Execução de alimentos. O risco de cobrar e sair devendo
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Atualizado em 15 de outubro de 2025 10:24
Toda e qualquer consideração ou pensamento desenvolvido na presente coluna que possa trazer algum tipo de situação que a expressar um risco de perda de direitos para as mulheres é sempre tratada de forma atenta e nos exatos limites daquilo que considero ser o adequado. E no presente caso não será diferente, com o acúmulo ainda de outro aspecto preocupante, que é o acesso aos valores devidos à mantença de crianças e adolescentes.
Inicialmente é de se asseverar que o presente tema está inexoravelmente vinculado a um recorte de gênero, o que se afirma não em razão de quem é o destinatário do direito aos alimentos mas sim a quem o representa e quem está obrigado a satisfazer tal dever.
Considerando o fato de que, como mencionado em texto anterior, a mulher está vinculada à maternidade de seus filhos de forma distinta daquela que impacta sobre os homens1, vez que esses apenas serão considerados pais ante a uma manifestação de vontade (seja ela espontânea ou decorrente de uma decisão judicial), salvo nas hipóteses de presunção de paternidade decorrente dos filhos nascidos na constância do casamento (art. 1597 do CC).
A isso pode ser agregada a perspectiva social que parte da premissa de que o filho "é" da mulher e que, por isso, cabe originalmente a ela todas as responsabilidades e deveres de cuidado com a prole, o que culmina na situação fática de que, independentemente de qual seja a relação que ela tenha com o pai da criança, ela, muito provavelmente, experienciará uma circunstância de maternidade solo, mesmo se casada ou tendo o pai registrado o filho. Essa questão em específico é de elevada complexidade e merecerá uma coluna para discorrer sobre ela.
Essa dinâmica social consolidada deságua naquilo que a coletividade acredita que seja uma imposição legal, ainda que não se respalde no que se mostra positivado. A concepção que pauta o inconsciente popular, e que é repetida como uma cantilena, é que a guarda dos filhos é da mãe e que ao pai cabe o dever de prestar alimentos, o que acaba por se tornar um dos marcos que alicerçam a imposição dos deveres de cuidado exclusivamente às mulheres, e ao homem a obrigação de prover o sustento do filho, como tratado na última coluna2.
Na sequência daquilo que ali foi trazido, agora é o momento de tecer algumas considerações sobre o viés econômico dos deveres impostos aos pais com relação a seus filhos. Num próximo texto trabalharemos a amplitude desse dever, apreciando quais as necessidades do alimentando que devem ser atendidas e a divisão dessa responsabilidade.
No presente momento a análise será direcionada especificamente à situação na qual esse dever de alimentos já se mostra devidamente definido, com a fixação exata da dimensão do valor a ser adimplido pelo devedor e sem que haja o cumprimento desse dever.
Aqui, novamente, há de se ressaltar o manifesto recorte de gênero da questão, haja vista que, na larga maioria das vezes, quem não cumpre com sua responsabilidade alimentar é o homem, o pai daquela criança. À mãe resta suportar esse inadimplemento e todas as consequências que dele decorrem.
Para ele, sobrará suportar os desdobramentos do cumprimento de sentença que tenha reconhecido a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos ou a ação de execução de alimentos. Já para ela, a imposição de "se virar" para conseguir atender às necessidades econômicas que aquela criança ou adolescente possui.
A não satisfação do dever de alimentar, que no mais das vezes se limita ao pagamento de valor determinado, culmina, portanto, na utilização dos meios processualmente previstos para que o alimentado consiga aquilo que lhe é devido.
Quando o valor inadimplido apresenta natureza alimentar, assim consideradas as verbas referentes aos três meses anteriores à propositura da ação, bem como aquelas vencidas no decorrer no processo, nos termos do art. 528, § 7º do CPC e consolidado pelo STJ na súmula 3093, cabe um procedimento específico, com o devedor sendo citado para pagar, provar que pagou ou indicar os motivos pelos quais não pode pagar, no prazo de 3 dias (art. 528, caput e art. 911 do CPC).
Nesse caso, se não pagar, não comprovar que pagou ou não apresentar uma escusa juridicamente admissível, poderá ter a si cominada a determinação de cumprimento de prisão civil, por prazo de 1 a 3 messe (art. 528, § 3º do CPC).
O risco de prisão ao inadimplente é uma das questões de fundo jurídico mais conhecidas pelas pessoas de forma geral, revestindo-se de um caráter praticamente universal. Pouco nos questionamos quanto aos motivos pelos quais tal previsão é de conhecimento público, mas a resposta é simples, até mesmo prosaica, e com um manifesto recorte de gênero: o enorme índice de inadimplemento de pensão alimentícia por parte dos pais.
Muitos dos partidários de concepções que, calcadas em uma hegemonia dominante do homem/masculino opressor, banhadas em masculinidade frágil e anseio pela manutenção dos privilégios4, costuma alegar que a sanção de prisão civil seria excessiva, já que ele "apenas" não pagou a pensão e que não é um criminoso. Visão manifestamente turva que ignora os impactos desse inadimplemento na vida do credor e daquela que por ele é a responsável direta.
Para os valores devidos que remontam a período superior a três meses a execução haverá de se processar segundo os parâmetros ordinários que incidem sobre qualquer divida vinculada ao pagamento de quantia certa, sem o risco de prisão civil do devedor, apenas com a expropriação de bens a fim de satisfazer o que não foi pago ao credor.
Qualquer que seja o rito a ser adotado haverá a necessidade de apresentação de cálculos, visando expressar o exato montante a ser pago pelo devedor. Num primeiro momento, trata-se de um mero cálculo aritmético, indicando a soma dos valores devidos em cada mês, com atualização monetária e juros.
O que é um cálculo ordinário para qualquer pessoa minimamente versada em matemática, para os profissionais do direito se torna algo de complexidade assustadora. Especialmente a figura da atualização monetária, com a definição e aplicação do índice correto. As facilidades dos tempos atuais oferecem aos profissionais acesso a aplicativos e plataformas nas quais ele apenas tem o trabalho de lançar os valores devidos e, como "mágica", o resultado aparece, com a planilha pronta para ser acostada nos autos.
O primeiro risco dessa enorme comodidade tecnológica é que a maioria sequer se dá ao trabalho de fazer uma simples conferência dos resultados apresentados. Confiança? Falta de tempo? Desleixo? Ou apenas não terá condições de compreender e questionar a correição dos valores?
Ocorre que, em termos práticos, a grande discussão que se estabelece é se efetivamente houve o pagamento ou não da pensão, muitas vezes com a celeuma versando sobre se a entrega de coisas in natura poderia ser computada e considerada como substitutiva do valor em dinheiro devido, ou ainda que o pagamento foi efetivado mas que não há recibo.
Acerca dos elementos acima narrados, de regra não se admite a substituição do valor em dinheiro pela entrega de coisas, como já consolidado pelo STJ5, pois cabe a quem tem o alimentado consigo a prerrogativa de determinar exatamente como o valor da pensão será destinado considerando as necessidades daquela criança ou adolescente.
A falta de recibo hoje acaba perdendo um pouco da incidência, considerando que, quando o devedor trabalha com vinculo empregatício, o valor devido é descontado diretamente de sua folha de pagamento (art. 529 e art. 912 do CPC), ao que se agrega todo o conjunto de evoluções tecnológicas, especialmente com as transações bancárias acontecendo de forma virtual.
Ainda que presentes todos esses aspectos aqui mencionados, é exatamente na confluência entre a elaboração do cálculo e a apresentação dos comprovantes de pagamento de valores referentes à pensão alimentícia que vou me debruçar.
É bastante comum que os profissionais que atuam em favor do exequente, ao apresentarem o cálculo do valor devido, indiquem, de forma quase que indiscriminada, que o dever encontra-se inadimplido, sem qualquer acurácia com relação à confirmação quanto a existência de eventuais pagamentos, ainda que parciais, no período inadimplido.
O pensamento que erroneamente sustenta essa atitude temerária resume-se na premissa de que cabe ao devedor comprovar o pagamento e, caso não apresente tal elemento comprobatório, restará a ele, mesmo que tenha pago, a responsabilidade de quitar o débito. Então, cobra tudo e espera para ver o que acontece...
Contudo essa forma de agir, além de ser manifestamente ofensiva à boa-fé processual, traz consigo uma consequência que é ignorada pela maioria daqueles que atuam na defesa dos devedores, o que acaba por fomentar que tal sorte de conduta siga sendo uma prática corriqueira. O ordenamento jurídico pátrio assevera que aquele que cobra divida já quitada, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, haverá de ser sancionado por tal atitude com o dever de indenizar aquele que foi cobrado indevidamente com o equivalente ao dobro daquilo que dele foi indevidamente exigido, conforme se pode extrair do disposto no art. 940 do CC6.
A exegese desse dispositivo legal gera uma série de discussões, estando para ser analisada pelos tribunais superiores a questão sob o viés do direito do consumidor, que apresenta artigo com construção bastante similar.
O primeiro ponto que pode criar algum embate recai sobre a possibilidade de incidência dessa previsão sancionatória em sede de alimentos, considerando que a origem dessa cobrança está no âmbito do direito de família. A isso respondo afirmando que inexiste qualquer vedação legal e, portanto, é perfeitamente aplicável o referido dispositivo em sede de excesso de cobrança de alimentos inadimplidos pelo devedor.
Um outro elemento que gera discussão sobre a aplicação do previsto no art. 940 do CC baseia-se na necessidade de demonstração de um elemento volitivo ou animus do exequente em tentar um benefício indevido, que traria consigo o imperativo da demonstração da má-fé, que se pode vislumbrar do disposto no art. 9417. Nesse aspecto pontuo que me parece bastante coerente que não seja cominado o referido dever de indenização quando ficar demonstrado que foi um mero erro de cálculo, perfeitamente admissível, contudo não se pode ser conivente com aquele credor que mesmo após manifestação do devedor, até mesmo com a comprovação da quitação, segue insistindo na cobrança indevida.
Há ainda uma outra circunstância que merece detida atenção acerca do tema, especialmente quando em sede de cobrança de alimentos promovida em favor de filho que ainda não atingiu a maioridade: quem há de se responsabilizar por essa cobrança excessiva? O alimentado ou sua genitora, que promove a execução em seu nome?
Admitindo-se que a cobrança foi elaborada pelo alimentado, o mais ordinário seria se concluir pela responsabilidade dele mesmo. Contudo quem efetivamente agiu foi aquela que o representa legalmente naquele momento e quem teria, de fato, agido de forma proscrita. Ainda que se entenda que a responsabilidade deva recair sobre o exequente caberá a ele, após atingida a maioridade civil, exigir a indenização dos danos que seu representante legal lhe tenha imposto.
Há aqui ainda a necessidade de se discorrer sobre a possibilidade ou não de compensação do valor da indenização em decorrência da cobrança indevida ou excessiva com o aquele devido a título de alimentos. Uma das pedras basilares do direito pátrio é que não se admite compensação de verbas alimentares8, exatamente em razão dessa sua natureza, o que certamente rechaçaria qualquer tentativa de se abater o valor da indenização daquele que há de ser pago ao alimentado/exequente.
Contudo essa pilastra de sustentação do direito de família precisa ser apreciada de uma outra maneira quando nos deparamos com aquela execução que tramita pelo rito comum, sem a possibilidade de prisão civil do alimentante, exatamente pelo fato de que motivo que veda a possibilidade de compensação não se faz mais presente. Se a vedação emana da impossibilidade de que o alimentado seja privado do valor que é destinado para sua mantença, a partir do instante em que a dívida não se reveste mais dessa natureza, cai também a proibição da compensação.
Importante se consignar que o objeto da presente coluna é a obrigação de alimentos indevidamente exigida, o que não atinge obrigações já alcançadas pela prescrição, a qual, no presente caso, tem regramento especial, considerando que o art. 197, II do CC assevera que não há transcurso do prazo prescricional contra descendentes, em face de seus ascendentes, na constância do poder familiar.
O que nos traz enorme preocupação é que, ao cabo, quem será atingida de fato pelas considerações aqui expostas será a mulher, que tradicionalmente, como mencionado anteriormente, é quem tem os filhos consigo e que, portanto, acaba sendo quem promove a cobrança dos alimentos.
O aspecto mais importante, no meu sentir, da presente coluna está direcionado às/aos advogadas(os) familiaristas, especialmente àquelas/es que se dedicam a uma atuação com manifesto viés de gênero, dedicando-se de forma direcionada aos direitos das mulheres, para que tenham esse cuidado de certificar-se de que sua execução de alimentos e a planilha de débitos que a guarnece estejam perfeitamente pautadas na realidade dos fatos.
Reiterando um posicionamento que muitas vezes expresso, aqui não prevalece a premissa de que quem se dedica ao labor no universo jurídico estaria respaldado e livre de qualquer responsabilização por estar vinculado a uma obrigação de meio (e não de resultado), atrelada a uma responsabilidade civil subjetiva. Com isso, não seria atingido caso o seu cliente não alcance o objetivo por ele colimado quando da propositura da ação. Contudo, se o profissional não teve a acuidade técnica de verificar se todo o valor que está cobrando é efetivamente devido, ou se foi leniente quanto a essa verificação, a sua atuação pode ser entendida como culposa, por imperícia, ao não exercer o seu labor com o esmero técnico necessário, o que pode implicar em sua responsabilização pelos danos causados ao seu cliente.
Será que basta ao profissional simplesmente acreditar na afirmação da representante legal do alimentado de que o alimentante não adimpliu aquilo que devia? Não haveria de, ao menos, solicitar que lhe fosse apresentado elementos mínimos que demonstrem que efetivamente os valores encontram-se em aberto? Não seria exigível, ao menos, a apresentação do extrato bancário da representante legal do exequente mostrando que efetivamente não houve o depósito, nem mesmo parcial, daquilo que virá a exigir?
Noutro lado, se o profissional que patrocina a defesa do executado não se vale dessa hipótese legal, sem nem mesmo suscitar a possibilidade ao cliente, não estaria também prestando um serviço passível de questionamento? Não seria o caso de, no mínimo, a configuração de um dano ao executado que poderia ser apreciado em sede de perda de uma chance?
Como de costume, o intuito da presente coluna segue sendo olhar para o direito para além das estruturas corriqueiras, ainda que isso possa se converter em um potencial risco de atingir a quem é vulnerabilizado. Porém o escopo é exatamente chamar a atenção daqueles que atuam nessa seara de que sua conduta precisa revestir-se de todo o cuidado necessário, o que é majorado por se tratar de uma situação na qual uma conduta desidiosa culminará em prejuízo para aquele alimentado ou sua genitora, já tão onerada.
Para finalizar, chamo aos colegas que já promoveram ou promovem execuções de alimentos a pensar: vocês costumam ter o cuidado de efetivamente verificar se não houve mesmo o pagamento que está sendo cobrado ou se fiam apenas no que é relatado pela representante do exequente? Já tinham pensado nisso? Conheciam o disposto no art. 940 do CC e ponderaram quanto a sua aplicatividade em tais casos? Já opuseram essa figura nos casos em que seus clientes foram cobrados de forma indevida? Já tiveram ela aplicada contra si?
São muitas perguntas que merecem a atenção de quem chegou até aqui na presente coluna. Especialmente a quem se apresenta como um profissional que tem uma atuação com recorte de gênero.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.
4 Disponível aqui.
5 Jurisprudência em teses do STJ, edição 65.
16) Não é possível a compensação dos alimentos fixados em pecúnia com parcelas pagas in natura.
6 Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.
7 Art. 941. As penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido.
8 Jurisprudência em teses do STJ, edição 77.
13) Os valores pagos a título de alimentos são insuscetíveis de compensação, salvo quando configurado o enriquecimento sem causa do alimentando.

