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A influência da sexualidade no mercado de trabalho

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Atualizado em 17 de setembro de 2025 09:24

Já tem mais de uma década que manifesto nos meus escritos e falas que a sexualidade é um aspecto nuclear e indissociável do ser humano, sendo uma das concepções mais elementares a lastrear toda a minha pesquisa direcionada à relação entre sexualidade e direito1. Sendo algo tão inerente à condição humana é de se esperar que trata-se de uma perspectiva que estará presente em todas as áreas da sociedade, de forma que, por óbvio, tem seus impactos na esfera do mercado de trabalho.

Na presente coluna, como de costume, trarei algumas ponderações para suscitar a discussão daqueles que se interessam pelo tema, possibilitando que se possa extrair dessas minhas inquietações desdobramentos para análises acuradas, calcadas em premissas técnicas e não em meros achismos.

Inicio asseverando que não ignoro que existe todo um contexto cultural atrelado ao desempenho das profissões, o que faz com que se tenha uma visão ordinária de que certas atividades estariam associadas a um determinado gênero, fato esse que já até mesmo levou à constatação de viés algorítmico em plataformas que direcionavam certas vagas de emprego exclusivamente a pessoas desse ou daquele gênero2.

Alguns estereótipos clássicos são aqui constatáveis, como o de que a profissão de caminhoneiro seria masculina, a ponto até mesmo de alguns afirmarem que mulheres desempenhando esse labor seriam homossexuais. Obviamente, tal sorte de afirmativa é corriqueiramente apresentada com todo um contexto de preconceito e discriminação, ainda que para uma parcela daquelas que exercem tal atividade sua realidade é a verdadeira expressão do empoderamento feminino e de sua independência, envergando com orgulho sua atuação.

Patente que não há, necessariamente, atividades profissionais que sejam obrigatoriamente segregadas em razão do sexo ou gênero de quem venha a desempenha-las, sendo tais percepções uma decorrência inafastável de uma construção cultural. Ainda assim, não há como se olvidar que algumas profissões são tradicionalmente exercidas por pessoas de dado sexo ou gênero.

Nesse sentido não se pode deixar de constatar que certas atividades, enquanto exercidas de forma "não profissional" (ou meramente não remunerada) são consideradas femininas, mas em sua versão profissional (e por vezes com altos rendimentos), passa a ser compartilhada ou eminentemente masculina.

Se pensamos nos deveres de cuidado, é sólida a imposição de sua assunção pelas mulheres, especialmente na sua modalidade não remunerada e vinculada aos entes familiares. Contudo, se pensarmos no seu correlato profissional, como no caso da enfermagem, por exemplo, já se encontra uma considerável presença de homens em clínicas e hospitais.

Outro universo que apresenta caracteres interessantes com relação à presença de homens e mulheres, quando apreciado sob lentes de atividade remunerada ou não, está associado ao das pessoas que cozinham. Em casa, sem remuneração, tal atividade é amplamente destinada às mulheres, tida como feminina. Já no mercado de trabalho geral, acaba sendo mais compartilhada, com homens e mulheres marcando presença em bares, lanchonetes e restaurantes de forma geral.

Mas se o recorte for o dos grandes nomes da culinária, mundialmente aclamados pela "arte de cozinhar", vê-se uma predominância masculina. Basta se considerar que apenas cerca de 6% dos restaurantes agraciados com estrelas Michelin são comandados por mulheres3.

Por óbvio que dificilmente poderemos pensar nos homens sendo vítimas de discriminação no mercado de trabalho, sem poderem acessar certas posições, em que pese a existência de casos cujo fundamento reside na alegação de que teriam sido preteridos em promoções por serem homens4. Porém é relevante tecer algumas breves linhas sobre eventuais restrições de acesso a posições de trabalho por homens, apenas para suscitar a discussão.

Ao mesmo tempo que estabelecemos uma série de cruzadas em busca de impor que os homens se responsabilizem pelos deveres de cuidado com relação aos seus filhos, é recorrente as mulheres se oporem aos pais que queiram exercer o direito de ter seus filhos em sua companhia quando as crianças ainda contam com pouca idade.

Ainda que se negue que exista uma propensão natural da mulher em cuidar dos filhos e uma inabilidade biológica dos homens em desempenhar as atividades básicas de cuidado de uma criança, não é necessário ter nenhum tipo de capacitação excepcional para se trocar a fralda de uma criança. Mesmo assim, carreando essa perspectiva para o âmbito laboral, é praticamente impossível que se pense na possibilidade de que um homem exerça a função de babá, ainda que ele venha a apresentar todas as qualificações técnicas necessárias para tanto.

Antecipando-me a toda à refração que surge à mera sugestão de que um homem venha a ser um babá, sob o argumento de que a contratação de um homem para cuidados de uma criança configuraria um risco face à possibilidade de violências sexuais que possam vir a ser perpetradas, é importante não se olvidar que cerca de 70% dos casos de violência sexual contra crianças entre 0 e 9 anos é praticado por familiares ou conhecidos5. Os relatos que são noticiados de violência contra crianças praticadas por profissionais têm sempre mulheres como agressoras (provavelmente por apenas elas exercerem essa atividade), e isso não basta para afastar, de forma geral, todas as mulheres dessa atividade. Mas é o suficiente para praticamente vedar a existência de homens atuando nessa profissão.

Note-se que quando apreciamos a referida questão noutro estágio dos cuidados, verifica-se que os casos de violência contra crianças em escolas, praticadas por profissionais, tem-se, majoritariamente, mulheres como agressoras. Uma vez mais, por óbvio, muito disso decorre do fato de que na educação infantil quase a totalidade da atividade é desenvolvida por mulheres, sendo elas 97,2% nas creches e 94,2% na pré-escola, segundo dados de 20226.

Após trazer essas breves considerações sobre as profissões ou atividades tidas como masculinas ou femininas, passo a uma outra perspectiva relevante que vincula a sexualidade ao mercado de trabalho, atrelado à realidade enfrentada pelas pessoas transgênero.

Em que pese a ausência de dados oficiais ser um grande obstáculo para uma análise mais profunda, estudos revelam que cerca de 90% das mulheres transgênero têm a prostituição como sua fonte primária de renda7, ou mesmo se descrevem como profissionais do sexo8. Isso nos conduz a um questionamento bastante simples: qual o motivo dessa realidade?

Ainda que muitos professem um discurso de que as oportunidades estão disponíveis a todos, bastando se esforçar para se chegar a uma condição de emprego formal, é evidente que tal visão, calcada nos parâmetros de uma meritocracia genérica, ignora uma realidade discriminatória que perpassa a existência das pessoas transgênero9.

A discriminação enfrentada pelas pessoas transgênero é de tal grandeza que integra as considerações realizadas pela CorteIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos quando da Opinião Consultiva 24/17, tendo ali sido reconhecida a proibição da discriminação em razão da identidade de gênero nas relações de trabalho10.

A massiva vinculação das mulheres transgênero a atividades laborais atreladas ao sexo não tem qualquer relação com uma propensão desse grupo em específico à perversão, depravação ou promiscuidade11, mas sim a uma total falta de oportunidades, o que evidencia-se do simples fato de que pessoas transgênero enfrentam tamanha discriminação nos bancos escolares que apresentam elevadas taxas de evasão, haja vista que seu direito fundamental de acesso à educação não é efetivado em nosso país12. A realidade é desoladora, com dados que revelam que apenas cerca de 0,02% das pessoas trans conseguem acessar o ensino superior, enquanto 72% delas não possuem o ensino médio, e 56% não têm o ensino fundamental13.

Convido a quem chegou até aqui na leitura desse texto a um exercício simples: Quantos professores vocês tiveram que eram pessoas transgênero? Se essas pessoas estão na sociedade, deveriam estar presentes, por lógica, em todas as áreas do mercado de trabalho.

Ainda na mesma premissa, quantos colegas transgênero vocês tiveram em suas salas de aula?

Por uma lógica elementar, a dificuldade no acesso à educação formal vai se revelar como um enorme obstáculo para que se possa acessar ao mercado de trabalho, ao que ainda será associado todo o preconceito e discriminação que marcam as existências das minorias sexuais14.

Tirando as lojas tidas como "inclusivas" ou "descoladas", quantas foram as vezes em que você foi atendido por uma pessoa transgênero em sua vida? Quantos foram os profissionais que lhes atenderam em consultórios médicos, hospitais ou escritórios que eram pessoas transgênero?

Essas pessoas não existem ou estão invisibilizadas15? Ou a elas simplesmente se negou o acesso ao mercado formal de trabalho?

São recorrentes os relatos de pessoas transgênero que, apesar de revelarem alta passabilidade16, tem sua contratação barrada no instante em que apresentam os documentos pessoais, ante a mera constatação de que se trata de uma pessoa transgênero17.

Outras circunstâncias que também podem ser mencionadas nessa mesma senda recaem na "alegação de erro essencial quanto a pessoa ou dolo para se invalidar a contratação de prestação de serviço de uma mulher transgênero como babá, depiladora ou maquiadora, por exemplo, sob a alegação clássica de que se acreditava tratar de uma "mulher" e que seriam serviços ordinariamente prestados por mulheres"18.

Quando ponderamos essa questão sob o viés das atividades esportivas, exercida de forma profissional, também temos nos deparado com inúmeras circunstâncias nas quais se tenta vedar a participação de pessoas transgênero ou intersexo, em casos que se tornaram bastante conhecidos nos anos recentes, como o da jogadora de vôlei Tifanny Abreu19 e das boxeadoras olímpicas Lin Yu-ting (Taiwan) e Imane Khelif (Argélia)20, mesmo inexistindo dados científicos que comprovem qualquer sorte de beneficio esportivo em decorrência da participação em competições segundo a identidade de gênero21.

É premente não se esquecer que além da previsão constitucional que reconhece a igualdade e a vedação de discriminações (art. 5º), especificamente na esfera laboral, a OIT - Organização Internacional do Trabalho, por meio da Convenção 111, promulgada no Brasil como decreto (62.150, de 19 de janeiro de 1968), conceitua a discriminação laboral como "toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão", o que respalda a proteção necessária a todas as pessoas.

Como assevero reiteradamente, segue sendo imprescindível se afirmar que aqueles que integram as minorias sexuais são pessoas e precisam ter a si assegurados os direitos fundamentais a todos resguardado, por mais que isso possa parecer redundante, haja vista que, na prática, a luta pelo básico segue sendo árdua para esse grupo tão vulnerabilizado22.

De se consignar, por fim, que considerando os termos reconhecidos pelo STF na ADO/26, a vedação de acesso a uma determinada vaga ou a negativa de contatação para o exercício de uma atividade laboral/prestação de serviço pelo simples fato de não querer uma relação com uma pessoa homossexual ou transgênero encerra em si uma conduta típica, passível das penas de racismo ou injúria racial23.

Evidencia-se, do todo exposto, que não são poucos os reflexos da sexualidade no mercado de trabalho, não sendo possível se apartar toda a complexidade das relações laborais e do mercado de trabalho dessa perspectiva. Mas, questiono, por mais desconstruído que você seja, qual seria a sua reação nas situações aqui mencionadas? Contrataria um babá? Aceitaria, sendo homem, uma massagista trans? Questões práticas como essas colocam sob perspectiva a nossa própria posição quando nos apresentamos como desprovidos de preconceitos.

_______

1 Cunha, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2014. 515 f. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 BENEVIDES, Bruna G. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. p. 47.

8 SOUZA, Dediane; ARAÚJO, Tathiane (orgs.). Reflexões sobre os dados do Censo Trans. Rede Trans. p. 32. Disponível aqui.

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 45.

10 CUNHA, Leandro Reinaldo da; COSTA, Diego Carneiro. A Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e seus reflexos no combate à discriminação contra pessoas trans nas relações de trabalho. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v.8, p.208 - 227, 2020.

11 ANTUNES, Pedro Paulo Sammarco. Travestis envelhecem? 268 f. Dissertação (Mestrado em Gerontologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 137.

12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 186.

13 BENEVIDES, Bruna G. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022.

14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 33.

15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 50.

16 Disponível aqui.

17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 198.

18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 112.

19 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 182.

20 Disponível aqui.

21 Disponível aqui.

22 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16.

23 Disponível aqui.