COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito e Sexualidade >
  4. A lei 15.263/25 e o pavor social da linguagem neutra de gênero

A lei 15.263/25 e o pavor social da linguagem neutra de gênero

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Atualizado em 26 de novembro de 2025 08:58

Uma das maiores habilidades exigidas de quem busca se comunicar através da palavra escrita é a capacidade de organizá-las de forma que elas se mostrem compreensíveis e façam sentido para o destinatário da mensagem que elas pretendem levar.

Ou, poderia eu dizer que, dentre as prerrogativas que se reclamam daquele que, pelo decurso das letras, ambiciona exteriorizar o seu pensamento, sobressai a engenhosíssima faculdade de dispor e enlaçar os vocábulos em tal ordem e cadência que o enunciado, por mais rarefeito que se mostre, se descortine ao espírito do destinatário como inteligível, congruente e fiel depositário da inteireza semântica da mensagem cuja transmissão se porfia em consumar sem detrimento ou obliteração.

Nos dois parágrafos acima temos o mesmo conteúdo, contudo não há dúvidas de que o primeiro deles se revela como aquele com uma construção que se mostra mais acessível às pessoas em geral. Se não fosse esse um texto formal, poderia simplesmente afirmar que é importante que quem está escrevendo pense em quem vai ler.

Faço essas ponderações em razão do ressurgimento da celeuma quanto a utilização da linguagem inclusiva de gênero (ou linguagem neutra de gênero) face à publicação recente da lei 15.263/25, em 14 de novembro.

Já tive a oportunidade de me manifestar anteriormente sobre o tema da linguagem inclusiva, o fazendo, em 2021, no editorial publicado na 4ª edição da Revista Direito e Sexualidade, em texto intitulado "Linguagem neutra: ofensa à língua portuguesa ou preconceito velado?"1.

Após isso, em entrevista, publicada em 22 de janeiro de 2023 no jornal A Tarde, na coluna "Entre Aspas", fui chamado a responder alguns questionamentos sobre essa mesma temática em razão do fato de que alguns Ministros, nos primeiros dias do atual governo Lula, terem usado o gênero neutro em seus discursos, bem como pelo julgamento no STF de ação que versava quanto a inadmissibilidade de uma legislação estadual que editava normas sobre diretrizes e bases da educação que mencionava a utilização da linguagem neutra.

Posteriormente, em 16 de fevereiro de 2023, fiz uma postagem no meu perfil do Instagram exatamente sobre a referida decisão do STF, com o objetivo de elucidar o seu conteúdo.

De fato, portanto, já expus parte do que penso sobre a utilização da linguagem inclusiva.

Em linhas simples, compilando o que consta do material mencionado, pontuo que a maioria das pessoas que se posiciona contra uma linguagem inclusiva o faz muito mais por uma imposição ideológica do que por conhecimento ou compreensão do que ela engloba, politizando uma questão que há de ser trabalhada segundo os parâmetros da dignidade da pessoa humana. Para além da perspectiva linguística, o essencial é se entender que essa inclusão pode ser benéfica e ter impactos até mesmo para a manutenção da existência desse grupo tão vulnerabilizada que se sente excluído e marginalizado em tantas searas, sendo a linguagem uma delas2.

Complemento afirmando ser inusitado constatar que uma população que, de forma geral, se comunica com tão pouco cuidado com as regras formais, se levante com tamanha veemência a fim de proteger a língua portuguesa, a chamada de última flor do Lácio por Olavo Bilac3. Essa hipocrisia permite que surja o questionamento que pauta o título do editorial publicado na Revista Direito e Sexualidade: a preocupação é quanto a integridade da língua portuguesa ou apenas uma forma velada de expressar o preconceito?

O fato é que qualquer que seja a medida que possa conduzir a uma maior inclusão e redução das mazelas enfrentadas por um grupo tão vulnerabilizado, que encara um genocídio trans em nossa sociedade4, há de prevalecer sobre a proteção da linguagem formal ou padrão, caso seja esse mesmo o fundamento das manifestações contrárias à linguagem inclusiva5.

Feita essa breve introdução é o momento de passar a discorrer sobre a lei 15.263/25 e, de fato, é essencial que eu declare de pronto que não me oponho ao seu conteúdo e objetivo. Consigno, de forma indubitável, que a legislação é necessária, pois a determinação de que os atos emanados da administração pública sejam redigidos com uma linguagem que permita a efetiva compreensão de seu conteúdo pelos cidadãos, como previsto no art. 2º, I da lei, é premissa básica para a efetiva implementação da cidadania plena.

Explicitado isso, é premente que se passe a uma análise mais acurada, segundo a qual é possível se constatar a configuração clássica do preconceito e discriminação escamoteados de tecnicidade. Ao cabo, portanto, o ponto que se coloca aqui está muito mais associado à forma como o conteúdo da lei 15.263/25 foi veiculada, ainda que tenhamos elementos objetivos que também merecem atenção.

A leitura dos demais objetivos presentes no mesmo art. 2º da lei 15.263/25 também mostram-se relevantes, pois, reduzir a necessidade de intermediários na comunicação entre o poder público e o cidadão (III); e os custos administrativos e o tempo gasto com atividades de atendimento ao cidadão (IV); promover a transparência ativa e o acesso à informação pública de forma clara (V); facilitar a participação popular e o controle social da gestão pública (IV), e facilitar a compreensão da comunicação pública pelas pessoas com deficiência (V) são essenciais ao verdadeiro acesso à cidadania.

Com isso o intuito é deixar gravado, para que não se erijam questionamentos desnecessários, que o que se questiona aqui não é a lei ou seu escopo, mas sim alguns aspectos que são levantados com base no que nela está previsto.

O que mais me causa estranheza no que tange à referida lei é que apesar dela instituir a Política Nacional de Linguagem Simples, como consta expressamente da sua ementa e do art. 1º, o que foi levado a público de forma até mesmo oficial foi que teria ocorrido a vedação governamental quanto ao uso da linguagem neutra. Basta acessar a publicação da Agência Brasil, a agência pública de notícias do governo federal brasileiro, que tem como manchete: "Governo sanciona proibição do uso de linguagem neutra em órgão público"6.

Retomando o texto legal, visando garantir a clareza que há de pautar uma lei que institui a Política Nacional de Linguagem Simples, o art. 4º da lei 15.263/25 define o que há de ser entendido, para os fins aos quais ela se destina, como linguagem simples. O conceito posto é que a chamada linguagem simples é "o conjunto de técnicas destinadas à transmissão clara e objetiva de informações, de modo que as palavras, a estrutura e o leiaute da mensagem permitam ao cidadão facilmente encontrar a informação, compreendê-la e usá-la".

Não posso deixar de mencionar a ironia de que tal definição traga a expressão "leiaute", que seria o "aportuguesamento" de layout. Seria essa mesmo a melhor palavra a ser usada pensando em uma forma de se manifestar de maneira clara e objetiva? A população geral sabe o que essa expressão quer dizer? A sua inclusão no texto se faz relevante ou ele seria perfeitamente assimilável sem a sua presença?

O termo, na forma utilizada, tem vinculação com a ideia de organização visual ou gráfica, o que não está necessariamente atrelado ao escopo da lei que versa sobre linguagem simples. Mas essa discussão passa ao largo da minha competência enquanto jurista, deixando-a para que os linguistas a apreciem.

Superada a figura da definição do que seria linguagem simples, é de se consignar que a lei 15.263/25 tem por objetivo, como ela mesmo descreve, tratar da figura da utilização de uma linguagem simples e acessível nos documentos oficiais elaborados pela administração pública. Contudo o que ganhou notoriedade foi tão somente o fato de haver um dispositivo que veda a utilização da linguagem neutra nesses documentos, ignorando todo o resto previsto na legislação.

De se afirmar, de forma peremptória, que não se proibiu o uso da linguagem inclusiva, mas apenas que ela não deve estar presente em documentos elaborado pela administração pública a fim de que toda a população não tenha dificuldades de compreender seu conteúdo. Não há uma determinação de alcance geral com o fim de impedir o uso da linguagem inclusiva, como muitos deram a entender, valendo-se do já clássico e preocupante clickbait jurídico7.

A mera leitura do disposto no art. 5º da lei 15.263/25 permite constatar a existência de 18 (dezoito) incisos que nortearão a administração pública na consecução das diretrizes da Política Nacional de Linguagem Simples. Neles está expresso que haverá de se obedecer "às técnicas de linguagem simples na redação de textos dirigidos ao cidadão", trazendo, na sequência, um rol com a indicação do dever de:

I - redigir frases em ordem direta;

II - redigir frases curtas;

III - desenvolver uma ideia por parágrafo;

IV - usar palavras comuns, de fácil compreensão;

V - usar sinônimos de termos técnicos e de jargões ou explicá-los no próprio texto;

VI - evitar palavras estrangeiras que não sejam de uso corrente;

VII - não usar termos pejorativos;

VIII - redigir o nome completo antes das siglas;

IX - organizar o texto de forma esquemática, quando couber, com o uso de listas, tabelas e recursos gráficos;

X - organizar o texto a fim de que as informações mais importantes apareçam primeiramente;

XI - não usar novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas, ao Volp - Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, promulgado pelo decreto 6.583, de 29 de setembro de 2008.

XII - redigir frases preferencialmente na voz ativa;

XIII - evitar frases intercaladas;

XIV - evitar o uso de substantivos no lugar de verbos;

XV - evitar redundâncias e palavras desnecessárias;

XVI - evitar palavras imprecisas;

XVII - usar linguagem acessível à pessoa com deficiência, observados os requisitos de acessibilidade previstos na lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência);

XVIII - testar com o público-alvo se a mensagem está compreensível.

Das quase duas dezenas de regras colacionadas ao texto da lei 15.263/25 o que foi ressaltado por portais de veiculação de noticias jurídicas, jornais e até mesmo pela agência oficial do Governo Federal foi a chamada linguagem neutra. Qual a razão de tamanha obsessão com a linguagem neutra?

Não consigo deixar de me questionar o que motivou isso.

Das 18 premissas ali descritas é de se constatar que a flexão de gênero "em contrariedade às regras gramaticais consolidadas" é a menos comum de se vislumbrar, sendo, dentre elas, a regra com menor impacto. Mas, ainda assim, foi ela a que ganhou evidência, a ponto de pautar as publicações sobre a lei.

Em termos práticos, por exemplo, o disposto no inciso VI do art. 5º da lei 15.263/25 (evitar palavras estrangeiras que não sejam de uso corrente) se mostra muito mais relevante a fim de garantir o acesso ao conteúdo das manifestações emanadas da administração pública.

Quando se entende que a flexão de gênero não está atrelada apenas às expressões como "todes", mas também as palavras no feminino que não se mostram consolidadas, a compreensão do texto reveste-se de outros contornos.

Obviamente é mais fácil a uma pessoa comum entender o que se busca indicar quando se usa "soldada" e "almiranta", como feminino de soldado e almirante, do que compreender estrangeirismos, como compliance (usada até mesmo para nomear operações da Polícia Federal, como a Compliance Zero) ou feedback, que se faz presente de forma recorrente em publicações da Agência Brasil8.

Cemaden/MCTI - Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação adota a expressão "briefing" para o conjunto de informações resumidas por ele divulgado9.

Mas essas palavras não são proibidas, visando a compreensão clara e objetiva das informações oriundas da administração pública. Segundo o texto do art. 5º da lei 15.263/25, são elas apenas expressões a serem evitadas.

Com isso, questiono: uma pessoa qualquer da população brasileira, tem mais chances de entender um texto em que se encontre a expressão "todes" ou "compliance" ou "feedback"? No texto "todes têm direito a um feedback", a compreensão está em risco por qual das palavras? Faz mesmo sentido que todes seja proibida e feedback apenas evitada?

Portanto, faço o convite à reflexão: o motivo para se restringir as flexões de gênero tem mesmo o único objetivo de garantir a compreensão do texto?

É essencial que se tenha um olhar crítico sobre os dispositivos que compõem a lei 15.263/25, bem como a forma como ela foi utilizada quando de sua publicação, tanto por órgãos oficiais como pela imprensa tradicional e veículos de divulgação jurídica.

Os termos utilizados para designar os integrantes dos grupos minoritários, bem como os que compõem o seu "dialeto" característico, fazem parte dos elementos culturais que os marcam, e configuram-se como um dos grandes campos de disputa em busca de reconhecimento social.

Confrontadas com essas figuras que buscam o reconhecimento e a visibilidade das minorias, as maiorias se portam de forma refratária, laborando para dizimar tais aspectos, num manifesto reflexo da sua fragilidade face às parcas conquistas das minorias, como já descrito em coluna anterior10.

Como já afirmei, com as devidas distinções, talvez estejamos diante da luta pelo estabelecimento de um "neutroguês", em analogia ao "pretoguês" defendido por Lélia Gonzales11.

Premente se faz que jamais se olvide que, como traz Sérgio Freire, linguista e professor da UFAM, "a língua serve para comunicar, mas que também serve para não comunicar; serve para incluir e para excluir. A língua é, portanto, política em sua natureza. Em sendo política, ela é arena de disputas ideológicas"12.

Reitera-se que não apenas as pessoas transgênero são atingidas pela proibição que consta do art. 5º da lei 15.263/25 quanto a flexão de gênero "em contrariedade às regras gramaticais consolidadas", mas também o público feminino, já que tal previsão atinge toda sorte de construção linguística que não esteja consolidada e que tenha por objetivo incluir o feminino.

Se o escopo da lei 15.263/25 é o implemento de uma Política Nacional de Linguagem Simples é primordial que se entenda toda a sua amplitude e que as premissas ali estabelecidas sejam sopesadas e apreciadas com a finalidade de se garantir que todo o conteúdo que emana da administração pública se mostre efetivamente claro e objetivo. E é inquestionável que essa norma jamais pode ser instituída com o fulcro de institucionalizar ainda mais o preconceito e a discriminação enfrentados pelas pessoas transgênero.

Reitero o que já aduzi anteriormente. "Aparenta ser bastante evidente que muito dessa refração de alguns assenta-se no mesmo espectro do preconceito existente na seara da identidade de gênero em que muitos "se negam a aceitar" a transição realizada por algumas pessoas, não lhes conferindo tratamento segundo seu gênero de pertencimento, tampouco referindo-se a elas pelo nome escolhido", como uma forma de se manter a exclusão e invisibilidade dessa minoria sexual13.

Não se trata de obrigar as pessoas a usarem termos inclusivos.

A discussão não é essa. O problema está exatamente em impedir que tais termos sejam usados pela administração pública, fazendo com que a linguagem siga sendo usada como ferramenta de preconceito e discriminação institucionalizado14.

Por fim, peço que pensem: será que todo o problema está mesmo no "todes"?

_______

1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Linguagem neutra: ofensa à língua portuguesa ou preconceito velado? Revista Direito e Sexualidade, v.2, n.2, p. I - IV, 2021.

2 JORGE, Gilson. "Estamos num momento de mudança histórica muito grande". A Tarde, Salvador, 22 jan. 2023. Caderno Muito, p. 3. Entrevista com Leandro Reinaldo da Cunha.

3 OLAVO BILAC, "Língua portuguesa", in Poesias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1902, p. 193.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 59.

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Linguagem neutra: ofensa à língua portuguesa ou preconceito velado?. Revista Direito e Sexualidade, v.2, n.2, p. I - V, 2021.

6 Disponível aqui.

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Os riscos de clickbait jurídico. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 5, n. 1, p. III-V, 2025.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Não é tolerância. É respeito. Coluna Direito e Sexualidade - Portal Migalhas. Disponível aqui.

11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Linguagem neutra: ofensa à língua portuguesa ou preconceito velado?. Revista Direito e Sexualidade, v.2, n.2, 2021, p. V.

12 FREIRE, Sérgio. Sobre linguagem e Todes. Blog Sérgio Freire, 6 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 23 nov. 2025.

13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Linguagem neutra: ofensa à língua portuguesa ou preconceito velado?. Revista Direito e Sexualidade, v.2, n.2, 2021, p. IV-V

14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 44.