COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito e Sexualidade >
  4. Famílias simultâneas x família multiespécie: O viés sexual da restrição do reconhecimento de entidades familiares

Famílias simultâneas x família multiespécie: O viés sexual da restrição do reconhecimento de entidades familiares

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Atualizado às 07:39

A concepção de família é tema que tem sido objeto de atenção da presente coluna bem como de outros escritos que tenho produzido nos últimos tempos, de forma que já tenho consignado que se trata de uma questão que merece especial cuidado face todos os desdobramentos que dela decorrem.

Mesmo sob a égide de um Estado Democrático de Direito que se encontra lastreado em uma Constituição Federal que assevera que vivemos em um Estado laico, é possível se constatar de forma bastante simples e direta que quando o tema envolve a ideia do que há de ser entendido como família existe uma enorme incidência de preceitos de cunho religioso e moral que têm o poder de esvaziar toda a vitalidade da premissa constitucional da laicidade do Estado.

São inúmeras as situações nas quais a compreensão do que seja família, bem como dos elementos que permeiam o Direito de Família, acabam esbarrando em dogmas que se mostram atrelados a uma perspectiva de cunho religioso, o que enseja em uma restrição a todo aquele que ousa exercer a sua liberdade e constituir sua família segundo parâmetros que não se mostram perfeitamente adequados aos preceitos religiosos que regem o nosso ordenamento jurídico.

Como já mencionado anteriormente até mesmo nessa coluna, não se trata de impor à maioria que venha a submeter-se às visões de mundo dos grupos minoritários, mas sim que estes possam efetivamente exercer a sua liberdade e estabelecer seus relacionamentos segundos os critérios que se mostrarem mais convenientes para o seu modo de ver a vida1.

Durante muito tempo a única forma que o Estado concebia de estruturação familiar passava necessariamente pelo matrimônio, baseado em requisitos de fundo religioso e atrelado a um caráter vitalício2. Apenas aqueles que estivessem unidos pelos laços do casamento é que fariam jus às benesses garantidas pelo Direito de Família.

Ainda nesse contexto, em razão de todo viés religioso que acompanhou a elaboração da legislação referente ao tema, se tinha como um requisito intransponível, ainda que não encontrasse previsão expressa do corpo da lei, que o casamento só poderia ser estabelecido quando houvesse diversidade sexual entre os nubentes.

Sempre que menciono essa compreensão, prevalente enquanto da vigência do Código Civil de 1916, ressalto a construção que era apresentada   Pontes de Miranda de que a diversidade sexual seria tão natural que se mostrava desnecessária a sua determinação de forma expressa no corpo da lei3, em manifesto desprezo ao princípio da legalidade que pugna pela garantia da possibilidade de atuação sempre que não exista norma expressamente vedando a prática.

O fato inafastável é que a concepção de família que norteou o legislador quando do Código Civil de 1916 se mostrava vinculada a uma ideia de que o propósito dessa família passaria necessariamente pela regularização da prática de atos sexuais e constituição de uma prole, revelando que a compreensão do que poderia ser reconhecido como família estava conectado, de forma indissociável, a aspectos da sexualidade daquelas pessoas que pretendiam se unir.

Toda essa questão foi enfrentada no início da década passada quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre a discussão da possibilidade do estabelecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo4, decidindo, na ADI 4.277 e na ADPF 132, pela possibilidade da configuração de entidades familiares independentemente da existência de diversidade sexual entre aqueles que compunham aquela família5.

Essa decisão oxigenou um pouco a discussão sobre o tema, reconhecendo direitos a famílias que não eram assim consideradas em razão de uma interpretação segregatória, que culminava em discriminação que tinha por base a sexualidade tida por dissonante das pessoas que as integrava.

Mesmo enfrentando posicionamentos contrários6, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) foi bem recebida pela sociedade, aparentemente por se ter entendido que aqueles relacionamentos efetivamente estavam baseados nos parâmetros ordinários de concepção de uma família.

Porém o passar do tempo nos brindou com toda a polarização política que se faz presente nos dias atuais, trazendo com ela uma equivocada visão de que reconhecer Direitos Humanos e acolher os pleitos das minorias, principalmente as sexuais, estaria atrelado a um viés político. A isso veio a somar-se uma crescente falácia de que as questões vinculadas à sexualidade mereceriam ser rechaçadas de pronto, segundo uma interpretação bastante questionável dos preceitos religiosos.

Assim, vivemos dias em que temas associados à constituição de entidades familiares que não estejam perfeitamente enquadradas nos critérios considerados tradicionais tornou-se objeto de discussão político-partidária, em nível possivelmente sem precedentes, fazendo com que encontrem uma resistência que eu, talvez por inocência, já julgava estar superada7.

Dentre os vários temas associados à família que tem gerado celeuma se encontra o das famílias simultâneas, as quais podem ser entendidas, de maneira bastante singela, como aquelas nas quais se constata a existência de uma pluralidade de relacionamentos concomitantes, seja por meio da convivência conjunta de mais de duas pessoas, seja pelo estabelecimento de dois ou mais núcleos familiares concomitantes8.

O objeto da presente coluna não é exatamente discutir as modalidades possíveis de relacionamentos concomitantes, nem mesmo os requisitos eventuais para que possam ser reconhecidas, mas sim levar o leitor a refletir sobre algumas questões fáticas que atualmente se fazem presentes no Direito de Família.

Partindo dos critérios mínimos estabelecidos na lei para o reconhecimento de uma entidade familiar, independentemente da sua formalização perante o cartório, exige-se, para a configuração de uma união estável, que exista uma convivência pública, contínua e duradoura, com objetivo de constituir família, nos termos descritos no art. 1.723 do Código Civil. Ainda que possa haver ponderações relativas aos requisitos indicados9, pode-se afirmar que o elemento volitivo reveste-se de um caráter de elevada relevância.

Assim, família é algo que necessariamente decorre da existência de animus. É possível se falar em maternidade ou paternidade independentemente de uma real vontade de ser pai ou mãe, servindo de exemplo clássico as inúmeras hipóteses em que os genitores são compelidos a reconhecer a paternidade de seus filhos.

Contudo o estabelecimento de uma família, em seu vetor horizontal, fundado na existência de um relacionamento afetivo-amoroso, considerando a essência do que isso significa, parte necessariamente do desejo e interesse de que ela venha a ser constituída como tal10.

Infelizmente, atualmente, o desejo manifesto das pessoas quanto ao reconhecimento de que as famílias que escolheram constituir possam gozar de proteção legal tem enfrentado uma série de obstáculos e restrições baseados, claramente, em preceitos morais e religiosos que não se coadunam com os parâmetros estabelecidos em nosso Estado Democrático de Direito.

Sendo configurado que um indivíduo tenha uma convivência pública, contínua e duradoura, com objetivo de constituir família, com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, o seu interesse não será levado em consideração para fins de proteção legal dessas entidades familiares.

Não importa o seu desejo ou sua compreensão de que aquelas são suas famílias, uma vez que o Estado tem-lhe imposto que apenas uma dessas realidades poderá ser reconhecida como família para fins de proteção legal. E o que se questiona é: por qual motivo? Em que isso importa para a coletividade?

A ingerência do Poder Público nas relações de Direito de Família segue se mostrando presente e cerceadora da liberdade e autonomia, conflitando com o ideal principiológico de intervenção mínima do Estado nessa seara. A premissa de que haveria o Estado de abster-se de imiscuir-se em questões que "exaurem seus efeitos na esfera do interessado" com a prevalência do direito à autodeterminação, "sem a possibilidade de se lhe sobrepor 'un'ordre morale institutionnel'"11 segue sendo ignorada quando se trata da liberdade de constituição das famílias.

Os opositores do reconhecimento das famílias simultâneas ordinariamente argumentam suas objeções em critérios de natureza econômica ou na preocupação do que será feito de um eventual patrimônio constituído por esta ou aquela pessoa. As preocupações rotineiramente revestem-se de um cunho econômico, afastando totalmente o caráter existencial da questão.

No entanto tenho que confessar que nada me afasta da convicção de que essa resposta tem um fundo muito mais formal do que real, pois tal tipo de consideração não é levantada quando se discute a possibilidade de que uma pessoa tenha 2, 3, 4 ou 10 filhos.

A grande verdade é que tal tipo de negativa se mostra totalmente embebida em uma ideia de moralidade que, no mais das vezes, tem uma natureza muito mais teórica do que prática, que se coloca ao lado, por exemplo, da afirmação de que a monogamia segue sendo uma regra obrigatória imposta a todos os casais e que não pode por eles ser afastada12.

Muitos dos que se arvoram a bradar contra o reconhecimento da possibilidade de outras formas de entidades familiares distintas daquele conceito clássico de uniões formadas com diversidade de sexo e de forma monogâmica, na prática, não seguem tais premissas, mas se declaram como "cidadãos do bem" e defensores "da família tradicional". E isso nos conduz à necessidade de questionar exatamente o que tais pessoas entendem por família tradicional, o que certamente será objeto de discussão em texto posterior.

O que se pode constatar, em verdade, é que um dos pontos a causar maior incômodo aos objetores da possibilidade da constituição de famílias simultâneas reside numa aversão ao acolhimento e reconhecimento de uma situação de fato que já se mostra consolidada, na qual prevalece a liberdade afetiva das pessoas. Não só a liberdade de estabelecer vínculos afetivos fortes, mas principalmente um terror à possibilidade de que alguém possa manter, de forma chancelada pelo Estado, relações sexuais com mais do que uma pessoa.

Trata-se apenas de mais um componente da miríade de contradições que algumas pessoas ostentam em nossa sociedade. No mais das vezes, aqueles que se mostram radicalmente contra a possibilidade do reconhecimento de entidades familiares baseadas em relacionamentos tidos por não usuais, seja em razão da sexualidade daqueles que estão envolvidos nessa forma de constituição familiar, seja em razão da pluralidade de pessoas que as compõem, são as mesmas pessoas que se colocam como fervorosas defensoras da liberdade de expressão.

Para elas é: Liberdade de expressão, sim. Liberdade de constituição de família, não...

O preocupante é que essa concepção restritiva de direitos para aqueles que estão inseridos em uma família que se mostra fora dos padrões tem ganhado espaço socialmente e até mesmo com acolhida no Supremo Tribunal Federal (STF), que tem se afastado de sua atuação contramajoritária, como se constata da decisão proferida no RE 1.045.273, onde acabou por manifestar-se quanto a vedação da possibilidade do reconhecimento de família simultâneas, fundando-se, basicamente, na ideia de restrição quanto à pluralidade de matrimônios em razão da bigamia.

Essa interpretação, que perpassou também pela inclusão da monogamia como um parâmetro inafastável, está calcada em uma hermenêutica que refuta a incidência de parâmetros basilares da Constituição Federal, em um entendimento discriminatório que afasta da proteção legal entidades familiares pelo simples fato delas não estarem perfeitamente adequadas ao que se estabelece dentro de uma compreensão tradicional.

Ainda que as pessoas que compõem essa entidade familiar se vejam como família, mesmo que a sociedade as reconheça e trate como tal, o Estado segue em sua arrogância, avocando pra si a prerrogativa de determinar se aquela família é digna ou não de receber proteção13, reforçando o preconceito já institucionalizado contra as minorias14.

É preponderante a necessidade de uma interpretação mais inclusiva acerca daquilo que possa ser entendido como família, sem que moralismos e preceitos religiosos venham a restringir direitos básicos, sob pena de que enfrentemos na prática, situações de grave discriminação.

Trago, para que seja ponderado por quem está disposto a analisar a questão de forma crítica, uma hipótese, no mínimo, inusitada.

Tem sido cada vez mais recorrente o reconhecimento, na seara judicial, daquilo que se denomina de família multiespécie, entendendo-se que animais de estimação não são meras coisas, mas sim seres sencientes, os quais são considerados como parte integrante da família, com decisões acolhendo pleitos até mesmo de guarda, visitas e pensão para os pets.

Em oposição a essa visão mais abrangente do conceito de família, nos deparamos com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) vedando a possibilidade do reconhecimento de famílias simultâneas, escancarando, como já aduzido, a ofensa a preceitos clássicos como dignidade da pessoa humana, igualdade, autonomia e até mesmo a premissa elementar de mínima intervenção do Estado no Direito de Família. Essa decisão foi proferida em processo que tinha como pano de fundo uma questão de natureza previdenciária, que acabou por restringir o acesso à pensão morte apenas a uma das companheiras do falecido.

Esses fatos tem me levado a fazer uma provocação àqueles com quem dialógo sobre o tema, seja nas aulas ou palestras versando sobre Direito de Família: se o pet compõem a família multiespécie e a lei veda a discriminação entre os integrantes da família, não me parece que estaríamos, logicamente, muito distantes do momento em que os cachorros venham a ser considerados quando do cálculo da renda per capta de uma família para a fixação dos parâmetros para a concessão do benefício da prestação continuada.

Por mais absurda que possa aparecer a afirmação acima, a tendência dos tribunais de aceitar e reconhecer direitos à família multiespécie me faz crer que estas gozarão de uma maior gama de direitos no universo do Direito de Família do que aqueles que fazem parte de relacionamentos plurais.

Que fique claro que aqui não se está fazendo qualquer crítica à proteção dos animais, tampouco ao reconhecimento das famílias multiespécie, mas sim se levantando o questionamento acerca dos motivos pelos quais o Estado se vê no direito de privar de ofertar a devida acolhida a certas famílias como entidades familiares pelo simples fato delas fugirem da composição clássica, calcada em imperativos morais e religiosos que não devem nortear um estado laico.

O afeto tão festejado nos dias atuais em sede de Direito de Família parece não ter força suficiente para romper a barreira dos preconceitos fundados em uma moralidade de lastro sexual.

Que o amor aos pets prevaleça.

Que o amor ÀS PESSOAS também possa vicejar.

__________

1 Disponível aqui

2 Disponível aqui.

3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. t. VII, p. 296.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 126.

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A união homossexual ou homoafetiva e o atual posicionamento do STF sobre o tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo: Metodista, v. 8, 2010.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 145.

9 Disponível aqui.

10 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 134.

11 RODOTÀ, Stefano. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017, p. 14

12 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 120.

13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, n. 1, p.III - VII, 2022.

14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 50.