Interseccionalidade: Parâmetros constitucionais, convencionais e legais
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Atualizado em 1 de setembro de 2025 16:14
Em diferentes passagens o "protocolo" refere o substantivo feminino "interseccionalidade", seja nas diretrizes ou na parte dispositiva, onde se lê:
Art. 3º Caberá ao Fórum Nacional do Poder Judiciário para Equidade Racial (Fonaer):
II - elaborar estudos e propor medidas concretas de aperfeiçoamento do sistema de justiça quanto às causas que envolvam direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional;
Nas "diretrizes", o vocábulo interseccionalidade é grafado diversas vezes, valendo a pena destacar uma emblemática síntese constante de fls. 37:
"Para saber mais: a discriminação múltipla está vinculada ao conceito de interseccionalidade, formulado por Kimberlé Crenshaw, que evidencia como diferentes sistemas de opressão (como racismo, sexismo e classismo) interagem e se sobrepõem, criando experiências singulares de desigualdade. A autora é uma das principais referências do feminismo negro jurídico, e sua obra analisa como essas formas interligadas de discriminação afetam especialmente as mulheres negras, dificultando seu acesso pleno aos direitos"
Interessa realçar que a noção de sobreposição de sistemas de opressão relaciona-se diretamente com a múltipla consideração negativa de atributos da pessoa e o emprego despótico e desumanizador desses atributos como fatores de discrímen negativos, fatores de desigualação de oportunidades e de tratamento.
Neste particular aspecto devemos lembrar que o constituinte de 1988 recolheu da realidade social atributos pessoais potencialmente capazes de gerar desigualação no acesso e exercício de direitos, admitindo uma espécie singular de violência motivada pelos atributos da pessoa seja a origem (art. 3°, IV); cor ou raça (arts. 3°, IV, 4°, VIII, 5°, XLII, e 7°, XXX); sexo (arts. 3°, IV, 5°, I, e 7°, XXX); idade (arts. 3°, IV, e 7°, XXX); estado civil (7°, XXX), porte de deficiência (art. 7°, XXXI, 227, II); credo religioso (art. 5°, VIII); convicções filosóficas ou políticas (art. 5°, VIII); tipo de trabalho (art. 7°, XXXII) ou natureza da filiação (art. 227, § 6°), dentre outros recolhidos na realidade social e reputados como fontes de desigualação.
Um exame exploratório da Constituição Federal permite captar a aparente sinonímia com que as expressões discriminação lato sensu (art. 3°, IV e 227), discriminação stricto sensu (art. 5°, XLI, e 7°, XXXI), distinção entre pessoas (arts. 5°, caput, 7°, XXXII, e 12, § 2°), diferença de tratamento (art. 7°, XXX), tratamento desigual (art. 150, II) e prática do racismo (5°, XLII), são utilizadas, resguardada a ênfase conferida pelo constituinte à prática do racismo comparativamente à outras possíveis modalidades de discriminação, senão porque a criminaliza, atribuindo-lhe os gravosos estatutos da inafiançabilidade e da imprescritibilidade, também porque sujeita o infrator à mais severa das penas privativas de liberdade - a reclusão. Assim, o preâmbulo da Constituição Federal consigna o repúdio ao preconceito; o art. 3º, IV, proíbe o preconceito e qualquer outra forma de discriminação (de onde infere que preconceito constitui espécie do gênero discriminação); o art. 4º, VIII, assinala a repulsa ao racismo; o art. 5º, XLI, prescreve que a lei punirá qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e garantias fundamentais; o mesmo art. 5º, XLII, criminaliza a prática do racismo; o art. 7º, XXX, proíbe diferença de salários e de critério de admissão por motivo de cor, dentre outras motivações, e finalmente o art. 227, que atribui ao Estado o dever de colocar a criança a salvo de toda forma de discriminação e repudia o preconceito contra pessoas com deficiência.
A múltipla consideração negativa de atributos pessoais como critério para violação de direitos e fator ensejador de desigualdades encontra previsão expressa, nos nossos dias, na Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, ratificada por meio do decreto 10.932/22 e recepcionada com status de emenda constitucional (CF, art. 5o, § 3o), cujo art. 1o, item 3, prescreve:
Art. 1º, 3. Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no art. 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.
Vejamos, a título de ilustração, instrumentos internacionais correlacionados, em vigor no Brasil.
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1968, considera "discriminação racial":
"...toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo, ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública".
Em 1979, a Convenção contra todas as Formas de Discriminação contra a Mulher considerou que a expressão "discriminação contra a mulher" significará: "...toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo".
Ratificada pelo Brasil em 1/2/1984, essa convenção salienta:
"...a eliminação do apartheid, de todas as formas de racismo, discriminação racial, colonialismo, neocolonialismo, agressão, ocupação estrangeira e dominação e interferência nos assuntos internos dos Estados é essencial para o pleno exercício dos direitos do homem e da mulher".
Ambas as convenções ostentam dispositivos que obrigam os Estados-membros a desenvolverem ações, inclusive legislativas, para coibir tanto a discriminação por motivo de raça quanto por motivo de sexo.
Em 1994, a Assembleia Geral da OEA - Organização dos Estados Americanos - aprovou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará que definiu como violência contra a mulher:
"... qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado".
Levando em conta os diferentes contextos socioeconômicos e culturais e as situações específicas vividas pelas mulheres, essa mesma Convenção, ratificada pelo Brasil em 27/11/1995, declara em seu art. 9º:
"Para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados-Partes terão especialmente em conta a situação de vulnerabilidade à violência que a mulher possa sofrer em conseqüência, entre outras, de sua raça, ou de sua condição étnica, de migrante, refugiada ou desterrada".
No mesmo sentido registre-se o Preâmbulo da Declaração Sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher, de 1993, aprovada após a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada nesse mesmo ano que destacou a preocupação com:
"...o fato de que alguns grupos de mulheres, como por exemplo as mulheres pertencentes às minorias, as mulheres indígenas, as refugiadas, as mulheres migrantes, as mulheres que habitam comunidades rurais ou remotas, as mulheres indigentes, as mulheres reclusas ou detidas em instituições, as crianças, as mulheres com incapacidades, as idosas e as mulheres que se encontram em situações de conflito armado são particularmente vulneráveis à violência".
Não será ocioso assinalar que embora o preâmbulo de qualquer lei não constitua norma jurídica propriamente dita, ele serve, no dizer do jurista Celso Bastos, como "diretriz para a atividade interpretativa", de sorte que sempre que os instrumentos jurídicos que se referem aos direitos da mulher considerem, em seu preâmbulo, a peculiaridade da situação da mulher negra, eles devem ser interpretados à luz deste valor principal.
Importa ressaltar que o art. 9o da referida Convenção de Belém do Pará deve ser interpretado como uma norma que impõe uma obrigação positiva ao Estado: a obrigação de considerar, na produção de suas políticas, a peculiaridade da situação da mulher negra, visando sua inserção em tais políticas. Isso significa que a produção e aplicação de legislação nacional deve dar status legal a tal inserção e à adoção plena da legislação internacional que prescreve o mesmo escopo ético-jurídico.
Por último, mas não em último, devemos assinalar paradigmático dispositivo do Estatuto da Igualdade Racial, lei 12.288/10:
Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:
III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;
Norma de teor análogo consta da lei n. 10.778, de 24 de novembro de 2003, que "Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados":
Art. 1º Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados.
§ 1º Para os efeitos desta lei, entende-se por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado.
Temos assim que tanto por previsão constitucional quanto preceitos expressos de direito internacional e interno, o conceito de interseccionalidade encerra uma categoria jurídica rigorosamente positivada no ordenamento jurídico brasileiro.