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A ilegalidade na desclassificação de candidatos negros em comissões de heteroidentificação: Limites e controle judicial

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Atualizado em 21 de agosto de 2025 08:45

A Constituição Federal, ao inaugurar o capítulo da Administração Pública, insculpiu no art. 37 o princípio da legalidade como um dos pilares da atuação estatal. No âmbito dos concursos públicos, esse princípio se desdobra em uma regra clara: todo e qualquer ato da administração está vinculado à lei e deve respeitar os direitos adquiridos e o devido processo legal.

Com o advento da lei 12.990/14, o ordenamento jurídico brasileiro incorporou as ações afirmativas raciais no acesso ao serviço público federal, reservando um percentual de vagas a candidatos autodeclarados pretos ou pardos. Desde então, a autodeclaração passou a ser o critério inicial e legítimo para a reserva de vagas, admitindo-se a etapa de heteroidentificação, desde que prevista no edital e em conformidade com critérios objetivos e motivação clara.

Importante destacar que a existência das comissões de heteroidentificação é legítima e necessária para coibir fraudes que comprometem a efetividade da política pública de cotas raciais. O combate às auto declarações falsas é uma medida indispensável à preservação do princípio da igualdade material e da justiça distributiva.

No entanto, essa mesma comissão deve atuar com absoluta transparência, imparcialidade e obediência à legalidade, pois não se pode combater uma fraude com outra forma de violação aos direitos fundamentais. Observa-se um preocupante aumento de decisões administrativas que, sob o pretexto de "verificação fenotípica", infirmam autodeclarações legítimas de candidatos negros ou pardos, ignorando aspectos fundamentais da análise racial, como os padrões fenotípicos historicamente marginalizados, a pluralidade da identidade racial brasileira e os parâmetros estabelecidos pelo IBGE.

Essas comissões, por vezes, se valem de critérios estéticos subjetivos, desprovidos de previsão legal e motivação técnica, para desclassificar candidatos com aparência evidentemente parda ou negra. Tal postura não apenas viola o princípio da legalidade, mas também o da motivação e da razoabilidade, desrespeitando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial.

O Poder Judiciário, em consonância com a jurisprudência do STF e do STJ, tem reagido a essas ilegalidades. Em diversas decisões, foi reconhecido que, havendo dúvida sobre o fenótipo do candidato, deve prevalecer a autodeclaração, como reafirmado na ADC 41/DF. Nesse julgamento, o STF consignou que o sistema de cotas raciais é constitucional e que a autodeclaração possui presunção de veracidade, sendo sua desqualificação admissível apenas diante de falsidade evidente, jamais por critérios estéticos duvidosos.

Além disso, diversas Cortes, como o TJ/SP e o TRF da 4ª região, têm reafirmado a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos que eliminam candidatos da cota racial sem fundamentação legítima. Nesses precedentes, os tribunais destacaram que a exclusão baseada em critérios não previstos no edital configura desvio de finalidade e abuso de poder, sendo passível de anulação.

Outro ponto central diz respeito ao prazo decadencial para impetração do mandado de segurança. Em que pese o prazo ser de 120 dias, o entendimento consolidado no STJ é de que este prazo se inicia com a ciência dos efeitos práticos do ato administrativo, e não apenas com sua formalização. Ou seja, quando o candidato percebe os prejuízos decorrentes da eliminação injusta, tem-se o início da contagem do prazo decadencial.

Importante destacar, ainda, que o decreto municipal 57.557/16 (SP) e a LC estadual 1.259/15 exigem a comprovação de falsidade da autodeclaração para que ocorra a eliminação do candidato. Assim, não cabe à Comissão de Heteroidentificação presumir a falsidade ou invalidar a declaração sem respaldo técnico e motivação clara, sob pena de ferir os princípios constitucionais e legais que regem o serviço público.

Diante de tais elementos, é possível afirmar que a exclusão de candidatos negros ou pardos, a partir de critérios subjetivos e sem observância aos parâmetros legais, revela-se flagrantemente ilegal, merecendo a devida correção por via judicial.

O mandado de segurança, portanto, mostra-se não apenas cabível, mas necessário como instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, restabelecendo a legalidade e a justiça em face de arbitrariedades administrativas.

Conclusão

A implementação de ações afirmativas no Brasil é uma conquista histórica da população negra. A criação de bancas de heteroidentificação é um instrumento importante para garantir a lisura das cotas raciais, mas sua atuação deve ser pautada por critérios objetivos, legalmente previstos e amplamente divulgados, sob pena de se transformar em um mecanismo de exclusão indevida.

A advocacia tem papel essencial na proteção desses direitos, e o Poder Judiciário é chamado a exercer o controle da legalidade, não do mérito, desses atos administrativos, a fim de assegurar o cumprimento do princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da justiça social.

O mandado de segurança, nestes casos, se revela como via legítima e eficaz para reparar ilegalidades praticadas pela Administração Pública, garantindo ao candidato o direito de prosseguir no certame e assegurar seu acesso digno ao serviço público.