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Empreendedoras ou precarizadas? Como a pejotização penaliza as mulheres

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Atualizado às 07:36

Introdução: O avanço silencioso da pejotização

Nas últimas décadas, o mercado de trabalho brasileiro tem vivenciado profundas transformações nas relações de emprego. Entre elas, destaca-se a expansão da chamada "pejotização", um fenômeno caracterizado pela substituição de vínculos regidos pela CLT por contratos de prestação de serviços através da constituição de pessoas jurídicas (as famosas "PJs").

Embora afete uma ampla gama de trabalhadores, a pejotização impacta de maneira particularmente severa as mulheres, sobretudo aquelas inseridas em setores marcados por desigualdades estruturais de gênero e de raça. Este artigo explora como essa modalidade de contratação aprofunda vulnerabilidades e reforça barreiras históricas, comprometendo direitos trabalhistas, segurança financeira e proteção social das mulheres.

Porque a pejotização se expande?

A pejotização ganhou força com o avanço das políticas neoliberais, da flexibilização das leis trabalhistas e da cultura empreendedora. A justificativa muitas vezes é a de fomentar a liberdade contratual, aumentar a eficiência e reduzir custos para as empresas, que passam a não recolher encargos sociais ou trabalhistas, como férias, 13º salário e FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

Contudo, por trás dessa aparente modernização das relações de trabalho, esconde-se uma estratégia de precarização, deslocando os riscos econômicos do empregador para o trabalhador. No caso das mulheres, tais riscos são agravados pela própria estrutura social e econômica que historicamente submete as trabalhadoras a condições mais desiguais.

As especificidades da inserção feminina no mercado de trabalho

Antes de analisar os impactos da pejotização, é preciso compreender o lugar ocupado pelas mulheres no mercado de trabalho. De acordo com dados do Relatório de Transparência Salarial e Igualdade Salarial, divulgado em abril de 2025 pelos Ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres:

  • Mulheres ganham, em média, 20% a menos do que homens;
  • A média salarial dos homens é de R$ 4.745,53, enquanto a das mulheres é de R$ 3.755,01;
  • Quando se trata de mulheres negras, o salário médio vai para R$ 2.864,39;
  • Nos cargos de alta gestão, a diferença salarial é ainda maior, com mulheres recebendo 26,8% a menos que os homens.

Assim, a pejotização, que já é problemática por si só, adquire contornos ainda mais críticos quando analisada sob a perspectiva de gênero e raça.

Os impactos da pejotização para as mulheres

As mulheres já enfrentam diversos obstáculos para ingressar, permanecer e acender no mercado de trabalho: salários menores, menos acesso a cargos de liderança, assédio, jornada dupla e interrupções na carreira por causa da maternidade. A pejotização tende a ampliar essa desigualdade, com a:

1.  Ausência de proteção à maternidade: Como pessoa jurídica, a mulher não tem direito automático ao benefício da licença-maternidade. Embora seja possível requerê-lo como contribuinte individual ao INSS, o processo é burocrático, exige contribuições regulares e não oferece a estabilidade no emprego.

2. Invisibilidade Previdenciária: a obrigação de contribuir para o INSS recai sobre a própria trabalhadora, que, muitas vezes, não tem orientação ou condições financeiras para fazê-lo de forma adequada e contínua.

3. Flexibilidade ou Armadilha: O regime PJ, ao não reconhecer limites formais de jornada, tende a exigir das trabalhadoras uma disponibilidade irrestrita, dificultando a conciliação entre trabalho e responsabilidades familiares - majoritariamente assumidas por mulheres. Esse fator intensifica o fenômeno da "dupla jornada", colocando-as diante de um dilema: aceitar condições de trabalho precarizadas ou renunciar à participação no mercado laboral.

4. Fragilidade sindical: A relação PJ costuma isolar a trabalhadora e enfraquecer seu poder de negociação. Ela não está protegida por sindicatos ou comissões internas. Casos de assédio moral ou sexual tendem a ser silenciados, uma vez que a denúncia pode resultar em rompimento de contrato, sem justificativa ou compensação.

Pejotização e interseccionalidade: o impacto ainda maior sobre mulheres negras

Lamentavelmente, as mulheres negras são ainda mais afetadas pelos efeitos perversos da pejotização. Elas enfrentam maiores barreiras de acesso a ocupações formais e de qualidade, sendo, portanto, as primeiras a sofrerem com processos de flexibilização e precarização.

A pejotização, nesse contexto, atua como um mecanismo que perpetua desigualdades históricas, reforçando ciclos de pobreza, exclusão e marginalização.

A romantização do empreendedorismo feminino

A pejotização é, muitas vezes, apresentada sob a roupagem de "empoderamento feminino" e "autonomia profissional", alimentando o discurso do empreendedorismo como solução para a desigualdade de gênero.

Embora seja importante valorizar iniciativas empreendedoras lideradas por mulheres, é preciso distinguir entre empreendedorismo por oportunidade e por necessidade. A maioria das mulheres que se tornam PJs não o fazem por escolha livre e planejada, mas por imposição do mercado ou ausência de alternativas.

Esse cenário cria uma armadilha: a precarização é vendida como emancipação, enquanto, na prática, promove insegurança, sobrecarga e exclusão de direitos.

Caminhos para equidade

Diante dos desafios apresentados, algumas estratégias podem contribuir para mitigar os efeitos da pejotização sobre as mulheres:

  • Fortalecimento da fiscalização trabalhista para coibir contratos fraudulentos que mascaram vínculos CLT;
  • Políticas públicas de proteção social que propiciem acesso a direitos previdenciários e de assistência, independentemente do modelo de contratação;
  • Educação e conscientização dirigidas a mulheres jovens em processo de inserção no mercado;
  • Criação de políticas públicas com foco em  sustentabilidade financeira, com acesso a crédito, formação e redes de apoio;
  • Reforma legal garantindo proteção à maternidade e aposentadoria para trabalhadoras PJ.

Conclusão

A pejotização não é apenas um fenômeno jurídico ou econômico, mas um reflexo das estruturas sociais de poder que moldam o mercado de trabalho. No caso das mulheres, ela aprofunda vulnerabilidades e torna mais distante a realização de direitos fundamentais, como igualdade, dignidade e segurança.

Combatê-la exige não apenas ação estatal e mudanças legais, mas também uma profunda transformação cultural, que reconheça e valorize o trabalho das mulheres em todas as suas dimensões, assegurando condições dignas, proteção social e igualdade de oportunidades.

Enquanto isso não ocorre, a pejotização seguirá sendo um dos rostos mais perversos da precarização contemporânea, com feições marcadamente femininas.

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