trazida para indicar o que seria uma pessoa transgênero, exatamente por afirmar que seria quem tem uma identidade de gênero que "não corresponde ao sexo de nascimento".
Seguindo na batalha constantemente travada em minhas atividades em aulas e palestras, bem como em meus escritos, a pessoa transgênero apresenta uma condição na qual ela não se identifica com o GÊNERO que era esperado em razão do SEXO que lhe foi atribuído quando do seu nascimento2. Não ignoro que a definição descrita na resolução é mera reprodução do que consta da CID-11 - Classificação Internacional de Doenças, contudo urge que seja indicado de forma precisa qual é a realidade experienciada pela pessoa transgênero, a fim de tornar clara a compreensão baseada nos pilares da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero).
A própria expressão que define a referida condição é clara em indicar que estamos diante de uma questão que se assenta no gênero (expressão social da sexualidade) e não no sexo (configuração biológica), já que se trata de identidade de gênero e não de sexo. A incompatibilidade manifestada, portanto, se vincula ao gênero que se espera que ostente em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento.
Outro ponto que suscita dúvida é: toda pessoa transgênero apresenta uma incongruência de gênero? Pela forma como o texto foi construído, aparentemente o CFM - Conselho Federal de Medicina considera existir uma gradação: a mera não correspondência sexo/gênero seria a característica da pessoa transgênero; a discordância acentuada e persistente marcaria a incongruência de gênero; e, finalmente, a disforia de gênero estaria vinculada a um grave desconforto ou sofrimento. Tecnicamente não parece ser a melhor construção, mas foi assim que entendeu por bem descrever o CFM - Conselho Federal de Medicina.
Se o texto da resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina não apresenta a acuidade técnica que permitiria a plena compreensão do tema ao qual se destina, especialmente ao se considerar que trata-se do texto que será utilizado pelos profissionais da saúde em sua atuação, é de se esperar que o que virá a seguir não será exatamente um primor.
Pondero, também, que qualquer consideração emanada pelo CFM - Conselho Federal de Medicina que não se atenha exclusivamente a critérios clínicos, devidamente fundamentados, há de ser rechaçada por não se inserir no escopo precípuo de atuação daquele conselho.
Partindo-se dessas premissas, direciono meu olhar para as diretrizes de fundo que podem ser encontradas na resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina.
Considerando o parâmetro fixados pela CID-11 - Classificação Internacional de Doenças atualmente vigente, a incongruência de gênero, que encontra-se descrita no art. 1º da presente resolução, não se configura como uma patologia, mas sim como uma condição sexual. Definida lá como uma "marcante e persistente falta de alinhamento entre o gênero vivenciado por um indivíduo e o sexo atribuído", como consta do item 17, nos códigos HA60 (incongruência de gênero na adolescência ou na idade adulta), HA61 (incongruência de gênero na infância) e HA62 (incongruência de gênero não especificada), insere-se como uma mera "condição relacionada à saúde sexual".
Assim, trata-se de "uma condição que merece atenção médica, em que pese não se configurar como uma doença"3, afastando-se do antigo travestismo que, como indicava o sufixo, estava associado a uma doença como constava da anterior CID-10 - Classificação Internacional de Doenças. Não sendo sobre questões vinculadas ao tratamento do desconforto ou sofrimento psicológico, condição descrita no DSM-V - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, sob os códigos 302.6 (F64.2) e 302.85 (F64.1), é necessário que se conduza a análise sob a perspectiva de condição sexual apresentada por aquela pessoa, tal qual ocorre com a gravidez.
Não sendo o objetivo da resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina definir, em verdade, o que é pessoa transgênero, incongruência de gênero ou disforia de gênero, é de se entender que o seu intuito é, em verdade, definir quais as condutas médicas que podem ser adotadas quando do diagnóstico de qualquer dessas condições.
Nesse sentido, surge o art. 5º, versando sobre hormonioterapia visando bloqueio hormonal, determinando a vedação da prescrição de bloqueadores hormonais para crianças e adolescentes, excluindo as situações em que se configure uma "puberdade precoce ou outras doenças endócrinas, nas quais o uso de bloqueadores hormonais é cientificamente indicado".
A resolução anterior que tratava do tema (resolução 2.265/19 do CFM - Conselho Federal de Medicina) permitia a atuação com o objetivo de bloqueio puberal objetivando impedir a consolidação hormonal vinculada ao sexo gonadal, exatamente a partir da puberdade, com critérios fixados no art. 9º, § 2º. O texto previa também a possibilidade que esse bloqueio fosse interrompido "por decisão médica, do menor ou do seu responsável legal"4.
Já naquele momento eu afirmava que tal procedimento haveria de ser indicado levando em consideração as particularidades de cada indivíduo, vez que a puberdade pode se dar em momentos distintos para cada pessoa (dos 8 aos 13 anos de idade nas meninas e dos 9 aos 14 anos de idade nos meninos), sem a imposição de um parâmetro etário fixo5.
Interessante notar que a nova posição adotada afirma se fiar em estudos que revelam haver uma "dúvida em relação ao uso de bloqueadores hormonais" que teria conduzido "recentemente, diversos países [a] proibirem ou restringirem seu uso, inclusive países de viés claramente liberal em questões de costumes", em um "movimento [que] tomou força a partir de 2020, um ano após a publicação da resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina".
Chama a atenção a assertiva de que a mudança teria ocorrido até mesmo em "países de viés claramente liberal em questões de costumes", como se o tema não fosse científico, mas sim estivesse calcado em um viés de discricionariedade política. No mínimo, inusitada essa "defesa prévia".
Mas o grande questionamento que se faz é: a quem tal regra se aplica? Às pessoas transgênero, a quem tem incongruência de gênero ou a quem tem disforia de gênero? Pela construção técnica que estrutura a resolução é de se entender que ela se aplicaria apenas para o "tratamento de incongruência de gênero ou disforia de gênero", como descreve expressamente o caput do art. 5º da resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina.
Ainda nesse contexto, encontramos diversos estudos que se posicionam favoravelmente à realização de bloqueio puberal, por poderem propiciar benefícios funcionais e de saúde mental, além de reduzir o sofrimento relacionado ao gênero6, ou que a supressão da puberdade pode ser considerada uma contribuição valiosa no manejo clínico da disforia de gênero em adolescentes7.
Aparentemente a certeza que outrora fez com que o CFM - Conselho Federal de Medicina se manifestasse quanto a possibilidade da utilização do bloqueio hormonal se diluiu, ainda que se possa encontrar inúmeros estudos recentes amplamente favoráveis a tal tipo de hormonioterapia.
Já a terapia hormonal cruzada, que antes era autorizada pelo CFM - Conselho Federal de Medicina a partir dos 16 anos, agora só seria possível após os 18 anos, e precedida por uma "avaliação médica, com ênfase em acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por, no mínimo, 1 (um) ano antes do início da terapia hormonal" (art. 6º).
Importa notar que o texto da resolução que trata da terapia hormonal cruzada não indica se a restrição ali prevista se aplica a todas as hipóteses definidas no art. 1º, de sorte que podemos interpretá-la de maneira a entender que apenas incida sobre aqueles que apresentam disforia de gênero, não se aplicando a quem não demonstrar desconforto ou sofrimento psicológico.
Outro ponto interessante que se pode constatar é que quando a resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina passa a tratar das intervenções cirúrgicas, no art. 7º, expressamente menciona que o texto ali consignado se aplica à "atenção médica especializada a pessoa transgênero para cirurgias de redesignação de gênero". Note que especificamente adota a expressão "pessoa transgênero", o que conduz à conclusão que o que consta do art. 5º e do art. 6º não se aplica a elas.
Seguindo na análise do art. 7º, verifica-se que o CFM - Conselho Federal de Medicina mantém a "fixação" que costumeiramente apresenta com relação aos 21 anos de idade, sem qualquer parâmetro8. Agora, contudo, tenta sustentar-se em outro equívoco legal, consignado na lei 14.443/22 (que trata de técnicas e métodos contraceptivos), apenas permitindo que elas ocorram antes desse marco etário se não implicarem em potencial efeito esterilizador.
Aqui também se vê uma impropriedade técnica nas expressões utilizadas pelo CFM - Conselho Federal de Medicina já que nenhuma intervenção cirúrgica tem o poder de alterar o gênero, de forma que as cirurgias apenas mudam o físico da pessoa transgênero, tornando-o mais condizente com o seu gênero, mas não redesignam o gênero. Essa chamada redesignação já aconteceu de fato, sendo que as intervenções cirúrgicas realizadas apenas têm o objetivo de afirmar o gênero com o qual aquela pessoa se identifica e reconhece9.
Findas as análises vinculadas à hormonioterapia e aos procedimentos cirúrgicos, é possível trazer um argumento crítico a ser considerado. Não vemos essa atuação do CFM - Conselho Federal de Medicina com o intuito de regulamentar, fiscalizar e acompanhar a utilização de hormônios com fins estéticos ou mesmo intervenções cirúrgicas em pessoas cisgênero, como no caso uso de hormônios por praticantes de atividades físicas ou implantes de silicone mamários10.
Com essas ponderações, convido a quem acompanha essa coluna a pensar: existe um viés político na resolução 2.427/25 do CFM - Conselho Federal de Medicina ou ela é totalmente pautada em critérios científicos? Tire suas próprias conclusões...
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1 Disponível aqui.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da; D'ALBUQUERQUE, Teila Rocha Lins. Responsabilidade civil ante a violação póstuma da identidade de gênero. In: CUNHA, Leandro Reinaldo da; MATOS, Ana Carla Harmatiuk; ALMEIDA, Vitor. Responsabilidade civil, gênero e sexualidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024, p. 132.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 14.
4 Disponível aqui.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 21
6 Wright, D., Pang, K.C., Giordano, S. and Gillam, L. (2025), Evaluating the benefits and risks of puberty blockers and gender-affirming hormones for transgender adolescents. J Paediatr Child Health, 61: 7-11
7 de Vries, A.L.C., Steensma, T.D., Doreleijers, T.A.H. and Cohen-Kettenis, P.T. (2011), Puberty Suppression in Adolescents With Gender Identity Disorder: A Prospective Follow-Up Study. The Journal of Sexual Medicine, 8: 2276-2283.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 18.
10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 26.