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Ser meramente o provedor: O conforto masculino de ser pai

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Atualizado às 07:18

O nosso ordenamento jurídico muitas vezes confere uma impressão de que o Brasil é um país onde a igualdade e os direitos fundamentais são franqueados de forma ampla e irrestrita a todas as pessoas. Uma percepção absolutamente distante do que se verifica no cotidiano.

A leitura do que se tem positivado pode induzir, a quem não conhece a realidade brasileira, à sensação de uma realidade totalmente dissociada daquela vivenciada por uma grande parte das pessoas em seu dia-a-dia. Muitas concepções presentes tanto na Constituição Federal como nas leis infra constitucionais chegam a dar a entender que vivemos em uma sociedade muito mais justa e igualitária do que aquela que nos mostra o mundo real.

Nesse universo idealizado existem inúmeras determinações que, apesar de formalmente consignadas no texto legal, mostram-se muito longe de serem efetivadas, configurando aquilo que um dia Orlando Gomes denominou de mero desperdício de tinta, já que uma legislação divorciada da realidade tem vida apenas no papel onde ela está aposta1.

Para os fins da presente coluna, direcionarei a atenção a uma figura específica na qual o apartamento da legislação para com o mundo real apresenta um claro recorte de gênero, com impactos severos sobre a mulher e a concepção do feminino.

O ponto de partida recai sobre a igualdade, insculpida na Constituição Federal, que não passa, de fato, de um mero desejo, já que, mesmo prevista desde 1988, segue sendo ainda uma utopia.

A evidenciar que se faz bem pouco crível que exista uma verdadeira igualdade de gênero está um aspecto que se faz presente em quase a totalidade das entidades familiares. Na sua casa, ou na das pessoas com as quais você tem contato, os pais exercem seus deveres com relação aos filhos de forma igualitária?

Seguimos vivendo em uma sociedade que estabelece e impõe papéis bastante definidos para homens e mulheres na condução de suas responsabilidades com relação aos filhos, ainda que já exista na legislação a previsão de que tais deveres devem ser exercidos de forma igualitária por eles. A inexistência prática do cumprimento compartilhado dos deveres com relação à prole "tem contornos mais deletérios do que a sua não positivação, vez que gera a falsa impressão de que não existe o problema, de que a lei já regulamenta a questão e que, portanto, nada há a ser feito", constituindo-se como uma equivocada ideia de que haveria real proteção legislativa2.

Boa parcela dessa situação decorre de uma concepção de que a condição de mãe é obrigatória enquanto a de pai é facultativa. Nesse âmbito é impossível ignorar que essa desigualdade já se impõe desde o nascimento dos filhos, uma vez que nesse momento há a imediata consignação de quem é a mãe na DNV - Declaração de Nascido Vivo.

Obviamente que não olvidamos a possibilidade de que essa questão possa ser afastada em decorrência, por exemplo, de uma gestação em substituição3. Contudo, o mais recorrente segue sendo a prevalência da presunção de que a mãe é sempre certa (mater semper certa est), o que estabelece um reforço da perspectiva de que a condição de mãe é inata.

Já o outro lado dessa moeda, a fixação de quem é o pai, depende, ordinariamente, de uma manifestação de vontade. Será pai aquele que assim o manifestar, reconhecendo tal condição através de declaração expressa perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, salvo as hipóteses de presunção descritas no art. 1.597 do CC (filhos nascidos na constância do casamento).

Se não reconhecer espontaneamente, poderá até mesmo ser compelido ao estabelecimento dessa paternidade formal, por meio de uma determinação judicial, que, na prática, não tem o condão de fazer com que esse sujeito efetivamente assuma os deveres legalmente definidos para quem tem a si atribuída a condição de pai.

Como já asseverado em coluna anterior, "na prática é concedido ao homem a escolha se vai ou não ser pai, ao menos em um primeiro momento, pois ele decide se reconhecerá ou não o filho nascido. Essa não é uma prerrogativa que se confere às mulheres, o que traz consigo um enorme ônus"4.

Caso quem está acompanhando a presente coluna seja alguém iniciado nas letras jurídicas, ou mesmo se trate de um conhecedor da lei pelas vias oblíquas que a sociedade dos dias atuais nos oferta, já deve estar ponderando que a lei tem meios que visam impor a esse pai o cumprimente de certos deveres, uma vez que integra o conhecimento popular uma compreensão difundida de que a criança tem direito à pensão alimentícia.

Evidente que caso deitemos nossa atenção ao todo consignado no Código Civil com relação aos deveres dos pais vamos constatar que, em verdade, existe a previsão de que cabe aos pais o sustento de seus filhos. No entanto esse é apenas um recorte do todo, e que não abrange, portanto, toda a extensão das obrigações que decorrem da paternidade.

Uma leitura bastante simples do texto destinado ao poder familiar (art. 1.630 e seguintes do CC) revela que as obrigações que dali emanam não se restringem apenas à oferta de valores econômicos para que essa criança possa ter acesso à alimentação, moradia, educação, vestuário, saúde, entre outros.

Isso fica bastante claro quando se analisa as consequências da dissolução do casamento ou da união estável para os filhos, pois, nesses casos, a lei determina, expressamente, que, se aquelas pessoas que pretendem pôr termo ao relacionamento tiverem filhos, que sejam estabelecidos, além dos valores destinados a manutenção econômica da prole, a fixação de guarda e o que tradicionalmente se costumou denominar de visitas (art. 731 do CPC), questões que decorrem do direito/dever de ter os filhos consigo.

Em linhas gerais, independente da ideia amplamente divulgada de que nos dias atuais há de prevalecer a guarda compartilhada, o mais recorrente é que quem permanece com ou na companhia dos filhos, após a dissolução do casamento ou união estável, é a mulher5.

Se considerarmos nessa equação o enorme contingente de mães solo fica ainda mais patente que a elas, e somente a elas, cumpre o dever de ter os filhos consigo, bem como toda a gama de obrigações que disso decorre.

Não podemos, tampouco, ignorar que, mesmo enquanto casadas ou vivendo em união estável com os pais de seus filhos, o mais usual é que apenas elas tenham que assumir os deveres de cuidado com relação à prole. Trata-se de algo de tal forma consolidado que aqueles pais que minimamente se comprometem com o cumprimento de suas responsabilidades não econômicas para com os filhos são vistos como "semideuses" por uma parcela da sociedade.

Muitos até mesmo chegam a se auto enaltecer, proclamando-se grandes pais, apregoando para que todos possam ouvir que eles "ajudam" as mães no cuidado dos filhos, ignorando totalmente que o que fazem é, normalmente, quase nada e bastante aquém daquilo que seria de se esperar de uma divisão igualitária de responsabilidades, nos termos ludicamente previstos na legislação nacional.

O fato inquestionável é que se houvesse uma apuração do cumprimento dos deveres de homens e mulheres com relação a seus filhos a demonstração do inadimplemento por parte dos pais seria de constatação fácil e imediata. Contudo, sequer se faz necessário que ocorra uma verificação pautada nos mais elevados critérios técnicos para se constatar que, ao final do dia, na grande maioria dos casos, apenas a mulher cuidou da prole comum.

Salvo raríssimas exceções, essa sobrecarga sobre a mulher ocorre independentemente do fato dela também trabalhar fora de casa ou de ter menos tempo livre do que o pai da criança. Mesmo com dupla ou tripla jornada, mulheres dedicam, semanalmente, 9,6 horas a mais que os homens aos deveres de cuidados não remunerados6. Os dados sobre o tema não são poucos, contudo a atribuição de contornos jurídicos merece aprofundamento7.

Muito dessa realidade decorre da já antiga falácia de que a mulher teria uma aptidão natural, de cunho até mesmo genético, para cuidar de seus filhos, e, com isso, caberia ao homem apenas o dever de prover. Porém "todas as atividades de cuidado com relação aos filhos são impostas à mulher8, como já mencionado.

A sociedade evoluiu, a mulher passou a integrar o mercado de trabalho, assumindo um lugar que outrora não lhe era ofertado, sem que tenha havido uma compensação no dever que desempenha quanto ao cuidado da prole. Essa inserção da mulher nesse locus que não lhe cabia anteriormente não se espelhou no lado masculino dessa relação, já que o homem segue apenas sendo, quando muito, o responsável econômico pelo sustento do filho, sem que tenha assumido a sua parcela quanto aos cuidados.

Ao cabo, em que pese a tradicional lamúria masculina de que tem que pagar a pensão alimentícia para os filhos, e, caso não o faça, corre até mesmo o risco de ser preso, é muito claro que para ele, fazendo uma análise mais abrangente de todas as responsabilidades que têm, assumir apenas a vertente econômica dos deveres sobre os filhos é bastante cômodo.

Para que não haja dúvidas do que estou afirmando aqui, reitero: não ter que desempenhar os deveres de cuidado, sem que isso gere qualquer sanção, sai muito barato para os pais.

Tenho plena ciência que essa afirmação atinge de forma direta a quase a totalidade dos homens que têm filhos em nosso país. Não ignoro os elementos de cunho cultural que permeiam a questão aqui posta, contudo as previsões legais não podem ser simplesmente ignoradas à conveniência daquele que pode ser atingido por elas.

A ideia de que simplesmente pagar a pensão seria o suficiente para o homem se desincumbir de todo e qualquer outro dever com relação aos filhos é tão disseminada que é bastante comum, em sede de audiência de conciliação, seja em ação de alimentos, divórcio ou de dissolução de união estável, que o pai da criança questione se ele pode apenas pagar a pensão, sem ter que visitar a criança.

Mesmo que esse questionamento não surja perante o Judiciário, a realidade fática acaba revelando que muitas vezes é isso que acabará ocorrendo na prática, com o pai não visitando os filhos ou o fazendo de forma meramente protocolar.

Convido a quem chegou até aqui no presente texto a se questionar sobre a quantidade de vezes que ouviu falar sobre mães que promoveram ação judicial para exigir que o pai de seus filhos pagasse a pensão alimentícia e que estabeleça uma relação quanto as vezes que soube de uma ação cujo intuito fosse obrigar o pai a visitar os filhos, ou a, de fato, cumprir com a sua parcela no que se refere aos deveres de cuidado.

Culturalmente, o que constatamos é que realizar o pagamento do valor econômico determinado pelo juiz, com o fim de garantir o sustento do filho, é entendido como a satisfação de toda a obrigação que compete ao homem nessa relação paterno-filial, "contudo não se pode ignorar o tamanho desse encargo, que vai muito além das despesas de caráter econômico saldadas com o adimplemento da prestação alimentícia"9.

Há de se repisar que, tecnicamente, a lei impõe aos pais o compartilhamento das obrigações com relação aos filhos, inexistindo qualquer previsão que restrinja o dever do pai ao pagamento da pensão ou mesmo afastando o dever de cuidado ante ao pagamento desse valor.

Sempre salutar relembrar o pensamento de Silvia Federici: "o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago"10.

A imposição dos deveres de cuidado exclusivamente sobre as mulheres torna premente que se discuta tanto a possibilidade da determinação do cumprimento dos deveres de cuidado pelos pais, até mesmo por meio da imposição de cominação pecuniária diária (astreinte), visando compelir o pai, devedor dessa obrigação de fazer, a cumpri-la, como também que esses deveres venham a ser considerados quando da fixação da pensão alimentícia.

Essas questões já começam a receber alguma atenção, havendo casos nos quais se fixou indenizações de 80 mil Euros11 e 200 mil Euros12 na Europa (Espanha). No Brasil já se determinou que o trabalho de cuidado fosse considerado quando do arbitramento da pensão alimentícia para os filhos13, mas essa ainda é uma realidade incipiente.

Compelir apenas a mulher a desempenhar um papel que haveria de se compartilhado com o pai da criança acaba por caracterizar uma clara situação em que alguém se aproveita de outra pessoa, a qual se vê obrigada a satisfazer uma obrigação comum sozinha, fato que pode ensejar não apenas uma situação de dano indenizável como também um enriquecimento sem causa, como já mencionado em colunas anteriores14.

Outro aspecto que também merece atenção está em se discutir a possibilidade de que tal conduta do pai venha a configurar aquilo que tem sido denominado como abandono afetivo, pois, mesmo que tenha havido o pagamento de pensão alimentícia, não houve o devido desempenho do dever de cuidado com relação ao filho, nos termos consignados na legislação vigente. Cuidar é uma obrigação que vai muito além de dar dinheiro.

É indispensável que a academia e o Judiciário passem a analisar a relação de parentesco estabelecida entre pais e filhos para além dos aspectos econômicos, atenta a concepção de deveres oriundos da filiação, de forma a respeitar preceitos legais nucleares.

Por fim, assevero que certamente se o homem estivesse sendo vítima de uma exploração tamanha já teríamos a implementação de medidas para que tal situação fosse resolvida, como já mencionado pelo min. Barroso. Mas como as vitima são as mulheres, o padrão de fechar os olhos e permitir a perpetuação da ofensa segue vigorando.

Nada de novo.

_______

1 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37.

2 Disponível aqui.

3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-147, 2024.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 LEAL, Aline Luisa de Andrade. Análise jurídica sobre a imposição do cuidado feminino: quem cuida de quem cuida?. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 5, n. 1, p. 78-97, 2025.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 Disponível aqui.

11 Disponível aqui.

12 Disponível aqui.

13 Disponível aqui.

14 Disponível aqui.