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Direito por Elas

Os mais variados temas do Direito, todos produzidos por mulheres juristas.

Dione Almeida
O recente voto do ministro Flávio Dino no RE 1.520.4681 (Tema 1.370) representa um marco relevante para a consolidação  da perspectiva de gênero em processos que envolvam o impacto da violência doméstica familiar na vida profissional das mulheres brasileiras. O sistema de saúde brasileiro continua detectando que mulheres estão expostas a diferentes formas de violência e que suas próprias residências seguem sendo espaços inseguros para elas. Significa dizer que casa é o lugar menos seguro para a mulher. De acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 64,3% dos feminicídios aconteceram na residência das vítimas.  Em 2023, as agressões em contexto de violência doméstica aumentaram: foram 258.941 vítimas mulheres, o que indica um crescimento de 9,8% em relação à 2022. O número de mulheres ameaçadas subiu 16,5%: foram 778.921 as mulheres que vivenciaram essa situação e registraram a ocorrência junto à polícia. O aumento dos registros de violência psicológica também foi grande, de 33,8%, totalizando 38.507 mulheres. O crime de stalking (perseguição) também subiu, com 77.083 mulheres passando por isso, um aumento de 34,5%. No mesmo sentido caminharam os crimes sexuais com vítimas mulheres: o estupro (incluindo o estupro de vulnerável, que acontece quando a vítima é menor de 14 anos ou quando, sendo maior de 14 anos, não está em condições de consentir) cresceu 5,3% no período, vitimando pelo menos 72.454 mulheres e crianças do sexo feminino2. Portanto, ao reconhecer [...] a natureza jurídica previdenciária ou assistencial e a responsabilidade pelo ônus remuneratório decorrente da manutenção do vínculo trabalhista de mulheres vítimas de violência doméstica, quando necessário o afastamento de seu local de trabalho em razão da implementação de medidas protetivas por aplicação do art. 9º, § 2º, II, da lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) [...] o STF dá um passo importante em direção a necessidade de que não só a sociedade, mas o Estado, se responsabilizem pelo custo objetivo produzido pela violência contra mulher. A decisão, também, abrange a manutenção do vínculo trabalhista da mulher em situação de violência doméstica e familiar, que está previsto no inciso II, do § 2º, do art. 9º da lei Maria da Penha. 1. Interrupção do contrato de trabalho O art. 9º, § 2º, II, da lei Maria da Penha garante a manutenção do vínculo trabalhista quando necessário o afastamento da vítima de violência doméstica e familiar. Contudo, sempre houve controvérsia acerca da natureza jurídica dessa medida (se o afastamento se daria por suspensão - sem pagamento remuneratório, ou por interrupção - com pagamento remuneratório - do contrato de trabalho) No TST, em posição restritiva, as decisões atribuíam efeitos suspensivos aos contratos, no entanto, em 2019, o STJ, no julgamento do REsp 1.757.775/SP3, atribuiu efeitos de interrupção ao afastamento, com equivalência ao auxílio doença no INSS. Em 2023, um projeto de lei, visando a extensão dos benefícios para mulheres fora do regime geral (através da LOAS) foi encaminhado pelas advogadas que subscrevem este artigo, junto ao gabinete da dep. Federal Denise Pessoa4. Agora, em 2025, retomada a discussão pelo STF, o ministro Flávio Dino,  associa vulnerabilidade, hipossuficiência e impactos da violência sobre a mulher com a necessidade de proteção estatal. Negar renda nesse cenário faz com que a vítima retorne ao ciclo da violência. 2. Garantia de salário e benefício por incapacidade A decisão se pautou em importantes controvérsias, que diga-se, permeiam as questões que envolvem trabalho e direito das mulheres, debatidas no presente caso: (i) a responsabilidade pelo ônus remuneratório decorrente da manutenção do vínculo trabalhista de mulheres vítimas de violência doméstica, quando necessário o afastamento de seu local de trabalho, por até seis meses, em razão da implementação de medidas protetivas por aplicação do art. 9º, § 2º, II, da lei Maria da Penha (lei 11.340/2006); e (ii) a competência do juízo criminal para a fixação da medida protetiva disposta no art. 9º, § 2º, II, da lei 11.340/2006, inclusive no que concerne à determinação dirigida ao INSS para que garanta o afastamento remunerado mediante a concessão de benefício análogo ao auxílio-doença (p. 5 do acórdão). Reforçado o entendimento pela interrupção do contrato de trabalho, o voto reconhece que o afastamento laboral em razão da violência doméstica se caracteriza como uma incapacidade laboral momentânea da mulher. Considerando que o caso analisado diz respeito a uma trabalhadora urbana, regida pelas regras da CLT e vinculada ao regime geral de Previdência Social, a decisão reconhece o direito da trabalhadora ao pagamento de salário nos primeiros 15 dias e, após, ao percebimento de benefício previdenciário pelo INSS, nos moldes do benefício por incapacidade temporária. Além disso, a decisão exemplifica que a garantia da verba alimentar da mulher nessa situação deverá observar o vínculo trabalhista e previdenciário ao qual ela está submetida. No caso de trabalhadoras domésticas, autônomas e seguradas previdenciárias facultativas, a responsabilidade do pagamento é integralmente do INSS. O ministro também afastou a exigência de carência para o benefício previdenciário, equiparando a situação a infortúnio de natureza acidentária. Também elucidou que não se trata de requerimento ou ação de benefício previdenciário ordinário, não sendo caso de atuação do INSS como parte ré, mas sim hipótese de medida cautelar, válida por no máximo 6 meses, na qual o INSS é requisitado a cumprir determinação judicial de pagamento de verba alimentar. Sob a ótica de gênero, reconhece-se que a violência doméstica impacta diretamente a capacidade laboral da vítima, exigindo resposta estatal imediata da Previdência Social, a qual é requisitada a compor o conjunto integrado de medidas de combate à violência doméstica e familiar e de proteção à mulher. Trata-se de um passo importante na compreensão da violência como causa legítima de afastamento previdenciário, sendo uma contingência social que afeta as trabalhadoras. 3. Benefício assistencial Para as mulheres sem vínculo formal de emprego e sem qualidade de seguradas do INSS, dentro da lógica indicada pelo ministro Flávio Dino, remanesce a necessidade de proteção do Estado pela via assistencial. Nessa hipótese, o Juizado da Violência Doméstica deverá analisar a vulnerabilidade financeira e determinar a concessão de benefício eventual à analogia do Benefício de Prestação Continuada previsto na LOAS. Este é o principal ponto de inovação do voto, já que se está admitindo que mulheres afastadas de atividades informais ou de trabalhos domésticos não remunerados também fazem jus a garantia da verba alimentar. No Brasil, 76,4% das mulheres empregadas domésticas, não têm carteira de trabalho anotada; 65,7% não tem contribuição previdenciária5. Essa interpretação reconhece a condição de trabalhadoras que, embora desprovidas de contrato formal e contribuição previdenciária, são dependentes de sua renda mínima para sobrevivência. A aplicação da perspectiva de gênero, aqui, consiste em valorizar o trabalho feminino invisibilizado e admitir a vulnerabilidade econômica como fator de risco que perpetua a violência. Conclusão Ao que tudo indica, a decisão do STF no Tema 1.370, com repercussão geral, tende a inaugurar uma nova compreensão sobre o papel do Estado no enfrentamento à violência doméstica, ampliando a proteção previdenciária e assistencial das vítimas, utilizando o INSS como ferramenta importante nesta articulação da rede de enfrentamento e proteção. A dependência econômica é um dos principais obstáculos à ruptura do ciclo de violência, razão pela qual assegurar direitos trabalhistas, previdenciários e assistenciais é medida essencial para promover autonomia, autodeterminação e dignidade para as mulheres. O precedente, ainda pendente de publicação definitiva, deve orientar todo o Judiciário brasileiro, reafirmando que a aplicação da perspectiva de gênero não é uma opção, mas uma exigência constitucional e internacional para efetivar os direitos humanos e fundamentais das mulheres. Ao reconhecer as múltiplas vulnerabilidades que atingem as vítimas, o STF dá um passo fundamental para a construção de uma justiça mais inclusiva, protetiva e comprometida com a dignidade da pessoa humana. ___________ 1 Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.520.468 Paraná. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 1520468. Direito Previdenciário. Recurso Extraordinário. Lei Maria Da Penha. Medidas Protetivas. Afastamento Remunerado. Competência. Natureza Jurídica Da Prestação. Repercussão Geral Reconhecida. Relatoria Ministro Flávio Dino.  Disponível aqui. 2 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA . Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 18.  - São Paulo: FBSP, 2024, p. 135. 3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.757.775. Relatoria Ministro Rogerio Schietti Cruz.  Disponível aqui. 4 BRASIL, Câmara dos Deputados, Projeto de Lei 2024/2023. Disponível aqui. 5 No Brasil, 5,5 milhões de mulheres são empregadas e ganham 56% a menos do que mulheres ocupadas em geral. Do total:  69% são mulheres negras; 76,4% não tem CTPS anotada; 65,7% não tem contribuição previdenciária.. DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS ECONÔMICOS - DIEESE. Boletim Especial 27 de abril de 2025 - Dia do Trabalhador Doméstico - Trabalho Doméstico no Brasil: Um Trabalho de Cuidados, 2025. Disponível aqui. Acesso em 15/5/25.
A Constituição Federal, ao inaugurar o capítulo da Administração Pública, insculpiu no art. 37 o princípio da legalidade como um dos pilares da atuação estatal. No âmbito dos concursos públicos, esse princípio se desdobra em uma regra clara: todo e qualquer ato da administração está vinculado à lei e deve respeitar os direitos adquiridos e o devido processo legal. Com o advento da lei 12.990/14, o ordenamento jurídico brasileiro incorporou as ações afirmativas raciais no acesso ao serviço público federal, reservando um percentual de vagas a candidatos autodeclarados pretos ou pardos. Desde então, a autodeclaração passou a ser o critério inicial e legítimo para a reserva de vagas, admitindo-se a etapa de heteroidentificação, desde que prevista no edital e em conformidade com critérios objetivos e motivação clara. Importante destacar que a existência das comissões de heteroidentificação é legítima e necessária para coibir fraudes que comprometem a efetividade da política pública de cotas raciais. O combate às auto declarações falsas é uma medida indispensável à preservação do princípio da igualdade material e da justiça distributiva. No entanto, essa mesma comissão deve atuar com absoluta transparência, imparcialidade e obediência à legalidade, pois não se pode combater uma fraude com outra forma de violação aos direitos fundamentais. Observa-se um preocupante aumento de decisões administrativas que, sob o pretexto de "verificação fenotípica", infirmam autodeclarações legítimas de candidatos negros ou pardos, ignorando aspectos fundamentais da análise racial, como os padrões fenotípicos historicamente marginalizados, a pluralidade da identidade racial brasileira e os parâmetros estabelecidos pelo IBGE. Essas comissões, por vezes, se valem de critérios estéticos subjetivos, desprovidos de previsão legal e motivação técnica, para desclassificar candidatos com aparência evidentemente parda ou negra. Tal postura não apenas viola o princípio da legalidade, mas também o da motivação e da razoabilidade, desrespeitando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial. O Poder Judiciário, em consonância com a jurisprudência do STF e do STJ, tem reagido a essas ilegalidades. Em diversas decisões, foi reconhecido que, havendo dúvida sobre o fenótipo do candidato, deve prevalecer a autodeclaração, como reafirmado na ADC 41/DF. Nesse julgamento, o STF consignou que o sistema de cotas raciais é constitucional e que a autodeclaração possui presunção de veracidade, sendo sua desqualificação admissível apenas diante de falsidade evidente, jamais por critérios estéticos duvidosos. Além disso, diversas Cortes, como o TJ/SP e o TRF da 4ª região, têm reafirmado a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos que eliminam candidatos da cota racial sem fundamentação legítima. Nesses precedentes, os tribunais destacaram que a exclusão baseada em critérios não previstos no edital configura desvio de finalidade e abuso de poder, sendo passível de anulação. Outro ponto central diz respeito ao prazo decadencial para impetração do mandado de segurança. Em que pese o prazo ser de 120 dias, o entendimento consolidado no STJ é de que este prazo se inicia com a ciência dos efeitos práticos do ato administrativo, e não apenas com sua formalização. Ou seja, quando o candidato percebe os prejuízos decorrentes da eliminação injusta, tem-se o início da contagem do prazo decadencial. Importante destacar, ainda, que o decreto municipal 57.557/16 (SP) e a LC estadual 1.259/15 exigem a comprovação de falsidade da autodeclaração para que ocorra a eliminação do candidato. Assim, não cabe à Comissão de Heteroidentificação presumir a falsidade ou invalidar a declaração sem respaldo técnico e motivação clara, sob pena de ferir os princípios constitucionais e legais que regem o serviço público. Diante de tais elementos, é possível afirmar que a exclusão de candidatos negros ou pardos, a partir de critérios subjetivos e sem observância aos parâmetros legais, revela-se flagrantemente ilegal, merecendo a devida correção por via judicial. O mandado de segurança, portanto, mostra-se não apenas cabível, mas necessário como instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, restabelecendo a legalidade e a justiça em face de arbitrariedades administrativas. Conclusão A implementação de ações afirmativas no Brasil é uma conquista histórica da população negra. A criação de bancas de heteroidentificação é um instrumento importante para garantir a lisura das cotas raciais, mas sua atuação deve ser pautada por critérios objetivos, legalmente previstos e amplamente divulgados, sob pena de se transformar em um mecanismo de exclusão indevida. A advocacia tem papel essencial na proteção desses direitos, e o Poder Judiciário é chamado a exercer o controle da legalidade, não do mérito, desses atos administrativos, a fim de assegurar o cumprimento do princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da justiça social. O mandado de segurança, nestes casos, se revela como via legítima e eficaz para reparar ilegalidades praticadas pela Administração Pública, garantindo ao candidato o direito de prosseguir no certame e assegurar seu acesso digno ao serviço público.
1. Introdução As questões atinentes às famílias brasileiras, no sistema de justiça, são marcadas por profunda carga emocional, desigualdades históricas e relações de poder frequentemente invisibilizadas nos autos. Nesse cenário, a aplicação de uma perspectiva de gênero não é apenas recomendável, mas indispensável para que se obtenha uma efetiva justiça. Com esse objetivo, o CNJ publicou em 2023, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instrumento normativo orientador da atuação do Judiciário, frente às desigualdades estruturais entre homens e mulheres. Inicialmente extraímos importante seguimento da redação do Protocolo, que auxilia a compreensão do assunto: "traz considerações teóricas sobre a questão da igualdade e também um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos"1. Este artigo propõe uma reflexão acerca da importância da aplicação desse Protocolo especificamente nas demandas de Direito das Famílias, campo jurídico diretamente atravessado por papéis sociais de gênero, invisibilizações do cuidado e vulnerabilidades que atingem especialmente mulheres e crianças. 2. Direito das Famílias e desigualdade de gênero O Direito das Famílias, embora tenha passado por importantes transformações - como o reconhecimento de entidades familiares plurais, da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade - ainda reproduz práticas e decisões que desconsideram a desigualdade material existente entre homens e mulheres. A divisão sexual do trabalho, por exemplo, atribui às mulheres a responsabilidade quase exclusiva pelo cuidado de filhos e familiares, o que repercute diretamente nas demandas de guarda, alimentos e convivência e ainda no que se refere às partilhas de bens. Ressaltamos que a violência de gênero - incluindo a violência patrimonial, moral e a violência vicária - ainda é tratada de forma fragmentada ou negligenciada nas demandas envolvendo as famílias. Essa omissão compromete a função protetiva do Direito das Famílias, perpetuando a desigualdade em vez de enfrentá-la. 3. O protocolo do CNJ: Uma ferramenta transformadora O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ orienta magistradas e magistrados a reconhecerem a existência da desigualdade histórica entre homens e mulheres em razão de uma lógica patriarcal. E oferece parâmetros concretos para aplicação do ordenamento jurídico à luz dos direitos humanos das mulheres e da equidade de gênero, conforme determinam a Constituição Federal e tratados internacionais como a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará. Aplicado ao Direito das Famílias, o Protocolo permite: Compreender o cuidado como trabalho reprodutivo invisibilizado e valorar adequadamente sua contribuição para a vida familiar; Evitar decisões que penalizem mulheres por exercerem funções maternas, como nos pedidos de guarda unilateral ou nos casos de alienação parental; Reconhecer estratégias abusivas de ex-parceiros para deslegitimar ou controlar mães no curso do processo judicial; Adotar uma linguagem acessível, respeitosa e livre de estereótipos, fortalecendo o acesso à justiça; Garantir que a proteção à criança e ao adolescente ocorra sem reproduzir preconceitos contra a mulher cuidadora. 4. Jurisprudência e doutrina: o Protocolo em movimento Alguns tribunais brasileiros já têm incorporado a perspectiva de gênero em suas decisões. A exemplo disso, o TJ/RS reformou sentença que negava alimentos sob o argumento de que a mulher era "qualificada" e "poderia trabalhar", sem considerar que ela havia interrompido sua trajetória profissional para cuidar dos filhos - um típico caso de cegueira de gênero no reconhecimento do trabalho não remunerado. Como destaca Maria Berenice Dias: "Este é o desiderato do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ao pontuar que: diariamente, nota-se que a sociedade impõe papéis diferentes a homens e mulheres. Mas o conceito de gênero permite ir além, expondo como essas diferenças são muitas vezes reprodutoras de hierarquias sociais. Isso porque, em muitos casos, aos homens são atribuídos características e papéis mais valorizados, enquanto às mulheres são atribuídos papéis e características menos valorizados, o que tem impactos importantes na forma como as relações sociais desiguais se estruturam"2. 5. Conclusão A efetivação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ nas ações de Direito das Famílias é urgente e inadiável. Trata-se de um passo decisivo para que o Judiciário compreenda que a igualdade formal, por si só, não dá conta das assimetrias que estruturam as relações familiares no Brasil. É necessário reconhecer o gênero como categoria jurídica relevante e operativa, sem o que o Direito das Famílias continuará reproduzindo injustiças em nome da neutralidade. Ao contrário do que algumas vozes machistas tentam fazer parecer, o Protocolo não sugere que a Justiça favoreça as mulheres, mesmo porque, seu intuito é alcançar tratamentos jurídicos justos, com equidade mas para isso se faz necessário combater condutas preconceituosas e discriminatórias. A perspectiva de gênero não é ideológica. É constitucional. É humana. É a lente que permite ver o que historicamente foi invisibilizado - e julgar com justiça quem historicamente foi silenciada. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
  "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos"Simone de Beauvoir1 Nesta semana foi pautado na  CCJ da Câmara dos Deputados o texto do PDL89/20232 que tem como objetivo sustar os atos executivos do Conselho Nacional de Justiça em relação à Resolução 492, editada em 17 de março de 20233, que instituiu diretrizes para adoção da Perspectiva de Gênero nos julgamentos - incluindo capacitação de magistrados e criação de comitês específicos. O Protocolo é uma importante ferramenta jurídica, legítima e necessária, para corrigir assimetrias estruturais e epistêmicas no Sistema de Justiça. A publicação, pelo Conselho Nacional de  Justiça, de um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, em fevereiro de 20214,  recolocou sob  os holofotes do Sistema de Justiça  brasileiro a necessidade de inserção de categorias interseccionais de gênero  na atuação do judiciário brasileiro. Mais do que identificar obstáculos ao acesso das mulheres à Justiça ou às decisões judiciais que não lhes garantem efetividade de seus direitos humanos, a reflexão atingiu o Direito como um todo (legislações que privilegiam modelos de humanidade que são tidos como padrões normativos e de atuação do judiciário e critérios de atuação judicial baseados em supostas neutralidades). O principal objetivo da  Resolução 492 é dar efetividade e cumprimento ao Protocolo de 2021. Dentre as etapas fundamentais para isso  está o de informar o judiciário brasileiro acerca dos Direitos Humanos, sobretudo, das pessoas que tem dificuldades de acessar direitos e a prestação jurisdicional. Aqui estão os chamados grupos estrutural e sistematicamente discriminados, tais como, mulheres, pessoas negras e pessoas indígenas. E isso é fundamental quando pensamos em efetividade e concretude no Direito. No campo jurídico, desprezar as assimetrias de gênero, raça e etnia,  compromete a justiça material, o acesso efetivo a direitos e a possibilidade de reparação de violências sistemáticas. Sem compreender o gênero e raça como estruturas que sistematizam desigualdades o Estado não elabora políticas de enfrentamento das violências, não garante equidade  no acesso à Justiça  e  nos processos judiciais e   ignora a realidade e as dificuldades vivenciadas por mulheres e dissidentes (mulheres negras, pessoas trans,  pessoas indígenas).   O gênero é atravessado por raça, classe, sexualidade, território e deficiência.  Quando se ignora esta transversalidade as respostas  dadas pelas instituições a casos de violência doméstica, feminicídios, estupro, assédio moral, assédio sexual, discriminação laboral, transfobia e racismo institucional são ausentes ou, no mínimo inadequadas. Portanto, a ignorância sobre o que é gênero - entendendo-o como uma construção histórica, social e relacional, que organiza desigualdades entre corpos - não é neutra nem inofensiva. Pelo contrário, ela tem implicações graves para a vida social, política e jurídica, pois sustenta violências, distorções e apagamentos que perpetuam opressões estruturais. As críticas contra o Protocolo  e à Resolução do CNJ, revelam a retórica da  "ideologia de gênero". A tentativa de sustar seus efeitos, através do PDL 89/23,  está inserida no projeto político de um discurso extremista conservador que vê na expressão "gênero" uma ameaça, tanto às suas crenças (sejam religiosas, sejam sociais ou culturais), quanto ao seu poder.  As críticas que constam do relatório apresentado na CCJ (Comissão de Constituição de Justiça) refletem claramente uma disputa política e antidemocrática, uma vez que  rechaça a ideia de um judiciário plural e acessível. O que o PL pretende é  permitir que o discurso dominante siga nomeando o mundo a partir de uma única posição: masculina, branca, cisgênero e heterossexual. É fundamental para a democracia que o Judiciário Brasileiro entenda que o Direito é generificado e racializado, e que  reconheça as hierarquias que moldam a sociedade abrindo  caminho para uma justiça mais plural, inclusiva e reparadora. O Judiciário é uma estrutura marcada por corpos, saberes e culturas predominantemente masculinas e brancas. A requerida neutralidade do  PDL 89/2023,  é  uma ficção que sustenta a exclusão histórica de mulheres e dissidências.  Nas decisões estão as subjetividades de julgadores(as) quando se defrontam com o desempenho de papéis de gênero, como o trânsito de homens e mulheres no espaço público, das práticas sexuais permitidas e proibidas para homens e mulheres, do familismo , enfim, de todos os  estereótipos presentes. Atuar  com perspectiva de gênero, seja postulando, seja julgando,  significa utilizar instrumentos metodológicos que estão vinculados, não só  à  desconstrução de estereótipos  relacionados às mulheres, mas também a eliminação das causas das desigualdades por razões de sexo e de gênero. Importante inserir categorias interseccionais para apurar as transversalidades que produzem violências e disparidades no acesso à Justiça e na efetividade dos direitos, tais como, raça, etnia, classe social e econômica, idade, origem territorial, etc Julgar com perspectiva de gênero significa adotar uma postura ativa de reconhecimento das desigualdades históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais a que as mulheres estão e estiveram sujeitas desde a estruturação do Estado, e, a partir disso, perfilhar um caminho que combata as discriminações e as violências por elas sofridas, contribuindo para dar fim ao ciclo de reprodução dos estereótipos de gênero e da dominação das mulheres. Em que pese Judiciário ser apenas um componente de uma estrutura estatal obrigada a coordenar os esforços de todos os seus setores para respeitar e garantir os direitos das mulheres, a operacionalidade de um sistema que esteja próximo das vítimas, o acesso a recursos judiciais adequados e eficazes, constitui uma importante linha  de defesa dos direitos humanos das mulheres.  A obrigação de respeitar, proteger e cumprir se estende à garantia da disponibilidade de recursos judiciais acessíveis e oportunos para mulheres e dissidências.    Quando o Parlamento legisla contra o reconhecimento da desigualdade, perpetua dominação e exclusão. Rejeitar o PDL 89/2023 é uma atitude democrática. Não há democracia possível onde o gênero continua sendo tratado como uma ameaça. __________ 1 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967, Volume II. 2 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo. Ementa - Susta os efeitos da Resolução n. 492, de 17 de março de 2023, do Conselho Nacional de Justiça, que "estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário"  Disponível aqui. Acessado em 03.07.2025. 3 CONSELHO NACIONALDE JUSTIÇA.  Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Disponível aqui. Acessado em 03.07.2025. 4 CONSELHO NACIONALDE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021. Grupo de Trabalho instituído pela Portaria CNJ n. 27, de 2 de fevereiro de 2021. Disponível aqui.  Acessado em: 20.02.2022.
Introdução: O avanço silencioso da pejotização Nas últimas décadas, o mercado de trabalho brasileiro tem vivenciado profundas transformações nas relações de emprego. Entre elas, destaca-se a expansão da chamada "pejotização", um fenômeno caracterizado pela substituição de vínculos regidos pela CLT por contratos de prestação de serviços através da constituição de pessoas jurídicas (as famosas "PJs"). Embora afete uma ampla gama de trabalhadores, a pejotização impacta de maneira particularmente severa as mulheres, sobretudo aquelas inseridas em setores marcados por desigualdades estruturais de gênero e de raça. Este artigo explora como essa modalidade de contratação aprofunda vulnerabilidades e reforça barreiras históricas, comprometendo direitos trabalhistas, segurança financeira e proteção social das mulheres. Porque a pejotização se expande? A pejotização ganhou força com o avanço das políticas neoliberais, da flexibilização das leis trabalhistas e da cultura empreendedora. A justificativa muitas vezes é a de fomentar a liberdade contratual, aumentar a eficiência e reduzir custos para as empresas, que passam a não recolher encargos sociais ou trabalhistas, como férias, 13º salário e FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Contudo, por trás dessa aparente modernização das relações de trabalho, esconde-se uma estratégia de precarização, deslocando os riscos econômicos do empregador para o trabalhador. No caso das mulheres, tais riscos são agravados pela própria estrutura social e econômica que historicamente submete as trabalhadoras a condições mais desiguais. As especificidades da inserção feminina no mercado de trabalho Antes de analisar os impactos da pejotização, é preciso compreender o lugar ocupado pelas mulheres no mercado de trabalho. De acordo com dados do Relatório de Transparência Salarial e Igualdade Salarial, divulgado em abril de 2025 pelos Ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres: Mulheres ganham, em média, 20% a menos do que homens; A média salarial dos homens é de R$ 4.745,53, enquanto a das mulheres é de R$ 3.755,01; Quando se trata de mulheres negras, o salário médio vai para R$ 2.864,39; Nos cargos de alta gestão, a diferença salarial é ainda maior, com mulheres recebendo 26,8% a menos que os homens. Assim, a pejotização, que já é problemática por si só, adquire contornos ainda mais críticos quando analisada sob a perspectiva de gênero e raça. Os impactos da pejotização para as mulheres As mulheres já enfrentam diversos obstáculos para ingressar, permanecer e acender no mercado de trabalho: salários menores, menos acesso a cargos de liderança, assédio, jornada dupla e interrupções na carreira por causa da maternidade. A pejotização tende a ampliar essa desigualdade, com a: 1.  Ausência de proteção à maternidade: Como pessoa jurídica, a mulher não tem direito automático ao benefício da licença-maternidade. Embora seja possível requerê-lo como contribuinte individual ao INSS, o processo é burocrático, exige contribuições regulares e não oferece a estabilidade no emprego. 2. Invisibilidade Previdenciária: a obrigação de contribuir para o INSS recai sobre a própria trabalhadora, que, muitas vezes, não tem orientação ou condições financeiras para fazê-lo de forma adequada e contínua. 3. Flexibilidade ou Armadilha: O regime PJ, ao não reconhecer limites formais de jornada, tende a exigir das trabalhadoras uma disponibilidade irrestrita, dificultando a conciliação entre trabalho e responsabilidades familiares - majoritariamente assumidas por mulheres. Esse fator intensifica o fenômeno da "dupla jornada", colocando-as diante de um dilema: aceitar condições de trabalho precarizadas ou renunciar à participação no mercado laboral. 4. Fragilidade sindical: A relação PJ costuma isolar a trabalhadora e enfraquecer seu poder de negociação. Ela não está protegida por sindicatos ou comissões internas. Casos de assédio moral ou sexual tendem a ser silenciados, uma vez que a denúncia pode resultar em rompimento de contrato, sem justificativa ou compensação. Pejotização e interseccionalidade: o impacto ainda maior sobre mulheres negras Lamentavelmente, as mulheres negras são ainda mais afetadas pelos efeitos perversos da pejotização. Elas enfrentam maiores barreiras de acesso a ocupações formais e de qualidade, sendo, portanto, as primeiras a sofrerem com processos de flexibilização e precarização. A pejotização, nesse contexto, atua como um mecanismo que perpetua desigualdades históricas, reforçando ciclos de pobreza, exclusão e marginalização. A romantização do empreendedorismo feminino A pejotização é, muitas vezes, apresentada sob a roupagem de "empoderamento feminino" e "autonomia profissional", alimentando o discurso do empreendedorismo como solução para a desigualdade de gênero. Embora seja importante valorizar iniciativas empreendedoras lideradas por mulheres, é preciso distinguir entre empreendedorismo por oportunidade e por necessidade. A maioria das mulheres que se tornam PJs não o fazem por escolha livre e planejada, mas por imposição do mercado ou ausência de alternativas. Esse cenário cria uma armadilha: a precarização é vendida como emancipação, enquanto, na prática, promove insegurança, sobrecarga e exclusão de direitos. Caminhos para equidade Diante dos desafios apresentados, algumas estratégias podem contribuir para mitigar os efeitos da pejotização sobre as mulheres: Fortalecimento da fiscalização trabalhista para coibir contratos fraudulentos que mascaram vínculos CLT; Políticas públicas de proteção social que propiciem acesso a direitos previdenciários e de assistência, independentemente do modelo de contratação; Educação e conscientização dirigidas a mulheres jovens em processo de inserção no mercado; Criação de políticas públicas com foco em  sustentabilidade financeira, com acesso a crédito, formação e redes de apoio; Reforma legal garantindo proteção à maternidade e aposentadoria para trabalhadoras PJ. Conclusão A pejotização não é apenas um fenômeno jurídico ou econômico, mas um reflexo das estruturas sociais de poder que moldam o mercado de trabalho. No caso das mulheres, ela aprofunda vulnerabilidades e torna mais distante a realização de direitos fundamentais, como igualdade, dignidade e segurança. Combatê-la exige não apenas ação estatal e mudanças legais, mas também uma profunda transformação cultural, que reconheça e valorize o trabalho das mulheres em todas as suas dimensões, assegurando condições dignas, proteção social e igualdade de oportunidades. Enquanto isso não ocorre, a pejotização seguirá sendo um dos rostos mais perversos da precarização contemporânea, com feições marcadamente femininas. _______ ABRAMO, Laís Wendel. A inserção da mulher no mercado de trabalho: uma força de trabalho secundária? 2007. Tese doutorado (sociologia). Departamento de sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. BRASIL. Lei nº 8.212, de 24 de Julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível aqui. BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível aqui. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do trabalho. Revisto e ampliado.16 ed. São Paulo: LTr, 2017. OLIVEIRA, Laura Machado de Oliveira. "Pejotização e a precarização das relações de emprego". Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. São Paulo. Nº. 291. Setembro 2013. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Lacuna global de empregos: diminuindo, mas não para as mulheres. Tendências de 2025. Genebra: OIT, 16 de janeiro de 2025. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Iniciativa Mulheres no Trabalho: o impulso para a igualdade. Relatório I (B). Conferência Internacional do Trabalho, 107.ª Sessão, 2018. Disponível aqui. PEREIRA, Leone. Pejotização - o trabalhador como pessoa jurídica. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
1. Sintomas ignorados, exaustão naturalizada O adoecimento mental tem se tornado uma preocupação crescente no mundo do trabalho, afetando especialmente as mulheres. No Brasil, os dados acerca da saúde mental das pessoas trabalhadoras são alarmantes. O Ministério da Previdência, em 2024, registrou mais de 470.000 casos de afastamento do trabalho por transtornos mentais, principalmente transtornos de ansiedade e depressão, onde 64% das vítimas eram mulheres (segundo dados do INSS)1. De acordo com o Instituto Cactus, a prevalência de condições de saúde mental é maior nas mulheres. A depressão, por exemplo, ocorre, em média, duas vezes mais em mulheres do que nos homens e pode ser mais persistente nelas. Além disso, as tentativas de suicídio são 2,2 vezes mais frequentes entre as mulheres2. Em 2021, sintomas classificados como transtornos mentais comuns foram a terceira maior causa de afastamento laboral no país, segundo o Observatório de Segurança e Saúde do Trabalho3. Mas como os TMCs - transtornos mentais comuns impactam a vida profissional das mulheres, considerando fatores como carga de trabalho, desigualdade de gênero e as repercussões para suas trajetórias profissionais? Os chamados TCMs incluem sintomas como insônia, exaustão física e emocional, alterações de humor, desequilíbrios alimentares, falta de organização ou de habilidade para as tarefas cotidianas que podem resultar em ansiedade, depressão e esgotamento profissional. Quando no contexto laboral, estas condições são frequentemente desencadeadas por jornadas excessivas, exigências emocionais e falta de reconhecimento. Além disso, as mulheres vivenciam constantes diminuições e negações da importância de seus sofrimentos. A menos que o problema de saúde mental interrompa o desempenho do papel esperado pela mulher, é corriqueiro que seu sofrimento fique invisível e tratado como algo inerente ao gênero feminino4. A invisibilização do sofrimento feminino se reflete na própria assistência médica. A revista "Proceedings of the National Academy of Sciences" publicou um estudo em 2024 que revelou que os médicos tendem a subestimar a dor das mulheres5. Esse viés de gênero na saúde faz com que a dor feminina seja interpretada de forma superficial ou errônea, comprometendo o diagnóstico adequado e o devido suporte para a saúde mental das trabalhadoras. Como destaca a pesquisadora Marjorie Nogueira Chaves (coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (PopNegra), durante séculos, as dores das mulheres foram atribuídas à histeria. Esse viés ainda persiste, impactando diretamente a forma como as trabalhadoras são tratadas no ambiente de trabalho e na assistência médica ocupacional6. O STJ já se debruçou sobre questões relacionadas a transtornos mentais em trabalhadoras. No informativo de jurisprudência 612, discutiu-se a abusividade na limitação do número de consultas psicoterápicas para pacientes com depressão, ressaltando que a interrupção abrupta do tratamento pode ser prejudicial7. Além disso, Tribunais Regionais do Trabalho têm enfrentado desafios ao estabelecer o nexo causal entre a atividade laboral e o adoecimento mental. Fatores como assédio moral, jornadas exaustivas e metas abusivas são frequentemente associados ao desenvolvimento de transtornos mentais em trabalhadoras. Isso evidencia a importância de reconhecer e abordar os transtornos mentais comuns entre mulheres trabalhadoras, promovendo ambientes laborais saudáveis e políticas públicas de apoio à saúde mental8. O despreparo e a falta de perspectiva da realidade das mulheres trabalhadoras, em equipes de saúde ocupacional e em profissionais de peritagem processual é um grande problema no enfrentamento da questão.  Um bom exemplo é o caso de uma bancária do Itaú Unibanco S.A. que alegou que seu quadro depressivo estava relacionado às atividades laborais. Contudo, a perícia médica concluiu que a depressão é de etiologia multifatorial, envolvendo predisposição genética, fatores intrapsíquicos e estressores diversos, não sendo possível estabelecer um nexo causal direto com o trabalho. O laudo pericial destacou que, embora houvesse dificuldade de adaptação ao ambiente laboral que poderia ter agravado levemente o quadro, os principais responsáveis pela condição eram fatores extra laborais. Com base nessas conclusões, o Tribunal decidiu pela ausência de responsabilidade do empregador9. Pois é exatamente disso que estamos falando aqui "estressores diversos"  que afetam e impactam as mulheres muito mais do que aos homens.  Embora saibamos que alegar que a depressão tem uma "etiologia multifatorial" demonstra claro desinteresse do técnico em aprofundar sua causa, é importante que  a sociedade e o sistema de justiça se empenhem em não ignorar que ambientes laborais organizados sem nenhuma perspectiva racial e de gênero adoecem muito mais determinados grupos humanos do que outros e o resultado disso é a ampliação da crise de saúde mental no ambiente de trabalho e o colapso dos sistemas de atendimento. 2. Mulheres trabalhadoras e vulnerabilidade ao adoecimento mental A sobrecarga das mulheres no mercado de trabalho não se limita às exigências da função profissional. A dupla jornada, que inclui o trabalho doméstico e o cuidado com familiares, amplifica o estresse e contribui para o desenvolvimento de transtornos mentais. Além disso, desigualdades salariais, discriminação e assédio no ambiente de trabalho geram um impacto significativo na saúde mental das trabalhadoras, tornando-as mais suscetíveis ao esgotamento e à desmotivação. No atual contexto social pós-pandêmico, estamos presenciando um agravamento da exaustão e da intensificação do trabalho, com exigência de metas absurdas e desempenho excepcional constante. O retorno ao trabalho presencial e híbrido manteve a lógica de hiperdisponibilidade do home office, resultando em uma sobrecarga ainda maior. Nesse ambiente, o assédio moral tem se tornado um problema estrutural, sendo as mulheres as principais vítimas dessa prática abusiva. A gestão empresarial (e podemos aqui considerar a da administração pública) baseada no estresse e na superexploração do trabalho, que prioriza apenas o desempenho e não a saúde da pessoa trabalhadora, contribui para um ambiente insalubre e inseguro10. Enquanto, de um lado, há a invisibilização da dor da mulher e do seu adoecimento mental, de outro, há o escancaramento dos sintomas desse apagamento nas estatísticas de afastamento e na degradação das condições laborais. Os transtornos mentais entre mulheres trabalhadoras resultam em múltiplos desafios na trajetória profissional. Muitas mulheres enfrentam afastamentos temporários ou permanentes, o que pode comprometer sua estabilidade financeira. A redução da produtividade e a dificuldade de progressão na carreira são alguns dos principais impactos, uma vez que o estigma da saúde mental ainda persiste em diversos setores. Desequilíbrios emocionais, hiper sensibilidade, fragilidade são estereótipos colados às mulheres. Isso impede muitas mulheres de buscarem ajuda, por medo de serem vistas como incapazes. Esse preconceito se manifesta na dificuldade de retorno ao trabalho, na perda de oportunidades de promoção e até na demissão velada, reforçando a desigualdade de gênero no mercado. Além disso, o afastamento por razões psicológicas é frequentemente deslegitimado, sendo tratado com desconfiança por empregadores e colegas, o que contribui para o isolamento e o agravamento do sofrimento. Além do impacto social, as consequências também atingem a economia. De acordo com a OMS - Organização Mundial da Saúde, os transtornos mentais representam um prejuízo global de aproximadamente um trilhão de dólares, segundo um estudo de 2022. O impacto financeiro reflete não apenas a perda de produtividade, mas também o alto custo com afastamentos e tratamentos. Empresas que não investem em ambientes de trabalho saudáveis acabam contribuindo para a perpetuação desse problema estrutural. Para enfrentar essa realidade, é essencial que empresas adotem políticas mais inclusivas, garantindo suporte psicológico, ambientes de trabalho mais saudáveis e a promoção de uma cultura que reconheça a importância do bem-estar mental sem punição ou estigma. 3.  Considerações que devemos levar adiante O adoecimento mental das mulheres trabalhadoras reflete não apenas um problema de saúde pública, mas também uma questão de desigualdade social e econômica. A necessidade de políticas que promovam melhores condições de trabalho, acesso a suporte psicológico e uma divisão mais justa das responsabilidades domésticas e de cuidado se faz urgente. É fundamental que empresas adotem práticas mais inclusivas e respeitosas, garantindo espaços de trabalho seguros e saudáveis. O combate ao estigma da saúde mental e a criação de mecanismos de apoio para mulheres trabalhadoras são essenciais para reduzir os impactos do adoecimento mental no mundo do trabalho. Por fim, futuras pesquisas podem aprofundar o entendimento sobre as especificidades do adoecimento mental em diferentes setores e grupos sociais, contribuindo para a formulação de políticas públicas mais eficazes e a criação de um mercado de trabalho mais equitativo e sustentável. ___________ 1 G1. Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos. São Paulo, 2025. Disponível aqui. Acesso em 11/3/25. 2 Instituto Cactus e Instituto Veredas. Caminhos em Saúde Mental. São Paulo, 2021. Disponível aqui. Acesso 11/3/25. 3 Notícias TRT13a Região: Transtornos mentais são a terceira maior causa de afastamento do trabalho no Brasil - Disponível aqui.  Acesso em 13/3/25. 4 Passos, R. G.; Pereira, M. O. Luta antimanicomial, feminismos e interseccionalidades: notas para o debate. pp. 25-51. In: Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Pereira e Passos (orgs). Rio de Janeiro: Autografia, 2017. 5 Tozer, Lily, 2024. Estudo Disponível aqui. Acesso em 11/3/25. 6 Metrópoles. Gaslighting médico: por que a dor das mulheres é levada menos a sério? Brasília, 2025. Disponível aqui.  7 Superior Tribunal de Justiça. Disponível - Informativo no 612 - 25/10/2017. Disponível aqui. Acesso em 13/3/25. 8 Notícias Site TRT18 - Transtornos mentais relacionados ao trabalho são desafios a serem enfrentados na nova organização do trabalho. Disponível aqui. Acesso em 13/3/25. 9 Processo ROT 0011421-27.2002.5.18.0054. Disponível aqui. Acesso em 13/3/25. 10 Paparelli, Renata. Crise Mental: o impacto no trabalho. Podcast O Assunto, com Natuza Nery. São Paulo, 10 de março de 2025.
 Não raras vezes, quando paramos para refletir sobre a luta emancipatória feminina, deparamo-nos com problemas históricos que parecem nos perseguir ao longo do tempo. A sensação é a de que, por mais que tenhamos avançado em algumas pautas, o progresso se distancia sobremaneira, quando o assunto é divisão de trabalho e responsabilidades - e aqui nem estou me referindo aos desafios do mercado, no que tange à desigualdade salarial e de oportunidades. A reflexão aqui considerada tem a ver com o trabalho, sequer remunerado. Aquele invisível à sociedade e delegado historicamente à figura feminina, a quem restou reservado o dever de tornar a economia do cuidado cada vez mais pulsante. Uma lógica que perpetua desigualdades e fortalece uma estrutura social machista e misógina. Muitos são os impactos que esse sistema de opressão seletivo causa na vida das mulheres; um deles tem natureza previdenciária. Ao passo que vemos um mercado de trabalho majoritariamente ocupado por homens, às mulheres é reservado o espaço privado de seus lares, onde realizam as atividades atinentes à organização, limpeza, cuidado com os filhos, dentre tantas outras ocupações possíveis, a comprometer a percepção de uma renda e, naturalmente, inviabilizar o recolhimento de contribuições previdenciárias, resultando em um prejuízo substancial do ponto de vista de proteção social, diante de eventos que relativizem a capacidade - seja temporária ou permanentemente - ou ainda diante da velhice, quando a possibilidade de uma aposentadoria ganha especial relevância. O distanciamento da mulher do mercado de trabalho retira dela a autonomia financeira e a coloca numa posição de excessiva vulnerabilidade, condição agravada pelo desgaste emocional a isso subjacente, uma vez que as renuncias relacionadas à carreira profissional, aos negócios, à liberdade de escolha, embora possam parecer adequadas, dentro de um conservador senso de moralidade, são especialmente danosas, pois impactam sensivelmente a vida e o bem-estar social dessas mulheres a médio e longo prazo, naquilo que é fundamental para a manutenção da dignidade de qualquer indivíduo: a capacidade de prover o seu próprio sustento.   Nesse contexto, tem-se um desdobramento comum relacionado a essa problemática, que é a questão dos subempregos. Impossibilitadas de deixar o ambiente doméstico na lógica de manutenção da economia do cuidado, e na tentativa de recobrar a autoestima e a independência financeira, as mulheres têm apostado no mercado informal, lançando mão de cursos digitais para agregar novas habilidades e fazer disso uma fonte de renda, o que aparentemente pode parecer bom, mas na verdade é uma realidade que mascara um problema de ordem estrutural, e que revitimiza a mulher em relação aos seus esforços. Outro aspecto importante a ser considerado nessa análise diz respeito ao recorte socioeconômico e racial, relacionado ao tema. Quando lançamos luz a essas percepções, fica ainda mais nítida a gravidade do problema, uma vez que considerar os impactos do trabalho invisível e não remunerado na vida de mulheres brancas de classe média à alta é totalmente diferente de fazer a mesma análise observando a realidade de mulheres negras e pobres. Os desafios se acentuam sensivelmente porque, no caso destas, o racismo estrutural e o elitismo distanciam ainda mais as oportunidades de emprego e crescimento profissional, sem mencionar que os deveres de cuidado, além de serem administrados conjuntamente com qualquer outra ocupação informal, em razão da ausência de alternativas capazes de atenuar a sobrecarga, são tidos como única possibilidade para essas mulheres, tendo vista a presunção preconceituosa de que estas seriam limitadas intelectualmente para outras ocupações. Ao evidenciar as diferentes realidades, o cuidado contesta a existência de um ponto de vista próprio relativo à experiência e ao lugar que as mulheres ocupam na sociedade como categoria homogênea, favorecendo um ponto de vista que emerge da conjunção das relações de poder, de raça e de classe, fato que expõe a necessidade não apenas de fortalecer o diálogo e estimular a conscientização sobre o assunto, mas também a responsabilidade de, enquanto sociedade, promover o enfrentamento político da matéria, visando o combate efetivo às desigualdades e às opressões. A despeito dos avanços, o acesso feminino ao trabalho remunerado ocorre ainda em situação desvantajosa, e isso significa, dentre outras consequências danosas, ter que lidar com uma dupla jornada, onde o desgaste físico e mental decorrente da sobrecarga de afazeres vulnerabiliza ainda mais a mulher. Além disso, a divisão sexual do trabalho se traduz no mercado, na persistente super-representação das mulheres nas ocupações precárias, mal remuneradas e de menor prestígio social, assim como na sistemática diferença na distribuição de homens e mulheres nas diferentes profissões e ocupações. Todas as questões consideradas, quando observadas sob a ótica previdenciária, evidenciam as inúmeras fragilidades a nível de proteção social e legal quando o assunto envolve o trabalho invisível e não remunerado das mulheres. Isso porque o impacto prático dessa realidade caracteriza mais uma violência em face de um grupo já vulnerabilizado na sociedade, especialmente, no que tange a dificuldade de materializar os meios probatórios nas demandas que envolvem a aposentadoria rural das seguradas especiais; passando pela dificuldade de reconhecimento de ocupações informais como trabalho, no contexto de concessão dos benefícios por incapacidade; assim como a possibilidade remota de uma aposentadoria após anos de afastamento do mercado de trabalho, sem mencionar os desafios próprios relativos ao salário-maternidade. Todas essas questões corroboram, sobremaneira, o impacto previdenciário da economia do cuidado na vida das mulheres. Nesse ponto, é salutar destacar alguns dados estatísticos: i) segundo a OIT, 76% do trabalho de cuidado não remunerado no mundo é realizado por mulheres; ii) pela mesma fonte, em 2030, 2,3 bilhões de pessoas demandarão cuidado ao redor do mundo; iii) a Oxfam divulgou, em 2020, que mulheres e meninas dedicam 12,5 bilhões de horas ao trabalho do cuidado não remunerado. Este dado representa uma contribuição anual avaliada ao menos em 10,8 trilhões de dólares; iv) segundo o IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, em 2022, mulheres brasileiras dedicaram aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas quase o dobro de tempo que os homens. São 21,3 horas semanais, contra 11,7 horas, em média; v) 86% das mulheres com idades entre 14 e 24 anos cuidam de afazeres da casa; entre os homens da mesma idade, só 69%; vi) as taxas de realização de afazeres domésticos pelas mulheres brancas (90,5%), pretas (92,7%) ou pardas (91,9%) são sempre mais altas que a dos homens dos mesmos grupos de cor ou raça (80,0%, 80,6% e 78,0%, respectivamente). Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio de seu Conselho de Administração, deu um importante passo ao iniciar um amplo debate sobre a economia do cuidado. Esse diálogo resultou, em junho de 2024, na aprovação de uma resolução histórica durante a 112ª Conferência Internacional do Trabalho. O entendimento firmado entre representantes de governos, empregadores e trabalhadores destaca que o trabalho relacionado à economia do cuidado, assim como qualquer outra atividade laboral, não deve ser tratado como mercadoria. Além disso, reforça o direito universal de acesso ao cuidado, e a necessidade de garantir condições justas e dignas para aqueles que desempenham essas funções. Diante do exposto, é imprescindível reconhecer que o trabalho de cuidado, embora invisibilizado e não remunerado, segue estruturando as bases de uma sociedade machista e patriarcal, impondo uma carga cada vez mais pesada sobre as mulheres, especialmente as mais vulneráveis. A omissão histórica do Estado e da sociedade em valorizar e amparar essa forma de trabalho resulta em impactos nefastos na trajetória profissional, na autonomia financeira e na proteção previdenciária dessas mulheres. Para avançarmos rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, é urgente que políticas públicas sejam implementadas com foco na redistribuição do cuidado, no reconhecimento legal e previdenciário dessas atividades e na desconstrução das estruturas de gênero, raça e classe que perpetuam essas desigualdades. O enfrentamento da economia do cuidado como um problema político e coletivo não é apenas uma questão de justiça social - é um passo necessário para garantir dignidade e equidade a todas as mulheres.  Referências IPEA. Relatório de Pesquisa. Economia dos cuidados: marco teórico-conceitual. 2016. Oxfam Brasil. Trabalho de cuidado: uma questão também econômica. 2020. Agência IBGE Notícias. PNAD Outras formas de trabalho. 2022. OIT. Artigo de opinião. Economia do Cuidado: Um pilar para a justiça social. 2024. Forbes. Economia do cuidado: mulheres são responsáveis por mais de 75% do trabalho não remunerado. 2023.
A organização do serviço público sofreu alterações ao longo dos anos, passando a ser gerenciada de forma mais próxima ao modelo privado, com o estabelecimento de metas, exigência de produtividade, cobrança por desempenho etc. - transformações que trouxeram melhorias, mas impuseram condições consideráveis aos servidores, especialmente em relação à pressão psicológica no ambiente de trabalho. Nesse cenário, também se acirraram as dinâmicas de gestão mais incisivas, com cobranças excessivas de resultados, metas inalcançáveis e prazos reduzidos - reflexo de um mundo do trabalho cada vez mais acelerado. Essas mudanças foram impulsionadas pelas políticas neoliberais, que tensionaram o papel do Estado ao priorizar a eficiência gerencial em detrimento das garantias sociais, resultando em um ambiente laboral marcado por cobranças intensificadas e imposição de metas produtivas. A reforma do aparelho do Estado, ao incorporar práticas da administração privada, introduziu inovações tecnológicas e organizacionais que, embora voltadas para a modernização e a redução de custos, também intensificaram o trabalho estranhado e agravaram os impactos à saúde mental dos servidores1. Esse tipo de ambiente organizacional fomenta o estresse ocupacional, levando ao adoecimento físico e mental das pessoas. O aumento de transtornos como depressão, ansiedade e Síndrome de Burnout demonstra como essa pressão excessiva impacta diretamente a saúde dos servidores. No âmbito federal, de 2017 a 2024, 15 mil servidores foram afastados por transtornos mentais2. Nesse contexto, altos níveis de exigência psicológica, associados ao baixo controle sobre as atividades laborais, aumentam a prevalência de reações adversas, como fadiga, exaustão emocional e doenças físicas. Além disso, a ausência de tempo para lazer e o acúmulo de demandas contribuem para a diminuição da resiliência no trabalho, intensificando os impactos negativos do estresse ocupacional3. Esse contexto cria um terreno propício para o assédio moral, que se manifesta por meio de violências e microviolências, como linguagem agressiva, tratamento ríspido, formas de agir mais impositivas e desrespeitosas etc., que humilham, constrangem e até mesmo adoecem a pessoa afetada. Além disso, gestores que atuam de maneira descompensada e desproporcional acabam reforçando dinâmicas abusivas, intensificando o problema.   De forma resumida, o assédio moral no ambiente de trabalho pode se manifestar por meio de diversas condutas abusivas que visam desestabilizar emocionalmente a vítima e prejudicar sua atuação profissional. Entre as práticas mais comuns estão a atribuição de instruções confusas e contraditórias, a imposição de obstáculos desnecessários ao andamento das atividades e a responsabilização injusta por erros inexistentes4. Além disso, a sobrecarga de tarefas sem justificativa, o isolamento social imposto por meio da proibição de interação com colegas e a exposição pública a críticas e brincadeiras de mau gosto são estratégias recorrentes para enfraquecer a autoestima da vítima. Outras formas de assédio incluem a retirada de instrumentos essenciais para o desempenho das funções, a imposição de horários arbitrários e a disseminação de boatos que possam comprometer sua reputação5. É fundamental esclarecer que assédio moral não se confunde com a cobrança por metas e produção dentro da razoabilidade que a atividade exige, nem com a fiscalização de assiduidade ou cumprimento de horários. O problema reside no excesso e no abuso de poder, se manifesta no grito, no gesto agressivo, em atitudes desproporcionais que, ao se acumularem, contaminam o ambiente de trabalho - o que pode se dá por meio de comportamento sistemático e reiterado, mas também um ato isolado e pontual. Nesse sentido, a Convenção 190 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) ampliou a definição de assédio, reconhecendo que ele pode ser tanto um padrão repetitivo quanto um evento específico - já defendi essa posição em outro artigo e entendo que a jurisprudência e a doutrina precisam ser revistas para refletir essa concepção mais atual6. E mais: ainda que o Brasil não tenha ratificado formalmente a Convenção 190, ela integra o rol de convenções fundamentais da OIT, que os Estados-membros devem observar (art.2º, Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais no trabalho). Quando o assédio ocorre dentro da administração pública, a situação se torna ainda mais alarmante, pois o poder público deve servir de exemplo para a iniciativa privada no que tange ao zelo pelo meio ambiente laboral. No entanto, o que se observa é justamente o contrário: ambientes de trabalho adoecedores, onde a pressão e o abuso de poder estão presentes - a Controladoria-Geral da União (CGU) contabilizou 4.162 queixas e denúncias relacionadas a assédio moral e sexual no período de 1º de janeiro a 25 de agosto de 2023. Um volume que representa o maior registrado desde o início da série histórica da CGU, que acompanha esses dados desde 20177. E os impactos negativos não ficam restritos a esfera do poder público. Vão muito além do local onde ocorrem. Eles se irradiam para outros órgãos, afetam os familiares dos servidores e prejudicam a sociedade como um todo. Além disso, atingem diretamente a imagem das instituições. Outro aspecto preocupante é que pessoas assediadas por vezes reproduzem essas práticas, perpetuando um ciclo de abuso e sofrimento - não à toa digo e repito que o assédio funciona como um veneno que contamina todas as esferas, afetando indivíduos, família, coletividade e estruturas institucionais. Quando se faz um recorte de gênero, a questão assume proporções ainda mais graves. A pesquisa intitulada "Mulheres e liderança na burocracia federal" demonstra a alta incidência de assédio contra mulheres no serviço público, apontando a violência de gênero como um dos principais problemas enfrentados ao longo de suas carreiras. Seis em cada dez mulheres entrevistadas relataram ter sofrido assédio moral, enquanto 28,3% vivenciaram assédio sexual e 30% foram vítimas de violência psicológica - são dados que refletem um ambiente de trabalho hostil, no qual a discriminação de gênero, apontada por 55,1% das participantes, também se configura como um obstáculo para a ascensão profissional8. As mulheres, por integrarem um grupo vulnerável, sofrem mais com as cobranças abusivas. O machismo estrutural as coloca sob uma pressão desproporcional, pois, além das exigências do trabalho, muitas vezes são submetidas à dupla ou tripla jornada, acumulando funções domésticas e de cuidado. Como resultado, são alvos do esgotamento físico e mental. Não é por acaso que as mulheres figuram entre as que mais adoecem, sendo as principais vítimas de transtornos como depressão, ansiedade e síndrome do pânico. As condições precárias de trabalho, aliadas à sobrecarga, intensificam o sofrimento psíquico9. Diante do assédio moral, a vítima deve adotar algumas medidas para se proteger e buscar a responsabilização do agressor. É essencial registrar detalhadamente todas as humilhações sofridas, anotando datas, locais, testemunhas e o teor das agressões. Além disso, dar visibilidade à situação ao procurar apoio de colegas que tenham presenciado ou vivenciado condutas semelhantes podem fortalecer a denúncia10. Sempre que possível, deve-se evitar interações com o agressor sem a presença de testemunhas, reduzindo os riscos de manipulação ou intimidação. Outra medida fundamental é acionar os canais formais de denúncia da instituição, garantindo que o caso seja devidamente investigado. Ademais, é importante contar com o apoio psicológicos e até mesmo psiquiátrico, se for o caso11. Para a Instituição Pública enfrentar esse problema, é essencial criar mecanismos eficazes de acolhimento, garantindo suporte adequado às vítimas. Canais de denúncia precisam funcionar de maneira efetiva, protegendo os (as) denunciantes e assegurando investigações sérias e imparciais. É imprescindível acender o alerta e compreender o problema do assédio dentro da dinâmica organizacional do trabalho, sem negligenciar os riscos psicossociais. Mais do que isso, é necessário promover uma cultura organizacional que previna, minimize e elimine essas práticas. É dever das instituições envidar todos os esforços para mitigar/eliminar o assédio moral e suas consequências, criando ambientes de trabalho saudáveis e hígidos para todos os servidores. Referências  ARNAUD, Fernanda Iracema Moura; GOMES, Vera Lúcia Batista. Novas formas de gestão da força de trabalho do serviço público brasileiro e suas repercussões para o adoecimento mental: um estudo sobre os servidores de uma instituição judiciária. Revista Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 48, p. 106-134, jul./dez. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025. ASSIS, Cinthia. Saúde mental dos servidores públicos: do tabu aos primeiros passos. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 18 fev. 2025. FERNANDEZ, Michelle; MARQUES, Ananda. Mulheres na liderança da burocracia federal: desafios e dificuldades para ascensão na carreira. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025. MATOS, Larissa. O conceito de assédio para o Direito do Trabalho a partir da Convenção 190 da OIT. Revista LTR, ano 88, junho/2024, p. 683-688. PEREIRA, Giselle. Assédio: CGU registra 4 mil denúncias no Executivo federal em 2023. SINTRAJUD, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025. PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025. ROSSATO, Gabrieli; ONGARO, Juliana Dal; GRECO, Patrícia Bitencourt Toscani; LUZ, Emanuelli Mancio Ferreira da; SABIN, Luiza Dressler; MAGNAGO, Tânia Solange Bosi de Souza. Estresse e resiliência no trabalho em servidores públicos federais. Enfermagem em Foco, v. 11, n. 3, p. 78-86, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025. SAMPAIO, Fabiana. Quase metade das mulheres brasileiras sofrem de ansiedade ou depressão. Agência Brasil, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025. __________ 1 ARNAUD, Fernanda Iracema Moura; GOMES, Vera Lúcia Batista. Novas formas de gestão da força de trabalho do serviço público brasileiro e suas repercussões para o adoecimento mental: um estudo sobre os servidores de uma instituição judiciária. Revista Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 48, p. 106-134, jul./dez. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025. 2 ASSIS, Cinthia. Saúde mental dos servidores públicos: do tabu aos primeiros passos. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 18 fev. 2025. 3 ROSSATO, Gabrieli; ONGARO, Juliana Dal; GRECO, Patrícia Bitencourt Toscani; LUZ, Emanuelli Mancio Ferreira da; SABIN, Luiza Dressler; MAGNAGO, Tânia Solange Bosi de Souza. Estresse e resiliência no trabalho em servidores públicos federais. Enfermagem em Foco, v. 11, n. 3, p. 78-86, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025. 4 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025. 5 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025. 6 MATOS, Larissa. O conceito de assédio para o Direito do Trabalho a partir da Convenção 190 da OIT. Revista LTR, ano 88, junho/2024, p.683-688. 7 PEREIRA, Giselle. Assédio: CGU registra 4 mil denúncias no Executivo federal em 2023. SINTRAJUD, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025. 8 FERNANDEZ, Michelle; MARQUES, Ananda. Mulheres na liderança da burocracia federal: desafios e dificuldades para ascensão na carreira. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025. 9 SAMPAIO, Fabiana. Quase metade das mulheres brasileiras sofrem de ansiedade ou depressão. Agência Brasil, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025. 10 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025. 11 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025.
Introdução A delação premiada é uma figura jurídica presente no ordenamento jurídico brasileiro há muitos anos, mas que ganhou maior notoriedade e relevância no cenário político e jurídico nas últimas décadas. Esse instituto permite que uma pessoa envolvida em uma prática criminosa colabore com as autoridades para a elucidação de outros crimes ou para a identificação de outros criminosos, em troca de benefícios como redução de pena ou, em alguns casos, o perdão judicial. A utilização da delação premiada como ferramenta de combate ao crime gerou intensos debates, tanto pelo seu potencial de desmantelar organizações criminosas, quanto pelos questionamentos sobre seus limites e a moralidade de seus benefícios. Este artigo tem como objetivo abordar o conceito de delação premiada, sua aplicação prática, os principais aspectos jurídicos envolvidos, as críticas e as controvérsias que surgem ao seu redor, além de discutir sua relevância no combate ao crime organizado. 1. O que é delação premiada? A delação premiada é uma forma de colaboração em que o indivíduo, investigado ou réu, oferece informações importantes para o esclarecimento de crimes, em troca de benefícios legais. Em termos simples, a pessoa envolvida em um crime pode negociar com a Justiça, fornecendo dados e provas sobre outros indivíduos ou ações criminosas, com a promessa de um tratamento mais favorável em relação à sua própria situação jurídica. Essa prática se insere no contexto de uma justiça penal mais colaborativa, onde o acusado é incentivado a ajudar na elucidação de crimes em troca de uma redução de pena ou até mesmo do perdão judicial, dependendo da gravidade da sua colaboração. O instituto da delação premiada no Brasil, tal qual conhecemos, está espalhado em várias leis ordinárias e no Código Penal. No período recente, o diploma legal que incorporou o mecanismo negocial no ordenamento brasileiro foi a lei 8.072/90 (lei de crimes hediondos). No entanto, foi com a promulgação da lei 12.850/13, que tratou do crime organizado, que a delação premiada passou a ter maior abrangência e regulamentação no país. 2. A lei 12.850/13 e a regulação da delação premiada A lei 12.850/13, também conhecida como a lei do crime organizado, estabeleceu normas específicas para a aplicação da delação premiada em investigações e processos relacionados a organizações criminosas. Essa lei estabelece que o juiz poderá, de acordo com a colaboração do delator, conceder benefícios como a redução da pena, a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos ou, em casos excepcionais, o perdão da pena. Além disso, a lei determina que a colaboração premiada deve ser formalizada por escrito e homologada judicialmente, assegurando que as informações fornecidas pelo delator sejam verificadas e que a negociação de benefícios seja clara e transparente. É importante destacar que, para que a delação seja válida, o delator deve colaborar de forma efetiva e fornecer informações que contribuam diretamente para a obtenção de provas ou para a elucidação de crimes, sendo que o simples fato de colaborar não garante automaticamente os benefícios. A lei também trata das condições de segurança do colaborador, oferecendo, em alguns casos, a possibilidade de proteção à integridade física do delator e de sua família. 3. O funcionamento da delação premiada: Procedimentos e benefícios A delação premiada, em sua essência, visa estimular o colaborador a fornecer informações valiosas para a Justiça, facilitando a obtenção de provas que, de outra forma, seriam de difícil acesso. O processo de aplicação da delação premiada ocorre em diversas fases: Negociação: O réu ou investigado tem contato com o Ministério Público ou a Polícia Federal para negociar sua colaboração. O acordo pode envolver a entrega de provas documentais, a indicação de outros envolvidos no crime ou até mesmo a revelação de práticas criminosas ainda desconhecidas pelas autoridades; Formalização do acordo: Uma vez alcançado um acordo preliminar, o delator deve formalizar sua colaboração por escrito, com a presença do juiz para homologar o acordo e garantir sua legalidade; Execução e cumprimento: O delator, após cumprir a sua parte do acordo, passa a ser monitorado pelo sistema judicial, e sua pena é revista com base nos resultados de sua colaboração. A redução de pena pode ser proporcional ao valor das informações fornecidas, podendo chegar até dois terços de diminuição; Benefícios: Os principais benefícios incluem redução da pena privativa de liberdade, substituição da pena por restritiva de direitos ou até perdão da pena, caso o delator seja decisivo para a elucidação de um crime de grande relevância. 4. Críticas à delação premiada: Limites e questões éticas Apesar de ser uma ferramenta eficaz no combate ao crime organizado e à corrupção, a delação premiada não está livre de críticas. Muitas dessas críticas se concentram em questões éticas e jurídicas, tais como: Incentivo à mentira: Um dos principais problemas apontados é a possibilidade de o delator fornecer informações falsas ou exageradas para obter benefícios mais significativos. Como a negociação da delação envolve uma troca de favores, há o risco de que o delator invente informações para agradar às autoridades e garantir uma pena mais branda. Assim explicam Cezar Bitencourt e Paulo Busato: "Note-se que o estímulo às benesses enfraquece ainda mais o compromisso para com a verdade, podendo fazer com que, por exemplo, aquele que nada tenha a delatar, invente implicações contra um terceiro, com o fito de obter benefícios para si próprio."; Imunidade de fato: Em alguns casos, os delatores acabam sendo isentos de penas mais severas, o que pode gerar um sentimento de impunidade e de fragilidade no sistema de justiça, levando à percepção de que a delação é uma "salvação" para aqueles que cooperam com o sistema; Abuso no uso da delação: Outra crítica recorrente é que, em algumas situações, a delação pode ser utilizada de forma indiscriminada, principalmente em casos de corrupção política, onde o foco pode estar mais na obtenção de provas contra inimigos políticos do que na real busca pela justiça. Isso gera desconfiança sobre a transparência e a ética do processo; Manipulação do processo judicial: O acordo de delação premiada pode ser manipulado por autoridades que busquem uma solução rápida para um caso complexo, em detrimento de uma investigação mais profunda. Isso pode levar à criminalização de pessoas que não têm envolvimento significativo com o crime, simplesmente para validar o processo de colaboração. 5. A relevância da delação premiada no combate ao crime organizado A delação premiada, sem dúvida, desempenha um papel significativo no enfrentamento de organizações criminosas no Brasil. Sua importância se evidencia principalmente em investigações de grande escala, como as relacionadas à Lava Jato e à Operação Tempus Veritatis, em que delatores desempenharam papel crucial ao fornecer detalhes sobre esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro e crimes políticos. Através da colaboração premiada, as autoridades conseguem desmantelar organizações criminosas com grande eficácia, ao quebrar a cadeia de comando e identificar envolvidos que, de outra forma, seriam difíceis de alcançar. Além disso, o instituto tem sido fundamental no avanço de investigações envolvendo grandes nomes da política, do setor empresarial e de figuras públicas, promovendo uma maior transparência e combate à corrupção. Entretanto, é fundamental que o uso da delação premiada seja sempre realizado com rigor, para evitar abusos e garantir que os benefícios sejam concedidos apenas a quem realmente colaborou de forma efetiva com a Justiça. Nesse sentido, é pacífico entre doutrina e jurisprudência, além de expressamente previsto em lei (art. 4º, § 16, da lei 12.850/13) que a delação premiada por si só não é suficiente - ou não deveria ser - para uma acusação formal ou uma condenação contra alguém. Admitir essa prática seria permitir que os corréus façam o papel do Estado, tomando para si o dever de identificar e acusar eventuais infratores que, porventura, respondam pelos mesmos atos que os seus. É o que a doutrina chama de regra da corroboração, ou seja, exige-se que o colaborador traga elementos de informação e de prova capazes de confirmar suas declarações. Importante dizer, ainda, os elementos de prova confirmatórios podem ser anotações em agenda, relatórios, gravações de voz, entre outros; mas, jamais, uma delação poderá ser confirmada apenas pelo depoimento de um segundo delator. Nesse sentido reconheceu o STF, valendo exemplificar o acolhimento a essa tese em decisão do ministro Celso de Melo: Registre-se, de outro lado, por necessário, que o Estado não poderá utilizar-se da denominada "corroboração recíproca ou cruzada", ou seja, não poderá impor condenação ao réu pelo fato de contra este existir, unicamente, depoimento de agente colaborador que tenha sido confirmado, tão somente, por outros delatores, valendo destacar, quanto a esse aspecto, a advertência do eminente professor Gustavo Badaró ("O Valor Probatório da Delação Premiada: sobre o § 16 do art. 4º da lei 12.850/13") PET 5.700/STF." (fls. 73 e 74) Com efeito, a defesa, muitas vezes, tenta desqualificar a delação por todos os meios possíveis, questionando sua veracidade ou os interesses do delator. Contudo, quando essas alegações são sustentadas por provas sólidas, não há argumentos capazes de afastar a validade do conjunto probatório apresentado. A força das evidências torna difícil contestar os fatos, e a acusação se torna mais substanciada e robusta. Assim, quando a delação premiada é acompanhada de documentos e provas robustas, ela se torna, de fato, um meio fidedigno de prova. A colheita de informações que corroboram a versão do delator, por meio de elementos materiais consistentes e verificáveis, assegura maior credibilidade ao seu depoimento e diminui o risco de manipulações ou versões fictícias. Conclusão A delação premiada é uma ferramenta poderosa no combate ao crime organizado, corrupção e outros delitos complexos, permitindo que autoridades investiguem e desmantelam redes criminosas com maior eficácia. No entanto, seu uso envolve uma série de desafios éticos e jurídicos que exigem um equilíbrio cuidadoso entre os benefícios e os riscos que essa prática implica. A legislação brasileira tem avançado nesse sentido, mas o debate sobre a delação premiada continua a ser um tema central nos estudos de direito penal e na prática judicial. Se bem regulamentada e aplicada de forma justa, a delação premiada pode continuar a ser um importante instrumento no combate ao crime, mas é necessário garantir que seu uso seja transparente, ético e voltado sempre para a promoção da justiça e da verdade. _______________ 1 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/13. Ed. Saraiva, São Paulo, 2014. 2 BOTTINO, Thiago. Colaboração premiada e incentivos à cooperação no processo penal: uma análise crítica dos acordos firmados na "Operação Lava Jato". Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2016, vol. 122, nº 2016. 3 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024. 4 CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020. 5 DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 11ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2022. 6 Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal realizada por meio de interceptação telefônica, define organização criminosa, entre outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013. Seção 1, p. 1. 7 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. 8 VALLE, Juliano Keller do. Crítica à delação premiada. Florianópolis: Conceito2012. 9 VASCONCELLOS, Vinicius. 7. Valoração dos Elementos Probatórios Produzidos em Razão da Colaboração Premiada In: VASCONCELLOS, Vinicius. Colaboração Premiada no Processo Penal. Ed. 2023. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2023.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Assédio nas metas e o dever de indenizar

Nossa coluna é um espaço dedicado à publicação de artigos sobre os mais variados temas do Direito, escritos exclusivamente por mulheres juristas. Além de contribuir com o ensino e aperfeiçoamento jurídico e disseminar informação para toda a sociedade, temos como objetivo promover uma nova concepção de Direito e de sociedade, na qual as mulheres juristas têm as mesmas oportunidades acadêmicas e de atuação profissional. Introdução A busca por alta produtividade e lucratividade faz parte da atividade empresarial, assim como a alta performance é um desafio enfrentado pela maioria dos trabalhadores, seja pela necessidade de permanecerem empregados, seja pelo desejo de ascensão profissional ou pela realização pessoal.  A crescente competitividade no ambiente corporativo tem levado algumas empresas a adotarem estratégias de gestão que ultrapassam os limites da razoabilidade e do que é humanamente possível, impactando na saúde física e psíquica dos empregados e refletindo nos números de processos ajuizados nos Tribunais do Trabalho brasileiro, já que a pressão excessiva no ambiente de trabalho e a imposição de metas abusivas podem configurar assédio. Este artigo tem como objetivo promover o trabalho decente, por meio das informações necessárias para demonstrar que o assédio nas metas pode ocorrer de forma sutil, quase imperceptível pelo empregado.  O princípio da dignidade da pessoa humana como freio ao poder diretivo O empregador tem o direito de gerir seu negócio, de zelar pela boa execução de suas atividades e de adotar estratégias de gestão que contribuam para a produtividade, lucratividade e sucesso dos seus negócios. Se, por um lado, o estabelecimento de metas faz parte do poder diretivo do empregador1, por outro, é direito do empregado ter um meio ambiente de trabalho seguro e saudável2. O poder diretivo do empregador não é ilimitado; pelo contrário, encontra freios nos textos normativos vigentes, deveres anexos ao contrato de trabalho, bem como na obrigação de oferecer postos de trabalho decentes e de respeitar a dignidade da pessoa humana do trabalhador. A dignidade da pessoa humana não é apenas um 'freio legal' entre o direito do empregador e o direito do empregado; implica na reparação quando ocorrer o abuso do direito por parte do empregador que causar dano ao empregado. Mais do que isso, ela é a razão de ser do próprio Estado, que deve mantê-la e promovê-la por meio de políticas públicas e incentivos de políticas de natureza privada3, pois, surgiu como um ente parceiro na criação das condições para a realização humana, sendo esse o seu fim4. Como ocorre o assédio nas metas condutas O assédio nas metas pode ocorrer em situações como a imposição de metas intangíveis5, na qual são desconsideras as condições reais de trabalho e as capacidades individuais do empregado, além da sua exposição a situações constrangedoras e vexatórias para que as metas sejam alcançadas. Pode ocorrer por meio de ameaças de dispensa, ainda que sutis, ou pela possibilidade de descontos na remuneração variável caso a meta não seja alcançada, além de cobranças excessivas, como "duelos entre gerentes" ou competições entre dois empregados com o objetivo de comparar o atingimento de metas. Constitui assédio a exposição de rankings com identificação em cores da produtividade dos gerentes ou de outro cargo, na qual o empregado é exposto   a uma situação vexatória e humilhante. Outros exemplos que configuram o assédio são a utilização de aplicativos de mensagens fora do expediente de trabalho, inviabilizando a desconexão e o descanso necessários, fazendo com que o empregado se sinta pressionado constantemente a "bater" as metas fixadas de forma abusiva. Uma das dificuldades para o empregado perceber que está sendo assediado em relação às metas é que, muitas vezes, a empresa adota um tratamento abusivo indistintamente. Ou seja, todos os empregados da empresa ou de determinado setor ou departamento são tratados da mesma forma; não se tratando de algo pontual e direcionado exclusivamente a um empregado específico. Alguns empregados têm dificuldade em perceber o assédio porque não são diretamente maltratados ou humilhados e acreditam que as cobranças são consideradas normais dentro da relação de emprego, nas quais são exigidas produtividade. Conversas no tom de "se não bater a meta este mês, será dispensado", "se não bater a meta, terá que participar de reunião com o gerente regional para se explicar", "o empregado tem que estar no nível de manter o emprego" ou "o empregado deve dar o sangue para trabalhar aqui, porque está cheio de gente desempregada lá fora querendo entrar" evidenciam a pressão a que os trabalhadores estão submetidos. Depreende-se que os exemplos acima consignados parecem terem se naturalizado em muitos ambientes de trabalho; porém, não deixam de impactar negativamente a saúde do trabalhador. Tanto é verdade que os empregados submetidos a metas intangíveis e cobradas com rigor excessivo são mais propensos a desenvolver doenças como ansiedade, depressão e burnout6. O direito ao trabalho decente O ordenamento jurídico brasileiro assegura a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado7 e garante aos trabalhadores a proteção à sua honra e dignidade8. O Estado Democrático de Direito é fundado no valor social do trabalho9 e a ordem econômica é instituída com base na valorização do trabalho humano10, conforme os preceitos da justiça social. A justiça social é o fim do direito, praticada com o propósito de promover a dignidade da pessoa humana do trabalhador e efetivar os direitos humanos sociais, devendo ser empreendida nas relações sociais em um universo democrático, no qual a pessoa humana seja o fim para atingir a satisfação de todos e não um meio para alcançar os interesses de alguns. Contudo, a justiça social prescinde de uma democracia em sentido pleno11, que é indissociável da concepção de inclusão social, política e institucional, da qual todo cidadão é titular, independentemente de suas individualidades12. O dever de indenizar o dano moral decorrente do assédio nas metas Estipular metas intangíveis e cobrá-las com rigor excessivo, de forma vexatória, configura assédio, causando dano moral que deve ser integralmente indenizado13. Carolina Tupinambá conceitua dano extrapatrimonial como 'toda moléstia a direitos personalíssimos ou a valores fundamentais do empregado, considerado em perspectiva ontológica e social'. Para a autora, o dano extrapatrimonial é o gênero do qual o dano moral é a espécie14. De acordo com o texto normativo vigente, o assédio moral se configura como práticas reiteradas de humilhação, degradação e constrangimento a um empregado, de modo a afetar sua dignidade e integridade psíquica15. Importante ressaltar que a Convenção 190 da OIT, ainda não ratificada pelo Brasil, não exige reiteração de tais práticas, por isso, melhor se coaduna com a efetividade do direito ao trabalho decente, inclusive porque protege os trabalhadores e empregados, independentemente dos tipos de contrato, alcançando pessoas em treinamento, estagiários, aprendizes, voluntários e candidatos a emprego16. Sua ratificação representaria um grande avanço na promoção do trabalho decente, já que reconhece que a violência e o assédio no trabalho configuram violações ou abusos aos direitos humanos, constituindo uma ameaça à igualdade de oportunidades. O art. 223-C da CLT menciona como bens juridicamente tutelados "a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física", que são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física. A Constituição da República garantiu a reparabilidade do dano ao dispor no art. 5º, inciso V, que "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem", e no inciso X, que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". O Código Civil seguiu o texto constitucional, dispondo no art. 186 que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". Patrícia Maeda aponta a necessidade de perseverarmos na busca por uma organização salubre e com trabalhadores saudáveis, devendo a luta ser pela promoção de todos os direitos sociais como forma de prevenção do assédio moral, e não apenas pela monetarização. Esse fato não faz com que a reparação de danos deixe de ser um instrumento de promoção do direito ao trabalho decente, já que tem como uma de suas funções educar a sociedade a oferecer trabalho decente17. Conclusão O empregador enfrenta o desafio de oferecer postos de trabalho saudáveis, mesmo diante de ambientes corporativos cada vez mais competitivos. O estabelecimento de metas é um meio de alcançar os resultados desejados e um direito do empregador; no entanto, há limites, não podendo ocorrer excessos nem abusos. Todavia, se ocorrerem excessos e abusos na cobrança de metas, configura-se o assédio moral, resultando em dano moral que deve ser integralmente reparado. 1 DANO MORAL. COBRANÇA DE METAS. ASSÉDIO MORAL NÃO CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. O empregador, no uso de seu poder diretivo, pode cobrar incrementos na quantidade ou qualidade do serviço, fixar metas e exigir resultados. A cobrança incisiva de metas, por si só, não pode ser tida como abusiva, ou exagerada. Só poderá ser assim enquadrada se dela decorrer alguma ofensa à dignidade do trabalhador. Destarte, por não comprovada a conduta ilícita da reclamada, não há falar em indenização por danos morais. (TRT-12 - ROT: 0000598-13.2022.5.12.0037, relator: JOSE ERNESTO MANZI, 3ª turma) 2 Constituição da República, arts. 7º, XXII, 225 e 200. 3 PINTO, Airton Pereira. Direito do Trabalho, Direitos Humanos Sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 88 4 Ob. Cit., p. 89. 5 DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. COBRANÇA EXCESSIVA DE METAS. ABUSO DO PODER DIRETIVO. CONFIGURAÇÃO. A cobrança de metas de produtividade, por si só, especialmente em setores competitivos, não se revela suficiente à caracterização do dano moral. Lado outro, o abuso do poder diretivo com o intuito de forçar o cumprimento de metas abusivas, de forma reiterada, justifica a condenação ao pagamento de indenização por danos morais, em decorrência de assédio moral e pode caracterizar, inclusive, assédio moral organizacional. (TRT-3 - ROT: 00102143320195030145 MG 0010214-33.2019.5.03.0145, relator: Adriana Goulart de Sena Orsini, Data de Julgamento: 27/4/22, Primeira turma, Data de Publicação: 28/4/22). 6 ALVARENGA, Rubia Zanotelli. Trabalho decente direito e humano e fundamental. São Paulo: LTr, 2016, p. 70.  7 Constituição da República, art. 1º, inciso III, da CR/88. 8 CLT, art. 7º. 9 Constituição da República, art. 1º, IV. 10 Constituição da República, art. 170, caput. 11 PINTO, Airton Pereira. Direito do Trabalho, direitos Humanos Sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 93. 12 PINTO, Airton Pereira. Direito do Trabalho, direitos Humanos Sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 93. 13 EMENTA DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. Cabe indenização ao trabalhador por danos morais quando, em razão da execução da relação de subordinação existente no vínculo de emprego, o empregador, mediante abuso ou uso ilegal do seu poder diretivo, atinge bens subjetivos inerentes à pessoa do trabalhador. É o que ocorre no caso em análise, em que se constata cobrança abusiva e excessiva de metas, restando configurado o dano extrapatrimonial porquanto afetada a esfera moral da trabalhadora. A empresa é objetivamente responsável, por força do art. 932, III, do Código Civil, fazendo jus a autora à indenização. (TRT-4 - ROT: 00201921120225040821, relator: ANDRE REVERBEL FERNANDES, Data de Julgamento: 28/9/22, 4ª turma). 14 TUPINAMBÁ, Carolina. Danos Extrapatrimoniais Decorrentes das Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2018, p. 41.  15 Jus Laboris TST. Disponível aqui. Acesso aos 10/2/25, às 18h. 16 Disponível aqui. Acesso aos 7/2/25, às 23h50.  17 MAEDA Patrícia. A Era dos Zero Direitos: Trabalho Decente, Terceirização e Contrato Zero Hora. São Paulo: LTr, 2017, p. 53.  18 ALVARENGA, Rubia Zanotelli. Trabalho decente direito e humano e fundamental. São Paulo: LTr, 2016. 19 DELGADO, Maurício Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. Constituição da República e Direitos Fundamentais. Dignidade da Pessoa Humana, Justiça Social e de Direito do Trabalho. 4ª Ed. São Paulo: LTr, 2017. 20 MAEDA Patrícia. A Era dos Zero Direitos: Trabalho Decente, Terceirização e Contrato Zero Hora. São Paulo: LTr, 2017.  21 PINTO, Airton Pereira. Direito do Trabalho, direitos Humanos Sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006. 22 TUPINAMBÁ, Carolina. Danos Extrapatrimoniais Decorrentes das Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2018.