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Bancas de heteroidentificação: "In dúbio pro" candidata(o)

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado em 13 de outubro de 2025 14:18

No julgamento do ARE 1.553.243/CE, o STF fixou tese de repercussão geral (Tema 1.420) segundo a qual:

"1. O Poder Judiciário pode controlar o ato administrativo de heteroidentificação de candidatos que concorrem às vagas reservadas a pessoas pretas e pardas em concurso público, para garantia do contraditório e ampla defesa. 2. É fática e pressupõe a análise das cláusulas do edital do concurso a controvérsia sobre a adequação de critérios e fundamentos do ato de exclusão de candidato por comissão de heteroidentificação."

Ao reafirmar a garantia constitucional de acesso à Justiça e do devido processo administrativo nesta singular e específica seara, a Corte Suprema convalida o papel subsidiário exercido pelas bancas de heteroidentificação no controle da autodeclaração de pertença racial sem olvidarmos que amplitude de defesa engloba a totalidade dos meios lícitos e "recursos a ela inerentes" (CF, art. 5º, LV).

A este respeito, enunciado da ADC 41 é cristalino quanto ao cabimento de multiplicidade de meios legais ao referir "critérios subsidiários" de heteroidentificação, empregando o plural:

"4. Procedência do pedido, para fins de declarar a integral constitucionalidade da lei 12.990/14. Tese de julgamento: "É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa."

Por este ângulo, o aludido Tema 1.420 potencializa duas indagações cujos termos poderiam ser formulados do seguinte modo: qual o objeto da prova no procedimento de auto e heteroclassificação considerando-se que sua finalidade consiste em declarar a elegibilidade ou inelegibilidade para usufruir ações afirmativas? Quais as balizas constitucionais destas provas, seus limites, as fronteiras que demarcam sua licitude e, portanto, sua admissibilidade?

O enfrentamento destas questões implica a consideração de que a Constituição Federal emprega quatro critérios para demarcar a diversidade étnico-racial que caracteriza a sociedade brasileira quais sejam raça e cor (CF, art. 3o, IV; art. 7º, XXX), o adjetivo pátrio afro-brasileiros (CF, art. 215. § 1º) e o substantivo "etnias" (CF, art. 242,  § 1º). 

Tratados como atributos equivalentes, raça e cor são também utilizados na Declaração sobre Raça e os Preconceitos Raciais (art. 1o), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (art. 1o), Convenção 111 da OIT, Concernente à Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino (art. 1o) e na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (art. 1o, item 1).

Recepcionado com status de emenda constitucional, este último tratado também alude "ascendência étnica", "origem étnica" e "afrodescendentes", adjetivo este que, a exemplo de "afro-brasileiros", lança raízes no continente de origem da parcela majoritária da população brasileira.

Particularmente interessante é a menção constitucional ao vocábulo "etnia", grafado nestes termos:

CF, Art. 242.  § 1º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.

Densificado na redação original da LDB, lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, este preceito constitucional encerra a seguinte significação:

LDB, art. 26, § 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.

Amparado na LDB, portanto, o sistema constitucional delimita os três principais grupos étnicos formadores da nacionalidade brasileira - indígena, africano e europeu - uma espécie de substrato jurídico do famoso "Canto das Três Raças", imortalizado por Clara Nunes em 1976.

Inobstante a licença poética do aclamado samba e a despeito de a Carta Magna equiparar discrímens fenotípicos aos genotípicos, de que é exemplo a supracitada norma do art. 3o, IV (preconceito ou discriminação de cor/raça), já em 2003 a Corte Suprema acertadamente proclamava que:

4. "Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista".

6. "Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminação raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, a 'negrofobia', 'islamofobia' e o anti-semitismo."  (HC 82.424, Rel. Min. Moreira Alves, Relator p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, Pleno, j. 17.9.03)

Neste julgado, como se vê, o STF proclamou que raça consiste em uma construção social, derivada do racismo e portanto resultante de um fenômeno relacional: no plano do exercício de direitos sociais o fator de discrímen é determinado não pela genética, autoidentificação ou identidade racial autodeclarada tampouco ascendência racial ou étnica do indívíduo mas por sua pertença racial perceptível e visualizada socialmente da qual decorre tratamento discriminatório (Declaração de Durban, item 79); tratamento preconceituoso (STF/MI 4.733); tratamento desigual (CF, art. 150, II; ADO 26); tratamento desumano e degradante (CF, art. 5º, III).

Não se pode confundir, portanto: 1. clivagem social baseada em pertença racial expressa cujo efeito imediato é a desigualação de tratamento, direitos e oportunidades (CF, art. 5o, caput) e; 2. incidência de discrímen injusto sobre atributos físicos da pessoa, sobre o estado da pessoa enfim, fenômenos estes cuja natureza é distinta do direito de personalidade, direito subjetivo à convicção de identidade étnico-racial, expressão da autonomia individual, da autodeterminação, da dignidade humana (CF, art. 1o, III; CC, art. 11 ss.).

Na esfera da discriminação horizontal ou vertical as pessoas não tornam-se alvos por critério genotípico, biológico, científico mas por traços visíveis no cotidiano, traços de aparência, fenotípicos.

Dito isto, exsurge evidenciado que o discrímen resulta menos da identidade racial como expressão da autodeterminação e sim da identificação social do indivíduo, cabeo aplicação, por analogia, do Estatuto do Indígena:

Lei 6.001/1973, art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas:

I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;

Nesta quadra reside o objeto bipartido da prova no procedimento de classificação racial para elegibilidade às ações afirmativas: demonstrar a compatibilidade entre auto e heteroidentificação assegurada primazia a esta última pelas razões fáticas e jurídicas sintetizadas no aludido HC 82.424.

Isto porque as ações afirmativas, também denominadas pelo STF como "discriminação reversa", "discriminação positiva" (ADPF 186 e ADC 41), conceitos didaticamente inseridos no "protocolo para julgamento com perspectiva racial" conformam instrumentos de política pública que se apropriam do elemento discriminador (discrímen) precisamente com a função de igualar direitos (historicamente desigualados, no caso, pelo racismo):

"Nos termos da jurisprudência consolidada desta Suprema Corte, existindo correlação lógico-jurídica entre o fator de discrímen e os interesses constitucionais perseguidos, não há falar em violação do princípio da isonomia" (STF - ADI 5256/MS - Rel. Min. Rosa Weber, j. 25.10.21)

Parafraseando a justificativa do Enunciado 44 da I Jornada da Justiça Federal pela Equidade Racial, "destacando que as políticas afirmativas adotam o critério racial, mas invertem o sinal negativo, que historicamente o acompanha, em favor do sinal positivo".

Numa palavra, são elegíveis para as ações afirmativas as pessoas suscetíveis a violações de direitos baseadas na raça/cor (CF, art. 3o, IV), vulnerabilidade cuja detecção incumbe precisamente às Comissões de Heteroindentificação.

Valendo-nos ainda de preciosa formulação da justificativa do Enunciado 49 da I Jornada da Justiça Federal pela Equidade Racial, "As bancas de heteroidentificação buscam, justamente, reproduzir, nas avaliações dos(as) candidatos(as), o olhar da sociedade brasileira sobre quem é e quem não é negro(a) a partir do fenótipo."

Desta condição fática (e jurídica) de vulnerabilidade pública e privada à discriminação racial decorre, portanto, o direito subjetivo de acesso às ações afirmativas.

Com isto queremos dizer que o vocábulo "critérios subsidiários de heteroidentificação" referidos no enunciado da ADC 41 deverão ser considerados (fotos, documentos públicos em que constem informação sobre cor, etc.) especialmente na fase recursal administrativa como elementos idôneos para robustecer ou problematizar a decisão do colegiado, jamais como prova isolada apta a desconstituir o pronunciamento da banca.

Caberá à banca, portanto, o papel adicional de apreciar com isenção de ânimo a prova produzida pelo interessado cotejando-a com os critérios precípuos adotados por ela própria.

Lembremos que à banca cabe proclamar se o candidato é elegível ou inelegível às políticas de ação afirmativa e que frequentemente os traços fenotípicos podem conduzir a uma dúvida razoável quanto à pertença racial.

Sobrevindo dúvida, decerto esta invariavelmente resultará da dissociação imediata ou automática entre os traços fenotípicos do candidato e os traços característicos do grupo étnico europeu, sendo razoável, portanto, a adoção do clássico princípio "in dúbio pro" candidata(o).

Noutras palavras, não sendo imediatamente identificado como pertencente ao segmento étnico branco, a tendência da sociedade (perspectiva reproduzida nos concursos justamente pelas bancas) será categorizar o candidato como pardo, indígena ou amarelo - categorias censitárias empregadas pelo IBGE desde 1872.

Especialmente naquelas hipóteses de dúvida, inclusive para a conformação e solidificação de elementos consistentes a configurar dúvida razoável, a exibição de "critérios subsidiários" poderá ser aproveitada pela instância recursal administrativa para robustecer a apreciação da banca de heteroidentificão e enriquecer os fundamentos e motivações da decisão.

O desafio atual consiste, portanto, em aprimorar a redação dos editais, a composição das bancas, os cursos de formação dos seus integrantes, os protocolos da fase recursal administrativa e os procedimentos de auto e heteroidentificação no seu conjunto, consolidando as políticas de ação afirmativa como uma das mais exitosas e inclusivas políticas públicas conquistadas pelo Movimento Negro e assumidas pela sociedade brasileira desde as experiências inaugurais da Uneb e da UERJ no longínquo ano de 2002.