Feminicídio e os incidentes de insanidade mental: O perigoso precedente do caso Elaine Caparroz e a necessária perspectiva de gênero nos laudos periciais
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Atualizado em 4 de agosto de 2025 13:33
No dia 28/7/25, foi veiculado na imprensa nacional o caso de um ex-jogador de basquete que teria desferido 60 socos em sua companheira dentro de um elevador. Preso em flagrante, ele alegou ter sofrido um surto em razão de claustrofobia. A repercussão do episódio reacendeu o debate sobre o uso de alegações psíquicas como estratégia de defesa em crimes de violência de gênero, especialmente diante de precedentes recentes no Judiciário. Em dezembro de 2024, a 7ª Câmara Criminal do TJ/RJ havia tornado definitiva a decisão que considerou Vinícius Serra inimputável pelas agressões cometidas contra Elaine Caparroz, que quase resultaram em sua morte.
O caso de Elaine Caparroz, brutalmente agredida em 2019 por Vinícius Serra em seu próprio apartamento, representa mais do que um episódio de violência física: trata-se de um paradigma jurídico e médico que suscita profundas reflexões sobre os limites éticos da psiquiatria forense e a aplicação do Direito Penal com perspectiva de gênero. Na ocasião, o agressor alegou ter agido sob efeito de uma parassonia (distúrbio do sono caracterizado por comportamentos motores involuntários) como forma de afastar sua responsabilidade penal.
A decisão judicial que acolheu a tese gerou ampla controvérsia, não apenas pela gravidade do crime, mas pelo risco de que incidentes de insanidade mental, a exemplo do caso Caparroz, passem a funcionar como verdadeiros salvo-condutos para o feminicídio, naturalizando a violência extrema contra mulheres sob o manto da inimputabilidade e fragilizando a responsabilização penal de seus autores.
A violência perpetrada contra Caparroz teve duração estimada de quatro horas e resultou em múltiplas fraturas e desfiguração facial. A defesa fundamentou sua tese em laudo psiquiátrico que apontava possível episódio de parassonia, com base em polissonografia realizada dois anos antes do crime e relatos familiares não validados clinicamente.
O padrão de agressão (contínuo, prolongado e dirigido) parece contrastar frontalmente com a literatura médica sobre parassonias, que descreve episódios tipicamente breves, desorganizados e espontaneamente resolvidos. A jurisprudência internacional é clara ao exigir rigor probatório para aceitação de tais alegações em contexto criminal.
Parassonias como o sonambulismo, a sexônia e os transtornos comportamentais do sono REM estão classificados no DSM-5-TR e na CID-11 como distúrbios do sono-vigília, mas não como transtornos mentais nos moldes que autorizam a inimputabilidade penal permanente. Estudos como o de Ingravallo et al. (2014) mostram que episódios violentos associados a parassonias têm duração muito curta (geralmente, entre 30 segundos e cinco minutos) e cessam espontaneamente.
Casos emblemáticos como o de Scott Falater (EUA, 1997) e Kenneth Parks (Canadá, 1987) ilustram os limites clínicos e jurídicos para a aceitação da tese de automatismo. No caso brasileiro, o comportamento do agressor envolveu ações conscientes como calar a vítima, trancar portas, e retomar as agressões após confusão inicial, o que descaracteriza o automatismo completo.
O eminente psiquiatra forense Guido Palomba apresentou parecer divergente da linha da defesa em que deslocou a causa do comportamento violento de Vinícius do campo dos distúrbios do sono (parassonia) para o campo das epilepsias psíquicas, buscando fundamentar uma visão psiquiátrico-forense tradicional que questiona a defesa baseada na medicina do sono. Palomba dá a entender que, sob a ótica da psiquiatria forense clássica, Vinícius não seria plenamente imputável à época dos fatos devido ao seu estado psíquico alterado e à possível disritmia cerebral epiléptica. Não encontramos no laudo, todavia, defesa da completa inimputabilidade.
O incidente de insanidade mental, previsto nos arts. 149 a 154 do CPP, tem por finalidade apurar se o acusado, ao tempo da conduta criminosa, dispunha de plena capacidade para compreender o caráter ilícito de seu ato e determinar-se conforme esse entendimento.
A instauração do incidente pressupõe dúvida razoável sobre a integridade mental do réu ao tempo dos fatos, devendo ser instruída com elementos técnicos robustos e atuais. A ausência de diretrizes periciais claras e atualizadas no Código Penal brasileiro impõe especial cautela na avaliação da validade e da suficiência dos laudos apresentados.
A falta de perspectiva de gênero no laudo pericial
A resolução CNJ 254/18 institui a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e determina a articulação institucional com a rede de proteção. Já a resolução CNJ 492/23 estabelece a obrigatoriedade do julgamento com perspectiva de gênero, inclusive nos elementos periciais.
O laudo que embasou o incidente de insanidade mental desconsiderou esses parâmetros. Ignorou, por exemplo, que as agressões concentradas no rosto da vítima - padrão reconhecido por diversos documentos das Nações Unidas - são indicativos de violência misógina e possuem carga simbólica de dominação e humilhação. Essa omissão compromete a integridade da resposta institucional e invisibiliza marcadores estruturais de gênero.
Diversos documentos das Nações Unidas reconhecem que ataques ao rosto da mulher, especialmente em contextos de violência letal, possuem significado simbólico e estão frequentemente associados ao feminicídio. Esse foi o padrão marcante da violência cometida contra Elaine Caparroz.
O Latin American Model Protocol for the Investigation of Gender-Related Killings of Women, elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR, 2014), destaca que lesões faciais nas vítimas não apenas evidenciam a brutalidade do ato, mas também indicam intenções específicas de dominação, humilhação e despersonalização. Segundo o documento, essas lesões muitas vezes não se limitam à mecânica do homicídio, mas expressam uma forma de punição moral e destruição simbólica da identidade da mulher.
Nesse mesmo sentido, o relatório da UNODC em parceria com a ONU Mulheres sobre feminicídios globais inclui os ataques ao rosto no conjunto de práticas classificadas como "mutilações excessivas", apontando que esse tipo de agressão pode constituir forte indício de motivação de gênero. Tais marcas não são vistas apenas como resultado da violência física, mas como instrumentos de imposição de poder e silenciamento, frequentemente antecedidos por ciclos prolongados de violência.
Já os relatórios da relatoria especial da ONU sobre Violência contra as Mulheres também incluem as agressões ao rosto no rol das práticas de "tratamento degradante ou destrutivo", indicativas de atos cuja finalidade é subjugar, apagar ou punir simbolicamente a vítima em razão de seu gênero.
Com base nesses instrumentos internacionais, recomenda-se que investigações e laudos periciais em casos de feminicídio ou violência de gênero descrevam cuidadosamente as lesões faciais, analisem seu padrão, cronologia e intensidade, e as considerem como potenciais evidências da intenção misógina do agressor. A ausência dessa análise compromete o enquadramento jurídico correto do crime e contribui para a invisibilização de suas causas estruturais.
Fragilidades metodológicas do laudo psiquiátrico
O laudo baseou-se em exame defasado, não foi acompanhado de exames complementares indispensáveis (como PSG com vídeo, EEG, exames toxicológicos, ressonância magnética ou avaliação neuropsicológica), e ignorou fatores como: histórico de agressividade e alcoolismo do réu; discurso de vingança prévio; possível projeção invejosa hostil direcionada ao filho da vítima; existência de semiconsciência durante o ato; a própria confissão de episódio anterior de parassonia com duração de 20 minutos - atípica, mas muito inferior às quatro horas do crime.
A ausência de análise contextual, especialmente sobre traços de personalidade e misoginia, violou a diretriz de julgamento com perspectiva de gênero.
Conclusão
O caso Elaine Caparroz enseja uma inflexão crítica sobre os excludentes de culpabilidade.
Para que o direito penal não se torne cúmplice da impunidade misógina, é imperioso reafirmar o papel normativo da psiquiatria forense como instrumento de Justiça, e não de fuga da responsabilidade.
O PL 6120/23, de autoria do deputado Federal Coronel Assis (UNIÃO/MT), propõe alterações no art. 150 do CPP, com o objetivo de estabelecer critérios mais rigorosos e tecnicamente qualificados para a instauração do incidente de insanidade mental. A proposta representa um avanço ao fomentar um debate ainda incipiente entre o Poder Legislativo e os profissionais da saúde mental, abrindo espaço para o aprimoramento dos parâmetros jurídicos e periciais que regem a avaliação da imputabilidade penal no Brasil.