Liberdade que silencia, arte que violenta
terça-feira, 17 de junho de 2025
Atualizado em 16 de junho de 2025 14:18
Recentemente, uma barbárie disfarçada de comédia tomou conta das redes sociais, encontrando respaldo em muitos que, sob o pretexto da liberdade artística, tentaram legitimar o direito de ofender. Vejam alguns exemplos:
"Você pegar voo para o Nordeste é uma experiência, porque tem umas pessoas com aparência primitiva [.] Anda em 2D, parece um caranguejo."
"O cara deixou assim: 'Sou gordo! Adoro comer e não gosto de fazer exercício. Como vou emagrecer?' Pegando Aids! Você não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha! Uma hora vai dar certo! Essa piada pode parecer um pouco preconceituosa, porque é!"
"Sou totalmente contra a pedofilia, sou mais a favor do incesto, se for abusar de uma criança, abusa do seu filho, ele vai fazer o quê? Contar para o pai?".
"Uma vez eu estava num evento, o garçom chegou para mim: 'Você quer um uísque com energético?' Eu falei, tá maluco, rapaz? O uísque para mim tem que ser igual à mulher. Puro e com 12 anos."
"Negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim"
O ponto de partida para pensar a relação entre arte, direito e liberdade de expressão não pode ser outro senão o reconhecimento de que nenhuma dessas dimensões é neutra. Tanto a arte quanto o direito são atravessados pelas experiências de seus intérpretes, moldadas por disputas de poder e pelos valores hegemônicos de cada época.
A história mostra que a produção artística - especialmente aquela canonizada sob o rótulo de "belas artes" - cumpriu papel central na validação de discursos de dominação. Desde o século XVIII, pinturas e desenhos não apenas refletiram o mundo: participaram ativamente da construção simbólica de hierarquias morais. A estética foi, nesse sentido, coautora da ideologia racista que situava corpos negros na zona da subalternidade.
As pinturas coloniais escancaram essa violência silenciosa: sujeitos negros representados como caricaturas infantis, servis, sem agência. Crianças negras retratadas como miniaturas passivas, destituídas de identidade própria. Era uma arte que não apenas reproduzia o racismo - ela o estetizava, o naturalizava e o oferecia como verdade aos olhos do mundo.
E aqui se impõe uma pausa para reflexão: naquele tempo - e ainda hoje, sob outras perspectivas - pessoas negras sequer eram reconhecidas como sujeitos de direito. Sem acesso à palavra institucional, tampouco à representação estética digna, restava-lhes o silêncio imposto. A liberdade de expressão era, portanto, uma ficção normativa restrita: branca, masculina, eurocentrada e liberal. Chamava-se universal, mas nascia do silenciamento e da exclusão.
Perguntemo-nos: quando se diz que toda arte é livre, a que arte se está referindo? E mais: quem é que pode exercer essa liberdade irrestrita? Quem fala - e quem tem de calar?
A pretensa neutralidade da arte, tantas vezes evocada em defesa do "direito de ofender", camufla uma estética da violência. A liberdade criativa, quando instrumentaliza a desumanização, transforma-se em discurso de dominação legitimado por uma moldura. Eis o paradoxo: liberdade que silencia, arte que violenta.
Com a redemocratização do Brasil, vozes antes soterradas passaram a disputar sentidos nas esferas política e jurídica. Mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ passaram a tensionar e disputar o imaginário jurídico e artístico hegemônico. Por exemplo, a criminalização do racismo só veio em 1989 e não foi dádiva do Estado - foi conquista de luta.
Desde então, a ideia de liberdade de expressão deixou de ser um dogma inquestionável e passou a ser colocada em xeque por narrativas contra-hegemônicas. Obras que reforçam o racismo, o sexismo e a misoginia deixaram de ser entendidas como meras "opiniões" e passaram a ser identificadas como práticas que atentam contra a dignidade humana.
Para alguns, isso tudo tornou o mundo "chato". Para outros - e aqui reside a potência da inflexão -, trata-se de criticar a arte para que ela se preencha de sentido ético, emancipatório e sobretudo humano. A arte, afinal, não é apenas catarse ou provocação: ela pode ser a antessala da barbárie ou o prenúncio da liberdade.
Defender esse tipo de "graça" é rir do horror. É legitimar e naturalizar a violência como entretenimento. E isso, definitivamente, não é arte. Não é liberdade. É miséria ética.
O riso que se constrói a partir da dor do outro, sobretudo da dor histórica de um povo, não humaniza. Ele reafirma estruturas que oprimem, silenciam e matam.
Racismo, sexismo e misoginia não são opiniões. Não são piadas. E, definitivamente, não têm lugar na arte.