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Família e Sucessões

Desafios contemporâneos do direito de família e sucessões.

Flávio Tartuce
Mais uma vez, tive a grande honra de ser convidado para palestrar no XI Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), entre os dias 25 e 27 de outubro deste ano de 2017. Trata-se de um dos maiores congressos do mundo sobre o tema e, sem dúvidas, um dos mais importantes eventos de Direito Privado de nosso país. As temáticas das exposições, nesta oportunidade, estão baseadas em perguntas práticas que devem ser respondidas pelos palestrantes. A mim coube discorrer sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, respondendo à seguinte indagação: "O CPC/2015 consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica?". Procurarei responder a tal pergunta em uma série de três artigos, publicados neste canal. Neste primeiro texto, demonstrarei o enquadramento do tema, bem como a principal aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito de Família e das Sucessões trazida pelo novo Estatuto Processual. Pois bem, diante de sua concepção como realidade técnica e orgânica, a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres na ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo. Tal realidade pode ser retirada do art. 45 do Código Civil de 2002, ao dispor que começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Fala-se em autonomia da pessoa jurídica quanto aos seus membros, o que constava expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916, dispositivo que não foi reproduzido pela atual codificação material, sem que isso traga qualquer conclusão diferente. Como decorrência lógica desse enquadramento, em regra, os componentes da pessoa jurídica somente responderão por débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual dependendo do tipo societário adotado (responsabilidade in vires). A regra é de que a responsabilidade dos sócios em relação às dívidas sociais seja sempre subsidiária, ou seja, primeiro exaure-se o patrimônio da pessoa jurídica, para depois, e desde que o tipo societário adotado permita, os bens particulares dos sócios ou componentes da pessoa jurídica serem executados. Devido a essa possibilidade de exclusão da responsabilidade dos sócios ou administradores, a pessoa jurídica, por vezes, desviou-se de seus fins, cometendo fraudes e lesando a sociedade ou terceiros, provocando reações na doutrina e na jurisprudência. Visando a coibir tais abusos, surgiu no Direito Comparado a figura da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, teoria do levantamento do véu ou teoria da penetração (disregard of the legal entity). Com isso, alcançam-se pessoas e bens que se escondem dentro de uma pessoa jurídica para fins ilícitos ou abuso, além dos limites do capital social (responsabilidade ultra vires). Entre os grandes especialistas no assunto em nosso País, Fábio Ulhoa Coelho demonstra as suas origens com precisão: "a teoria é uma elaboração doutrinária recente. Pode-se considerar Rolf Serick o seu principal sistematizador, na tese de doutorado defendida perante a Universidade de Tübigen, em 1953. É certo que, antes dele, alguns autores já haviam dedicado ao tema, como por exemplo, Maurice Wormser, nos anos 1910 e 1920. Mas não se encontra claramente nos estudos precursores a motivação central de Serick de buscar definir, em especial a partir da jurisprudência norte-americana, os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas (1950)" (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 37. v. 2). Como se extrai de obra do último jurista, são apontados alguns julgamentos históricos como precursores da tese: caso Salomon vs. Salomon & Co., julgado na Inglaterra em 1897, e caso State vs. Standard Oil Co., julgado pela Corte Suprema do Estado de Ohio, Estados Unidos, em 1892. A verdade é que, a partir das teses e dos julgamentos citados, as premissas de penetração na pessoa jurídica passaram a influenciar a elaboração de normas jurídicas visando a sua regulamentação, especialmente nos Países do modelo da "Civil Law". Na Itália, fala-se em superamento della personalitá giuridica; na Alemanha, Durchgriff der juristischen person; na Argentina, teoria de la penetración de la personalidad societaria; em Portugal, desconsideração da personalidade colectiva. Em resumo, o instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios e administradores, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, desde que causem prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa. Dessa forma, os bens particulares dos sócios ou administradores podem responder pelos danos causados a terceiros. O véu ou escudo, no caso a própria pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador. Bens da empresa também poderão responder por dívidas dos sócios, por meio do que se denomina desconsideração inversa ou invertida, com grande incidência para o Direito de Família e das Sucessões. O atual Código Civil Brasileiro acolheu expressamente a desconsideração. Prescreve o seu art. 50 que: "em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o Juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica". Como a desconsideração da personalidade jurídica foi adotada pelo legislador da codificação privada de 2002, não é recomendável mais utilizar a expressão teoria, que constitui trabalho doutrinário, amparado pela jurisprudência. Tal constatação também é retirada da leitura do Código de Defesa do Consumidor. O art. 28, caput, da lei 8.078/1990 enuncia que: "o Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração"; (...) § 5º: "Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". Faz o mesmo o art. 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), ao prever que "poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente". Tanto em relação à adoção da teoria quanto à manutenção das leis especiais anteriores, expressa o Enunciado n. 51, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (2002), que "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica - disregard doctrine - fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema". Eis um argumento doutrinário de relevo pelo qual não se pode mais utilizar a expressão teoria, uma vez que a desconsideração foi abraçada pela codificação privada. Ponto importante a ser esclarecido, diante do comum baralhamento no uso dos termos, é que a desconsideração não se confunde com a despersonificação ou despersonalização, pois essas últimas expressões significam o fim da pessoa jurídica, tratada pelo art. 51 do Código Civil Brasileiro. Reitere-se que pela desconsideração da personalidade jurídica não há extinção da pessoa jurídica, mas apenas uma ampliação de responsabilidades. A melhor doutrina aponta a existência de duas grandes teorias fundamentais acerca da desconsideração da personalidade jurídica. A primeira delas é a teoria maior ou subjetiva, segundo a qual a desconsideração, para ser deferida, exige a presença de dois requisitos. O primeiro deles é o abuso da personalidade jurídica; o segundo, o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pelo art. 50 do CC/2002, sendo aplicada para as relações civis, notadamente para aquelas fundadas em vínculo de Direito de Família ou das Sucessões. Incide, portanto, para as fraudes praticadas entre cônjuges ou entre herdeiros. Por outra via, pela teoria menor ou objetiva, a desconsideração da personalidade jurídica exige um único elemento, qual seja o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pela lei 9.605/1998, para os danos ambientais e, segundo a posição consolidada da jurisprudência superior - apesar da existência de críticas doutrinárias -, pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Entre os principais precedentes que trazem tal conclusão está o rumoroso caso da explosão do "Shopping Center" de Osasco (STJ, REsp 279.273/SP, Terceira Turma, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Julgado em 4/12/2003, DJ 29/3/2004, p. 230). Como não se pode atribuir a subsunção dessas normas para as relações familiares ou entre herdeiros, a aplicação da teoria menor foge do âmbito em estudo neste texto. De todo modo, existem duas modalidades básicas de desconsideração, sujeitas às duas teorias expostas. A primeira delas é a desconsideração direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica. Está ela tratada pelos expostos art. 50 do Código Civil e art. 28 do CDC. A segunda é a desconsideração indireta, inversa ou invertida, hipótese em que bens da pessoa jurídica respondem por dívidas dos sócios ou administradores. A última modalidade não estava tratada em lei, tendo surgido doutrinariamente no Brasil a partir dos estudos do Professor Rolf Madaleno - quem ora se homenageia -, especialmente no âmbito do Direito de Família e das Sucessões (por todas as suas obras: Direito de família. Aspectos polêmicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 31). No âmbito doutrinário, a desconsideração inversa ou invertida também foi reconhecida pelo Enunciado n. 283, da IV Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal (2006), in verbis: "é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada 'inversa' para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros". Da jurisprudência superior anterior, vários já eram os arestos que a reconheciam (por todos: STJ, REsp. 948.117/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/6/2010, publicado no seu Informativo n. 444). Pensamos que a principal e mais importante inovação do Código de Processo Civil de 2015 sobre a temática foi justamente essa positivação da desconsideração inversa, incluída no seu art. 133, § 2º, no tópico relativo ao "incidente de desconsideração da personalidade jurídica". E, conforme o Enunciado n. 11, aprovado na I Jornada de Processo Civil, realizada em agosto último pelo mesmo Conselho da Justiça Federal, tal procedimento incide também para essa modalidade de desconsideração. Sobre as regras relativas ao citado incidente, e suas aplicações ao âmbito do Direito de Família e das Sucessões tratarei no artigo de continuidade a este texto.
Tema que é intensamente debatido no âmbito de supostas interações entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil diz respeito à responsabilidade pré-negocial no casamento, ou seja, à quebra de promessa de casamento como fato gerador do dever de indenizar, inclusive por danos imateriais. A quebra dessa promessa ocorre, muitas vezes, quando se estabelece um compromisso de noivado, de modo a fazer surgir o dever de indenizar nos esponsais, matéria, aliás, tratada pelo Código Civil Alemão, nos seus §§ 1.297 a 1.302 (Verlöbnis). A possibilidade de reparação nesses casos vem sendo abordada há tempos pela doutrina e pela jurisprudência, havendo posicionamentos em ambos os sentidos. De todo modo, cabe esclarecer que não se trata de indenização pretendida em decorrência de vínculo familiar, pois, no caso de noivado, esse ainda não existe. Essa é uma questão metodológica importante, eis que muitas vezes o instituto é relacionado ao cerne do Direito de Família, o que não é o caso. Entre os que são favoráveis à indenização nessas situações, cite-se Inácio de Carvalho Neto, que lembra o fato de que o nosso "Código, ao contrário dos Códigos alemão, italiano, espanhol, peruano e canônico, não regula sequer os efeitos do descumprimento da promessa". Porém, para o mesmo autor, "isto não impede que se possa falar em obrigação de indenizar nestes casos, com base na regra geral da responsabilidade civil. Como afirma Yussef Cahali, optou-se por deixar a responsabilidade civil pelo rompimento da promessa sujeita à regra geral do ato ilícito" (Responsabilidade civil no direito de família. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 401). Na esteira das lições transcritas, entendo ser plenamente possível a indenização de danos morais em decorrência da quebra da promessa de casamento futuro por um dos noivos. Em sentido contrário, Maria Berenice Dias leciona que, em casos tais, são indenizáveis somente os danos emergentes ou danos positivos, os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso, caso das despesas relativas à celebração do casamento. Para a doutrinadora, não há que se falar em danos morais ou mesmo em lucros cessantes ou danos negativos. São suas palavras: "falando em dano moral e ressarcimento pela dor do fim do sonho acabado, o término de um namoro também poderia originar responsabilidade por dano moral. Porém, nem a ruptura do noivado, em si, é fonte de responsabilidade. O noivado recebia o nome de esponsais e era tratado como uma promessa de contratar, ou seja, a promessa do casamento, que poderia ensejar indenização. Quando se dissolve o noivado, com alguma frequência é buscada a indenização não só referente aos gastos feitos com os preparativos do casamento, que se frustrou, mas também aos danos morais. Compete à parte demonstrar as circunstâncias prejudiciais em face das providências porventura tomadas em vista da expectativa do casamento. Não se indenizam lucros cessantes, mas tão somente os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso, a outro título que não o de considerar o casamento como um negócio, uma forma de obter o lucro ou vantagem. Esta é a postura que norteia a jurisprudência" (Manual de direito das famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 118). O que se percebe é que há forte corrente doutrinária que entende não ser possível a responsabilidade civil por danos morais pela quebra de promessa de casamento. De fato, não se pode afirmar que o casamento é fonte de lucro e, sendo assim, não há como ressarcir lucros cessantes. Porém, reafirmamos ser viável a reparação dos danos imateriais em situações especiais, sendo certo que a complexidade das relações pessoais recomenda a análise caso a caso. Nesse contexto, é forçoso concluir que, no Código Civil de 2002, o dever de indenizar surge não com base no art. 186, que trata do ato ilícito puro e indenizante, mas com fundamento no art. 187, que disciplina o abuso de direito, como ilícito equiparado. Esse é o ponto de divergência entre o posicionamento deste autor e o de parte da doutrina civilista, entre aqueles que reconhecem o dever de indenizar nessas hipóteses em decorrência do ato ilícito extracontratual propriamente dito. Partindo para a prática, na jurisprudência podem ser encontrados julgados que apontam para a reparabilidade dos danos morais em casos tais. Do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como primeiro exemplo, merece destaque: "a ruptura do noivado, embora cause sofrimento e angústia ao nubente, por si só, não gera o dever de indenizar, pois, não havendo mais o vínculo afetivo, não faz sentido que o casal dê prosseguimento ao relacionamento. Todavia, se o rompimento do noivado ocorreu de forma extraordinária, em virtude de enganação, por meio de promessas falsas e mentiras desprezíveis, causando dor e humilhação na noiva abandonada, configuram-se os danos morais" (TJ/MG, Apelação Cível n. 1.0701.12.031001-9/001, Rel. Des. Rogério Medeiros, julgado em 16/06/2016, DJEMG 24/06/2016). Ou, do Tribunal de Justiça do Paraná, entre acórdãos mais antigos: "noivado não tem sentido de obrigatoriedade. Pode ser rompido de modo unilateral até momento da celebração do casamento, mas a ruptura imotivada gera responsabilidade civil, inclusive por dano moral, cujo valor tem efeito compensatório e repressivo, por isto deve ser em quantia capaz de representar justa indenização pelo dano sofrido" (TJPR, Acórdão n. 4651, Apelação Cível, comarca Londrina, 3ª vara Cível, Órgão Julgador 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Antonio Gomes da Silva, publicação 13/03/2000). Também foram encontradas decisões que afastam totalmente a possibilidade de reparação dos danos morais por quebra de noivado. Do mesmo Tribunal de Minas Gerais: "Ausentes os requisitos do art. 186 do Código Civil, não é o caso de incidência de danos morais e materiais, ainda mais quando a parte autora não se incumbiu de provar os fatos alegados. Meros dissabores e frustrações advindas do rompimento do noivado, não ensejam a condenação em indenização" (TJ/MG, Apelação Cível n. 1.0024.10.124748-4/001, Rel. Des. Pedro Aleixo, julgado em 16/02/2017, DJEMG 06/03/2017). Ainda na mesma esteira, do Tribunal paulista: "a promessa de casamento, baseada no compromisso amoroso entre o homem e a mulher, é eivada de subjetivismo e riscos, sendo que a sua ruptura não pode acarretar dano moral indenizável" (TJ/SP, Apelação n. 386.368.4/0, Acórdão n. 3596890, São Paulo, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Luiz Gavião de Almeida, j. 14/.04/2009, DJESP 9/6/2009). Em continuidade, alguns arestos reconhecem apenas os danos materiais decorrentes da não realização do casamento, como as despesas com a realização da festa que acabou não ocorrendo. Nesse sentido, por todos: "RESPONSABILIDADE CIVIL. Indenização por danos materiais e morais. Rompimento do noivado pelo réu 10 dias antes da celebração do casamento. Danos materiais. Ressarcimento. Admissibilidade. Exclusão dos supostos gastos realizados pelo varão com o cartão de crédito da autora, não demonstrados e divisão igualitária das despesas efetivamente já adiantadas. Danos morais. Afastamento. Direito do noivo de repensar sua vida antes de contrair matrimônio. Pequeno período de duração do namoro. Ausência de situação vexatória, ou humilhante. Apelo parcialmente provido" (TJSP, Apelação n. 0005378-26.2011.8.26.0462, Acórdão n. 8107600, Poá, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Galdino Toledo Junior, julgado em 16/12/2014, DJESP 20/01/2015). Por fim, há ementas que afastam o dever de indenizar em casos determinados, em que os danos não estão evidenciados, mas reconhecem a reparabilidade dos danos morais por quebra de promessa de noivado, especialmente se os fatos forem de especial gravidade, causando humilhação à outra parte: "APELAÇÃO CÍVEL. ROMPIMENTO DE NOIVADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. NÃO CABIMENTO. AUSÊNCIA DE DANO MORAL. FALTA DE PROVA DE DANO MATERIAL. A simples ruptura de um noivado não pode ser causa capaz de configurar dano moral indenizável, salvo em hipóteses excepcionais, em que o rompimento ocorra de forma anormal e que ocasione, realmente, à outra pessoa uma situação vexatória, humilhante e desabonadora de sua honra, o que, no caso dos autos, como visto, não ocorreu. Não se há de falar em indenização por dano material, no caso de rompimento de noivado, se não há prova nos autos de culpa de quem quer que seja pelo rompimento havido e sequer das despesas realmente feitas com a preparação da cerimônia" (TJMG, Apelação Cível n. 1.0480.12.016815-2/001, Rel. Des. Evandro Lopes da Costa Teixeira, julgado em 3/12/2015, DJEMG 15/12/2015). "Noivado. Rompimento. Dano moral e material. Descaracterização. Somente se caracteriza a ocorrência do dano moral indenizável em decorrência de rompimento de noivado, quando este se verifica às vésperas da data do casamento. Não se configura a ocorrência de danos materiais decorrentes de despesas contraídas em virtude da declaração da data do casamento, quando, após o rompimento, os bens adquiridos permaneceram de posse da parte autora. Recurso não provido" (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 0382351-0, Apelação Cível, 2002, Comarca Belo Horizonte/Siscon, Órgão Julgador 2ª Câmara Cível, Rel. Juiz Alberto Aluizio Pacheco de Andrade, j. 20/05/2003, dados de publicação: não publicada, decisão unânime). Conforme pesquisa recentemente realizada, o que se tem percebido na prática jurisprudencial é a prevalência de ementas que afastam a reparação dos danos morais nos casos de quebra de promessa de casamento. Na verdade, diante da casuística, é preciso conciliar todos esses entendimentos para se chegar a uma conclusão plausível dentro das circunstâncias fáticas a serem analisadas. Em suma, a questão não pode ser passível de generalização, como ocorre muitas vezes na prática, infelizmente. Repise-se que, para a primeira corrente transcrita, é possível a reparação de danos morais se a não celebração do casamento prometido causar lesão psicológica ao noivo ou ao namorado, notadamente se a ruptura ocorrer às vésperas da cerimônia. A propósito, quando de sua exposição no V Congresso Brasileiro de Direito de Família, no dia 27 de outubro de 2005, Jones Figueirêdo Alves, ao discorrer sobre o abuso de direito aplicado ao âmbito do Direito de Família, utilizou uma expressão que, aqui, serve como uma luva e que tenho utilizado em aulas e exposições sobre o tema: estelionato do afeto. Concorda-se com a afirmação segundo a qual a mera quebra da promessa não gera, por si só, o dano moral. Ademais, não há de se confundir o dano moral com os meros dissabores do cotidiano, se realmente os fatos tiveram essa qualificação. Porém, em alguns casos, os danos morais podem estar configurados, principalmente naqueles em que a pessoa é substancialmente enganada pela outra parte envolvida, a qual desrespeita toda a confiança depositada sobre si. Cite-se, a par dessas afirmações, outro rumoroso caso analisado pelo Tribunal de Minas Gerais, a seguir colacionado: "a vida em comum impõe aos companheiros restrições que devem ser seguidas para o bom andamento da vida do casal e do relacionamento, sendo inconteste o dever de fidelidade mútua. O término de relacionamento amoroso, embora seja fato natural da vida, gerará dever de indenizar por danos materiais e morais, conforme as circunstâncias que ensejaram o rompimento. São indenizáveis danos morais e materiais causados pelo noivo flagrado pela noiva mantendo relações sexuais com outra mulher, na casa em que moravam, o que resultou no cancelamento do casamento marcado para dias depois e dos serviços contratados para a cerimônia" (TJMG, Apelação Cível n. 5298117-04.2007.8.13.0024, Belo Horizonte, 10ª Câmara Cível, Rel. Des. Mota e Silva, j. 31.08.2010, DJEMG 21.09.2010). Cabe mencionar, ainda, a hipótese em que a noiva - ou o noivo - é deixada esperando no altar, na presença dos convidados do casal, o que, sem dúvidas, acarreta consequências no âmbito da responsabilidade civil. Tal situação, sem dúvidas, gera repercussões negativas sobre a honra da pessoa, de modo a caracterizar o dano imaterial. E o que dizer de um caso em que o noivo transmite à noiva uma doença sexualmente transmissível, ou vice-versa, sendo esse o motivo da ruptura? Sem dúvidas, estará presente o seu dever de reparar os prejuízos sofridos pela outra parte. Além desses exemplos, muitos outros poderiam surgir. Por isso é que se recomenda a análise específica dos fatos. De qualquer forma, merece destaque a ressalva anterior sobre o fundamento jurídico da reparação civil em casos tais. Com todo o respeito, reitere-se, não se segue o entendimento pelo qual a reparação está motivada no art. 186 do atual Código Civil, dispositivo que conceitua o ato ilícito indenizante como a soma da violação de um direito - correspondente ao desrespeito de um dever jurídico -, com um dano causado. Isso porque não há de se falar em lesão ou violação de direitos quando alguém não celebra o casamento prometido, pois a promessa de casamento não vincula a sua ocorrência futura. Desse modo, não há ato ilícito propriamente dito. O dever de indenizar, em situações tais, decorre do abuso de direito, pelo desrespeito à boa-fé objetiva, diante da norma geral contida no art. 187 da codificação material, in verbis: "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". Desse modo, o dever de indenizar, nos moldes do art. 927, caput, do Código Civil, tem por fundamento o segundo conceito de ilicitude indenizante. Assim, a conduta de abuso gera uma responsabilidade pré-negocial casamentária em decorrência do desrespeito aos deveres anexos na fase anterior ao casamento. Trata-se de clara aplicação do princípio da boa-fé objetiva aos institutos familiares, notadamente pela incidência dos deveres anexos de lealdade, de transparência e de confiança. Aliás, se fôssemos adeptos da corrente que aponta ser o casamento um contrato, falaríamos que a quebra da promessa de noivado gera uma espécie de responsabilidade pré-contratual, conforme entendem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, chegando à mesma conclusão pela reparação civil em casos tais (Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2011. v. VI. Direito de Família, p. 137). A propósito, é forçoso lembrar que o abuso de direito é lícito pelo conteúdo e ilícito pelas consequências, conforme conceituava Rubens Limongi França. No caso em questão, percebe-se que a promessa de um casamento futuro é perfeitamente lícita. Mas, se a parte promitente abusar desse direito, ao desrespeitar os citados deveres anexos que decorrem da boa-fé, presente estará o seu dever de indenizar. Anote-se, em complemento, que a regra a respeito do dever de indenizar o ato ilícito continua sendo a responsabilização mediante culpa em sentido amplo, que engloba o dolo e a culpa estrita. Mas, como se sabe, em caso de abuso de direito, a responsabilidade não depende de culpa, pelo que consta do sempre citado Enunciado n. 37 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil. É justamente isso que pode ocorrer na quebra da promessa de noivado ou de casamento futuro em algumas situações. Concluindo, vislumbra-se que a boa-fé objetiva dá um novo tratamento à matéria, pois a quebra de promessa de casamento futuro deve ser encarada como uma quebra dos deveres de lealdade, de transparência e de confiança, ínsitos a qualquer relação jurídica.
Como demonstrado em texto anterior, publicado neste canal, muitos acórdãos da recente jurisprudência brasileira têm afastado a indenização por abandono afetivo, não obstante o seu reconhecimento quando do acórdão prolatado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.159.242/SP, do ano de 2012. Diante desse panorama recente, recomendamos naquele artigo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notamos, também em nossa pesquisa, que muitos dos arestos estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização por abandono afetivo. A nossa impressão, conforme as palavras finais do texto, foi no sentido de que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo pelo Tribunal da Cidadania. Porém, no âmbito das Cortes Estaduais há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. E muitos deles o fazem com base no prazo prescricional a ser aplicado à espécie, o que aqui pretendemos abordar. De início, esclareça-se que, por se tratar de demanda reparatória de danos, o prazo eventualmente aplicado é de prescrição, e não de decadência. Como é cediço, o Código Civil de 2002 acabou por adotar os critérios desenvolvidos por Agnelo Amorim Filho, em clássico estudo sobre os prazos, publicado na Revista dos Tribunais n. 300. Isso foi feito em prol da operabilidade, em um sentido de facilitação dos institutos privados, um dos baluartes principiológicos da codificação em vigor. Seguindo tal orientação, os prazos de prescrição são associados às ações condenatórias, caso das demandas relativas à responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual. Já os prazos de decadência associam-se às ações constitutivas positivas ou negativas, como ocorre no reconhecimento de nulidade relativa de um ato ou negócio jurídico, nos termos dos arts. 178 e 179 do Código Civil, sem prejuízo de outras normas que tratam da anulabilidade. Pois bem, a corrente amplamente majoritária entende que o prazo prescricional, em casos tais, é de três anos, afirmando-se a subsunção do prazo especial para a reparação civil, previsto no art. 206, § 3º, inc. V, do Código Civil. No âmbito estadual, numerosos julgados seguem essa vertente, do prazo exíguo, diante de uma suposta subsunção perfeita ao caso concreto. Vejamos cinco deles, dos últimos dois anos e de cada uma das regiões do país. De início, do Tribunal de Justiça do Paraná: "Ação reparatória de danos morais e materiais em razão do homicídio da mãe dos autores e do abandono afetivo em tese praticado pelo requerido. Prescrição. Aplicação do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, V, CCB. Autores absolutamente incapazes à época dos fatos. Início do prazo prescricional com o alcance da maioridade" (TJPR, Apelação cível n. 1601201-4, Ipiranga, Décima Câmara Cível, Relª Desª Ângela Khury Munhoz da Rocha, julgado em 08/06/2017, DJPR 21/07/2017, pág. 130). Do Tribunal de São Paulo: "Incidência do prazo de três anos previsto no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil de 2002, em consonância com o artigo 2.028 do mesmo diploma legal" (TJSP, Apelação n. 0013103-59.2012.8.26.0453, Acórdão n. 9425346, Pirajuí, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 04/05/2016, DJESP 17/05/2016). Da região Centro-Oeste, posicionou-se o Tribunal do Distrito Federal no sentido de que "a pretensão indenizatória da autora/recorrente prescreve em três anos, na esteira do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Além disso, fundamenta-se no descumprimento, pelo réu/recorrido, das obrigações inerentes ao poder familiar, incluindo o amparo moral e econômico. Os deveres relativos ao poder familiar cessam com a maioridade plena, ainda que o genitor não os exerça. De fato, a simples alegação de que o requerido/apelado não cumpriria as obrigações relativas ao poder familiar não tem o condão de afastar a incidência da causa suspensiva prevista no art. 197, inciso II, do Código Civil. Sendo assim, resta claro que qualquer pretensão relacionada ao inadimplemento dos deveres inerentes ao poder familiar somente pode ser demandada quando encerrada a causa suspensiva acima mencionada, ou seja, com a maioridade plena do filho ou com a emancipação deste" (TJDF, Apelação cível n. 2015.01.1.064396-6, Acórdão n. 101.8971, Quarta Turma Cível, Rel. Des. Rômulo de Araújo Mendes, julgado em 11/05/2017, DJDFTE 30/05/2017). Seguindo, do Estado da Paraíba, no mesmo sentido: "a pretensão de reparação civil por abandono afetivo nasce quando cessa a menoridade civil do autor, caso a suposta paternidade seja de seu conhecimento desde a infância, estando sujeita ao prazo prescricional de três anos" (TJPB, Recurso n. 0028806-67.2013.815.0011, Quarta Câmara Especializada Cível, Rel. Des. Romero Marcelo da Fonseca Oliveira, DJPB 11/04/2016). Por derradeiro, chegando-se ao Amazonas, tem-se que "a pretensão de indenização por abandono afetivo prescreve em três anos, conforme o prazo estabelecido no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, e começa a contar a partir da maioridade do alimentando. No caso concreto deve ser reconhecida a prescrição, porquanto a presente ação foi ajuizada quase sete anos após o autor atingir a maioridade" (TJAM, Apelação n. 0622496-32.2013.8.04.0001, Primeira Câmara Cível, Relª Desª Maria das Graças Pessoa Figueiredo, DJAM 17/08/2017, p. 12). Como se pode perceber, todos os julgados transcritos acabam por concluir que o prazo prescricional de três anos tem início com a maioridade do filho, pois, nos termos do art. 197, inc. II, do Código Civil, não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, o que é cessado quando o filho completa dezoito anos, em regra. Esse dispositivo, segundo tal interpretação, deve prevalecer sobre outra, enunciada pelo art. 198, inc. I, da mesma codificação, segundo a qual não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os menores de dezesseis anos. Sendo assim, o prazo prescricional para o abandono afetivo acaba por vencer quando o filho completa vinte e um anos de idade (18 anos + 3 da prescrição). Entre colegas professores consultados, assim se posicionam Ricardo Calderón, Rodrigo Toscano de Brito, João Ricardo Brandão Aguirre, Maurício Bunazar, Marcelo Truzzi Otero, Eduardo Busatta, Fábio Azevedo, Alexandre Gomide, Maurício Andere Von Bruck Lacerda, Roberto Lima Figueiredo, Marcelo Junqueira Calixto, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Fernando Carlos de Andrade Sartori e Marcos Ehrhardt Júnior. No âmbito do STJ existe acórdão da Terceira Turma concluindo exatamente dessa forma: "Indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo. Prescrição. Aplicação do prazo prescricional trienal previsto no artigo 206 § 3º, inciso V, do CC/2002. Precedentes deste Tribunal" (STJ, AREsp 842.666/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 29/06/2017). Porém, é preciso aqui fazer uma ressalva, pois, se os fatos tiverem ocorrido na vigência do Código Civil de 1916, há que se aplicar o prazo geral de vinte anos para as ações pessoais, previsto no art. 177 da codificação revogada. Nessa linha, importante precedente da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual "os direitos subjetivos estão sujeitos a violações, e quando verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. A ação de investigação de paternidade é imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retro-operante alcançar os efeitos passados das situações de direito. O autor nasceu no ano de 1957 e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era seu pai, à luz do disposto nos artigos 9º, 168, 177 e 392, III, do Código Civil de 1916, o prazo prescricional vintenário, previsto no Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o 'pátrio poder'. Todavia, tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da pretensão quanto a compensação por danos morais" (STJ, REsp 1.298.576/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 21/08/2012, DJe 06/09/2012). Com o devido respeito às posições expostas, entendo que, em casos de abandono afetivo, não há que se reconhecer qualquer prazo para a pretensão, sendo a correspondente demanda imprescritível. Primeiro, pelo fato de a demanda envolver Direito de Família e estado de pessoas, qual seja a situação de filho. Segundo, por ter como conteúdo o direito da personalidade e fundamental à filiação. Terceiro, porque, no abandono afetivo, os danos são continuados, não sendo possível identificar concretamente qualquer termo a quo para o início do prazo. Em verdade, penso que os casos de abandono afetivo são similares aos casos de responsabilidade civil por tortura, reconhecendo o Superior Tribunal de Justiça, em vários arestos, a imprescritibilidade da pretensão em tais situações. Assim, por exemplo, entre os mais recentes, com citação de outros acórdãos: "as ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ: AgRg no Ag 1.339.344/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 28.02.2012; AgRg no REsp 1.251.529/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 01.07.2011" (STJ, AgRg no REsp 1.4981.67/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 18/08/2015, DJe 25/08/2015). Com tom suplementar de ilustração, entre os primeiros precedentes: "o dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática" (STJ, REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 17/02/2003). Em reforço, parece-nos equivocado afirmar que o prazo prescricional, pela feição subjetiva da actio nata, terá início a partir da maioridade do filho postulante. Pela citada teoria, desenvolvida entre nós por Câmara Leal e José Fernando Simão, o prazo prescricional tem início não da lesão ao direito subjetivo, mas do conhecimento da lesão. Diante dessa feição subjetiva da actio nata que não se pode dizer qual o termo a quo para o início do prazo. Os danos são continuados, não cessam, não saem da memória do ofendido, mesmo em se tratando de pessoa com idade avançada. Em outras palavras, o prejuízo é de trato sucessivo, atinge a honra do filho a cada dia, a cada hora, a cada minuto e a cada segundo. Ninguém esquece o desprezo de um pai. Entre os colegas consultados, essa é a opinião de Pablo Malheiros da Cunha Frota, Marcos Jorge Catalan e Cesar Calo Peghini. A respeito do início do prazo, também é preciso fazer uma objeção, adotando-se a posição majoritária pelo prazo prescricional específico. Ora, nem sempre o lapso temporal de três anos será contado da maioridade do filho. Em casos de reconhecimento posterior da paternidade, mais uma vez por aplicação da teoria da actio nata subjetiva, o prazo deve ser contado do trânsito em julgado da decisão que a reconhece, momento em que não há mais dúvida quanto ao vínculo dos envolvidos. Nesse sentido, conforme se retira de recente julgamento do Tribunal Paulista, "no caso dos autos, contudo, a autora apenas soube o nome do pai em 2013, ano em que completou 30 (trinta) anos, quando o réu dela se aproximou pela rede social Facebook. Propositura de ação de reconhecimento da paternidade pela autora embasada em exame de DNA positivo realizado em laboratório particular pelas partes. Início da contagem do prazo prescricional a partir da data do trânsito em julgado da ação de paternidade. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo" (TJSP, Apelação 1008272-98.2015.8.26.0564, Acórdão n. 9428000, São Bernardo do Campo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Pedro de Alcântara, julgado em 11/05/2016, DJESP 19/05/2016). Como se nota, o julgado admite a possibilidade de indenização por abandono afetivo após a maioridade, o que conta com o meu apoio. Por derradeiro, sendo adotada a corrente pelo prazo de três anos, não se pode ignorar, ainda, a aplicação da regra de Direito Intertemporal do art. 2.028 do CC, in verbis: "serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada". Desse modo, tendo sido o prazo reduzido de vinte para três anos, transcorrido menos da metade do prazo, deve-se aplicar o novo lapso de três anos, a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código Civil de 2002. Sendo assim, várias pretensões reparatórias prescreveram no mesmo dia: 11 de janeiro de 2006, com exceção dos casos dos filhos que ainda não tinham atingido a maioridade nesse período ou cuja maioridade ainda não tenha sido reconhecida. Nesse sentido, transcreve-se: "se a ação de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo foi proposta após o decurso do prazo de três anos de vigência do Código Civil de 2002, é imperioso reconhecer a prescrição da ação. Inteligência do art. 206, § 3º, inc. V, do CCB/2002. O novo Código Civil estabeleceu a redução do prazo prescricional para as ações de reparação civil, tendo incidência a regra de transição posta no art. 2.028 do CCB/2002" (TJRS, Apelação cível n. 283426-62.2013.8.21.7000, Farroupilha, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 28/08/2013, DJERS 05/09/2013). Como se pode perceber, muitas peculiaridades técnicas devem ser percebidas, mesmo no caso de adoção do prazo de três anos. O tema do abandono afetivo, assim, apresenta dificuldades jurídicas não só no seu conteúdo, mas também na verificação da existência ou não da suposta pretensão. Em suma, limitações existentes a respeito da prova do dano e do prazo prescricional têm feito que os pedidos de reparação imaterial sejam afastados na grande maioria dos casos levados ao Poder Judiciário.
A responsabilidade civil no Direito de Família projeta-se para além das relações de casamento ou de união estável, sendo possível a sua incidência na parentalidade ou filiação, ou seja, nas relações entre pais e filhos. Uma das situações em que isso ocorre diz respeito à responsabilidade civil por abandono afetivo, também denominado abandono paterno-filial ou teoria do desamor. Trata-se de aplicação do princípio da solidariedade social ou familiar, previsto no art. 3º, inc. I, da Constituição Federal, de forma imediata a uma relação privada, ou seja, em eficácia horizontal. Como explica Rodrigo da Cunha Pereira, precursor da tese que admite tal indenização, "o exercício da paternidade e da maternidade - e, por conseguinte, do estado de filiação - é um bem indisponível para o Direito de Família, cuja ausência propositada tem repercussões e consequências psíquicas sérias, diante das quais a ordem legal/constitucional deve amparo, inclusive, com imposição de sanções, sob pena de termos um Direito acéfalo e inexigível" (Responsabilidade civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade civil no direito de família. Coord. Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa. São Paulo: Atlas, 2015, p. 401). O jurista também fundamenta a eventual reparabilidade pelos danos decorrentes do abandono na dignidade da pessoa humana, eis que "o Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e de responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. (...) Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele" (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade Civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade Civil no Direito de Família, ob. cit., p. 406). Para ele, nesse seu texto mais recente, além da presença de danos morais, pode-se cogitar uma indenização suplementar, pela presença da perda da chance de convivência com o pai. O doutrinador e presidente nacional do IBDFAM atuou na primeira ação judicial em que se reconheceu a indenização extrapatrimonial por abandono filial. Na ocasião, o então Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou um pai a pagar indenização de duzentos salários mínimos a título de danos morais ao filho, por não ter com ele convivido (Apelação Cível n. 408.550-5 da Comarca de Belo Horizonte. Sétima Câmara Cível. Presidiu o julgamento o Juiz José Affonso da Costa Côrtes e dele participaram os Juízes Unias Silva, relator, D. Viçoso Rodrigues, revisor, e José Flávio Almeida, vogal). Filiando-se ao julgado mineiro e à possibilidade de indenização em casos semelhantes também está a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, uma das maiores juristas deste País na atualidade, expoente não só do Direito de Família, mas também da Responsabilidade Civil. De acordo com as suas lições, "a responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da ideia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar (...). Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial" (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva nas relações entre pais e filhos: além da obrigação legal de caráter material. Disponível em: . Acesso em 21 jun. 2017). Entretanto, como se sabe, o Superior Tribunal de Justiça reformou a primeva decisão do Tribunal de Minas Gerais, afastando o dever de indenizar no caso em questão, diante da ausência de ato ilícito, pois o pai não seria obrigado a amar o filho. Em suma, o abandono afetivo seria situação incapaz de gerar reparação pecuniária (STJ, Recurso Especial 757.411/MG, Relator Ministro Fernando Gonçalves; votou vencido o ministro Barros Monteiro, que não conhecia do recurso. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. Data do julgamento: 29 de novembro de 2005). De qualquer modo, tal decisão do Tribunal da Cidadania não encerrou o debate quanto à indenização por abandono afetivo, que permanece intenso na doutrina. Cumpre destacar que me posiciono no sentido de existir o dever de indenizar em casos tais, especialmente se houver um dano psíquico ensejador de dano moral, a ser demonstrado por prova psicanalítica. O desrespeito ao dever de convivência é muito claro, eis que o art. 1.634 do Código Civil impõe como atributos do poder familiar a direção da criação dos filhos e o dever de ter os filhos em sua companhia. Além disso, o art. 229 da Constituição Federal é cristalino ao estabelecer que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Violado esse dever e sendo causado o dano ao filho, estará configurado o ato ilícito, nos exatos termos do que estabelece o art. 186 do Código Civil em vigor. Quanto ao argumento de eventual monetarização do afeto, penso que a Constituição Federal encerrou definitivamente tal debate, ao reconhecer expressamente a reparação dos danos morais em seu art. 5º, incs. V e X. Aliás, se tal argumento for levado ao extremo, a reparação por danos extrapatrimoniais não seria cabível em casos como de morte de pessoa da família, por exemplo. A propósito, demonstrando evolução quanto ao tema, surgiu, no ano de 2012, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo. A ementa foi assim publicada por esse Tribunal Superior: "Civil e Processual Civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/1988. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado -, importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido" (STJ, REsp 1.159.242/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24/04/2012, DJe 10/05/2012). Em sua relatoria, a julgadora ressalta, de início, ser admissível aplicar o conceito de dano moral nas relações familiares, sendo despiciendo qualquer tipo de discussão a esse respeito, pelos naturais diálogos entre livros diferentes do Código Civil de 2002. Desse modo, supera-se totalmente a posição firmada no primeiro julgado superior sobre o tema, especialmente o que foi desenvolvido pelo então Ministro Asfor Rocha, da impossibilidade de interação entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil. Para a Ministra Nancy Andrighi, ainda, o dano extrapatrimonial estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, com fundamento no princípio da afetividade, a julgadora deduz pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: "amar é faculdade, cuidar é dever". Concluindo pelo nexo causal entre a conduta do pai que não reconheceu voluntariamente a paternidade de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Penso que esse último acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça representa correta concretização jurídica do princípio da solidariedade; sem perder de vista a função pedagógica ou de desestímulo que deve ter a responsabilidade civil. Sempre pontuei, assim, que esse último posicionamento deve prevalecer na nossa jurisprudência, visando também a evitar que outros pais abandonem os seus filhos. De todo modo, fazendo uma pesquisa mais atual, posterior ao último aresto superior, notei que há ainda grande vacilação jurisprudencial na admissão da reparação civil por abandono afetivo, com ampla prevalência de julgados que concluem pela inexistência de ato ilícito em casos tais, notadamente pela ausência de prova do dano. Trilhando esse caminho, de acordo com a primeira orientação do Tribunal da Cidadania, na Corte Estadual que despertou o debate, deduziu-se que "por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do CC, que pressupõe prática de ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de reparação" (TJMG, Apelação Cível n. 1.0647.15.013215-5/001, Rel. Des. Saldanha da Fonseca, julgado em 10/05/2017, DJEMG 15/05/2017). Na mesma linha, sem prejuízo de muitas outras ementas de negação do ilícito: "a pretensão de indenização pelos danos sofridos em razão da ausência do pai não procede, haja vista que para a configuração do dano moral faz-se necessário prática de ato ilícito. Beligerância entre os genitores" (TJRS, Apelação Cível n. 0048476-69.2017.8.21.7000, Teutônia, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, julgado em 26/04/2017, DJERS 04/05/2017). De todo modo, pode ser notada certa confusão técnica no último decisum, pois não é o ilícito que é elemento do dano moral, mas vice-versa. Por outra via, concluindo pela ausência de prova do dano, entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo que "a jurisprudência pátria vem admitindo a possibilidade de dano afetivo suscetível de ser indenizado, desde que bem caracterizada violação aos deveres extrapatrimoniais integrantes do poder familiar, configurando traumas expressivos ou sofrimento intenso ao ofendido. Inocorrência na espécie. Depoimentos pessoais e testemunhais altamente controvertidos. Necessidade de prova da efetiva conduta omissiva do pai em relação à filha, do abalo psicológico e do nexo de causalidade. Alegação genérica não amparada em elementos de prova. Non liquet, nos termos do artigo 373, I, do Código de Processo Civil, a impor a improcedência do pedido" (TJSP, Apelação n. 0006195-03.2014.8.26.0360, Acórdão n. 9689092, Mococa, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. J. B. Paula Lima, julgado em 09/08/2016, DJESP 02/09/2016). Em complemento, e mais recentemente, o Tribunal gaúcho aduziu que "o dano moral exige extrema cautela no âmbito do direito de família, pois deve decorrer da prática de um ato ilícito, que é considerado como aquela conduta que viola o direito de alguém e causa a este um dano, que pode ser material ou exclusivamente moral. Para haver obrigação de indenizar, exige-se a violação de um direito da parte, com a comprovação dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre a conduta desenvolvida e o dano sofrido, e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui, por si só, situação capaz de gerar dano moral" (TJRS, Apelação Cível n. 0087881-15.2017.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Relª Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro, julgado em 31/05/2017, DJERS 06/06/2017). Na pesquisa que realizei, em junho de 2017, constatei que muitos julgamentos seguem a última frase da ementa, segundo a qual o mero distanciamento físico entre pai e filho não configura, por si só, o ilícito indenizante. Diante desse panorama recente, recomendo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notei que os julgados estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização. Acrescente-se que no próprio Superior Tribunal de Justiça existem acórdãos recentes que não admitem a reparação de danos por abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Desse modo, julgando "alegada ocorrência de abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Não caracterização de ilícito. Precedentes" (STJ, AREsp 1.071.160/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE 19/06/2017). Ou, ainda, "a Terceira Turma já proclamou que antes do reconhecimento da paternidade, não há se falar em responsabilidade por abandono afetivo" (STJ, Agravo Regimental no AREsp n. 766.159/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE 09/06/2016). Em suma, parece que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo, em especial após o julgamento do REsp 1.159.242/SP, em 2012. Porém, no âmbito da jurisprudência, há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. Muitos deles o fazem também com base na existência de prescrição da pretensão, tema a ser tratado no futuro, neste mesmo canal.
A pena de sonegados na sucessão é tratada pelo art. 1.992 do Código Civil brasileiro em vigor, sendo instituída em três hipóteses: a) se o herdeiro não descrever bens no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, estejam no poder de outrem; b) se o herdeiro omitir bens na colação, a que os deva levar; e c) se o herdeiro deixar de restituir bens, quando tal medida for necessária para a partilha. Como consequência de tais atos, a mesma norma estatui que o herdeiro perderá o direito que sobre os bens sonegados lhe cabiam. Conforme leciona Rubens Limongi França, trata-se de um "instituto complementar à execução da herança que tem por fim prevenir, compor e punir a omissão de bens do espólio, por parte de algum herdeiro, do inventariante ou do testamenteiro" (Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 925). Como é notório na civilística, para a imposição dessa séria pena civil, exige-se a presença de dois elementos: um objetivo - qual seja a ocultação dos bens em si - e outro subjetivo - o ato malicioso do ocultador, o seu dolo, a sua intenção de prejudicar os outros herdeiros. A propósito da exigência da presença do dolo para a sonegação serve como ilustração o seguinte decisum superior, entre os mais recentes: "a renitência do meeiro em apresentar os bens no inventário não configura dolo, sendo necessário, para tanto, demonstração inequívoca de que seu comportamento foi inspirado pela fraude. Não caracterizado o dolo de sonegar, afasta-se a pena da perda dos bens (CC, art. 1.992)" (STJ, REsp 1.267.264/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/05/2015, DJe 25/05/2015). Em relação ao elemento subjetivo, na doutrina, Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim (Inventários e partilhas. 20. ed. São Paulo: Leud, 2006, p. 363), Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 6: Direito das sucessões, p. 391), Zeno Veloso (Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 21, p. 398), Dimas Messias de Carvalho e Dimas Daniel de Carvalho (Direito das sucessões. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, v. III, p. 287-288) entendem pela necessidade da prova do dolo por quem alega a ocultação. Essa também é a posição doutrinária deste autor, em obra sobre o tema (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6: Direito das sucessões, p. 584). Essa posição, além de prevalecer na doutrina, também é amplamente majoritária na jurisprudência nacional. Nesse sentido, do Tribunal da Cidadania: "Sonegados. Sobrepartilha. Interpelação do herdeiro. Prova do dolo. A ação de sonegados não tem como pressuposto a prévia interpelação do herdeiro, nos autos do inventário. Se houver a arguição, a omissão ou a negativa do herdeiro caracterizará o dolo, admitida prova em contrário. Inexistindo arguição nos autos do inventário, a prova do dolo deverá ser apurada durante a instrução. Admitido o desvio de bens, mas negado o dolo, não é aplicável a pena de sonegados, mas os bens devem ser sobrepartilhados. Ação parcialmente procedente. Recurso conhecido e provido em parte" (STJ, REsp 163.195/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12/05/1998, DJ 29/6/1998, p. 217). Não discrepa a posição desta Corte Estadual, afastando a caracterização do ato de sonegação se a outra parte não faz tal comprovação da intenção de fraudar. Nesse sentido, a ilustrar, entre muitos acórdãos: "Apelação. Ação de sonegados. Preliminar de nulidade afastada. Não comprovada a interpelação do réu para declarar os bens ditos como sonegados. Um dos bens está relacionado no inventário. Outros bens são litigiosos e quanto a eles não há que se falar em sonegação, devendo submeter-se à sobrepartilha caso depois passem a integrar o espólio (art. 1.040, inc. III, do CPC). (...). Não demonstrado, contudo, que houve dolo, sendo este imprescindível para a aplicação da pena de sonegados. Sentença mantida por seus próprios fundamentos (art. 252 do RITJSP). Recurso desprovido" (TJSP, Apelação 0097075-45.2000.8.26.0000, Acórdão 5551413, 7ª Câmara de Direito Privado, Ribeirão Preto, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 14/09/2011, DJESP 07/12/2011). "AÇÃO DE SONEGADOS. IMPROCEDÊNCIA COM IMPOSIÇÃO DE CONDUTA DE MÁ-FÉ. INCONFORMISMO. ACOLHIMENTO EM PARTE. AUSÊNCIA DE PROVA DO DOLO NA SONEGAÇÃO, CAPAZ DE JUSTIFICAR A IMPOSIÇÃO DA PENALIDADE CORRESPONDENTE. Sonegação, no entanto, que ocorreu, justificando, ao menos em tese, a propositura da demanda, sem que se possa vislumbrar conduta reprovável ou de dano processual. Litigância de má-fé afastada. Verba honorária reduzida, em atenção à simplicidade da causa e da prova e aos termos do art. 20, §§ 4º e 3º, do CPC. Sentença modificada em parte. Recurso provido em parte" (TJSP, Apelação com revisão n. 201.564.4/3, Acórdão n. 3511173, Assis, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, julgado em 03/03/2009, DJESP 07/04/2009). Como não poderia ser diferente, tal interpretação deve guiar a incidência do art. 1.993 do Código Civil, ao estabelecer que, se o sonegador for o próprio inventariante, será ele removido da inventariança. O ônus dessa prova, por óbvio, também cabe a quem alega, nos termos do art. 373, inciso I, do CPC/2015, correspondente ao art. 333, inciso I, do CPC/1973. No que concerne aos procedimentos, Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim ensinam que a sonegação deve ser arguida nos próprios autos do inventário e "havendo apresentação do bem, serão aditadas as declarações, para o regular seguimento do processo. Mas se persistir a recusa, a controvérsia haverá de ser resolvida em vias próprias, por meio da ação de sonegados" (Inventário e partilha. Teoria e prática. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 343). Como defendo em sede doutrinária, essa posição deve ser mantida na vigência do Novo CPC, pois de acordo com a instrumentalidade e a facilitação retiradas do Estatuto Processual emergente (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6: Direito das sucessões, p. 587). Na grande maioria das vezes, no sistema anterior, estar-se-ia diante de uma questão de alta indagação, o que justificaria a ação específica. Concluindo dessa maneira, a ilustrar, vejamos outro aresto do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 2013: "Direito civil. Direito processual civil. 1) Ação ordinária de colação e sonegados. Depósito expressivo em caderneta de poupança conjunta do de cujus com herdeiros. Apropriação pelos herdeiros mediante a saída do de cujus da titularidade da conta. Valor não levado pelos herdeiros à partilha no inventário. Ação de colação de sonegados procedente. 2) Julgamento por vara cível, a que remetidos os autos pelo juízo do inventário, por decisão irrecorrida. Questão de alta indagação ou dependente de provas. Inexistência de nulidade no julgamento pela vara cível. Ausência de prejuízo. 3) Ação ordinária de colação adequada. 4) Preclusão de homologação inexistente. Partilha amigável que não impede de colação de bens sonegados. 5) Recurso especial improvido. 1. Devem ser relacionados no inventário valores vultosos de caderneta de poupança conjunta, mantida por herdeiros com o de cujus, ante a retirada deste da titularidade da conta, permanecendo o valor, não trazido ao inventário, em poder dos herdeiros. 2. Válido o julgamento da matéria obrigacional, antecedente do direito à colação, de alta indagação e dependente de provas, por Juízo de Vara Cível, para o qual declinada, sem recurso, a competência, pelo Juízo do Inventário. Matéria, ademais, não cognoscível por esta Corte (Súmula 280/STF). 3. Ação de colação adequada, não se exigindo a propositura, em seu lugar, de ação de sobrepartilha, consequência do direito de colação de sonegados cujo reconhecimento é antecedente necessário da sobrepartilha. 4. O direito à colação de bens do de cujus em proveito de herdeiros necessários subsiste diante da partilha amigável no processo de inventário, em que omitida a declaração dos bens doados inoficiosamente e que, por isso, devem ser colacionados. 5. Recurso especial improvido" (STJ, REsp 1.343.263/CE, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 4/4/2013, DJe 11/4/2013). Não se olvide que o Código de Processo Civil de 2015 não faz mais menção às questões de alta indagação no seu art. 612, correspondente ao antigo art. 984 do CPC/1973. O dispositivo em vigor expressa apenas as questões que dependerem de outras provas, além da documental. Sendo assim, se a ação de sonegados demandar um aprofundamento da questão probatória, com a necessidade de oitiva de testemunhas e realização de perícias, haverá necessidade de uma ação específica, agora pelo procedimento comum, devendo, assim, a questão ser analisada sob a ótica do Estatuto Processual emergente. No mais, aquele antigo entendimento jurisprudencial deve ser mantido, com as devidas adaptações das expressões. A encerrar, cabe pontuar que a remoção da inventariante em decorrência da pena de sonegados deve ser somente admitida em casos excepcionais, desde que o elemento malicioso da sua configuração esteja presente, e devidamente provado. Em outras palavras, não havendo provas efetivas do ato subjetivo de ocultação em sede de inventário, e sendo tal fato dependente de provas complexas, não poderá ser admitida a drástica medida. O que quase sempre querem as partes de um inventário é o seu encerramento e não a existência de disputas intermináveis, aumentando-se gravemente a litigiosidade se a remoção da inventariante for feita sem critérios, o que muitas vezes se vê na prática, infelizmente.
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal encerrou, no último dia 10 de maio de 2017, o julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Após pedido de vistas do ministro Marco Aurélio, dois processos foram julgados em definitivo, ambos com repercussão geral (temas 498 e 809). O primeiro deles foi o recurso extraordinário 878.694/MG (Tema 809), que teve como relator o ministro Luís Roberto Barroso. Tal julgamento teve início em agosto de 2016, já havendo desde então sete votos pela inconstitucionalidade da norma, na linha do proposto pela relatoria. Votaram nesse sentido os ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, além do próprio ministro Barroso. Após pedido de vistas do ministro Dias Toffoli, o processo retomou seu destino neste ano de 2017, tendo esse último julgador concluído pela constitucionalidade da norma, pois haveria justificativa constitucional para o tratamento diferenciado entre o casamento e a união estável (voto prolatado no último dia 30 de março). O ministro Marco Aurélio pediu novas vistas, unindo também o julgamento do recurso extraordinário 646.721/RS, que tratava da sucessão de companheiro homoafetivo, do qual era relator, justamente o segundo processo (Tema 498). Em maio de 2017 foram retomados os julgamentos das duas demandas, iniciando-se pela última. Para começar, o ,ministro Marco Aurélio apontou não haver razão para a distinção entre a união estável homoafetiva e a união estável heteroafetiva, na linha do que fora decidido pela Corte quando do julgamento da ADPF 132/RJ, em 2011. Porém, no que concerne ao tratamento diferenciado da união estável diante do casamento, asseverou não haver qualquer inconstitucionalidade, devendo ser preservado o teor do art. 1.790 do Código Civil, na linha do que consta do art. 226, § 3º do Texto Maior que, o tratar da conversão da união estável em casamento, reconheceu uma hierarquia entre as duas entidades familiares. Ao final, restou vencido, prevalecendo a posição dos Ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. Frise-se que o último julgador não votou no processo anterior - pois ainda era magistrado o Ministro Teori Zavascki -, mas prolatou sua visão na demanda envolvendo a sucessão homoafetiva. Com o Relator, apenas votou o Ministro Ricardo Lewandowski, que adotou a premissa in dubio pro legislatore. Assim, o placar do julgamento do Tema 498 foi de 8 votos a 2, ausente o ministro Dias Tofolli. Conforme consta da publicação inserida no Informativo n. 864 da Corte, "o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que a Constituição prevê diferentes modalidades de família, além da que resulta do casamento. Entre essas modalidades, está a que deriva das uniões estáveis, seja a convencional, seja a homoafetiva. Frisou que, após a vigência da Constituição de 1988, duas leis ordinárias equipararam os regimes jurídicos sucessórios do casamento e da união estável (Lei 8.971/1994 e Lei 9.278/1996). O Código Civil, no entanto, desequiparou, para fins de sucessão, o casamento e as uniões estáveis. Dessa forma, promoveu retrocesso e hierarquização entre as famílias, o que não é admitido pela Constituição, que trata todas as famílias com o mesmo grau de valia, respeito e consideração. O art. 1.790 do mencionado código é inconstitucional, porque viola os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso". Quanto ao processo original, o que iniciou o julgamento da questão (RE 878.694/MG) apenas se confirmou o que estava consolidado desde o ano passado, entendendo pela constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, e mantendo-se a coerência de posições com a demanda anterior. Neste primeiro processo, o placar foi de 8 a 3, portanto (Tema 809). Mais uma vez, conforme consta do Informativo 864 do STF, "o Supremo Tribunal Federal afirmou que a Constituição contempla diferentes formas de família, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. Portanto, não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada por casamento e a constituída por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares mostra-se incompatível com a Constituição. O art. 1.790 do Código Civil de 2002, ao revogar as leis 8.971/1994 e 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou companheiro), dando-lhe direitos sucessórios inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso". Por fim, ficou destacado que, com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil deve ser aplicado apenas aos inventários judiciais em que a sentença de partilha não tenha transitado em julgado e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. A tese final firmada, para os devidos fins de repercussão geral, foi aquela conhecida desde o ano passado: "no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil". Relembro que sempre estive filiado à corrente que via inconstitucionalidade apenas no inciso III do art. 1.790 do Código Civil, por colocar o convivente em posição de desprestígio ante os ascendentes e colaterais até o quarto grau, recebendo um terço do que esses recebessem. Aliás, alguns Tribunais Estaduais tinham reconhecido a inconstitucionalidade desse último diploma, por meio do seu Órgão Especial, caso do Tribunal de Justiça do Paraná e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Entretanto, reitero que o momento é de aceitar a decisão do STF, conforme expunham dois dos nossos grandes sucessionistas, os Professores Zeno Veloso e Giselda Hironaka, citados no julgamento. A principal vantagem do decisum é resolver a grande instabilidade jurídica sucessória verificada no Brasil desde a vigência do Código Civil de 2002, colocando fim a debates sobre a inconstitucionalidade ou não do art. 1.790 do Código Civil. Assim, tendo sido esse o julgamento final, como ficam os processos de inventário em curso? E os novos processos? Como devem ser elaboradas as escrituras públicas de inventários pendentes em Tabelionatos de Notas de todo o país? O companheiro passa a ser herdeiro necessário? A equiparação entre a união estável e o casamento é para todos os fins sucessórios? Atinge também todos os fins familiares? E agora? Tentaremos aqui responder tais dúvidas, pelo menos brevemente. De início, tendo prevalecido essa forma de julgar, além da retirada do sistema do art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na ordem de sucessão legítima (art. 1.829). Desse modo, concorre com os descendentes o que depende do regime de bens adotado. Concorre também com os ascendentes o que independe do regime. Na falta de descendentes e de ascendentes, o companheiro recebe a herança sozinho, como ocorre com o cônjuge, excluindo os colaterais até o quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos). Ressalto que tenho visto na imprensa várias notícias fazendo cálculos equivocados da divisão patrimonial, sem levar em conta o regime de bens adotado no casamento, o que é fundamental não só para a meação, como também para a sucessão, pelo que consta o primeiro inciso da última norma. Na publicação do acórdão foi mantida a modulação dos efeitos reconhecida em 2016, sem qualquer ressalva, apesar de debates no julgamento final. Conforme o voto do Ministro Barroso, "é importante observar que o tema possui enorme repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Assim, levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo ser recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, entendo que a solução ora alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública" (STF, recurso extraordinário 878.694/MG, relator ministro Luís Roberto Barroso). Em suma, a tese da repercussão geral aplica-se, sim, aos processos de inventário em curso, desde que não haja decisão transitada em julgado, sem pendência de recurso. Por outra via, em havendo sentença ou acórdão aplicando o art. 1.790 da codificação material, esse deve ser revisto em superior instância, com a subsunção do art. 1.829 do Código Civil. Em relação aos inventários extrajudiciais pendentes, as escrituras públicas devem ser elaboradas com o novo tratamento dado pela nossa Corte Máxima. Em todos esses casos, as afirmações valem desde que a sucessão tenha sido aberta a partir de 11 de janeiro de 2003, conforme determina o art. 2.041 do Código Civil de 2002, in verbis: "as disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior (lei3.071, de 1º de janeiro de 1916)". Apesar do alerta anterior feito por parte da doutrina, algumas questões ficaram pendentes no julgamento do STF. A primeira delas diz respeito à inclusão ou não do companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. O julgamento nada expressa a respeito da dúvida. Todavia, lendo os votos prevalecentes, especialmente o do Relator do primeiro processo, a conclusão parece ser positiva. Como consequências, alguns efeitos podem ser destacados. Vejamos apenas três deles, pela dimensão inicial deste artigo: a) incidência das regras previstas entre os arts. 1.846 e 1.849 do CC/2002 para o companheiro, o que gera restrições na doação e no testamento, uma vez que o convivente deve ter a sua legítima protegida, como herdeiro reservatário; b) o companheiro passa a ser incluído no art. 1.974 do Código Civil, para os fins de rompimento de testamento, caso ali também se inclua o cônjuge; c) o convivente tem o dever de colacionar os bens recebidos em antecipação (arts. 2.002 a 2.012 do CC), sob pena de sonegados (arts. 1.992 a 1.996), caso isso igualmente seja reconhecido ao cônjuge. No que concerne ao direito real de habitação do companheiro, também não mencionado nos julgamentos, não resta dúvida da sua existência, na linha do que vinham reconhecendo a doutrina e a jurisprudência superior. Nesse sentido, entre os acórdãos mais recentes: "o Código Civil de 2002 não revogou as disposições constantes da lei 9.278/96, subsistindo a norma que confere o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal matéria em relação aos conviventes em união estável, consoante o princípio da especialidade" (STJ, AgRg no REsp 1.436.350/RS, Rel. ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 19/4/2016). Mas qual a extensão desse direito real de habitação ao companheiro? Terá o direito porque subsiste no sistema o art. 7º, parágrafo único, da lei 9.278/1996, na linha do último julgado? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como é notório, os dois dispositivos têm conteúdos distintos. O Supremo Tribunal Federal não enunciou expressamente essa questão, apesar de tender à última resposta, cabendo à doutrina e à própria jurisprudência ainda resolvê-la. Por derradeiro, a equiparação feita pelo STF também inclui os devidos fins familiares sendo, portanto, total? Há quem entenda que sim, caso de José Fernando Simão e Mário Luiz Delgado, para os quais a união estável passa a ser um casamento forçado. Lembro, como sempre pontuo, que o Novo Código de Processo Civil já fez essa equiparação, para quase todos os fins processuais. Apesar de ser uma posição louvável - retirada notadamente do voto do Ministro Barroso -, penso que devemos dar tempo ao tempo, como tem pontuado Giselda Hironaka em suas exposições sobre o assunto. A propósito, surge corrente respeitável, encabeçada por Anderson Schreiber e outros, no sentido de haver equiparação somente para os fins de normas de solidariedade, caso das regras sucessórias, de alimentos e de regime de bens. Em relação às normas de formalidade, como as relativas à existência formal da união estável e do casamento, aos requisitos para a ação de alteração do regime de bens do casamento (art. 1.639, § 2º do CC e art. 734 do CPC) e às exigências de outorga conjugal, a equiparação não deve ser total. Confesso que essa última e novel posição tem me seduzido. De toda sorte, vejamos qual será o rumo que a civilística brasileira tomará nos próximos anos. Como se pode perceber, os julgamentos do Supremo Tribunal Federal resolveram um aspecto importante, qual seja a retirada do art. 1.790 do Código Civil do sistema sucessionista nacional. Porém, alguns rastros ficaram. Temos algumas pistas, mas não o caminho definitivo para todos os problemas.
Tema que vem sendo intensamente debatido pelo Direito de Família Brasileiro há alguns anos diz respeito à possibilidade jurídica, ou não, de elaboração de uma escritura pública de união poliafetiva. Mais do que isso, tem-se analisado a sua concreção negocial, nos planos da validade e da eficácia. O debate teve início em 2012, quando a então tabeliã da cidade de Tupã, interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, elaborou o primeiro ato documental nesse sentido. Conforme se extrai do site do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é fundamental o seguinte trecho do documento, assinado por um homem e duas mulheres: "Os declarantes, diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea, intentam estabelecer as regras para garantia de seus direitos e deveres, pretendendo vê-las reconhecidas e respeitadas social, econômica e juridicamente, em caso de questionamentos ou litígios surgidos entre si ou com terceiros, tendo por base os princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade". No ano de 2015, também foi noticiada a elaboração de escritura pública similar, pelo 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, sendo responsável pela sua lavratura a tabeliã Fernanda Leitão. O caso é diferente por envolver três mulheres, em união homopoliafetiva, com elaboração de testamentos entre elas e de diretivas antecipadas de vontade, que dizem respeito a tratamentos médicos em caso de se encontrarem com doença terminal e na impossibilidade de manifestarem vontade. Pois bem, ao contrário do que defendem alguns juristas, não parece haver nulidade absoluta no ato, por suposta ilicitude do objeto (art. 166, inc. II, do CC/2002). Pensamos que a questão não se resolve nesse plano do negócio jurídico, mas na sua eficácia. Em outras palavras, o ato é válido, por apenas representar uma declaração de vontade hígida e sem vícios dos envolvidos, não havendo também qualquer problema no seu objeto. Todavia, pode ele gerar ou não efeitos, o que depende das circunstâncias fáticas e da análise ou não de seu teor pelo Poder Judiciário ou outro órgão competente. No que diz respeito ao objeto do negócio em estudo, como tenho exposto em aulas e escritos, a monogamia não está expressa na legislação como princípio da união estável, mas apenas do casamento, eis que o Código Civil enuncia que não podem casar as pessoas casadas, sob pena de nulidade do casamento (arts. 1.521, VI, e 1.548). Em relação à união estável, muito ao contrário, admite-se até que a pessoa casada tenha um vínculo de convivência, desde que esteja separada judicialmente, extrajudicialmente ou de fato (art. 1.723, § 1º, do CC/2002, em leitura atualizada), o que denota um tratamento diferenciado a respeito da liberdade de constituição das duas entidades familiares. Quanto aos deveres do casamento, é cediço ser a fidelidade o primeiro deles (art. 1.566, I, do CC/2002). Por seu turno, em relação à união estável, o art. 1.724 do Código Civil não deixa dúvidas, ao estabelecer que "as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos". Pelo senso comum, a lealdade engloba a fidelidade. Mas não necessariamente, pois é possível que alguém seja leal sem ser fiel. Imagine-se, nesse contexto, um relacionamento de maior liberdade entre os companheiros, em que ambos informam previamente que há a possibilidade de quebra de fidelidade, e que aceitam tais condutas. Voltando ao cerne do objeto da escritura pública de união poliafetiva, por todos esses argumentos, não haveria na sua elaboração afronta à ordem pública ou prejuízo a qualquer um que seja, a justificar a presença de um ilícito nulificante. Não há que se falar, ainda, em dano social, pois esse pressupõe uma conduta socialmente reprovável, o que não é o caso. O reconhecimento de um afeto espontâneo entre duas ou mais pessoas não é situação de dano à coletividade, mas muito ao contrário, de reafirmação de transparência e solidariedade entre as partes. Assim, com o devido respeito, não parecer ter justificativa jurídica plausível a recomendação feita pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, em abril de 2016, no sentido de que as serventias extrajudiciais não realizem atos semelhantes. Nota-se que os textos das escrituras elaboradas são sutis e não impositivos, de mera valorização de um relacionamento que já existe no mundo dos fatos, podendo gerar ou não efeitos jurídicos, o que depende da análise do pedido e das circunstâncias fáticas, reafirme-se. Penso que o futuro reserva uma forma ainda mais nova de pensar as famílias, e que, em breve, serão admitidos juridicamente os relacionamentos plúrimos, seja a concomitância de mais de uma união estável, seja a presença desta em comum com o casamento. Acredito que o futuro, além dos modelos tradicionais, também é das famílias paralelas - com mais de um vínculo familiar, entre pessoas distintas, uma ou mais delas comum aos relacionamentos -, e das famílias poliafetivas - com um vínculo único, entre mais de duas pessoas. Se a família é plural, os vínculos plúrimos podem ser opções oferecidas pelo sistema jurídico ao exercício da autonomia privada, para quem desejar tal forma de constituição. Como palavras finais, cabe observar que, caso não seja possível o reconhecimento da validade dessas escrituras pelo Direito de Família, o caminho do Direito Contratual - por contratos de sociedade de participação, por promessas de doação e de alimentos, por plano de saúde e de previdência privada e outros negócios jurídicos patrimoniais -, pode indicar a solução. Se entraves morais - e até jurídicos -, vedam o reconhecimento da escritura de união poliafetiva pelo Direito de Família, o mundo dos contratos pode perfeitamente aceitar o teor que ali se pretende expressar. Em vez de um ato só, a solução jurídica para casos como os relatados no início do texto estará em várias minutas.
No último dia 15 de março de 2017, o corregedor-Geral de Justiça e ministro do STJ João Otávio de Noronha manifestou-se sobre pedido de providências formulado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, solicitando a regulamentação, junto aos cartórios de registro civil, do registro extrajudicial da parentalidade socioafetiva (pedido de providências 0002653-77.2015.2.00.0000, em curso perante o Conselho Nacional de Justiça). De acordo com a petição do IBDFAM, embora ainda não exista regramento legal sobre o tema, já há o pleno reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva, tendo alguns Estados - caso do Amazonas, Ceará, Pernambuco e Santa Catarina -, regulamentado a questão por meio de provimentos de seus Tribunais de Justiça, que admitem o reconhecimento do vínculo socioafetivo diretamente no Cartório de Registro Civil, sem a necessidade de uma prévia ação judicial para tanto. Após a manifestação das Corregedorias Estaduais e da Associação Nacional dos Registradores Civis, o ministro corregedor, em boa hora, determinou a formação de grupo de trabalho, para que seja elaborada norma administrativa sobre o tema. Nos termos do trecho final de sua decisão, "a filiação decorrente de vínculo exclusivamente socioafetivo é questão que encontra amparo na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A jurisprudência dos Tribunais estaduais e superiores já admite como uma realidade a possibilidade de registro da paternidade socioafetiva. Por sua vez, a existência de diversos provimentos editados pelos Tribunais de Justiça dos estados da federação, sem a respectiva orientação geral por parte dessa Corregedoria Nacional de Justiça, pode suscitar dúvidas e ameaçar a segurança jurídica dos atos de reconhecimento de paternidade registrados perante os Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais". Assim, concluiu que "impõe-se, portanto, a edição de Provimento com vistas a esclarecer e orientar a execução dos serviços extrajudiciais sobre a matéria discutida nestes autos. No entanto, tendo sido instituído por esta Corregedoria Nacional de Justiça grupo de trabalho para o fim de elaboração de normativa mínima aos serviços de notas, protesto e registros públicos (Portarias 66, de 26 de novembro de 2014 e 65, de 21 de novembro de 2014) - deve a matéria ora analisada ser submetida a sua apreciação da comissão para eventual inclusão da sugestão objeto do presente pedido de providências dentre os temas que deverão ser regulamentados após as conclusões dos trabalhos da aludida equipe. Ante o exposto, encaminhe-se cópia da presente decisão ao grupo de trabalho para que, sendo possível, inclua a proposta provimento para regulamentar o registro civil voluntário da paternidade socioafetiva perante os Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais na normativa mínima. Determino a suspensão do presente expediente pelo prazo de 90 (noventa) dias. Transcorrido o prazo, voltem conclusos. Cumpra-se". Eis aqui um passo determinante para a extrajudicialização do Direito de Família, salutar caminho já tratado por mim neste canal. Como antes destaquei, o Novo Código de Processo Civil, em vigor no País desde o dia 18 de março de 2016, tem como um dos seus nortes principiológicos a desjudicialização dos conflitos e contendas. Entre as suas normas fundamentais, preceitua o Estatuto Processual emergente que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, enuncia-se que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º, do CPC/2015). O ministro Noronha cita, para a urgente necessidade de se elaborar o provimento geral, toda a evolução doutrinária e jurisprudencial no reconhecimento da parentalidade socioafetiva. Como é cediço, a tese remonta ao brilhante artigo de João Baptista Villela, então Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, escrito em 1979, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura afirmar a premissa segundo a qual vínculo familiar constitui mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. As palavras do jurista merecem destaque: "a paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Na adoção, pelo seu caráter afetivo, tem-se a prefigura da paternidade do futuro, que radica essencialmente a ideia de liberdade" (VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Separada da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21 (nova fase), maio 1979). A premissa afirmada é confirmação de um antigo dito popular, emanado da expressão pai é quem cria. Representa clara valorização do afeto como valor jurídico, no sentido de interação entre as pessoas. Na doutrina nacional, o tema é muito bem tratado, entre outros, por Luiz Edson Fachin, Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Paulo Luiz Netto Lôbo, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Álvaro Villaça Azevedo, Maria Helena Diniz, José Fernando Simão, Giselle Groeninga, Silvio de Salvo Venosa, Carlos Roberto Gonçalves, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Ricardo Calderón. Nas tão prestigiadas Jornadas de Direito Civil - citadas na decisão -, foram elaborados enunciados doutrinários que reconhecem a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, preenchendo o termo "outra origem", que consta do art. 1.593 do Código Civil Brasileiro. Conforme o Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil (2002), "o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho". Nos termos do Enunciado 108, do mesmo evento, "no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também socioafetiva". Para não se deixar dúvida sobre a existência de parentesco civil em casos tais, o Enunciado 256 da III Jornada (2004), preceitua que "a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil". Por fim, o Enunciado 339 da IV Jornada (2006), afastando a possibilidade de rompimento do reconhecimento espontâneo da parentalidade - a denominada adoção à brasileira -, preceitua: "a paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho". No âmbito da jurisprudência, o ministro Noronha cita vários precedentes do Superior Tribunal de Justiça, de reconhecimento de efeitos da parentalidade socioafetiva, especialmente na linha do último enunciado doutrinário. Destaca, ainda, o julgado do Supremo Tribunal Federal de setembro de 2016, em repercussão geral, que firmou a seguinte tese sobre o assunto: "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios"; O último precedente, como tenho destacado, além de colocar a filiação socioafetiva em posição de igualdade frente à filiação biológica, reconheceu amplamente efeitos jurídicos à multiparentalidade, com a possibilidade de vínculos múltiplos, o que também deve ser abrangido pela norma administrativa a ser elaborada. Diante dessa realidade, indagou e respondeu o ministro corregedor: "se a omissão do dever de cuidado é repelida pelo Poder Judiciário e pelo legislador, porque as relações entre aquele pai que cuida e que exerce de fato a parentalidade, de forma voluntária, não pode ser reconhecida juridicamente pelo sistema? O Poder Judiciário, mais uma vez, não se esquivou da realidade e nem do novo. Definiu que o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana exige que sejam reconhecidos outros modelos familiares diversos da concepção original, acolhendo o vínculo baseado na relação afetiva e no estado de posse de pai e filho. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (Informativo de Jurisprudência n. 840) já decidiu que o espectro legal deve acolher tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos quanto aqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, CF (...)" (RE 898060/SC, rel. Ministro Luiz Fux, julgamento em 21 e 22-9-2016)". De fato, é o momento de se dar uma nota final a essa bela canção, concretizando a possibilidade não só do reconhecimento da parentalidade socioafetiva, como também da multiparentalidade perante os Cartórios de Registro Civil. Ao final, a decisão acaba por fixar alguns parâmetros que devem ser seguidos pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça. O primeiro deles é que o reconhecimento da paternidade socioafetiva perante o Cartório de Registro Civil requer a submissão a certos requisitos formais. Deve-se exigir mais do que a mera comprovação do estado de posse de filho e da vontade livre e desimpedida daquele que se declara pai ou mãe. O Oficial deve estar atento para a situação fática dos envolvidos, conforma aponta o ministro Noronha. De acordo com suas palavras, "estranho seria, por exemplo, se o Oficial de Registro Civil e de Pessoas Naturais fosse instado a proceder ao reconhecimento da paternidade socioafetiva de pai menor de idade ou que não possui uma diferença razoável de idade com o filho que pretende acolher como seu ou de irmão em relação a outro. O reconhecimento da paternidade socioafetiva sem que sejam atendidos certos requisitos formais também poderia abrir a possibilidade de que se regularizassem fraudes, sequestros, comércio de crianças ('adoção pronta', em especial de crianças de tenra idade), além de concretizar a burla ao cadastro nacional de adoção". Nesse contexto, destaca o julgador a possibilidade de se aplicar analogicamente algumas regras existentes para a adoção - apesar de os institutos não se confundirem -, tais como a idade mínima de 18 anos daquele que reconhece o filho socioafetivo, a vedação de reconhecimento por ascendentes e irmãos do reconhecido, a diferença mínima de 16 anos entre as partes envolvidas e o consentimento da mãe e do filho maior de doze anos, o que penso ser dispensável no caso de o reconhecido ser maior de idade. Um outro requisito a ser considerado é que, em caso de falecimento ou circunstância especial que impeça o expresso consentimento da mãe ou do filho, o procedimento deverá seguir o trâmite judicial. Por fim, seria necessária a demonstração inequívoca da existência de relação de pai (ou mãe) e filho, com base na afetividade. Como se percebe, algumas balizas importantes foram apontadas para que essa urgente norma administrativa seja elaborada, pondo fim a um anseio teórico e prático que já existe há muito tempo. Espero, assim, que até o final deste ano de 2017 a extrajudicialização, não só da parentalidade socioafetiva como também na multiparentalidade, seja finalmente efetivada em nosso país.
Desde a sua mais elementar existência, o ser humano sempre necessitou ser alimentado para que pudesse exercer suas funções vitais. Como se extrai das lições de Álvaro Villaça Azevedo, a palavra alimento vem do latim alimentum, "que significa sustento, alimento, manutenção, subsistência, do verbo alo, is, ui, itum, ere (alimentar, nutrir, desenvolver, aumentar, animar, fomentar, manter, sustentar, favorecer, tratar bem)"1. Nesse contexto, os chamados alimentos familiares representam uma das principais efetivações do princípio constitucional da solidariedade nas relações civis, sendo essa a própria concepção da categoria jurídica. No que diz respeito a alimentos entre os cônjuges - e também entre os companheiros -, houve uma mudança considerável no seu tratamento doutrinário e jurisprudencial, uma verdadeira Virada de Copérnico, termo que ora se utiliza em homenagem aos grupos brasileiros de estudos em Direito Civil Constitucional. No passado, a verba alimentar era atribuída com o intuito de manter o status quo social do cônjuge, especialmente da mulher, o que representa, na codificação em vigor, aplicação das locuções a seguir sublinhadas, constantes do seu art. 1.694, caput: "podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação". Todavia, os alimentos passaram a ser analisados, tanto por doutrina como por jurisprudência, sob a perspectiva da inclusão da mulher no mercado de trabalho e de uma suposta posição de equalização frente ao homem, a igualdade entre os gêneros, retirada do art. 5º, inc. I, do Texto Maior. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, um dos primeiros precedentes a fazer essa análise foi o caso conhecido como da "psicóloga dos Jardins", que teve como Relatora a ministra Fátima Nancy Andrighi. A ementa é longa, mas merece ser transcrita e lida, para os devidos estudos e aprofundamentos. Vejamos: "Direito civil. Família. Revisional de alimentos. Reconvenção com pedido de exoneração ou, sucessivamente, de redução do encargo. Dever de mútua assistência. Divórcio. Cessação. Caráter assistencial dos alimentos. Comprovação da necessidade de quem os pleiteia. Condição social. Análise ampla do julgador. Peculiaridades do processo. - Sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, o dever de prestar alimentos entre ex-cônjuges reveste-se de caráter assistencial, não apresentando características indenizatórias, tampouco fundando-se em qualquer traço de dependência econômica havida na constância do casamento. - O dever de mútua assistência que perdura ao longo da união, protrai-se no tempo, mesmo após o término da sociedade conjugal, assentado o dever de alimentar dos então separandos, ainda unidos pelo vínculo matrimonial, nos elementos dispostos nos arts. 1.694 e 1.695 do CC/02, sintetizados no amplamente difundido binômio - necessidades do reclamante e recursos da pessoa obrigada. - Ultrapassada essa etapa - quando dissolvido o casamento válido pelo divórcio, tem-se a consequente extinção do dever de mútua assistência, não remanescendo qualquer vínculo entre os divorciados, tanto que desimpedidos de contrair novas núpcias. Dá-se, portanto, incontornável ruptura a quaisquer deveres e obrigações inerentes ao matrimônio cujo divórcio impôs definitivo termo. - Por força dos usualmente reconhecidos efeitos patrimoniais do matrimônio e também com vistas a não tolerar a perpetuação de injustas situações que reclamem solução no sentido de perenizar a assistência, optou-se por traçar limites para que a obrigação de prestar alimentos não seja utilizada ad aeternum em hipóteses que não demandem efetiva necessidade de quem os pleiteia. - Dessa forma, em paralelo ao raciocínio de que a decretação do divórcio cortaria toda e qualquer possibilidade de se postular alimentos, admite-se a possibilidade de prestação do encargo sob as diretrizes consignadas nos arts. 1.694 e ss. do CC/02, o que implica na decomposição do conceito de necessidade, à luz do disposto no art. 1.695 do CC/02, do qual é possível colher os seguintes requisitos caracterizadores: (i) a ausência de bens suficientes para a manutenção daquele que pretende alimentos; e (ii) a incapacidade do pretenso alimentando de prover, pelo seu trabalho, à própria mantença. - Partindo-se para uma análise socioeconômica, cumpre circunscrever o debate relativo à necessidade a apenas um de seus aspectos: a existência de capacidade para o trabalho e a sua efetividade na mantença daquele que reclama alimentos, porquanto a primeira possibilidade legal que afasta a necessidade - existência de patrimônio suficiente à manutenção do ex-cônjuge -, agrega alto grau de objetividade, sofrendo poucas variações conjunturais, as quais mesmo quando ocorrem, são facilmente identificadas e sopesadas. - O principal subproduto da tão propalada igualdade de gêneros estatuída na Constituição Federal, foi a materialização legal da reciprocidade no direito a alimentos, condição reafirmada pelo atual Código Civil, o que significa situar a existência de novos paradigmas nas relações intrafamiliares, com os mais inusitados arranjos entre os entes que formam a família do século XXI, que coexistem, é claro, com as tradicionais figuras do pai/marido provedor e da mãe/mulher de afazeres domésticos. - O fosso fático entre a lei e a realidade social impõe ao julgador detida análise de todas as circunstâncias e peculiaridades passíveis de visualização ou intelecção do processo, para a imprescindível definição quanto à capacidade ou não de autossustento daquele que pleiteia alimentos. - Seguindo os parâmetros probatórios estabelecidos no acórdão recorrido, não paira qualquer dúvida acerca da capacidade da alimentada de prover, nos exatos termos do art. 1.695 do CC/02, sua própria mantença, pelo seu trabalho e rendimentos auferidos do patrimônio de que é detentora. - No que toca à genérica disposição legal contida no art. 1.694, caput, do CC/02, referente à compatibilidade dos alimentos prestados com a condição social do alimentado, é de todo inconcebível que ex-cônjuge, que pleiteie alimentos, exija-os com base no simplista cálculo aritmético que importe no rateio proporcional da renda integral da desfeita família; isto porque a condição social deve ser analisada à luz de padrões mais amplos, emergindo, mediante inevitável correlação com a divisão social em classes, critério que, conquanto impreciso, ao menos aponte norte ao julgador que deverá, a partir desses valores e das particularidades de cada processo, reconhecer ou não a necessidade dos alimentos pleiteados e, se for o caso, arbitrá-los. - Por restar fixado pelo Tribunal Estadual, de forma induvidosa, que a alimentanda não apenas apresenta plenas condições de inserção no mercado de trabalho como também efetivamente exerce atividade laboral, e mais, caracterizada essa atividade como potencialmente apta a mantê-la com o mesmo status social que anteriormente gozava, ou ainda alavancá-la a patamares superiores, deve ser julgado procedente o pedido de exoneração deduzido pelo alimentante em sede de reconvenção e, por consequência, improcedente o pedido de revisão de alimentos formulado pela então alimentada. Recurso especial conhecido e provido" (REsp 933.355/SP, Rel. ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/03/2008, DJe 11/04/2008). Essa decisão inaugurou, naquele Tribunal Superior, a conclusão segundo a qual os alimentos entre os cônjuges têm caráter excepcional, pois a pessoa que tem condições laborais deve buscar o seu sustento pelo esforço próprio. No caso, uma ex-mulher recebia pensão do ex-marido por longos 20 anos, sendo o último valor pago de R$ 6.000,00 (seis mil reais). Insatisfeita com tal montante, ingressou em juízo para pleitear o aumento da quantia, argumentando a falta de condições para manter o padrão de vida anterior com os rendimentos do seu trabalho. Almejava dobrar o valor da pensão alimentícia, sob a alegação de que não vinha mais aceitando convites para eventos sociais, que teve de dispensar seu caseiro, que não mais trocava de carro com a frequência anterior e que não viajava para o exterior anualmente. Além da contestação, o ex-marido apresentou reconvenção, sob a premissa de que a ex-mulher tinha condições de sustento próprio, notadamente por suas atividades como psicóloga em clínica própria e como professora universitária, bem como pela locação de dois imóveis de sua propriedade. Após os trâmites no Tribunal Paulista, a Corte Estadual aumentou o valor da pensão para R$ 10.000,00 (dez mil reais), incidindo a ideia de manutenção do padrão social. Contudo, de forma correta na opinião deste autor, a ministra Nancy Andrighi acolheu o pleito de exoneração do ex-marido, julgando que, "não existindo nenhum tipo de dúvida quanto à capacidade da recorrida de prover, nos exatos termos do art. 1.695 do CC/02, sua própria mantença, impende, ainda, traçar considerações relativas ao teor do disposto no art. 1.694 do CC/02, do qual se extrai que os alimentos prestados devem garantir modo de vida 'compatível com a sua condição social'". Também de acordo com o voto da relatora, essa última e genérica disposição legal não pode ser entendida como parâmetro objetivo, mesmo porque seria virtualmente impossível o estabelecimento da exata condição socioeconômica anterior, para posterior reprodução, por meio de alimentos prestados pelo ex-cônjuge devedor. O conceito de alimentos, também segundo a magistrada, deve ser interpretado com temperança, "fixando-se a condição social anterior dentro de patamares razoáveis, que permitam acomodar as variações próprias das escolhas profissionais, dedicação ao trabalho, tempo de atividade entre outras variáveis". A votação foi unânime, na linha da justa relatoria. Outras decisões do próprio Superior Tribunal de Justiça e de Tribunais Estaduais passaram a seguir tal correto entendimento, consentâneo com a plena inserção da mulher no mercado de trabalho. Passaram a considerar, assim, que os alimentos entre os cônjuges - e também entre os companheiros -, tem caráter excepcional e transitório, devendo no máximo ser fixado por tempo suficiente para que o ex-consorte volte ao mercado de trabalho, se nele não estiver inserido. Somente em casos pontuais os alimentos devem ser fixados sem termo final, mormente quando o ex-cônjuge ou ex-companheiro estiver sem condições para o trabalho, em especial por conta de sua idade avançada ou de uma doença. Em 2016, seguindo essa linha, o Tribunal da Cidadania publicou ementa na sua Jurisprudência em Teses, com a Edição 65 dedicada ao tema dos alimentos. Nos termos da sua premissa 14, "os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por prazo determinado, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira". São citados como precedentes da tese, entre outras, as seguintes ementas, que consubstanciam a posição superior, a ser seguida pelos outros julgadores: REsp 1.370.778/MG, Rel. ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 10/3/2016, DJE 4/4/2016; AgRg no AREsp 725.002/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJE 01/10/2015; AgRg no REsp 1.537.060/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 1/9/2015, DJE 9/9/2015; REsp 1.454.263/CE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJE 8/5/2015; REsp 1.496.948/SP, Rel. ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 3/3/2015, DJE 12/03/2015; REsp 1.290.313/AL, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJE 07/11/2014 e REsp 1.396.957/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 3/6/2014, DJE 20/6/2014. No primeiro deles, como se extrai do decisum relatado pelo ministro Buzzi, "esta Corte firmou a orientação no sentido de que a pensão entre ex-cônjuges não está limitada somente à prova da alteração do binômio necessidade-possibilidade, devendo ser consideradas outras circunstâncias, como a capacidade do alimentando para o trabalho e o tempo decorrido entre o início da prestação alimentícia e a data do pedido de exoneração. Precedentes. A pensão entre ex-cônjuges deve ser fixada, em regra, com termo certo, assegurando ao beneficiário tempo hábil para que seja inserido no mercado de trabalho, possibilitando-lhe a manutenção pelos próprios meios. A perpetuidade do pensionamento só se justifica em excepcionais situações, como a incapacidade laboral permanente, saúde fragilizada ou impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho, que evidentemente não é o caso dos autos" (REsp 1.370.778/MG). Tenho total simpatia com essa forma de julgar e a defendo há anos. Porém, essa posição não é compartilhada por todos, mas muito ao contrário. Rolf Madaleno, um dos grandes especialistas na matéria entre nós, tem visão oposta à minha em alguns aspectos relativos aos alimentos, conforme debates que já travamos em alguns eventos de Direito de Família. Todavia, concorda ele com a fixação dos alimentos de forma transitória, pois "são outros tempos e padrões de conduta vividos pela sociedade brasileira, cujas mudanças sociais e culturais impuseram o trabalho como uma obrigação também da mulher, quem assim afirma sua dignidade e adquire sua independência financeira ao deixar de ser confinada ao recesso do lar e passar do estágio de completa dependência para o de provedora da sua subsistência pessoal, além de auxiliar no sustento da prole, em paritário concurso de seu parental dever alimentar" (Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 949). Está correta essa forma de julgar? Respondo definitivamente que sim, sendo essas as principais transformações quanto aos alimentos entre cônjuges e companheiros, sinais do momento que vivemos. Mas por ser tão intricando, despertar discussões profundas relativas ao gênero e estar muito longe da unanimidade, o assunto merece ser devidamente avaliado nos mais diversos foros, inclusive nos virtuais. __________ 1 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2013, p. 304.
O vigente Código Civil completou, no último dia 10 de janeiro, quinze anos de promulgação, ou seja, debutou-se no plano jurídico e social brasileiro. Entre avanços e retrocessos, a realidade é que tanto o livro de Direito de Família quanto o de Direito das Sucessões sempre foram os mais criticados da nossa lei geral privada. Tanto isso é verdade que, em todo o seu período de vigência, numerosas foram as alterações promovidas tanto no plano legislativo quanto no jurisprudencial. No âmbito da legislação do Direito de Família, cabe destacar, brevemente e em resumo: a) a lei 11.441/07, que tratou da separação, do divórcio e do inventário extrajudiciais, por escritura pública, desjudicializando-os; b) as leis 11.698/08 e 13.058/14, que regularam e introduziram a obrigatoriedade da guarda compartilhada - ou alternada, ainda não se sabe ao certo -, além da possibilidade da ação de prestação de contas de alimentos, nos arts. 1.583 e 1.584 do CC/02; c) a lei 12.010/09, que modificou sobremaneira o sistema de adoção - ainda que de forma insuficiente -, concentrando-o no Estatuto da Criança e do Adolescente, e excluindo-o da codificação privada; d) a Emenda do Divórcio (EC 66/10), que retirou os prazos mínimos para o divórcio e iniciou um debate ainda não concluído quanto ao fim da separação de direito (incluindo a separação judicial e a extrajudicial); e) o Estatuto Da Pessoa com Deficiência, norma regulamentadora da Convenção de Nova Iorque, que alterou substancialmente a teoria das incapacidades e a situação da pessoa com deficiência, incluindo-a plenamente para os atos existenciais familiares e substituindo o paradigma da dignidade-vulnerabilidade pela dignidade-igualdade; e f) novo Código de Processo Civil que, entre outras normas, tratou das Ações de Família, (pouco) alterou o regime dos alimentos, reafirmou de forma inconstitucional a separação de direito e atropelou o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em alguns dos seus aspectos. Na jurisprudência superior, seja do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, é imperioso destacar, nos últimos quinze anos: a) o reconhecimento do afeto como valor jurídico e como princípio do Direito de Família Brasileiro, em vários julgados, inclusive em alguns a seguir mencionados; b) o amparo da união homoafetiva como entidade familiar, equiparada à união estável heteroafetiva (ADPF 132/RJ, julgada pelo STF em 2010); c) a admissão do casamento homoafetivo, como decorrência da decisão anterior, o que acabou por influenciar todos os Tribunais Estaduais e o Conselho Nacional de Justiça (por todos: STJ, REsp. 1.183.378/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, de outubro de 2011); d) o amparo ao direito de indenização por abandono afetivo (STJ, REsp. 1.159.242/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, de abril de 2012); e) o amplo reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, o que culminou com o julgamento do STF sobre o tema, com repercussão geral, admitindo-se até o duplo vínculo parental ou multiparentalidade (publicado no informativo 840 da Corte, de setembro de 2016); f) a equiparação sucessória da união estável ao casamento, o que deve trazer a mesma conclusão para os fins familiares (julgamento iniciado pelo STF em agosto de 2016, já com sete votos). Como se pode perceber, seja pela lei, seja pela jurisprudência - sem falar na doutrina, que geralmente está anos à frente de ambas, especialmente no âmbito do Direito de Família -, o caminho foi atribulado, instável, sem muita certeza ou perpetuidade. Em verdade, esta seara do Direito Privado é assim, mutável por natureza, pelas constantes mudanças dos costumes e do modo de vida das pessoas. Talvez por isso seria interessante descodificar o tema e inseri-lo em um Estatuto próprio, como quer o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família). Aliás, muitas das alterações aqui mencionadas tiveram a contribuição, direta ou indireta, dessa instituição. Como sempre afirma Zeno Veloso, em suas brilhantes aulas e palestras, existem dois "Direitos de Família no Brasil, um antes e outro depois do IBDFAM". E como será o futuro? Como serão os próximos quinze anos? Penso que de mais e mais mudanças, estruturais e funcionais. Como escrevi neste canal, 2016 foi o ano da afetividade no plano da jurisprudência superior. E já neste início de 2017, chamou muita a atenção e gerou debates o interessante texto de José Fernando Simão, em que trata juridicamente do "Sugar Daddy", da "Sugar Baby" e do site Meu Patrocínio. Como destaca o jurista, "Sugar - açúcar em inglês - e daddy - papai - são duas palavras que, somadas, indicam que o homem, mais velho e, por isso, papai, se dispõe a 'bancar' mulher mais jovem. Não se trata de um site de prostituição em que homens, após manutenção de relação sexual, pagam pelos serviços prestados. É uma relação em que o homem mais velho tem prazer em se relacionar com mulher mais jovem que gosta de ser mimada, ganhar presentes, viajar, comer em bons restaurantes, sair para lugares chiques. Já o homem mais velho, normalmente em uma fase da vida pela qual poucas mulheres mais jovens sentem atração, paga para ela e proporciona alguns luxos, prazeres que a ela estariam negados em razão do custo" (ver aqui). Ainda segundo Simão, tal relacionamento demonstra a transparência das relações contemporâneas, pois as partes já sabem de antemão como este se dará: "transparência significa que as partes não ocultam seus interesses. Ela não quer uma relação amorosa, nem ele. São pessoas que buscam companhia e convívio com regras bem claras: 'Tudo é combinado, sem mal-entendidos'". Para ele, em continuidade, dois aspectos da pós-modernidade são claros nessas relações. O primeiro deles é que muitas pessoas buscam diversas formas de prazer, além dos modelos tradicionais: "não é necessário buscar o prazer apenas no sexo, apenas no namoro, apenas no casamento, apenas nas viagens, apenas nos restaurantes e nos presentes". O segundo aspecto diz respeito aos novos arranjos afetivos, a busca de novos modelos de agrupamento. Nesse contexto, concordo com ele que "o modelo construído para os relacionamentos heterossexuais e copiados pelas famílias homoafetivas de casamento ou união estável é um modelo decadente e em franca mudança". Não se pode negar que é natural o pleito jurídico de que os modelos de afeto passem a ser reconhecidos como modelos de família. Foi assim com os filhos havidos fora do casamento, com as famílias reconstituídas, com as uniões homoafetivas e com os filhos socioafetivos. O pleito atual diz respeito às famílias poliafetivas, questão que deve ser julgada em breve no âmbito do Supremo Tribunal Federal, como tenho pontuado. Eventualmente, os relacionamentos com açúcar podem gerar efeitos familiares, especialmente se algum filho nascer da relação. Como decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em outra decisão de impacto, o ficar pode gerar efeitos jurídicos. Nos termos da sua ementa, "a recusa do investigado em se submeter ao teste de DNA implica a inversão do ônus da prova e consequente presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor. Verificada a recusa, o reconhecimento da paternidade decorrerá de outras provas, estas suficientes a demonstrar ou a existência de relacionamento amoroso à época da concepção ou, ao menos, a existência de relacionamento casual, hábito hodierno que parte do simples 'ficar', relação fugaz, de apenas um encontro, mas que pode garantir a concepção, dada a forte dissolução que opera entre o envolvimento amoroso e o contato sexual" (REsp. 557.365/RO, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em abril de 2005). Por tudo isso, e por outros afetos, o futuro nos reserva muitos debates, muitos desafios, sendo necessário, por certo, fazer novas adaptações no Código Civil brasileiro nos próximos quinze anos.
Não há dúvida de que 2016 foi o ano da afetividade na jurisprudência superior brasileira. Nunca esteve ela tão em voga; nunca foi a ideia tão aplicada pelos nossos Tribunais Superiores, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal. No plano da nossa Corte Máxima, dois julgados são decisivos para essas afirmações, com influência para todos os Tribunais nacionais. Como primeiro deles, conforme aqui antes expusemos, em 31 de agosto de 2015, o STF iniciou o julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que trata dos direitos sucessórios do companheiro (STF, Recurso Extraordinário n. 878.694/MG). Sete Ministros da Corte alinharam-se à tese do Relator, que tem o seguinte texto: "No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002". O ministro Toffoli pediu vista, o que não nos impede de afirmar que a questão está praticamente consolidada, para os devidos fins de repercussão geral. É uma questão de tempo o julgamento final que, para se tutelar a certeza e a segurança das relações civis, deve ser encerrado o mais rápido possível; reitere-se e clama-se. Pois bem, o ministro relator nesse julgamento construiu o seu voto, entre outras premissas, destacando a importância da afetividade como valor jurídico do nosso sistema. Conforme as palavras do ministro Barroso, "se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, e se, para isso, depende da participação da família na formação de seus membros, é lógico concluir que existe um dever estatal de proteger não apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes, pelo amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto. Não por outro motivo, a Carta de 1988 expandiu a concepção jurídica de família, reconhecendo expressamente a união estável e a família monoparental como entidades familiares que merecem igual proteção do Estado. Pelas mesmas razões, esta Corte reconheceu que tal dever de proteção estende-se ainda às uniões homoafetivas, a despeito da omissão no texto constitucional" (com destaque). A segunda decisão que merece relevo, igualmente do Supremo Tribunal Federal, acabou por firmar a seguinte tese no julgamento da repercussão geral sobre a paternidade socioafetiva: "a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (publicada no Informativo 840 do STF). Em resumo, destaco que a ementa final proposta pelo Ministro Luiz Fux teve o apoio dos ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia (oito votos). Foi vencido, em parte, o ministro Toffoli, que propunha outra afirmação, no sentido de que o reconhecimento posterior do parentesco biológico não invalidaria, necessariamente, o registro do parentesco socioafetivo; admitindo-se, nesses casos, o registro concomitante da dupla paternidade, inclusive para fins sucessórios. Também foi vencido o ministro Marco Aurélio, que se posicionou contra o registro concomitante. Apesar da crítica de alguns juristas, vemos a afirmação de resumo sobre a parentalidade socioafetiva como um grande avanço, como bem salientado pelo professor Ricardo Calderón, que sustentou oralmente no feito, representando o Instituto Brasileiro de Direito de Família como amicus curiae. Aliás, pontue-se que o professor Calderón escreveu um dos melhores trabalhos acadêmicos que constroem a afetividade como valor e princípio do Direito de Família brasileiro (O princípio da afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013). Três aspectos desse último acórdão merecem ser elogiados. O primeiro deles é justamente o reconhecimento, por vários ministros, de que a afetividade tem valor jurídico, sendo princípio inerente e imanente à ordem civil-constitucional brasileira. Nessa esteira, merece destaque trecho do voto do ministro Luiz Fux, citando Fachin: "Se o conceito de família não pode ser reduzido a modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as diversas formas de filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais (como a fecundação artificial homóloga ou a inseminação artificial heteróloga - art. 1.597, III a V do Código Civil de 2002); (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. O Código Civil de 2002 promoveu alguns passos à frente nessa concepção cosmopolita do Direito de Família. Conforme observa o Ministro Luiz Edson Fachin, o diploma inovou ao reconhecer o direito fundamental à paternidade, independentemente do estado civil dos pais; a possibilidade de declaração de paternidade sem que haja ascendência genética; o reconhecimento de filho extramatrimonial; a igualdade material entre os filhos; a presunção de paternidade na fecundação artificial, seja ela homóloga ou heteróloga; e a abertura de espaço jurídico para a construção do conceito de paternidade socioafetiva". O segundo aspecto a ser destacado é que o julgamento consolidou a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, nos termos do art. 1.593 do CC/2002 e do que se retira do último trecho destacado. Assim, está em situação de igualdade com a paternidade biológica. Ademais, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e correto equilíbrio. O terceiro e último aspecto de destaque do decisum diz respeito à mutiparentalidade, pois a possibilidade de múltiplos vínculos de filiação passou a ser admitida pelo Direito Brasileiro, mesmo contra a vontade do pai biológico ou do pai socioafetivo. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. Teremos, assim, grandes desafios com essa premissa, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolver os problemas que surgirem, de acordo com os casos concretos que se sucedem. Nota-se que tal decisão do STF supera posição anterior do STJ, manifestada ao final de 2015, no sentido de não ser possível a imposição da multiparentalidade, contra a vontade dos envolvidos. Conforme consta da publicação da ementa do julgado que assim considerou o tema, "cinge-se a controvérsia a verificar a possibilidade de registro de dupla paternidade, requerido unicamente pelo Ministério Público estadual, na certidão de nascimento do menor para assegurar direito futuro de escolha do infante. Esta Corte tem entendimento no sentido de ser possível o duplo registro na certidão de nascimento do filho nos casos de adoção por homoafetivos. Precedente. Infere-se dos autos que o pai socioafetivo não tem interesse em figurar também na certidão de nascimento da criança. Ele poderá, a qualquer tempo, dispor do seu patrimônio, na forma da lei, por testamento ou doação em favor do menor. Não se justifica o pedido do Parquet para registro de dupla paternidade quando não demonstrado prejuízo evidente ao interesse do menor" (STJ, REsp 1.333.086/RO, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 06.10.2015, DJe 15.10.2015). Entendemos que essa posição anterior do Tribunal da Cidadania está superada pelo julgamento do STF de setembro de 2016. Resta claro, pela tese da repercussão geral e pelo voto do ministro Fux, que é possível reconhecer o duplo vínculo parental mesmo contra a vontade das partes envolvidas. Sem dúvida, há um novo paradigma para a matéria, baseado na afetividade, o que deve influenciar todas as decisões judiciais que surgirem. Vejamos como a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se comportará a partir de agora sobre a temática. Passos importantes foram dados. De toda sorte, não se pode negar que a decisão do STF também gerou problemas. Dentre esses, destacamos a questão levantada por alguns juristas a respeito da possibilidade de demandas frívolas, buscando puramente o patrimônio, contra pais biológicos. Tal medida passa a ser juridicamente possível, sob o argumento de que a paternidade, inclusive a biológica, não pode ser irresponsável. Tal aspecto foi bem destacado pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto, que apontou a existência de um argumento cínico de afastamento do vínculo parental, em hipóteses tais. Também nos preocupa a aplicação da tese para a reprodução assistida heteróloga, o que poderá fazer com que ela se torne inviável, pelo temor de os doadores de material genético ter o vínculo de parentalidade reconhecido. Vale lembrar que o provimento 52 do CNJ quebrou o sigilo relativo aos doadores do material genético na reprodução assistida. Nesse sentido, o seu art. 2º enuncia que é indispensável, para fins de registro e da emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos: a) declaração de nascido vivo - DNV; b) declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando a técnica adotada, o nome do doador ou da doadora, com registro de seus dados clínicos de caráter geral e características fenotípicas, assim como o nome dos seus beneficiários; e c) certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal. Com o surgimento da decisão do STF, pensamos ser necessário cancelar tal previsão do provimento 52 do CNJ, e outras que igualmente quebram o sigilo dos doadores do material genético. De todo modo, como palavras finais, todos esses debates e todas essas intrincadas questões demonstram que, de fato, o afeto foi o grande protagonista do ano de 2016 em sede de Direito de Família no Brasil. No próximo ano, este papel deve continuar a ser desempenhado e até incrementado, pois o STF deve julgar, entre outros temas, a possibilidade de reconhecimento de vínculos conjugais e convivenciais concomitantes, também em sede de repercussão geral (ARE 656.298). Quem viver, verá! Um grande Natal a todos e um 2017 de muita saúde, afeto, sucesso e felicidade!
O Supremo Tribunal Federal, em 31 de agosto de 2015, iniciou o julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que trata dos direitos sucessórios do companheiro. A norma tem a seguinte redação, tão criticada por parte considerável dos doutrinadores brasileiros: "A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança". Por maioria de votos, a Corte entendeu pela equiparação sucessória entre o casamento e a união estável, para os fins de repercussão geral (STF, recurso extraordinário 878.694/MG, relator ministro Luís Roberto Barroso). Nos termos do voto do relator, "não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição". No total, já são sete votos na linha da premissa fixada pelo Ministro Barroso. Além dele, os ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia seguiram a tese para fins de repercussão geral, com o seguinte texto: "No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002". Se prevalecer tal decisão, além da retirada do sistema do art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na ordem de sucessão legítima. Assim, concorrerá com os descendentes, o que depende do regime de bens adotado. Concorrerá também com os ascendentes, o que independe do regime. Na falta de descendentes e de ascendentes, receberá a herança sozinho, como ocorre com o cônjuge, excluindo os colaterais até o quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos). O ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos, não encerrando o julgamento, o que não nos impede de afirmar que a posição está praticamente firmada naquele Tribunal Superior, tendo impacto para todos os casos que julgarem o tema, em todas as esferas. Desse modo, para a prática do Direito das Sucessões - e também para o Direito de Família, pensamos -, passa a ser firme e majoritária a premissa da equiparação da união estável ao casamento, igualdade também adotada pelo Novo CPC, em vários de seus dispositivos e para os devidos fins processuais. Quanto à modulação dos efeitos do decisum, de acordo também com o ministro relator, "é importante observar que o tema possui enorme repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Assim, levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo ser recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, entendo que a solução ora alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública" (STF, recurso extraordinário 878.694/MG, relator ministro Luís Roberto Barroso). A previsão visa à certeza e à segurança das relações jurídicas, atingindo apenas as novas divisões patrimoniais sucessórias. Pois bem, sempre estivemos filiados à corrente que via inconstitucionalidade apenas no inciso III do art. 1.790 do Código Civil, por colocar o convivente em posição de desprestígio frente aos ascendentes e colaterais até o quarto grau, recebendo um terço do que esses recebessem. Alguns Tribunais Estaduais já tinham reconhecido a inconstitucionalidade desse último diploma, por meio do seu Órgão Especial, caso do Tribunal de Justiça do Paraná e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Todavia, o momento é de aceitar a decisão do STF, conforme expunham dois dos nossos grandes sucessionistas, os Professores Zeno Veloso e Giselda Hironaka, ícones do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e citados no voto condutor do ministro Barroso. Assim, a inconstitucionalidade atinge toda a norma, e não apenas o inciso III do comando. A principal vantagem do julgamento é resolver a grande instabilidade jurídica sucessória verificada no Brasil desde a vigência do Código Civil de 2002, colocando fim a debates infindáveis sobre a inconstitucionalidade ou não do art. 1.790 do CC. Reiteramos que, como outros membros do IBDFAM, caso de José Fernando Simão, não víamos inconstitucionalidade em todo o comando, mas apenas no inciso III da norma. De toda sorte, pensamos ter sido a solução saudável, trazendo mais certeza para os casos futuros. O conteúdo do julgamento até aqui prolatado tem outras grandes vantagens. Primeiro, houve o afastamento definitivo da hierarquização das famílias, o que era adotado em alguns Tribunais Estaduais, caso da decisão do Órgão Especial do Tribunal paulista que reconheceu a constitucionalidade do art. 1.790 por tal argumento. Segundo, reconheceu-se expressamente a afetividade como valor jurídico e como princípio do Direito de Família Contemporâneo, o que igualmente foi adotado no julgamento da repercussão geral da parentalidade socioafetiva (publicado no Informativo n. 840 do STF). Terceiro, e por fim, merece destaque a interpretação civil-constitucional que orientou o julgamento, com a incidência dos princípios da igualdade e da dignidade humana, de forma imediata, às relações privadas (eficácia horizontal). Como temos sustentado em várias ocasiões, essas premissas formam diretrizes fundamentais para a interpretação do Direito de Família Contemporâneo. Todavia, há uma necessidade urgente e inafastável, qual seja a de o Supremo Tribunal Federal encerrar o julgamento. Imaginemos quantos inventários, sejam judiciais ou extrajudiciais, estão parados, aguardando o deslinde da questão. Como destacou Anderson Schreiber em artigo recente, "todos os campos do Direito demandam segurança jurídica, mas sua exigência é ainda maior no Direito das Sucessões. A transmissão do patrimônio, por meio do seu fatiamento entre múltiplos herdeiros, é fonte frequente de conflitos com os quais ninguém ganha: a longa demora em inventários prejudica os herdeiros, que ficam privados dos bens a que têm direito; prejudica o Estado, que fica privado dos tributos incidentes; e prejudica diretamente a sociedade, abarrotando o Poder Judiciário com processos que duram, em alguns casos, mais de uma década. É usual na advocacia sucessória a percepção de que uma família só pode se dizer realmente unida se já tiver passado por um inventário, tamanha a sua capacidade de fomentar disputas" (Sucessão do companheiro no STF. Acesso em 25 de novembro de 2016). Ao final de seu texto, o jurista pede que a questão seja resolvida definitivamente, pleito que também almeja este texto. Conforme suas palavras, "o certo, todavia, é que, iniciado o julgamento da matéria, tornou-se temerário realizar partilhas judiciais ou extrajudiciais nesse período em que a Suprema Corte brasileira encontra-se na iminência de definir sua posição sobre o tema, em sentido oposto à literalidade do art. 1.790 do Código Civil. Ao mesmo tempo, com o julgamento em aberto, ainda é teoricamente possível que os ministros revejam suas posições, desconstituindo a aparente maioria. Diante disso, há numerosas sucessões paralisadas em cartórios brasileiros, que vão se avolumando a cada dia, enquanto todos aguardam ansiosamente a palavra final do STF. (...). Se ao Direito das Sucessões não compete, repita-se, proliferar incertezas, o mesmo se aplica à atuação dos seus intérpretes, convindo ao STF proferir, o quanto antes, sua decisão final sobre essa matéria tão candente" (SCHREIBER, Anderson. Sucessão do companheiro no STF. Acesso em 25 de novembro de 2016). Além dessa necessidade de encerrar o julgamento do tema, colocando fim a mais de treze anos de debates, é preciso que o STF defina outros pontos importantes na sua tese final, para fins de repercussão geral. O primeiro deles diz respeito à inclusão ou não do companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. Até o presente momento não há qualquer menção a tal aspecto na tese fixada, podendo ser extraída tal conclusão apenas do voto condutor. O segundo problema é o Direito Real de habitação do convivente, também debatido de forma constante nos últimos anos. Sendo certo que prevalecerá a afirmação de que o companheiro tem tal direito, qual seria a sua extensão? Terá esse direito porque subsiste no sistema o art. 7º, parágrafo único, da lei 9.278/1996? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como é notório, os dois dispositivos têm conteúdos distintos, sendo necessário pacificar mais essa discussão. São questões que a nossa Corte Máxima deve responder. E o mais rápido possível.
Estamos analisando, neste canal, os enunciados doutrinários aprovados na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, evento promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), entre os dias 22 e 23 de agosto de 2016, sob a coordenação geral do ministro Luis Felipe Salomão. Após a abordagem dos temas da mediação e da arbitragem, e suas projeções ao Direito de Família e das Sucessões, serão estudadas algumas propostas da comissão denominada Outras Formas de Solução de Conflitos que, sob a coordenação do professor Joaquim Falcão, aprovou sugestões de incremento de políticas públicas e privadas para a desjudicialização dos conflitos. A citada comissão teve uma faceta multidisciplinar, gerando enunciados sobre temas diversos. Entre eles, cabe destacar ementa sobre o "bullying" escolar, com a seguinte redação: "o Poder Público e a sociedade civil incentivarão a facilitação de diálogo dentro do âmbito escolar, por meio de políticas públicas ou parcerias público-privadas que fomentem o diálogo sobre questões recorrentes, tais como: bullying, agressividade, mensalidade escolar e até atos infracionais. Tal incentivo pode ser feito por oferecimento da prática de círculos restaurativos ou outra prática restaurativa similar, como prevenção e solução dos conflitos escolares" (Enunciado 52). Ou, ainda, o Enunciado n. 51, que trata do superendividamento, problema que atinge muitas famílias brasileiras neste momento de profunda crise econômica: "o Estado e a sociedade deverão estimular as soluções consensuais nos casos de superendividamento ou insolvência do consumidor pessoa física, a fim de assegurar a sua inclusão social, o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana". Quanto ao Direito de Família, proposta importante e que acabou aprovada, diz respeito às práticas colaborativas, mecanismo de mediação e de conciliação que ganha paulatina força prática no âmbito do Direito Brasileiro. Conforme o Enunciado 55, "o Poder Judiciário e a sociedade civil deverão fomentar a adoção da advocacia colaborativa como prática pública de resolução de conflitos na área do direito de família, de modo a que os advogados das partes busquem sempre a atuação conjunta voltada para encontrar um ajuste viável, criativo e que beneficie a todos os envolvidos". No Brasil, essa prática é desenvolvida, entre outros, por Adolfo Braga Neto, Mônica Gama e Sandra Bayer. Uma das principais características da técnica colaborativa é a inserção de uma cláusula de não litigância, que afasta a possibilidade de os advogados envolvidos participarem de eventual e posterior ação judicial relativa ao caso debatido. Igualmente com impacto ao Direito de Família, o Enunciado 78 estabelece uma recomendação aos juízes das Varas de Família dos Tribunais onde já tenham sido implantadas as oficinas de parentalidade, no sentido de que as partes sejam convidadas a delas participar, antes da citação nos processos de guarda, visitação e alienação parental, como forma de fomentar o diálogo e de prevenir litígios futuros. Essas oficinas visam a auxiliar famílias que enfrentam conflitos relacionados ao fim do casamento ou da união estável, em questões dedicadas como as citadas no enunciado. Pensamos que, com o seu incremento, atende-se a regra prevista no art. 694 do Novo Código de Processo Civil, segundo o qual "nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação". Quanto ao Direito das Sucessões, dois enunciados merecem comentários. O primeiro deles trata do planejamento sucessório, preceituando que deve ser estimulado pelo Poder Judiciário, "com ações na área de comunicação que esclareçam os benefícios da autonomia privada, com o fim de prevenir litígios e desestimular a via judiciária". O planejamento sucessório há muito tempo é utilizado no Brasil, por meio de contratos de doação, usufruto, pactos antenupciais, testamentos e estabelecimentos de empresas com o fito de realizar a administração dos bens familiares e projetar eventuais divisões de bens. Porém, como temos destacado com frequência, há um entrave legal que pode inviabilizar o planejamento sucessório, qual seja a regra que veda os pactos sucessórios ou pacta corvina. Como está previsto no art. 426 da codificação material, não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva, sob pena de sua nulidade virtual (art. 166, inciso VII, segunda parte, do CC/2002). A propósito desse entrave, já entendeu o Superior Tribunal de Justiça pela nulidade absoluta de acordo fiduciário celebrado entre membros de uma família. Nos termos do acórdão, "a eficácia da cláusula de destinação dos rendimentos produzidos pelos ativos líquidos da sociedade (comandita por ações), após a morte dos fiduciantes, estava condicionada à sua inclusão no testamento dos mesmos, em face do disposto no art. 1.089, CC, que impede seja objeto de contrato herança de pessoa viva" (STJ, AgRg no Ag 375.914/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 18/12/2001, DJ 11/3/2002, p. 263). O dispositivo citado é do Código Civil de 1916, correspondente ao atual art. 426 do Código Civil de 2002. A propósito desse entrave, cabe destacar que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) constituiu uma comissão especial para a elaboração de propostas de alterações do Direito das Sucessões Brasileiro, com a formação de quatro grupos de trabalhos. A primeira reunião da comissão ocorreu no último dia 29 de setembro de 2016, quando do VII Congresso Paulista de Direito de Família e Sucessões, na Associação dos Advogados de São Paulo. Quando desse primeiro encontro, uma das sugestões que surgiram foi justamente a de se colocar uma ressalva quanto à possibilidade de mecanismos sucessórios por meio de pacto antenupcial, em um eventual e futuro parágrafo único do art. 426 do Código Civil. Voltando aos enunciados da I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, a última proposta a ser abordada é a de número 77, com a seguinte redação: "havendo registro ou expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial". Após muito debate na plenária do evento, foi aprovado texto conciliador frente ao Enunciado n. 600, da VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo mesmo Conselho da Justiça Federal em 2015, a saber: "após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial". Na verdade, houve uma ampliação do texto anterior, cabendo o inventário extrajudicial, por escritura pública, se o testamento foi registrado perante o juízo ou se este autorizar expressamente a via administrativa. Os dois enunciados relativizam a regra prevista no atual art. 610 do CPC/2015 - equivalente em parte ao art. 982 do CPC/1973 -, segundo a qual em havendo testamento não é possível o inventário extrajudicial, por escritura pública, mas apenas a via judicial. Parte considerável da doutrina opina que o texto seja mitigado, caso de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Zeno Veloso e Maria Berenice Dias. A propósito de sua mitigação, houve julgamento pela 2ª vara de Registros Públicos da Comarca da Capital de São Paulo, tendo sido prolatada decisão pelo magistrado Marcelo Benacchio, em abril de 2014. A dúvida havia sido levantada pelo 7º Tabelião de Notas da Comarca da Capital, com pareceres favoráveis à dispensa da inexistência de testamento para que a via extrajudicial fosse possível, por parte de representante do Ministério Público e do Colégio Notarial do Brasil - Seção São Paulo; este último apoiado em entendimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Ponderou o julgador, naquela ocasião, que as posições que admitem o inventário extrajudicial havendo testamento "são entendimentos respeitáveis voltados à eficiente prestação do imprescindível serviço público destinado à atribuição do patrimônio do falecido aos herdeiros e legatários. Ideologicamente não poderíamos deixar de ser favoráveis a essa construção na crença da necessidade da renovação do Direito no sentido de facilitar sua aplicação e produção de efeitos na realidade social, econômica e jurídica". No entanto, seguindo outro caminho, deduziu o magistrado no final da sua sentença que "o ordenamento jurídico aproxima, determina e impõe o processamento da sucessão testamentária em unidade judicial como se depreende dos regramentos atualmente incidentes e dos institutos que cercam a sucessão testamentária; daí a razão da parte inicial do art. 982, caput, do Código de Processo Civil iniciar excepcionando expressamente a possibilidade de inventário extrajudicial no caso da existência de testamento independentemente da existência de capacidade e concordância de todos interessados na sucessão; porquanto há necessidade de se aferir e cumprir (conforme os limites impostos à autonomia privada na espécie) a vontade do testador, o que não pode ser afastado mesmo concordes os herdeiros e legatários". Com o devido respeito a essa decisão anterior, sempre sustentamos que a regra que impõe o inventário judicial em havendo testamento deve ser, de fato, relativizada, em prol de uma saudável desjudicialização. Essa mitigação deve ocorrer principalmente nos casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado. Nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do art. 8º do Novo CPC, o fim social da norma que instituiu a possibilidade do inventário extrajudicial é a redução de formalidades e de burocracias. Em sentido contrário àquela decisão anterior, neste ano de 2016, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo passou a aplicar exatamente o teor do Enunciado n. 600, da VII Jornada de Direito Civil, conforme o seu provimento 37. Nas palavras da decisão do Desembargador-Corregedor Manoel Pereira Calças, "diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário. Poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, também, nos casos de testamento revogado ou caduco, ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros. Nas hipóteses do subitem 129.1, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, e o inventário far-se-á judicialmente". Reafirme-se que o novo enunciado aprovado vai nessa linha e amplia o sentido do anterior, sendo possível dispensar a via judicial do inventário, em havendo testamento, também se houver expressa autorização do juízo. Esperamos que novas decisões judiciais surjam nesse sentido, assim como ocorreu no Tribunal de Justiça de São Paulo, concretizando a desjudicialização, uma das tendências atuais do nosso Direito e um dos regramentos básicos informadores do novo Código de Processo Civil.
Conforme desenvolvemos neste canal e em texto anterior, o Novo Código de Processo valorizou sobremaneira a desjudicialização, ou seja, a utilização de mecanismos extrajudiciais para a solução de controvérsias. Conforme o seu art. 3º, não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. Todavia, é permitida a arbitragem, na forma da legislação especial. Enuncia-se, em complemento, que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. Por fim, está expresso que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Dentro dessa realidade, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) promoveu, nos dias 22 e 23 de agosto de 2016, a I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, sob a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão. O evento ocorreu em Brasília, com a participação de ministros do STJ, magistrados federais e estaduais, procuradores, promotores de Justiça, advogados, defensores públicos, mediadores e professores universitários. Seguiu-se a linha das consagradas Jornadas de Direito Civil, já na sua sétima edição. Em artigo anterior, comentamos alguns enunciados doutrinários aprovados sobre mediação. Nesta segunda parte, serão abordadas as propostas que foram feitas quanto à viabilidade jurídica de aplicação da arbitragem para o Direito de Família, proposições essas que não passaram sequer pela comissão respectiva. O debate, todavia, é importante, almejando o futuro dessa tendência de fuga do Judiciário. Pois bem, as duas propostas foram formuladas pelo professor Paulo Nalin, da UFPR, um grande estudioso do Direito Contratual e da Arbitragem; e com importante contribuição sobre o conteúdo existencial das relações negociais, destacando-se a sua tese de doutorado, em que busca um conceito pós-moderno de contrato (NALIN, Paulo. Contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2006). Conforme a sua primeira sugestão, "é licito aos nubentes adicionar cláusula compromissória ao pacto antenupcial". Nos termos das justificativas apresentadas, a "interpretação contemporânea do pacto antenupcial permite que nele sejam dispostas declarações patrimoniais e existenciais, não se limitando, portanto, à simples escolha do regime de bens. Contudo, a natureza histórico-cultural do pacto se identifica com a definição dos efeitos patrimoniais do casamento, mediante a escolha do modelo de regime de bens. Nesse sentido, não ofende o art. 1.655 do CC, em interpretação sistêmica com o art. 852 do mesmo código, a adição de cláusula compromissória ao pacto (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. p. 433), para regular futura disputa concernente a interesses patrimoniais e disponíveis dos cônjuges". Cita-se a doutrina de Francisco José Cahali, outro defensor da possibilidade de os cônjuges ou companheiros fazerem uso da arbitragem para a solução de controvérsias, presente naquela Jornada. A segunda proposta apresentada no evento previa que "os cônjuges e os conviventes podem se valer da arbitragem para solucionar conflitos de interesses de natureza patrimonial e disponível, no âmbito do Direito de Família". Além de Francisco Cahali, a proposição citou a lição de Carlos Eduardo Pianovski, no sentido de superação da ideia de que a família seria "o lugar da não liberdade". E arrematou com as palavras de Marcos Alberto Rocha Gonçalves, na linha de que deve ser reconhecido o rompimento do "monopólio estatal para a modificação do status jurídico atribuído com o casamento", especialmente no tocante às questões patrimoniais. Soma-se a eles o jurista Carlos Alberto Carmona, um dos grandes especialistas brasileiros no assunto e também participante da Jornada, para quem "são arbitráveis, portanto, as causas que tratem de matérias a respeito das quais o Estado não crie reserva específica por conta do resguardo dos interesses fundamentais da coletividade, e desde que as partes possam livremente dispor acerca do bem sobre que controvertem" (Arbitragem e processo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 39). Pois bem, pensamos que é muito pertinente o debate da matéria, mas, no atual estágio do Direito de Família no Brasil, não se deve admitir a arbitragem para se resolver as contendas relativas a esse ramo do Direito Privado. Por isso fomos um dos defensores da rejeição das duas propostas naquele evento, por três objeções principais. A primeira objeção diz respeito à grande dificuldade existente na separação das matérias puramente patrimoniais daquelas de feição existencial, no âmbito familiar. Como se sabe, nos termos da legislação brasileira, "as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis" (art. 1º da lei 9.307/96). Ademais, o Código Civil de 2002 é claro aos excluir da arbitragem as questões relativas ao direito existencial ao Direito de Família, enunciando o seu art. 852 que é vedado compromisso arbitral para solução de questões de estado, de Direito Pessoal de Família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Mesmo as questões relativas ao regime de bens entre cônjuges e companheiros têm alguma faceta existencial, o que afastaria a viabilidade jurídica da arbitragem, pois não há o previsto conteúdo puramente patrimonial. A propósito, seguindo parcialmente essa linha de interpretação, recente aresto do Tribunal catarinense considerou que "em conformidade com o disposto no art. 1º da lei 9.307/96, a arbitragem pode ser utilizada exclusivamente para resolver litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, de forma que resta afastada, regra geral, sua aplicação sem relação às lides envolvendo Direito de Família" (TJ/SC, Apelação cível 2015.068323-3, Balneário Camboriú, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, julgado em 22/3/2016, DJSC 8/4/2016, p. 233). Como segunda objeção, os conflitos familiares carregam em seu âmago um forte e intenso afeto - no caso, um afeto negativo -, fazendo com que os direitos se situem em uma ordem de indisponibilidade, como regra. Tanto isso é verdade que o Código Civil é taxativo no sentido de serem os alimentos irrenunciáveis (art. 1.707), apesar da existência de corrente que prega a possibilidade de sua renúncia. A propósito, pontue-se que quando daquela Jornada houve um debate intenso sobre a possibilidade de a arbitragem atingir as relações de consumo. Após muita divergência, a plenária do evento acabou por não aprovar qualquer proposta, entre outras razões porque o conteúdo dos direitos consumeristas é, em regra, indisponível. Se há essa dificuldade na relação de consumo, imagine-se a barreira a transpor na relação de cunho familiar, por vezes também uma relação entre desiguais, em especial no plano econômico. Essa desigualdade ou assimetria, percebida como regra, acaba por colocar em xeque a afirmação da liberdade, defendida por aqueles que são favoráveis à arbitragem nesse âmbito. A terceira objeção, decorrência natural da segunda, é que o afeto pode estar preso ao patrimônio, como no exemplo concreto da insistência de um ou outro ex-consorte em permanecer com um determinado bem. As contendas e demandas familiares são multifacetadas, havendo grande dificuldade em se separar os bens das afeições de cada um dos cônjuges e companheiros. Mais uma vez, fica difícil a cisão entre as pretensões existenciais e as patrimoniais. Sem falar que esse apego quanto a bens também pode atingir os filhos, especialmente os incapazes. Por isso, pensamos que o tema ainda merece um debate ainda mais profundo pela doutrina e pelos aplicadores do Direito, sejam civilistas, familiaristas ou processualistas. Quem sabe, em um futuro próximo, superadas essas objeções, a arbitragem seja admitida para resolver os conflitos de ordem familiar.
O Novo Código de Processo Civil, em vigor no país desde o dia 18 de março de 2016, tem como um dos seus nortes principiológicos a desjudicialização dos conflitos e contendas. Entre as suas normas fundamentais, preceitua o Estatuto Processual emergente que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, está previsto que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º, do CPC/2015). No que diz respeito às ações de família, o texto normativo instrumental parece ser peremptório quanto à necessidade de se realizar a audiência de mediação ou conciliação, estabelecendo o caput do art. 695 do Novo CPC que "recebida a petição inicial e, se for o caso, tomadas as providências referentes à tutela provisória, o juiz ordenará a citação do réu para comparecer à audiência de mediação e conciliação". Como bem observa Daniel Amorim Assumpção Neves, "no procedimento comum, a audiência de conciliação e mediação pode não ocorrer quando ambas as partes se opuserem à sua realização. Nas ações de família, entretanto, o silêncio do art. 695 do Novo CPC permite a conclusão de que nessas ações a audiência é obrigatória, independentemente da vontade das partes" (Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1.099). Passados cinco meses de entrada em vigor dessas regras, a verdade é que todas essas regras não estão sendo aplicadas, por falta de uma necessária estruturação do Poder Judiciário. O Estado - em sentido amplo -, precisa contratar urgentemente mediadores e conciliadores judiciais capacitados e remunerá-los devidamente, para exercer as atribuições previstas na nova lei. Tal atuação exige uma formação específica, com investimentos públicos e privados, que deveriam ter sido realizados no prazo de vacatio legis do CPC/2015, o que não ocorreu. Como tenho dito em aulas e palestras, infelizmente, não nos preparamos para o Novo CPC quando deveríamos tê-lo feito, em 2015, justamente no lapso de vacância. Houve uma preocupação com outros temas, que não aqueles que mais nos interessam diretamente. A par dessa realidade, em iniciativa louvável, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) promoveu, nos dias 22 e 23 de agosto últimos, a I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. O evento aconteceu em Brasília, com a participação de ministros do STJ, magistrados federais e estaduais, procuradores, promotores de Justiça, advogados, defensores públicos e professores universitários. O seu foco principal foi a discussão de propostas para soluções desjudicializadas de conflitos, em adequação às inovações legislativas não só do Novo CPC como também da Lei 13.140/2015, conhecida como Marco Civil da Mediação. Na linha das já consagradas Jornadas de Direito Civil, também promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, o encontro teve a competente coordenação geral do ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, e a atuação do ministro Antonio Carlos Ferreira, coordenador da comissão de trabalho de arbitragem; do professor Kazuo Watanabe, coordenador da comissão sobre mediação, e do professor Joaquim Falcão, coordenador do grupo sobre outras formas de soluções de conflitos. Tive a honra de atuar como especialista convidado, ao lado de outros 40 colegas, e com a participação total de cerca de 150 juristas de todo o país. Ao final foram aprovados 104 enunciados, que constituem uma doutrina qualificada tendo "força persuasiva de caráter técnico-jurídico, não se confundindo com a posição do Conselho da Justiça Federal e de seu Centro de Estudos Judiciários, bem como de seus membros quando do exercício da função pública, sobre o mérito de eventuais conflitos administrativos ou judiciais a eles submetidos" (art. 34 da Portaria 169/2016 do CJF, que regulamenta a Jornada). Aqui iniciamos uma série de textos de comentários sobre algumas das propostas aprovadas, relativas ao Direito de Família e das Sucessões. Serão comentados os enunciados divulgados em primeira mão pelo informativo Migalhas (disponíveis na coluna). Não será apontada a sua numeração, pois ela ainda pende de revisão e confirmação pela organização do encontro. O tema inaugural a ser tratado é justamente a mediação, que tanto necessita de investimentos, para se deixar de lado uma frase sempre repetida pela professora Giselle Câmara Groeninga em suas exposições, no sentido de que "no Brasil há mais cursos de mediação do que mediações em curso". O primeiro enunciado aprovado sobre o assunto foi justamente na linha de se incentivar a sua prática pelo Estado, eis que "a mediação é método de tratamento adequado de controvérsias que deve ser incentivada pelo Estado, com ativa participação da sociedade, como forma de acesso à Justiça e à ordem jurídica justa". Com essa afirmação, adota-se uma postura de efetivação das regras constantes dos parágrafos do art. 3º do Novo CPC antes destacados. Mas não basta o investimento estatal. Também se faz necessária a mudança cultural no ensino do Direito. É preciso substituir a cultura da guerra, do contencioso, da vitória e da derrota, transmitidas nas Faculdades de Direito, pela cultura da paz, da resolução, do diálogo e do reconhecimento do outro. Nesse contexto, algumas propostas interessantes foram aprovadas. Assim, enunciou-se que "recomenda-se que as Faculdades de Direito mantenham estágios supervisionados nos escritórios de prática jurídica para formação em mediação e conciliação e promovam parcerias com entidades formadoras de conciliadores e mediadores, inclusive tribunais, MP, OAB, Advocacia Pública e Defensoria Pública". E ainda: "sugere-se que as Faculdades de Direito instituam disciplinas obrigatórias e autônomas e projetos de extensão destinados à arbitragem, à mediação e à conciliação". Por fim, quanto ao tema, destaque-se: "propõe-se a implementação da cultura de resolução de conflitos por meio de mediação, como política pública, nos diversos segmentos do sistema educacional, visando auxiliar na resolução extrajudicial de conflitos de qualquer natureza, utilizando mediadores externos ou capacitando alunos e professores para atuarem como facilitadores do diálogo na resolução e prevenção dos conflitos surgidos nesses ambientes". Os investimentos, assim, não são apenas do Poder Público, mas também dos entes privados, notadamente das instituições de ensino. Sem essa mudança embrionária, concretizada nos primeiros anos da formação jurídica, a mediação nunca se tornará realidade. No que diz respeito ao modo de se operacionalizar a mediação, aprendi com a minha irmã, Fernanda Tartuce, que nela não se busca o acordo, mas sim o diálogo entre as partes. Não se busca apenas o resultado quantitativo, o cumprimento de eventuais metas numéricas, mas sim a qualidade da interação, na aproximação das partes. E, nessa esteira, louva-se a aprovação de proposta estabelecendo que "a expressão 'sucesso ou insucesso' do artigo 167, parágrafo 3º, do CPC não deve ser interpretada como quantidade de acordos realizados, mas a partir de uma avaliação qualitativa da satisfação das partes com o resultado e com o procedimento, fomentando a escolha da Câmara, do conciliador ou do mediador com base nas suas qualificações e não nos resultados meramente quantitativos". Com relação direta com as ações de família, foi aprovada outra interessante proposta, no sentido de se possibilitar a participação de crianças, adolescentes e jovens na mediação, especialmente nas contendas relativas à guarda de filhos: "é admissível, no procedimento de mediação, em casos de fundamentada necessidade, a participação de crianças, adolescentes e jovens - respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão - quando o conflito (ou parte dele) estiver relacionado aos seus interesses ou direitos". As justificativas da proposição mencionam o art. 227 da Constituição Federal, na expressão de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais. Assim, a criança e o adolescente têm direito à liberdade de opinião e de expressão, o que incide no procedimento de resolução de conflitos. Por fim, neste primeiro texto sobre o assunto cabe destacar a delicada questão da capacitação dos mediadores extrajudiciais, objeto de proposições antagônicas, que muito foram debatidas pela comissão de mediação. Havia proposta no sentido de que poderá funcionar como mediador extrajudicial, qualquer pessoa capaz, de confiança das partes e que possua a capacitação mínima exigida pelo Conselho Nacional de Justiça. Na mesma linha almejava-se que "a capacitação do mediador extrajudicial de que trata o art. 9º da Lei de Mediação deve atender aos parâmetros curriculares estabelecidos pelo CNJ". Com tom antagônico, outra proposição sugeria o seguinte texto de enunciado: "para atuar como mediador extrajudicial, os únicos requisitos exigidos pela lei 13.140/15 são: capacidade civil plena, confiança das partes e capacitação, sendo que essa capacitação, diferentemente da judicial, não contempla requisitos mínimos estipulados pelo CNJ ou outro órgão". Compartilhando essa via, em tom até mais contundente "a capacitação do mediador privado, prevista no art. 9º da lei 13.140/2015, significa que deve ter vocação, reputação ilibada, confiança dos envolvidos e aptidão para mediar, não sendo necessário certificado de conclusão de curso, conforme os parâmetros fixados pelo Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Justiça, exigência que se destina a mediadores judiciais; sendo, porém, recomendável que tenha acesso a cursos que lhe propiciem o acesso aos princípios orientadores da mediação e o aperfeiçoamento constante das técnicas". Ao final, acabou sendo aprovada uma proposta de consenso, no meio do caminho, mas mais próxima das últimas, com o seguinte texto: "a menção à capacitação do mediador extrajudicial, prevista no art. 9 da lei 13.140, indica que ele deve ter experiência, vocação, confiança dos envolvidos e aptidão para mediar, bem como conhecimento dos fundamentos da mediação, não bastando a formação em outras áreas do saber que guardem relação com o mérito do conflito". Assim, não há a necessidade obrigatória de vinculação à formação efetivada pelo Conselho Nacional de Justiça, o que é salutar. Em suma, o evento mostrou que muitos são os desafios futuros relativos à extrajudicialização, e que outras jornadas sobre o assunto são essenciais, para que as regras previstas no Novo Código de Processo Civil sejam, de fato, concretizadas. Mas o Direito de Família não foi objeto somente da comissão de trabalhos sobre mediação. No próximo texto, veremos os debates ocorridos na comissão de arbitragem, onde atuamos diretamente.
Entre os dias 1º e 2 de junho de 2016, promoveu-se em Portugal o I Encontro IBDFAM-CDF, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família e pelo Centro de Direito da Família, ligado à secular Universidade de Coimbra. O evento teve a coordenação dos professores José Fernando Simão, pelo Brasil, e Guilherme de Oliveira, por Portugal, contando com a participação de mais de cinquenta especialistas; entre os brasileiros, os professores Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Rodrigo Toscano de Brito, Rodolfo Pamplona Filho, Giselle Groeninga, João Ricardo Brandão Aguirre, Fernanda Tartuce, Mariana Chaves e Rui Carvalho Piva. Um dos temas abordados no evento, especialmente pelos juristas portugueses, foi o apadrinhamento civil, tratado em terras lusitanas pela lei 103, de 11 de setembro de 2009, que teve como um dos seus elaboradores justamente o professor Guilherme de Oliveira. Este breve texto pretende trazer algumas reflexões iniciais sobre o instituto, na esteira dos debates que ocorreram naquele encontro em Portugal, confrontando a categoria dos patrícios com o projeto de lei 171, de 2013, aprovado recentemente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal Brasileiro. O apadrinhamento civil português traz amplos efeitos jurídicos aos envolvidos, definindo o art. 2º da lei 103/2009 que o instituto é "uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento". Ainda nos termos do mesmo comando, o apadrinhamento civil deve ser constituído por homologação ou decisão judicial, sujeita a registro civil. No que diz respeito à capacidade das partes, podem apadrinhar pessoas maiores de 25 anos, previamente habilitadas para tanto, dando-se preferência aos seus familiares; a pessoas idôneas ou a famílias de acolhimento a quem a criança ou o jovem tenha sido confiado em processo de promoção e proteção; ou mesmo a eventuais tutores (arts. 4º e 11, item n. 5, da lei 103/2009). Na outra ponta, quanto à capacidade para ser apadrinhado, o art. 5º da lei 103/2009 estabelece que, desde que o apadrinhamento civil apresente reais vantagens para a criança ou o jovem, e desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adoção, pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que a) esteja a beneficiar-se de uma medida de acolhimento em instituição; b) esteja a beneficiar-se de outra medida de promoção e proteção; c) encontre-se em uma situação de perigo confirmada em processo de uma comissão de proteção de crianças e jovens ou em processo judicial; d) para além dos casos previstos anteriormente, seja encaminhado para o apadrinhamento civil por iniciativa das pessoas ou das entidades previstas na mesma lei. Em complemento, está previsto que também pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que esteja a beneficiar-se de confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção ou a pessoa selecionada para a adoção quando, depois de uma reapreciação fundamentada do caso, se mostre que esta é inviável. O apadrinhamento civil português somente pode ser concedido uma vez, regido pela regra da unicidade, expressa no art. 6º da lei 103/2009. Enuncia a norma que enquanto subsistir um apadrinhamento civil não pode constituir-se outro quanto ao mesmo afilhado. O preceito estabelece como exceção a hipótese em que os padrinhos vivem em família, seja por casamento ou união de facto (a união estável portuguesa). A existência de amplos efeitos decorrentes do instituto é clara pelo que consta do art. 7º da Lei n. 103/2009, que determina a existência de responsabilidades parentais dos padrinhos, o que corresponde, pelo menos em parte, à nossa ideia de poder familiar; ou de autoridade parental, como querem alguns. Nesse contexto, os padrinhos exercem amplamente as responsabilidades parentais, ressalvadas as eventuais limitações previstas no compromisso de apadrinhamento civil ou na decisão judicial. Aplicam-se, no que couber, algumas regras da tutela, constantes entre os arts. 1936º e 1941º, 1943º e 1944º do Código Civil Português; os dois últimos no caso de falecimento, de inibição do exercício da responsabilidade parental pelos pais ou de serem estes incógnitos. Em complemento, cabe a intervenção do Ministério Público para a proteção dos interesses do menor. Os pais biológicos do apadrinhado, em regra, beneficiam-se dos direitos expressamente consignados no compromisso de apadrinhamento civil, a saber: a) conhecerem a identidade dos padrinhos; b) disporem de uma forma de contatar os padrinhos; c) saberem o local de residência do filho; d) disporem de uma forma de contatar o filho; e) serem informados sobre o desenvolvimento integral do filho, a sua progressão escolar ou profissional, a ocorrência de fatos particularmente relevantes ou de problemas graves, nomeadamente de saúde; f) receberem com regularidade fotografias ou outro registro de imagem do filho; g) visitarem o filho, nas condições fixadas no compromisso ou na decisão judicial, designadamente por ocasião de datas especialmente significativas, caso dos aniversários de todos (art. 8º da lei 103/2009). Em suma, quem passa a exercer a guarda fática da criança ou do adolescente são os padrinhos, havendo um direito de amplo acesso físico e informacional por parte dos pais biológicos. Com a finalidade de concretizar o instituto, as relações entre pais e padrinhos são regidas pelos princípios do mútuo respeito; da preservação da intimidade da vida privada e familiar, do bom nome e da reputação do afilhado; e da cooperação na criação de condições adequadas ao bem-estar e desenvolvimento do apadrinhado (art. 9º da lei 103/2009). Por fim, com relevo para esta breve análise, geral e comparativa, no que diz respeito aos alimentos, o art. 13 da norma lusitana considera os padrinhos ascendentes em primeiro grau do afilhado, para efeito da obrigação de lhe prestar alimentos. Porém, são precedidos pelos pais deste em condições de satisfazer tal encargo. O afilhado, por seu turno, é considerado descendente em primeiro grau dos padrinhos para efeito da obrigação de lhes prestar alimentos, mas é precedido pelos filhos destes em condições de satisfazer este encargo. Em outras palavras, padrinhos e afilhados são tratados como pais e filhos para os devidos fins alimentares, mas de maneira subsidiária. Na verdade, o projeto de lei brasileiro sobre apadrinhamento legal, na denominação que consta da proposta, é bem mais restrito do que o tratamento previsto na norma lusitana. Cinge-se a projeção a tratar apenas de consequências alimentares decorrentes do vínculo que une os padrinhos aos apadrinhados. Na verdade, trata-se de prática que já acontece no Brasil há muito tempo, especialmente no que diz respeito aos conhecidos "padrinhos de batismo", existentes em algumas religiões. É bem comum, em nosso País, que os padrinhos arquem com alguns custos de seus afilhados, como aqueles relacionados com a formação intelectual dos últimos. O projeto de lei 171/2013 pretende tratar da questão no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), incluindo os arts. 52-E a 52-I no diploma legal. Frise-se que os efeitos são apenas alimentares, sem qualquer interferência no exercício do poder familiar ou das responsabilidades parentais (segundo os portugueses). Nesse contexto, está previsto que se entende por apadrinhamento legal a situação jurídica de quem voluntariamente assume o dever de sustento de criança ou adolescente (art. 52-E, § 1º, da projeção). A categoria é dividida em duas modalidades, a saber: a) apadrinhamento total, presente quando o dever de sustento da criança ou do adolescente é assumido integralmente; e b) apadrinhamento parcial, quando o padrinho assume obrigação de prestar contribuições mensais em favor da criança ou do adolescente ou contribuições de bens ou serviços com o fim de atender a proteção integral consagrada pelo ECA (art. 52-E, § 2º, no PL n. 171/2013). Além da ausência de qualquer interferência no exercício do poder familiar, guarda ou tutela, o apadrinhamento legal não impõe ao padrinho qualquer dever de fiscalização ou de reparação de possíveis danos causados pelo apadrinhado, nem qualquer outro dever atribuído ao representante legal do afilhado (proposta de art. 52-E, §§ 3º e 4º, do PL 171/2013). Os valores pagos são tratados de maneira equiparada à pensão alimentícia para os devidos fins de impenhorabilidade (art. 52-E, § 5º). Todavia, não cabe prisão civil pela falta do seu pagamento (art. 52-E, § 8º). Com os fins de evitar eventuais fraudes, o apadrinhado não é considerado dependente do padrinho para efeitos previdenciários (art. 52-E, § 9º). O caráter alimentar presente no apadrinhamento total é ressaltado pela proposta de inclusão do art. 52-F no ECA, determinando a norma a incidência do art. 1.694 do Código Civil Brasileiro. Nesse contexto, devem os alimentos ser fixados de acordo com as necessidades indispensáveis à subsistência do apadrinhado, ou seja, têm o caráter de alimentos necessários. A norma possibilita, ainda, o pagamento in natura dos alimentos, como na hipótese em que o padrinho cede um imóvel de sua propriedade para residência do afilhado adolescente. O número de apadrinhados limita-se a dois, nessa modalidade, salvo se forem irmãos. Veda-se, também, o apadrinhamento total da mesma criança ou adolescente simultaneamente por mais de uma pessoa, salvo se os padrinhos forem casados ou viverem em união estável devidamente comprovada. Em casos tais, ambos os cônjuges ou companheiros são solidariamente responsáveis pelas prestações alimentares. No apadrinhamento parcial, o padrinho assume a obrigação de prestar as contribuições que foram previamente estipuladas, facultando-se a ele o direito de, a qualquer tempo, cumprir com as suas obrigações de maneira in natura, assim como ocorre na modalidade de apadrinhamento total. Porém, ao contrário dessa última, no apadrinhamento parcial o afilhado não é considerado dependente alimentar do padrinho, constando todas essas regras na proposta de inclusão do art. 52-G no ECA, pelo PL 171/2013. Por derradeiro, no que diz respeito à sua formalização, o apadrinhamento legal depende de escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, subscrita pelo padrinho e pelo responsável legal do apadrinhado, só produzindo efeitos após o seu registro no Cartório de Registro das Pessoas Naturais (proposta de inclusão do art. 52-H no ECA). Sucessivamente, a norma prevê a instauração de um procedimento administrativo perante o último cartório, com a oitiva do Ministério Público. Eventual conflito suscita decisão pelo juízo competente. Louva-se a desjudicialização do procedimento, como regra, na tendência consagrada pelo Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Essas são as diretrizes gerais do projeto, o que confirma a afirmação segundo a qual o projetado apadrinhamento legal brasileiro é bem mais restrito do que o apadrinhamento civil português, limitando-se ao pagamento de verbas alimentares e não interferindo no poder familiar. Quando expliquei a projeção brasileira brevemente nos debates em Portugal, ouvi da Professora Ana Rita Alfaiate, da Universidade de Coimbra, que não se tratava propriamente de um apadrinhamento civil. Todavia, a realidade demonstra que a nossa prática de apadrinhamento é realmente esta que o projeto de lei 171/2013 traz como conteúdo. Como palavras finais, estou filiado à projeção, pois ela acaba regulando algo que já acontece de forma espontânea na prática brasileira, concretizando a solidariedade estampada no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.
Fui consultado recentemente sobre hipótese fática interessante, que dizia respeito à possibilidade ou não de se reconhecer a existência de uma sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. Em outras palavras, mesmo tendo os cônjuges optado pelo regime da separação de bens, por força de pacto antenupcial, seria viável, juridicamente, que alguns bens fossem partilhados, pela prova e efetiva de uma sociedade de fato? Nunca é demais esclarecer, como já fizemos neste canal, que o regime da separação convencional de bens, no Brasil, pode ter duas origens: a lei ou a vontade das partes. No primeiro caso, há o regime da separação legal ou obrigatória de bens, estabelecido nas hipóteses descritas no art. 1.641 do Código Civil Brasileiro, a saber: a) se presente uma das causas suspensivas do casamento, descritas no art. 1.523 do Código Civil1; b) em situações envolvendo cônjuges com idade superior a setenta anos; e c) para os que dependem de suprimento judicial para casar, caso dos menores de 16 anos (art. 1.520 do Código Civil). O regime da separação convencional de bens, por seu turno, é aquele que decorre da autonomia privada dos cônjuges, escolhido por meio de um pacto antenupcial, conforme autoriza o art. 1.640 da codificação material brasileira. Nas hipóteses envolvendo o regime da separação legal ou obrigatória de bens, como também neste canal antes pontuamos, a jurisprudência brasileira reconhece claramente a possibilidade de existência de uma sociedade de fato, diante da previsão da Súmula 377 do Supremo Tribunal de Justiça brasileiro, do ano de 1964, com a seguinte redação: "No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Reafirme-se que depois de muito debate, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, prevalece nas Cortes brasileiras a conclusão de incidência dessa súmula, sem a necessidade de prova do esforço comum para que exista a partilha. Assim concluindo, por exemplo, repise-se: "a partilha dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, erigida sob a forma de separação legal de bens, não exige a comprovação ou demonstração de comunhão de esforços na formação desse patrimônio, a qual é presumida, à luz do entendimento cristalizado na Súmula n. 377/STF. Precedentes do STJ" (AgRg no REsp 1008684/RJ, Rel. ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 02/05/2012). Quanto ao regime da separação convencional de bens, o tema sobre a viabilidade ou não de uma sociedade de fato é de grande debate nas Cortes Superiores brasileiras, existindo decisões nos dois sentidos no mesmo Superior Tribunal de Justiça. Entendendo pela não comunicação de bens, com um voto vencido: "A cláusula do pacto antenupcial que exclui a comunicação dos aquestos impede o reconhecimento de uma sociedade de fato entre marido e mulher para o efeito de dividir os bens adquiridos depois do casamento. Precedentes" (STJ, REsp 404.088/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJ 28/05/2007, p. 320). Porém, em sentido contrário, colaciona-se: "O regime jurídico da separação de bens voluntariamente estabelecido é imutável e deve ser observado, admitindo-se, todavia, excepcionalmente, a participação patrimonial de um cônjuge sobre bem do outro, se efetivamente demonstrada, de modo concreto, a aquisição patrimonial pelo esforço comum, caso dos autos, em que uma das fazendas foi comprada mediante permuta com cabeças de gado que pertenciam ao casal" (STJ, REsp 286.514/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2007, DJ 22/10/2007, p. 276). Como se constata, os julgamentos que admitem a divisão de alguns bens entendem que essa é possível desde que seja provado o efetivo esforço patrimonial comum, ao contrário da interpretação que tem sido dada à súmula 377 do STF, para o regime da separação legal de bens. Assim, se seguida a última interpretação, que conta com o meu apoio, o cônjuge deve provar que o bem foi adquirido por sua contribuição patrimonial concreta e efetiva, ônus que lhe cabe. Prevalecendo a última solução, os bens e rendimentos que devem compor a sociedade de fato são aqueles que foram adquiridos pelo esforço de ambos os cônjuges, cabendo a prova por quem alega o direito no caso concreto. Não há uma simples meação, pois a solução se dá no campo do Direito das Obrigações, especialmente com a regra que veda o enriquecimento sem causa prevista no art. 884 do Código Civil: "Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido". Reafirme-se, pois esse é um ponto fundamental, que cabe ao cônjuge que pretende a divisão o ônus de provar quais bens e rendimentos foram adquiridos com a sua ajuda efetiva. Os bens que compõem esta sociedade de fato devem ser divididos de acordo com os esforços e contribuições patrimoniais de cada um dos cônjuges. A título de ilustração, se um imóvel foi adquirido com 70% de contribuição de uma parte e 30% de contribuição da outra, assim deve ser partilhado. Frise-se que não se trata propriamente de uma meação, regida pelo Direito de Família, mas de divisão de acordo com o que cada uma das partes efetivamente auxiliou na aquisição onerosa. Outras regras e princípios servem como amparo para a conclusão seguida. Além da vedação do enriquecimento sem causa podem ser mencionadas as disposições relacionadas à sociedade em comum. Conforme o art. 986 do Código Civil, "enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples". Em complemento, estabelece o art. 988 da mesma Lei Geral Privada que "os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum". Mais uma vez, deve ser firmada a premissa segundo a qual essa titularidade depende de prova de contribuição ou esforço para a aquisição dos bens. Em complemento, a existência de uma sociedade de fato no regime da separação convencional de bens também decorre do princípio da boa-fé, retirado do art. 113 do Código Civil Brasileiro, aplicável ao pacto antenupcial, in verbis: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Penso que um cônjuge que nega a divisão de bens adquiridos pela outra parte viola a cláusula geral de boa-fé objetiva, especialmente a confiança depositada pelo outro (Treu und Glauben). Por fim, serve como argumento a proteção do direito de propriedade do cônjuge, sendo esse direito reconhecido pela Constituição Federal Brasileira como um direito e garantia fundamental, conforma previsão constante do seu art. 5º, inciso XXII. Nesse contexto de proteção do direito de propriedade, deve ser reconhecida a existência de um condomínio de fato entre os cônjuges, nos termos do que estabelece os arts. 1.314 a 1.322 do Código Civil Brasileiro. Negar a partilha dos bens adquiridos pelo esforço patrimonial de um dos cônjuges, mesmo no regime da separação convencional de bens, viola o mandamento superior, que protege o direito subjetivo em questão. Concluindo, existem muitos argumentos jurídicos para sustentar a possibilidade de existência de uma sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. __________ 1 "Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas".
Em artigo recentemente publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará, e replicado em várias páginas da internet, o professor Zeno Veloso trouxe a debate um tema instigante, qual seja a possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do STF por meio de pacto antenupcial celebrado por cônjuges que sofrem a imposição do regime da separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese descrita pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil. O jurista assim relata o caso, com sua peculiar leveza de pena, sempre disposta a resolver os numerosos conflitos que lhe são levados a consulta em sua atividade profissional e acadêmica: "Há cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu nome, tantos dos que já tenha adquirido antes, como dos que vier a adquirir, a qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo, comunicação de bens com o outro cônjuge. Mas o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de 70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil. (...). Mas João Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis, frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos, que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da súmula 377/STF. No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens. Foi, então, que me procuraram, pedindo meu parecer" (VELOSO, Zeno. Casal quer afastar a súmula 377). Após tal exposição, o mestre do Pará expõe sua opinião, sustentando que é possível o afastamento da aplicação da sumular, por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas sim de matéria afeita à disponibilidade de direitos. E lança uma questão de consulta, que o presente texto pretende responder: "Mas há um grupo de jovens e competentes professores brasileiros, que integram a Confraria de Civilistas Contemporâneos, formada por mais de 30 mestres (Tartuce, Mário Delgado, Simão, Toscano, Catalan, Pablo Malheiros, Stolze, para citar alguns), a quem peço um parecer sobre o tema acima exposto. Afinal, podem ou não os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da Súmula 377?". Como um dos fundadores da citada Confraria - um grupo informal que pretende realizar encontros sociais e jurídicos de seus membros e convidados, especialmente para a congregação de vínculos de amizade e de afeto -, pretendo trazer aqui a nossa resposta, após ter consultado os amigos civilistas em nossa comunidade digital. Estamos total e unanimemente filiados à opinião de Zeno Veloso, levando-se em conta a opinium daqueles que se manifestaram no nosso grupo. De início, sem dúvida, a Súmula 377 do STF - do remoto ano de 1964 -, traz como conteúdo matéria de ordem privada, totalmente disponível e afastada por convenção das partes, não só no casamento, como na união estável. Vale lembrar que, pelo teor da sua ementa, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Pontue-se que, após muito debate na doutrina e na jurisprudência, tem-se aplicado a súmula integralmente, sem a necessidade de prova do esforço comum dos cônjuges para que haja a comunicação de bens, como destaca o próprio professor em seu texto. Em outras palavras, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe dar a última palavra a respeito do Direito Privado desde a Constituição Federal de 1988, praticamente transformou o regime da separação legal ou obrigatória de bens em um regime de comunhão parcial. Assim concluindo, por todos, entre os últimos julgamentos: "no regime da separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum (Súmula n. 377/STF)" (STJ, AgRg no AREsp 650.390/SP, Rel. ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 03/11/2015). Além da clareza do argumento, no sentido de se tratar de matéria de ordem privada e, portanto, disponível, acrescente-se, como pontuou Mário Luiz Delgado em nossos debates, que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver" (art. 1.639, caput, do Código Civil). A única restrição de relevo a essa regra diz respeito às disposições absolutas de lei, consideradas regras cogentes, conforme consta do art. 1.655 da mesma codificação, o que conduziria à nulidade absoluta da previsão. A título de exemplo, se há cláusula no pacto que afaste a incidência do regime da separação obrigatória, essa será nula, pois o art. 1.641 do Código Privado é norma de ordem pública, indisponível, indeclinável pela autonomia privada. Todavia, não há qualquer problema em se afastar a súmula 377 pela vontade das partes, o que, na verdade, ampliaria os efeitos do regime da separação obrigatória, passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica. Tal aspecto foi muito bem desenvolvido por José Fernando Simão também nos debates que travamos. Em suma, mestre Zeno Veloso, sim, podem os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377. Acreditamos que tal afastamento constitui um correto exercício da autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial (art. 1.653 do CC/2002).
quarta-feira, 27 de abril de 2016

O bem de família vazio

A lei 8.009/1990 representa uma das normas jurídicas de maior relevo prático na realidade jurídica brasileira. Baseada no trabalho acadêmico do professor Álvaro Villaça Azevedo, dispõe ela sobre a impenhorabilidade do bem de família legal, que passou a ser o imóvel residencial, rural ou urbano, próprio do casal ou da entidade familiar, protegido pela impenhorabilidade, independentemente de inscrição no registro de imóveis. Originariamente, ensina o professor do Largo de São Francisco que "pode-se dizer, seguramente, que o bem de família nasceu com tratamento jurídico específico, na República do Texas, sendo certo que, no Direito Americano, desponta ele como sendo uma pequena propriedade agrícola, residencial, da família, consagrada à proteção desta" (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 19). Assim, o embrião desse amparo é relacionado à tutela do homestead, o que significa local do lar. Nos termos do art. 1º dessa lei, "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas na lei". Trata-se de importante norma de ordem pública que protege tanto a família quanto a pessoa humana, especialmente o direito à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988. Isso justifica, de início, a edição da súmula 364 pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o manto da impenhorabilidade também atinge o imóvel onde reside pessoa solteira, separada ou viúva. Nos termos dos precedentes que geraram a ementa, o fim teleológico da lei 8.009/1990 não é proteger um grupo de pessoas, mas a pessoa, em especial o citado direito social e fundamental à moradia. Sem dúvida, trata-se de uma interpretação extensiva dada à lei, pois, expressamente, a proteção alcança apenas aqueles que vivem em família. Não só nessa hipótese, mas também em outras, a jurisprudência superior tem concluído desse modo, ampliando o sentido da norma, em sadio diálogo com o Texto Maior. Cite-se, em complemento, que o mesmo Tribunal da Cidadania tem entendimento consolidado no sentido de que, em caso de locação do bem, utilizada a renda do imóvel para a mantença da entidade familiar, a proteção permanece. Nesse contexto, "a orientação predominante no STJ é no sentido de que a impenhorabilidade prevista na lei 8.009/1990 se estende ao único imóvel do devedor, ainda que este se ache locado a terceiros, por gerar frutos que possibilitam à família constituir moradia em outro bem alugado" (STJ, AgRg 385.692/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 09.04.2002, DJ 19.08.2002). A questão se consolidou de tal forma que, em 2012, foi editada a Súmula n. 486 dessa Corte Superior, in verbis: "é impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família". Trata-se do que denominamos bem de família indireto, pois a tutela da moradia é dada de forma mediata ou reflexa. A propósito, entende-se, ainda, que a afirmação igualmente vale para o caso de único imóvel do devedor que esteja em usufruto, para destino de moradia de sua mãe, pessoa idosa (STJ, REsp 950.663/SC, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.04.2012). No último decisum, além da proteção da moradia, julgou-se com base no sistema de tutela constante do Estatuto do Idoso. Tal tendência de ampliação da tutela da moradia também pode ser retirada de aresto mais recente, publicado no Informativo n. 543 do STJ, ao julgar que "constitui bem de família, insuscetível de penhora, o único imóvel residencial do devedor em que resida seu familiar, ainda que o proprietário nele não habite". Nos termos da publicação, que mais uma vez conta com o nosso total apoio, "deve ser dada a maior amplitude possível à proteção consignada na lei que dispõe sobre o bem de família (Lei 8.009/1990), que decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6.º da CF, para concluir que a ocupação do imóvel por qualquer integrante da entidade familiar não descaracteriza a natureza jurídica do bem de família" (STJ, EREsp 1.216.187/SC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 14.05.2014). Pois bem, além de todas essas hipóteses, de interpretações extensivas da norma jurídica em prol da moradia, direito fundamental e social indeclinável, o Superior Tribunal de Justiça também tem entendido que "o fato do terreno encontrar-se desocupado ou não edificado são circunstâncias que sozinhas não obstam a qualificação do imóvel como bem de família, devendo ser perquirida, caso a caso, a finalidade a este atribuída" (tese número 10, publicada na Ferramenta Jurisprudência em Teses, Edição n. 44). Trata-se do que se pode denominar bem de família vazio. A análise de um dos acórdãos que gerou a afirmação jurisprudencial resumida merece análise depurada. Nos termos do julgamento constante do Recurso Especial n. 825.660/SP, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 1º de dezembro de 2009, "ocorreram danos no imóvel causados pelo transbordamento das águas da rede de águas pluviais. A referida ação foi julgada procedente, e a Prefeitura Municipal de Osasco foi condenada: a) a providenciar o desvio da rede canalizada e a reparar o imóvel; b) a reembolsar despesas com correspondências e aluguéis; e c) a pagar danos morais. A impenhorabilidade do bem de família serve para assegurar a propriedade da residência da entidade familiar de modo a assegurar-lhe uma existência digna. Verifica-se, no caso, que os devedores tiveram que desocupar o imóvel em razão do dano causado por fato de terceiro que tornou-o inabitável. Ora, não se pode afastar a impenhorabilidade do imóvel em razão de os devedores nele não residirem por absoluta ausência de condições de moradia. A parte recorrida não teve opção. A desocupação do imóvel era medida que se impunha. Não pode agora os devedores sofrerem a perda de seu único imóvel residencial, quando já estão sendo privados de utilizá-lo em razão de fato de terceiro. Assim, incabível a penhorabilidade de imóvel, quando os devedores, por fato alheio a sua vontade, deixam de nele residir em razão da falta de serviço estatal" De fato, não se pode impor a impenhorabilidade em casos semelhantes ou próximos, pois o fato de o imóvel encontrar-se vazio, desocupado, inabitado, não é imputável à conduta do devedor, mas a ato ou omissão da administração pública. Sendo assim, a impenhorabilidade é medida que se impõe, com vistas à proteção de um direito à moradia potencial, que se encontra dormente no momento da discussão da penhora, mas que pode voltar a ter incidência concreta a qualquer momento. Em verdade, todas essas interpretações extensivas do texto legal mantêm relação direta com a metodologia do Direito Civil Constitucional, segundo a qual se deve analisar os institutos privados de acordo com os direitos fundamentais e os princípios constitucionais, encartados na CF/1988. Muito ao contrário do que sustentam alguns, tal metodologia não se encontra esgotada em nosso País. Tanto isso é verdade que acabou por ser expressamente positivada, indiretamente, pelo art. 1º do Novo Código de Processo Civil, eis que "o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código". Diz-se indiretamente diante do fato de se atingir primeiramente os institutos processuais; e depois os materiais. Sendo assim, acreditamos que essa visão unitária do sistema jurídico seja incrementada nos próximos anos. Como bem demonstram Anderson Schreiber, Carlos Nelson Konder e outros juristas em obra coletiva recentemente lançada, o Direito Civil Constitucional ainda tem pela frente muitos desafios a superar (Editora GEN/Atlas, 2016).
Conforme destacado em texto anterior, publicado neste canal, o Novo CPC traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro. No que diz respeito à possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens, esta foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil. Trata-se de demanda que ganhou grande relevância entre os familiaristas nos últimos anos. Analisadas as questões relativas à justa causa para a mudança e os direitos de terceiros, é preciso abordar os efeitos da sentença que defere a alteração. O presente autor segue a posição segundo a qual os efeitos da alteração do regime são ex nunc, ou seja, a partir do trânsito em julgado da decisão, o que nos parece cristalino, por uma questão de eficácia patrimonial. Conforme pontuado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nos autos do Recurso Especial 1.300.036/MT, julgado pela Terceira Turma do STJ em maio de 2014, "o segundo ponto controvertido situa-se em torno da fixação do termo inicial dos efeitos dessa alteração do regime de bens: retroação à data do casamento (eficácia 'ex tunc') ou a partir da data do trânsito em julgado da decisão judicial que o alterou (eficácia 'ex nunc'). Essa questão, ainda hoje debatida na doutrina e na jurisprudência, é relevante na espécie, pois as partes, após alguns anos de união estável, casaram-se, em 24/05/1997, pelo regime da separação de bens, alterando esse regime para comunhão parcial em 2007, deflagrando-se o processo de separação em outubro de 2008. Em relação à eficácia 'ex tunc', o acórdão recorrido sintetiza os argumentos em prol dessa tese, sendo o principal deles o de que o regime de bens do casamento deve ser único ao longo de toda a relação conjugal. Em relação à eficácia 'ex nunc', o argumento central é no sentido de que a eficácia da alteração de um regime de bens, que era válido e eficaz, deve ser para o futuro, preservando-se os interesses dos cônjuges e de terceiros". Ao final, o Ministro Sanseverino segue a segunda solução, compartilhada por este autor, "pois não foi estabelecida pelo legislador a necessidade de que o regime de bens do casamento seja único ao longo de toda a relação conjugal, podendo haver a alteração com a chancela judicial. Em Cortes Estaduais, na mesma esteira, cabe destacar julgados do Tribunal Gaúcho e Paulista" (por todos: TJRS; Apelação cível n. 0056229-48.2015.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, julgado em 26.05.2015, DJERS 03.06.2015 e TJSP, Apelação n. 0013056-15.2007.8.26.0533, Acórdão n. 5065672, Santa Bárbara d'Oeste, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Viviani Nicolau, julgado em 12/04/2011, DJESP 01/06/2011). Esclareça-se que a natureza desses efeitos é capaz de afastar a necessidade de prova da ausência de prejuízos a terceiros pelos cônjuges, para que a alteração do regime de bens seja deferida, conforme sustentamos em texto anterior. Ademais, eventuais efeitos ex tunc fariam que o regime de bens anterior não tivesse eficácia, atingindo um ato jurídico perfeito, constituído por vontade dos cônjuges. No âmbito da doutrina, e da própria jurisprudência, ressalte-se, todavia, que a questão não é pacífica. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por exemplo, entendem que os efeitos são ex tunc porque "quando os cônjuges pretendem modificar o seu regime, o patrimônio atingido, que sofrerá a incidência do novo regramento é, por óbvio, aquele existente, até a data da sentença da mudança. Ora, com isso, é forçoso convir que os bens e valores amealhados - em conjunto ou separadamente - pelos consortes até o momento da mudança serão atingidos pelo pronunciamento judicial, submetendo-se, pois, a novo regramento. Sob esse aspecto, a sentença, pois, necessariamente, incide no patrimônio anterior. Daí por que a sua eficácia é ex tunc" (Novo Curso de Direito Civil Direito de Família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 6, p. 336). Também podem ser encontradas decisões estaduais que seguem esse caminho (por todos: TJMG, Apelação cível n. 1.0223.11.006774-9/001, Rel. Des. Luis Carlos Gambogi, julgado em 26/06/2014, DJEMG 07.07.2014 e TJDF, Recurso 2010.01.1.006987-3, Acórdão n. 440.239, Primeira Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE 25.08.2010, pág. 77). Exposta a controvérsia e reiterada nossa posição pelos efeitos ex nunc da sentença que altera o regime de bens, é preciso retomar debate de direito intertemporal a respeito dessa demanda, regulamentada agora pelo Novo CPC. Seria possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência do Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973? Muitos poderiam pensar que a resposta é negativa, diante do que consta do art. 2.039 do Código Civil de 2002, in verbis: "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido". Essa, contudo, não é a melhor conclusão para os devidos fins práticos. Um dos primeiros autores na doutrina brasileira a perceber a real intenção do legislador foi Euclides de Oliveira. A respeito do art. 2.039, explica o jurista que esse dispositivo legal "apenas determina que, para os casamentos anteriores ao Código Civil de 2002, não poderão ser utilizadas as regras do novo Código Civil referentes às espécies de regime de bens, para efeito de partilha do patrimônio do casal. Ou seja, somente as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas, quanto às disposições gerais, comuns a todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil" (Alteração do Regime de Bens no Casamento. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo [Coords.]. Questões Controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. v. 1, p. 389). Em síntese, como o art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é uma norma geral quanto ao regime de bens, pode ser aplicada a qualquer casamento, entendimento esse que foi acatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, já no remoto ano de 2004 (TJSP, Apelação Cível n. 320.566-4/0, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Marcondes Machado, 08.06.2004, v.u.). Contudo, coube ao Superior Tribunal de Justiça fazer a melhor interpretação da questão. Isso porque a Corte utilizou o art. 2.035, caput, do CC/2002 e a Escada Ponteana para deduzir que é possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência da codificação material anterior. Como é notório, Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado (Tomos 3, 4 e 5), dividiu o negócio jurídico em três planos. O primeiro é o plano da existência, no qual estão os pressupostos mínimos de um negócio jurídico, que formam o seu suporte fático: partes, vontade, objeto e forma. O segundo é o plano da validade, em que os elementos mínimos de existência recebem qualificações, nos termos do art. 104 do CC/2002, a saber: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei. Por fim, no plano da eficácia, estão as consequências do negócio jurídico, elementos relacionados com os seus efeitos (condição, termo, encargo, inadimplemento, juros, multa, perdas e danos, entre outros). Relativamente a esses três planos e à aplicação das normas jurídicas no tempo, estabelece o importante art. 2.035, caput, do Código Civil em vigor: "A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução". Em resumo, o que o dispositivo legal está estabelecendo é que, quanto aos planos da existência e da validade (o primeiro está dentro do segundo), devem ser aplicadas as normas do momento da constituição ou celebração do negócio. No tocante ao plano da eficácia, devem incidir as normas do momento dos efeitos. O regime de bens, por razões claras e lógicas, situa-se no plano da eficácia, pois diz respeito às consequências práticas do casamento, à modificação ou extinção de direitos. Ademais, a existência ou a validade do casamento não depende do regime de bens adotado. Em complemento, é notório que, não havendo adoção por qualquer regime, prevalecerá o regime legal ou supletório, qual seja, o da comunhão parcial de bens (art. 1.640 do Código Civil). Diante dessas premissas, entendeu o Tribunal da Cidadania, em conhecido precedente, que "apresenta-se razoável, in casu, não considerar o art. 2.039 do CC/2002 como óbice à aplicação de norma geral, constante do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, concernente à alteração incidental de regime de bens nos casamentos ocorridos sob a égide do CC/1916, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, não havendo que se falar em retroatividade legal, vedada nos termos do art. 5º, XXXVI, da CF/1988, mas, ao revés, nos termos do art. 2.035 do CC/2002, em aplicação de norma geral com efeitos imediatos" (STJ, REsp 730.546/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 23.08.2005, DJ 03.10.2005, p. 279). Sucessivamente, outros julgados surgiram na mesma esteira desse julgamento, estando a questão consolidada em nossa jurisprudência (por todos: STJ, REsp 1.112.123/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 16.06.2009, DJE 13.08.2009; TJ/RS, Apelação Cível n. 383376-78.2012.8.21.7000, Bagé, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 29.11.2012, DJERS 05.12.2012; TJSP, Apelação n. 9102946-53.2007.8.26.0000, Acórdão n. 5628185, São Paulo, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fábio Quadros, j. 17.11.2011, DJESP 24.01.2012; TJPR, Apelação Cível n. 0413965-9, Astorga, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Mário Rau, DJPR 28.03.2008, p. 110; TJMG, Apelação Cível n. 1.0439.06.053252-0/001, Muriaé, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Marcos Alvim Soares, j. 06.03.2007, DJMG 04.05.2007; e TJRJ, Apelação Cível n. 2007.001.08400, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Milton Fernandes de Souza, j. 27.03.2007). Cumpre esclarecer, por oportuno, que esse entendimento jurisprudencial já tinha amparo doutrinário no Enunciado 260, aprovado na III Jornada de Direito Civil, realizada em 2004, nos seguintes termos: "A alteração do regime de bens prevista no § 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação anterior". Em suma, essa é a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência brasileiras, que vem ser integralmente mantidas na vigência do Estatuto Processual emergente. Voltando aos preceitos do Novo CPC, conforme o § 2º do art. 734, os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros. Assim, por exemplo, não obsta a divulgação da alteração em um jornal local ou em um sítio da internet. Mais uma vez, há, na opinião deste autor, uma preocupação excessiva com a fraude, na contramão da doutrina e da jurisprudência construídas sob a égide do Código Civil de 2002. Por fim, demonstrando a mesma preocupação, após o trânsito em julgado da sentença de alteração do regime de bens, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis. Nos termos do mesmo § 3º do art. 734 do CPC/2015, caso qualquer um dos cônjuges seja empresário, deve ser expedido também mandado de averbação ao registro público de empresas mercantis e atividades afins.
O Novo CPC, ao lado do tratamento das ações de família e da regulamentação do divórcio, traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro. Como é cediço, a possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil, in verbis: "A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros". Cumpre destacar que as normas são claras no sentido de somente admitirem a alteração do regime mediante pedido judicial de ambos os cônjuges, em havendo uma ação de jurisdição voluntária, que corre na Vara da Família, se houver. Em projeções legislativas, existe a tentativa de se criar a possibilidade de alteração administrativa do regime de bens, por meio de escritura pública, conforme o PLS 470/2013, conhecido como Estatuto das Famílias do IBDFAM, que conta com o apoio deste autor. Na verdade, a reafirmação da necessidade de uma demanda judicial no Novo Código de Processo Civil já nasce desatualizada diante de outras projeções mais avançadas. A alteração somente é possível, nos termos literais das normas, se for fundada em pedido motivado, desde que apurada a procedência das razões invocadas. Esse justo motivo constitui uma cláusula geral, a ser preenchida pelo juiz caso a caso, à luz da operabilidade e do sistema aberto adotado tanto pelo CC/2002 quanto pelo CPC/2015. Como primeiro exemplo, pode ser citado o desaparecimento de causa suspensiva do casamento (art. 1.523 do Código Civil), sendo possível alterar o regime da separação obrigatória de bens para outro, na linha do que consta do Enunciado n. 262 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil. A jurisprudência superior já conclui desse modo, cabendo trazer à colação: "por elementar questão de razoabilidade e justiça, o desaparecimento da causa suspensiva durante o casamento e a ausência de qualquer prejuízo ao cônjuge ou a terceiro, permite a alteração do regime de bens, antes obrigatório, para o eleito pelo casal, notadamente porque cessada a causa que exigia regime específico. Os fatos anteriores e os efeitos pretéritos do regime anterior permanecem sob a regência da lei antiga. Os fatos posteriores, todavia, serão regulados pelo CC/2002, isto é, a partir da alteração do regime de bens, passa o CC/2002 a reger a nova relação do casal. Por isso, não há se falar em retroatividade da lei, vedada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da CF/1988, e sim em aplicação de norma geral com efeitos imediatos" (STJ, REsp 821.807/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 261). Como segundo exemplo de um justo motivo, a jurisprudência paulista deferiu a alteração, diante de dificuldades contratuais encontradas por um dos consortes. Assim julgando, por todos: "Regime de Bens. Pedido de alteração do regime de comunhão parcial de bens para o de separação total. Alegação de dificuldade de contratação de financiamento para aquisição de imóvel residencial, por força das dívidas contraídas pelo cônjuge varão. Preenchimento dos requisitos previstos no art. 1.639, § 2º, do Código Civil verificado. Ausência de óbice à alteração do regime de bens do casamento. Medida que não acarretará prejuízo algum aos cônjuges ou aos filhos. Terceiros que não serão atingidos pela alteração, que gerará efeitos apenas 'ex nunc'. Alteração determinada. Recurso provido" (TJ/SP, Apelação com Revisão 600.593.4/4, Acórdão 4048973, São Paulo, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, j. 08.09.2009, DJESP 06.11.2009). De toda sorte, há quem entenda pela desnecessidade de motivação para que o regime de bens seja alterado judicialmente, eis que se trata de uma exigência excessiva constante da lei. Em suma, haveria uma intervenção dispensável do Estado nas questões familiares, o que feriria o princípio da não intervenção, previsto no art. 1.513 do CC/2002 e de outros regramentos do Direito de Família. Com esse sentir, decisão do Tribunal Gaúcho, de relatoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, que conta com o nosso apoio: "Apelação cível. Regime de bens. Modificação. Inteligência do art. 1.639, § 2º, do Código Civil. Dispensa de consistente motivação. 1. Estando expressamente ressalvados os interesses de terceiros (art. 1.639, § 2º, do CCB), em relação aos quais será ineficaz a alteração de regime, não vejo motivo para o Estado-Juiz negar a modificação pretendida. Trata-se de indevida e injustificada ingerência na autonomia de vontade das partes. Basta que os requerentes afirmem que o novo regime escolhido melhor atende seus anseios pessoais que se terá por preenchida a exigência legal, ressalvando-se, é claro, a suspeita de eventual má-fé de um dos cônjuges em relação ao outro. Três argumentos principais militam em prol dessa exegese liberalizante, a saber: 1) não há qualquer exigência de apontar motivos para a escolha original do regime de bens quando do casamento; 2) nada obstaria que os cônjuges, vendo negada sua pretensão, simulem um divórcio e contraiam novo casamento, com opção por regime de bens diverso; 3) sendo atualmente possível o desfazimento extrajudicial do próprio casamento, sem necessidade de submeter ao Poder Judiciário as causas para tal, é ilógica essa exigência quanto à singela alteração do regime de bens. 2. Não há qualquer óbice a que a modificação do regime de bens se dê com efeito retroativo à data do casamento, pois, como já dito, ressalvados estão os direitos de terceiros. E, sendo retroativos os efeitos, na medida em que os requerentes pretendem adotar o regime da separação total de bens, nada mais natural (e até exigível, pode-se dizer) que realizem a partilha do patrimônio comum de que são titulares. 3. Em se tratando de feito de jurisdição voluntária, invocável a regra do art. 1.109 do CPC, para afastar o critério de legalidade estrita, decidindo-se o processo de acordo com o que se repute mais conveniente ou oportuno (critério de equidade). Deram provimento. Unânime" (TJRS, Apelação Cível 172902-66.2011.8.21.7000, Marcelino Ramos, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 28.07.2011, DJERS 04.08.2011). Consigne-se que, em sentido muito próximo, o Tribunal Paulista entendeu que não há necessidade de detalhamento das razões, ou seja, pela "desnecessidade de apresentação muito pormenorizada de razão" para a alteração do regime (TJSP, Apelação 0018358-39.2009.8.26.0344, Acórdão 5185207, Marília, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 01.06.2011, DJESP 09.08.2011). Mais recentemente, pronunciou-se da mesma maneira o Superior Tribunal de Justiça, conforme publicação que consta do seu Informativo n. 518, com o seguinte tom: "Nesse contexto, admitida a possibilidade de aplicação do art. 1.639, § 2º, do CC/2002 aos matrimônios celebrados na vigência do CC/1916, é importante que se interprete a sua parte final - referente ao 'pedido motivado de ambos os cônjuges' e à 'procedência das razões invocadas' para a modificação do regime de bens do casamento - sob a perspectiva de que o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de 'asilo inviolável'. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de 'intervenção mínima', não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família. Desse modo, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes. Nesse sentido, a constituição de uma sociedade por um dos cônjuges poderá impactar o patrimônio comum do casal. Assim, existindo divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família, haveria justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens. Isso porque se mostra razoável que um dos cônjuges prefira que os patrimônios estejam bem delimitados, para que somente o do cônjuge empreendedor possa vir a sofrer as consequências por eventual fracasso no empreendimento" (STJ, REsp 1.119.462/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.02.2013). Em suma, tem-se mitigado jurisprudencialmente a estrita exigência normativa do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, o que vem em boa hora, pois são os cônjuges aqueles que têm a melhor consciência sobre os embaraços que o regime de bens adotado pode gerar em sua vida cotidiana. A interpretação deve ser a mesma no que diz respeito ao Novo Código de Processo Civil que, mais uma vez, parece estar na contramão da jurisprudência, ao exigir expressamente a motivação para a mudança do regime. Ainda nos termos da literalidade dos dois comandos, material e processual, a alteração do regime de bens não poderá prejudicar os direitos de terceiros, presente uma intenção legislativa de se proteger a boa-fé objetiva e de desprestigiar a má-fé. De modo algum essa alteração do regime poderá ser utilizada com intuito de fraude, inclusive tributária. A jurisprudência tem exigido cabalmente a prova de ausência de prejuízos a terceiros (TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). Na mesma linha, o Enunciado n. 113 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: "É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade". De qualquer forma, destaque-se que, em havendo prejuízo para terceiros de boa-fé, a alteração do regime deve ser reconhecida como meramente ineficaz em relação a esses, o que não prejudica a sua validade e eficácia entre as partes. Como bem explica Débora Brandão, "o resguardo dos direitos de terceiros por si só não tem o condão de obstar a mutabilidade do regime de bens. Aponta-se como solução para ele a elaboração de um sistema registral eficiente, tanto do pacto antenupcial como de suas posteriores modificações, para devida publicidade nas relações entre os cônjuges a terceiros e a produção de efeitos, ou seja, a alteração só produziria efeitos em relação a terceiros após a devida publicidade da sentença, cuja natureza é constitutiva, restando inalterados todos os negócios posteriormente praticados. Respeita-se, dessa forma, o ato jurídico perfeito" (BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Regime de Bens no Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 103). Concluindo, nessa esteira, no âmbito jurisprudencial: "a alteração do regime de bens não tem efeito em relação aos credores de boa-fé, cujos créditos foram constituídos à época do regime de bens anterior" (TJ/RS, Agravo de Instrumento 70038227633, Porto Alegre, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 24.08.2010, DJERS 30.08.2010). O acórdão julgou pela desnecessidade de prova, pelos cônjuges, da inexistência de ações judiciais ou de dívidas, pois isso não prejudica a eficácia da alteração do regime entre os cônjuges. Em síntese, não se seguiu a linha do citado Enunciado n. 113 do CJF/STJ, pois a perquirição da existência de dívidas ou demandas não seria uma exigência para a modificação do regime. Houve, nesse contexto, um abrandamento do texto do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, servindo a mesma conclusão para o art. 734, caput, do CPC/2015. Cumpre ressaltar que outras decisões exigem tal prova, para que a alteração patrimonial seja considerada idônea e, então, deferida pelo juiz da causa (por todos: TJ/DF, Recurso 2006.01.1.036489-5, Acórdão 386.017, Sexta Turma Cível, Rel. Des. Luis Gustavo B. de Oliveira, DJDFTE 12.11.2009, p. 121; e TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). A questão, como se vê, é polêmica, devendo ser aprofundada com a emergência do novel Estatuto Processual. Aliás, expressa o § 1º do art. 734 do CPC/2015 que, ao receber a petição inicial da ação de alteração de regime de bens, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida modificação, somente podendo decidir o juiz depois de decorrido o prazo de 30 dias da publicação do edital. Como se vê, o Novo Estatuto Processual aprofunda a preocupação com a possibilidade de fraudes, determinando a atuação do MP, mesmo não havendo interesses de incapazes. Por todos os argumentos antes expostos, a preocupação parece excessiva e desatualizada ante a doutrina e jurisprudência consolidadas diante do Código Civil Brasileiro de 2002. No que concerne à publicidade da modificação do regime patrimonial, no ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o mero registro da sentença transitada em julgado tem o condão de dar publicidade à alteração do regime de bens, não devendo prevalecer norma da Corregedoria do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que apontava a necessidade de publicação de editais dessa alteração. Assim, em certo sentido, não se adotou, por igual, a parte final do citado Enunciado n. 113, que determina a necessidade de ampla publicidade na modificação do regime. Vejamos a ementa do decisum: "Civil. Família. Matrimônio. Alteração do regime de bens do casamento (CC/2002, art. 1.639, § 2º). Expressa ressalva legal dos direitos de terceiros. Publicação de edital para conhecimento de eventuais interessados, no órgão oficial e na imprensa local. Provimento 24/2003 da Corregedoria do Tribunal Estadual. Formalidade dispensável, ausente base legal. Recurso especial conhecido e provido. 1. Nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, a alteração do regime jurídico de bens do casamento é admitida, quando procedentes as razões invocadas no pedido de ambos os cônjuges, mediante autorização judicial, sempre com ressalva dos direitos de terceiros. 2. Mostra-se, assim, dispensável a formalidade emanada de Provimento do Tribunal de Justiça de publicação de editais acerca da alteração do regime de bens, mormente pelo fato de se tratar de providência da qual não cogita a legislação aplicável. 3. O princípio da publicidade, em tal hipótese, é atendido pela publicação da sentença que defere o pedido e pelas anotações e alterações procedidas nos registros próprios, com averbação no registro civil de pessoas naturais e, sendo o caso, no registro de imóveis. 4. Recurso Especial provido para dispensar a publicação de editais determinada pelas instâncias ordinárias" (STJ, REsp 776.455/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 17.04.2012, DJE 26.04.2012). Feitas tais considerações a respeito do tema, em um próximo texto, complementar ao presente, analisaremos os efeitos da ação de alteração do regime de bens, uma importante questão de Direito Intertemporal, bem como outras regras que foram introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil.
O Novo Código de Processo Civil, que entrará em vigor em 18 de março de 2016 - na visão deste autor, seguindo-se o mesmo critério adotado anteriormente para o Código Civil de 2002 -, traz muitas normas com impacto direto sobre o Direito de Família brasileiro. Cito, como principal exemplo, as regras procedimentais específicas para as ações de Família, previstas entre os seus arts. 693 a 699, com destaque para a prioridade que deve ser dada à mediação e à conciliação entre as partes. Ademais, existem outros preceitos, muitos deles escondidos, ou não perceptíveis em uma primeira análise, com repercussões para esse importante ramo do Direito Civil, o que deve ser esmiuçado pela doutrina e incrementado pela jurisprudência nos próximos anos. Um desses comandos é aquele que trata do julgamento antecipado parcial de mérito, o que tem enorme incidência para as demandas que almejam o fim da conjugalidade, pelo divórcio, e a dissolução da união estável. Conforme o art. 356 do CPC/2015, passa a ser possível, expressamente pelo texto legal, uma decisão parcial, quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento, por não haver a necessidade de produção de provas ou por ter ocorrido à revelia. Sendo assim, partindo para a prática familiarista, em havendo pedido de divórcio ou de dissolução da união estável de ambos os cônjuges ou companheiros, cumulado com outras pretensões -, caso da guarda de filhos, dos alimentos e de eventual pedido de responsabilização da outra parte -, é perfeitamente possível que o juiz da causa decrete a dissolução do casamento ou da união estável, seguindo a ação no debate de outras questões que ainda pendem de julgamento. Na verdade, tal solução já vinha sendo adotada pela jurisprudência, em especial pelo Desembargador Caetano Lagrasta Neto, ora aposentado, em julgamentos perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, seguindo-se a tese dos capítulos de sentença, desenvolvida por Cândido Rangel Dinamarco. Entre muitos arestos, conforme acórdão da 8.ª Câmara de Direito Privado da Corte Bandeirante, proferido no agravo de instrumento 990.10.357301-3, em 12 de novembro de 2010, de sua relatoria, "com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010, e a nova redação do § 6.º do art. 226 da CF, o instituto da separação judicial não foi recepcionado, mesmo porque não há direito adquirido a instituto jurídico. A referida norma é de aplicabilidade imediata e não impõe condições ao reconhecimento do pedido de divórcio, sejam de natureza subjetiva - relegadas para eventual fase posterior à discussão sobre culpa - ou objetivas - transcurso do tempo. (...). Discussões restantes: nome, alimentos, guarda e visitas aos filhos, bem como a patrimonial, devem ser resolvidas, conforme ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, em 'cisão da sentença em partes, ou capítulos, em vista da utilidade que o estudioso tenha em mente'. É lícito: a) fazer somente a repartição dos preceitos contidos no decisório, referentes às diversas pretensões que compõem o mérito; b) separar, sempre no âmbito do decisório sentencial, capítulos referentes aos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito e capítulos que contêm esse próprio julgamento; c) isolar capítulos segundo os diversos fundamentos da decisão' (Capítulos de Sentença. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, p. 12). Observa-se que solução diversa não preservaria a força normativa da Constituição e a carga axiológica decorrente da normatização dos princípios da dignidade humana e liberdade na busca do amor e da felicidade". No âmbito da doutrina, esse mesmo caminho foi adotado, pelo menos parcialmente, em enunciado aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2015, segundo o qual: "transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição de mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento" (enunciado n. 602). Em suma, o casal tem o seu vínculo extinto, sem prejuízo da resolução de todos os dilemas que ainda pendem de decisão perante o Poder Judiciário. No mesmo sentido, mas com tom bem mais abrangente, o enunciado n. 18 do IBDFAM, aprovado no seu X Congresso Brasileiro, em outubro do mesmo ano, conforme proposta formulada por este autor: "nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas". Em verdade, acreditamos que, em tal aspecto, o Novo Código de Processo Civil dialoga perfeitamente com a Emenda Constitucional 66/2010, que suprimiu os prazos para o divórcio e a separação de direito, alterando o art. 226, § 6.º, do Texto Maior e facilitando a dissolução do vínculo conjugal. Esse diálogo é perfeitamente notado pelo fato de o Estatuto Processual emergente afastar qualquer burocracia ou entrave maior para o fim do casamento. Efetiva-se, assim, o teor do que consta do próprio art. 8.º do mesmo Codex, in verbis: "ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência". Não restam dúvidas de que a eficiência e a economia estão muito prestigiadas com tal premissa. A título de exemplo mais específico, e com o intuito de esclarecer, em havendo pedido de divórcio cumulado com alimentos, o juiz pode deferir o divórcio por sentença, liberando definitivamente as partes daquele indesejado vínculo, e seguir no curso da lide a discussão a respeito dos alimentos. Tal opção não afasta a possibilidade de as partes ingressarem com duas ações autônomas, quais sejam uma de divórcio e outra de alimentos, o que depende de sua pretensão. De toda sorte, não resta dúvida de que o primeiro caminho melhor concretiza o que consta como regramento fundamental da própria norma processual. Feitos tais esclarecimentos, acrescente-se que, de acordo com a mesma norma em estudo, a decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida - certa quanto à existência e determinada quanto ao valor -, ou mesmo ilíquida - que não preenche tais requisitos (art. 356, § 1.º, do CPC/2015). Eventualmente, não havendo dissenso ou pendência entre as partes, a sentença que decreta o fim da união pode também trazer em seu bojo a fixação de verba alimentar. A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, essa obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução ou garantia, ainda que haja recurso contra essa interposto (art. 356, § 2.º, do CPC/2015). Na hipótese dessa execução, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva (art. 356, § 3.º, do CPC/2015). Em complemento, a liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz (art. 356, § 4.º, do CPC/2015). Por fim, está previsto na norma emergente que a decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento (art. 356, § 5.º, do CPC/2015). No campo processual, anote-se que essa já era a posição da doutrina especializada, especialmente no tocante às Ações de Família (por todos: TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de família. São Paulo: GEN/Método, 2012, p. 253). Como palavras finais, entre perdas e ganhos, no objeto de estudo aqui abordado, o Novo Código de Processo Civil é elogiável, resolvendo definitivamente dilema que há muito tempo incomodava os teóricos e práticos do Direito de Família brasileiro. Esperamos que a jurisprudência incremente essa solução nos próximos anos.
A categoria dos alimentos intuitu familiae ou globais ainda não é muito difundida no Direito de Família Brasileiro, tendo sido abordada por este autor em parecer jurídico apresentado em caso concreto, no ano de 2014, e publicado na Revista Científica do IBDFAM n. 5. Yussef Said Cahali foi um dos primeiros juristas a analisar a categoria, demonstrando sua origem na criação jurisprudencial brasileira. Pondera o ex-magistrado e professor a respeito do instituto que "a pensão do marido à mulher e aos filhos pode ter sido fixada englobadamente, sem que isto represente óbice à homologação do acordo"1. Em complemento, de acordo com as lições de Rolf Madaleno, "alimentos intuitu familiae são aqueles arbitrados, ou acordados de forma global, para todo o grupo familiar, sem pormenorizar e separar as quotas de cada integrante da célula familiar, destinatária coletiva da pensão alimentar. O montante dos alimentos é estabelecido em prol de todos os familiares, e quando um deles deixa de ser credor dos alimentos pode até ocorrer uma pequena redução da pensão, mas não uma divisão proporcional ao número de alimentandos, sucedendo, se for o caso, um ajuste com a simples readequação do valor dos alimentos"2. Maria Berenice Dias também aborda o instituto, expondo o caráter global de sua fixação, "sem individualizar a proporção de cada beneficiário. Normalmente são estipulados em benefício da entidade familiar - ex-mulher e filhos -, sem ser indicado o percentual em favor de cada um deles"3. Desse modo, na linha da doutrina exposta, a fixação dos alimentos com intuito familiar (intuitu familiae) tem como escopo atender às finalidades de determinado grupo de pessoas que compõe a entidade familiar. Em realidade, a fixação alimentar intuitu familiae não tem qualquer amparo legal, não havendo norma jurídica que lhe dê fundamento. Em reforço, a sua atribuição pode conduzir a injustiças e a situações indesejáveis, especialmente tendo em vista o binômio ou trinômio alimentar. Foi exatamente o que ocorreu no caso levado a consulta a este autor, em sua atividade profissional. O valor alimentar foi fixado inicialmente, por sentença, em cerca de vinte salários mínimos para a ex-esposa e três filhos do alimentante. Porém, sucessivamente, houve a exoneração alimentar da esposa e de dois filhos que atingiram a maioridade, sem que houvesse a revisão do montante global. Ao final, conforme condenação de primeira instância, a filha menor do devedor estava recebendo uma verba alimentar de cerca de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), bem acima de suas necessidades, mesmo em se mantendo um altíssimo padrão de vida, sob os pontos de vista econômico e social. Diante da ausência de revisão da sentença pelo juízo monocrático, essa acabou por ser reformada pela segunda instância, reduzindo-se o valor a próximo da metade dessa quantia. Ora, constitui premissa antiga a afirmação de que os alimentos têm caráter personalíssimo em favor do credor da pensão. Desse modo, a fixação dos alimentos deve levar em conta as características de quem os pleiteia, tendo natureza essencialmente intuitu personae. Essa premissa, aliás, é essencial para a atribuição da pensão alimentícia, tendo como parâmetro a necessidade do credor. No âmbito da jurisprudência, vários arestos reconhecem tal caráter pessoal e infungível, tanto em relação ao credor quanto no que diz respeito ao devedor (por todos: STJ, AgRg. no REsp 981.180/RS, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 07/12/2010, DJe 15/12/2010). Além do caráter personalíssimo, não se olvide que a obrigação de alimentos é divisível, em regra, o que é retirado de vários diplomas do sistema legal da codificação material de 2002, especialmente da segunda parte do seu art. 1.698, dispositivo que tem a seguinte dicção: "se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide". A fixação dos alimentos intuitu familiae quebra com essas características técnicas consolidadas da pensão alimentícia. Em casos de sua atribuição, o grupo familiar passa a ser dotado de uma solidariedade ativa convencional, pois, como elucida Maria Berenice Dias, "como o crédito é em prol de todos, dispõe cada um de legitimidade para cobrança da integralidade de seu valor. Ainda que um ou mais filhos atinjam a maioridade, pode a genitora propor a execução para cobrança da totalidade do débito"4. O caráter personalíssimo da pensão é igualmente quebrado diante do fato de ser o montante fixado a favor de um grupo de pessoas, com características próprias analisadas em conjunto, e não isoladamente. A este autor não parece haver qualquer ilicitude na fixação dos alimentos intuitu familiae, pois a solidariedade pode ter origem na lei ou na vontade das partes, na esteira do art. 265 do Código Civil. Em outras palavras, é perfeitamente possível afastar, por convenção, o caráter personalíssimo e divisível da obrigação de alimentos. Todavia, em casos de exagero, é viável rever o valor antes fixado a título de alimentos. A propósito da possibilidade dessa diminuição a partir de uma mudança estrutural no binômio ou trinômio alimentar, mesmo que fixada a verba intuitu familiae, cabe trazer à colação decisum do Tribunal de Justiça de São Paulo. Trata-se de acórdão da sua 6ª Câmara de Direito Privado, proferido em 22 de outubro de 2009, na apelação com revisão 680.852-4/2-00, que teve como relator o Desembargador Vito Guglielmi. No caso, houve a exoneração da pensão alimentar quanto a uma filha maior do alimentante, então com vinte e seis anos de idade, que havia se graduado no curso de Direito e obtido a carteira de advogada. Conforme consta da ementa do aresto, foi reconhecida a exoneração parcial subjetiva da pensão, o que deveria ser reconhecido mesmo se os alimentos fossem fixados intuitu familiae. Merece ser citado o seguinte trecho do julgamento, que analisa o tema relativo ao binômio ou trinômio alimentar: "nesse tema dos alimentos, como venho sustentando, o dever deve ser lido, sempre, na perspectiva da dupla análise da necessidade daquele que pleiteia o auxílio e da possibilidade daquele que o presta, fatores amalgamados sobre a denominação, já consagrada pela jurisprudência, de 'binômio necessidade-possibilidade', o qual deve nortear, em qualquer caso, a determinação, revisão ou exoneração da prestação fixada. Sob essa ótica, de um lado, tem-se que, no caso, as necessidades da ré devem ser rigorosamente comprovadas. No tocante ao aspecto prático da exoneração, sobreleva que os presentes alimentos, embora fixados em valor único para os três coalimentados, guardam nítida relação de proporção e divisibilidade, não se podendo falar que a fixação haja se dado intuitu familiae a impedir a pleiteada exoneração parcial subjetiva. Assim, pelos termos da própria sentença originária que os fixou (fls. 81) e bem das decisões posteriores de revisão (fls. 85/105). Aliás, ainda que houvessem sido os alimentos fixados intuitu familiae, tal atributo não impediria a procedência do pedido de exoneração do dever alimentar em relação a um dos coalimentados e tampouco a redução proporcional da prestação global fixada. Como se vem entendendo, a divisibilidade da prestação alimentar é característica presente até mesmo quando não há menção expressa à destinação". Sucessivamente, o Desembargador Relator Vito Guglielmi cita aresto do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no mesmo sentido, que concluiu: "a obrigação alimentar, ainda que arbitrada intuitu familiae, não perde seu caráter de divisibilidade. Não havendo previsão em contrário, na obrigação subjetivamente divisível, deve prevalecer a presunção legal de igualdade das quotas (art. 257 do Código Civil de 2002). A exoneração dos alimentos, ante a ausência de convenção em contrário, deve ocorrer somente quanto às quotas dos ex-credores, em igual proporção, remanescendo o crédito proporcional da credora remanescente (TJMG, Apelação cível n. 1.0016.07.076039-8/001, Alfenas, 2ª Câmara Cível, Rel. Caetano Levi Lopes, julg. 24/03/2009)". Cabe ainda destacar, do acórdão paulista, o trecho em que se analisa a necessidade de diminuição do quantum global, a partir do binômio alimentar, tendo em vista a exoneração parcial de uma das filhas do alimentante: "destarte, a exoneração do dever alimentar em relação à demanda, com a consequente redução proporcional do valor global da prestação, revela-se mesmo adequada ante a comprovação da ausência de necessidade da alimentada de um lado e, ainda, da prova indiciária, de outra banda, da redução da capacidade financeira do autor, consubstanciada na existência de diversas restrições de crédito em seu nome". Conforme se verifica, os dois acórdãos citados seguem a linha de necessidade de revisão dos alimentos com função familiar, na linha das premissas-regras do caráter personalíssimo e da divisibilidade da obrigação de alimentos. Em resumo, é imperioso rever o valor global intuitu familiae quando há alteração substancial do binômio ou trinômio alimentar, especialmente tendo como pano de fundo fundamental as necessidades do alimentante. Eis aqui uma correta e justa aplicação do princípio da razoabilidade em sede de alimentos, a demonstrar a evolução do binômio para o trinômio alimentar, como temos destacado em nossas obras, aulas e palestras sobre o assunto. *** A todos os amigos migalheiros desejo um Feliz Natal e um 2016 de muito empenho, para que possamos superar as dificuldades. Ficam os meus agradecimentos ao Miguel e a todos os amigos da equipe do Migalhas, por esta grande oportunidade. ___________ 1 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 221. 2 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2011. p. 946 3 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 550. 4 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 550-551
Com vigência desde janeiro de 2003, o Código Civil de 2002 completará em breve 13 anos de aplicação no país. Entre inovações, avanços e transformações, o livro mais criticado da nossa legislação geral privada é, sem dúvidas, o dedicado ao Direito das Sucessões. Além da intrincada concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes - claramente influenciada pelo Código Civil Italiano de 1942 e pelo Código Civil Português de 1966 -, muitos problemas surgem do tratamento sucessório diferenciado do cônjuge em relação ao companheiro. De início, vale lembrar que o cônjuge foi elevado à condição de herdeiro necessário pelo art. 1.845 do Código Civil de 2002, ao lado dos descendentes e dos ascendentes, o que não constava do art. 1.721 da codificação de 1916, seu correspondente. O mesmo não ocorreu com o companheiro ou convivente, apesar da tentativa doutrinária de alguns juristas de enquadrá-lo como tal, caso de Maria Berenice Dias e Paulo Luiz Netto Lôbo. Ademais, o cônjuge consta como sucessor legítimo no polêmico art. 1.829 do Código Civil em vigor, que tem a seguinte redação: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais". Esse artigo consagra quatro classes de sucessores, como se constata. Na primeira classe, estão os descendentes - até o infinito - e o cônjuge. Na segunda classe, os ascendentes - também até o infinito - e o cônjuge. Na terceira classe, está o cônjuge, isoladamente. Por fim, a quarta classe é composta pelos colaterais, até o quarto grau. Vale lembrar que os herdeiros que estão até a terceira classe são herdeiros necessários, tendo a seu favor a proteção da legítima, correspondente a cinquenta por cento do patrimônio do falecido. Nota-se, em complemento, que o cônjuge passa a concorrer com os descendentes, o que depende do regime de bens a ser adotado no casamento com o falecido; e com os ascendentes, o que independe do regime. Em suma, da terceira classe na ordem de vocação hereditária - como constava do art. 1.603, inciso III, do CC/1916 -, o cônjuge saltou para a primeira classe, ao lado dos descendentes, e para a segunda classe, ao lado dos ascendentes. Entretanto, isso ocorreu sem que o cônjuge deixasse também de fazer parte da terceira classe. A única concorrência inexistente a respeito do cônjuge concerne aos colaterais, até porque o cônjuge está na posição sucessória anterior. Por isso, pode-se dizer que, sem dúvidas, o cônjuge está em posição sucessória privilegiada na vigente codificação privada. Como corretamente afirma Luiz Paulo Vieira de Carvalho, o cônjuge é a estrela do direito sucessório brasileiro na atualidade1. Em relação ao companheiro, não consta expressamente da ordem de sucessão legítima, merecendo um tratamento em separado, como um sucessor anômalo, no art. 1.790 do Código Civil, outro dos preceitos que figura entre os mais polêmicos da codificação material e que tem a seguinte redação: "A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente a à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança". Em um duplo sentido, constata-se que o convivente é um herdeiro sem classe, pois não se situa na divisão dos sucessores legítimos do art. 1.829 do Código Civil. Diante desse tratamento diferenciado, dois dos maiores sucessionistas brasileiros têm sustentado a inconstitucionalidade desse art. 1.790 da codificação material. Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, "o art. 1.790 do CC/2002 restringiu a possibilidade de incidência do direito sucessório do companheiro à parcela patrimonial do monte partível que houvesse sido adquirido na constância da união estável, não se estendendo, portanto, àquela outra quota patrimonial relativa aos bens particulares do falecido, amealhados antes da evolução da vida em comum. A nova lei limitou e restringiu, assim, a incidência do direito a suceder do companheiro apenas àquela parcela de bens que houvessem sido adquiridos na constância da união estável a título oneroso. Que discriminação flagrante perpetuou o legislador, diante da idêntica hipótese, se a relação entre o falecido e o sobrevivente fosse uma relação de casamento, e não de união estável!"2. Igualmente, Zeno Veloso comenta que a restrição aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável "não tem nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo de convivência. Ficará essa mulher - se for pobre - literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse feito um testamento que a beneficiasse"3. Em outra obra de sua autoria, o jurista demonstra claramente seguir a tese da inconstitucionalidade do comando, aduzindo que: "ao longo desta exposição, e diversas vezes, mencionei que a sucessão dos companheiros foi regulada de maneira lastimável, incidindo na eiva da inconstitucionalidade, violando princípios fundamentais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da não discriminação"4. No âmbito dos Tribunais Estaduais, há uma grande variedade de entendimentos, sendo imperioso alertar para a necessidade de que a questão seja decidida pelo Órgão Especial ou pelo Tribunal Pleno de cada Corte. Trata-se de decorrência natural da cláusula de reserva de plenário, retirada do art. 97 da Constituição Federal de 1988, in verbis: "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público". O texto legal é completado pela súmula vinculante 10, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a vedação também atinge a declaração de inconstitucionalidade implícita: "viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte". Em outras palavras, há vedação constitucional para que Câmaras ou Turmas isoladas dos Tribunais brasileiros reconheçam a inconstitucionalidade de leis, ainda que de forma não expressa. Partindo para alguns exemplos concretos, vejamos cinco tribunais locais que julgaram a questão da maneira como determina a Constituição Federal, mas em sentido oposto. Inicialmente, a Corte Especial do Tribunal de Justiça do Paraná adotou a premissa da inconstitucionalidade do art. 1.790, mas apenas do seu inciso III, por colocar o convivente em posição de enorme desprestígio, em concorrência com os colaterais, o que é seguido por este autor (TJ/PR, Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade 536.589-9/01, da 18ª cara cível do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Suscitante: 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Relator: Des. Sérgio Arenhart, j. 04.12.2009). Fez o mesmo o Pleno do Tribunal de Justiça de Sergipe, ao julgar o Incidente de inconstitucionalidade 8/2010, em decisão de relatoria da Desa. Marilza Maynard Salgado de Carvalho, de 30 de março de 2011. O trecho final do acórdão demonstra que a conclusão atingiu todo o conteúdo do art. 1.790 da codificação privada: "Logo, merece ser reconhecida a inconstitucionalidade do disposto no art. 1.790 do CC, não só por afrontar o princípio da igualdade e o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, mas também, ainda que de forma reflexa, o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o que ocorreria por parte dos herdeiros colaterais, em detrimento da companheira sobrevivente que com o falecido conviveu durante muitos anos. Diante de tais considerações, em que pese jamais ter sido declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 em sede de controle de constitucionalidade concentrado, nada impede que, neste momento, seja declarado referido vício no bojo da presente ação, por meio de controle difuso de constitucionalidade. Ante os argumentos expendidos e com base no farto entendimento jurisprudencial, voto pela declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, posto que em desarmonia com o art. 226, § 3º, da Constituição Federal e com os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana". Na mesma esteira o Pleno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com a seguinte ementa de conclusão final: "Arguição de inconstitucionalidade. Art. 1.790, inciso III, do Código Civil. Sucessão do companheiro. Concorrência com parentes sucessíveis. Violação à isonomia estabelecida pela Constituição Federal entre cônjuges e companheiros (art. 226, § 3º). Enunciado da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Incabível o retrocesso dos direitos reconhecidos à união estável. Inconstitucionalidade reconhecida. Procedência do incidente" (TJ/RJ, Arguição de Inconstitucionalidade 00326554020118190000, Rel. Des. Bernardo Moreira Garcez Neto, Secretaria do Tribunal Pleno e Órgão Especial, j. 11.06.2012). Como se nota, tais Cortes Estaduais seguiram os argumentos de Giselda Hironaka e Zeno Veloso, aqui antes expostos. Por outra via, o Órgão Especial do Tribunal Gaúcho, por maioria e com grande divergência, acabou por concluir de forma contrária, ou seja, pela constitucionalidade do art. 1.790, diante da inexistência de igualdade plena entre a união estável e casamento. Conforme consta de sua ementa, "a Constituição da República não equiparou a união estável ao casamento. Atento à distinção constitucional, o Código Civil dispensou tratamento diverso ao casamento e à união estável. Segundo o Código Civil, o companheiro não é herdeiro necessário. Aliás, nem todo cônjuge sobrevivente é herdeiro. O direito sucessório do companheiro está disciplinado no art. 1.790 do CC, cujo inciso III não é inconstitucional. Trata-se de regra criada pelo legislador ordinário, no exercício do poder constitucional de disciplina das relações jurídicas patrimoniais decorrentes de união estável. Eventual antinomia com o art. 1.725 do Código Civil não leva a sua inconstitucionalidade, devendo ser solvida à luz dos critérios de interpretação do conjunto das normas que regulam a união estável" (TJ/RS, Incidente 70029390374, Porto Alegre, Órgão Especial, Rel. Originário Des. Leo Lima (vencido), Rel. para o Acórdão Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 09/11/2009). Ao final do ano de 2011, o Órgão Especial do Tribunal Paulista acabou por concluir, igualmente, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade no comando em destaque, como já havia feito o Tribunal Gaúcho, adotando as mesmas premissas (TJSP, Processo 0434423-72.2010.8.26.0000 (990.10.434423-9), Órgão Especial, Rel. Corrêa Viana, j. 14.09.2011). Mais uma vez houve intensa discussão técnica, com votos vencidos, prevalecendo a visão que coloca o cônjuge em posição de superioridade perante o companheiro. De acordo com o trecho final do voto do relator, Des. Cauduro Padin, "assim, a questão da igualdade de tratamento não é tão simples, o que significa dizer que eventual equiparação deve ser total, e não apenas em alguns aspectos da vida civil. Portanto, não se vislumbra a alardeada violação ao Texto Constitucional e aos seus princípios". Em sede de Tribunais Superiores, a questão ainda pende de julgamento. De início, decisão do ano de 2011, do Superior Tribunal de Justiça, suscitou a inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790, remetendo a questão para julgamento pelo Órgão Especial da Corte (STJ, AI no REsp 1.135.354/PB, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24.05.2011, DJe 02.06.2011). Entretanto, em outubro de 2012, o Órgão Especial da Corte Superior concluiu pela não apreciação dessa inconstitucionalidade suscitada pela Quarta Turma, eis que o recurso próprio para tanto deve ser o extraordinário, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (publicado no Informativo n. 505 do STJ). Em suma, a questão da inconstitucionalidade não foi resolvida nesse primeiro momento em sede de Superior Tribunal de Justiça, aguardando-se eventual julgamento pelo STF. Com a decisão, o recurso especial em questão voltou à Quarta Turma para ser julgado apenas nos aspectos infraconstitucionais. Todavia, sucessivamente no tempo, pode ser encontrado novo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que continua a remeter a questão para a sua Corte Especial, a demonstrar que aquele julgamento anterior não é definitivo na Corte (STJ, AI no REsp 1.291.636/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 11.06.2013, DJe 21/11/2013). Diante dessas remessas sucessivas, o tema voltou à pauta de julgamento da Corte Especial do Tribunal da Cidadania em 2014, havendo divergência entre os Ministros sobre quem deve julgar o tema, se o STJ ou o STF. O julgamento encontra-se suspenso, no presente momento. No plano do Supremo Tribunal Federal, além do julgamento de algumas reclamações pontuais - especialmente de desrespeito à cláusula de reserva de plenário -, em abril de 2015 foi levantada uma repercussão geral a respeito desse tratamento sucessório diferenciado pelo ministro Luís Roberto Barroso, no Recurso Extraordinário n. 878.694. Assim, em breve, a mais alta Corte Brasileira deve - tentar, pelo menos -, colocar um fim a respeito da discussão sobre o citado tratamento sucessório diferenciado. Toda essa variação de julgamentos demonstra como o tema é inseguro no país, no sentido de uma segurança jurídica material, e não formal. Não nos parece que as decisões superiores têm o condão de resolver totalmente o problema, pois ainda restarão debates a respeito da atribuição patrimonial de bens aos herdeiros em cada caso concreto. Nessa triste realidade jurídica, pensamos que o melhor caminho é a imediata alteração legislativa, revogando-se o art. 1.790 do Código Civil e colocando-se o companheiro ao lado do cônjuge, nos arts. 1.829 e 1.845 do Código Civil. No último Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM, realizado em Belo Horizonte, em outubro de 2015, conclamamos os vários sucessionistas presentes, em painel de debate sobre a matéria, para que comecem esse trabalho, seja por alteração do Código Civil, seja pela elaboração de um novo Estatuto das Sucessões5. Esperamos que essa jornada de reforma seja implementada nos próximos anos. __________ 1 VIEIRA DE CARVALHO, Luiz Paulo. Direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p. 315. 2 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder. Passado e presente da transmissão sucessória concorrente. São Paulo: RT, 2011, p. 420. 3 VELOSO, Zeno. Código Civil comentado. Coordenação de Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2.010. 4 VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 185. 5 Estavam presentes, no painel, entre outros: Giselda Hironaka, Zeno Veloso, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Ana Luiza Maia Nevares, Rolf Madaleno, Marcelo Truzzi Otero e João Ricardo Brandão Aguirre. O X Congresso de Direito de Família do IBDFAM também contou com a presença de outros destacados autores e professores de Direito das Sucessões, que também podem trazer luzes ao trabalho de reforma, caso de Gustavo Tepedino, Maria Berenice Dias, Maria Celina Bodin de Moraes, Silvio de Salvo Venosa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rodrigo Toscano de Brito, Jones Figueirêdo Alves, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.
O Brasil vive, no presente momento, um grande conflito ideológico e, como não poderia ser diferente, tal colisão atinge não só os aplicadores do Direito como também os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, especialmente em temas condizentes aos costumes e à família. Como exemplo desse embate, pode ser citada a tramitação de dois projetos de lei a respeito do conceito de família no Congresso Nacional. O primeiro deles, na Câmara dos Deputados, intitulado Estatuto da Família (PL 6.583/2013), no singular, pretende restringir o conceito de família aos casamentos e às uniões estáveis entre homens e mulheres e seus filhos. Nos termos do seu art. 1º, "esta lei institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar". Em complemento, enuncia a proposta de art. 2º da norma que "para os fins desta lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". A outra projeção é o Estatuto das Famílias (PL 470/2013), no plural, em curso no Senado Federal, originário de proposta formulada pelos juristas que compõem o IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família e que, em vários de seus dispositivos, traz um conceito extensivo de família. Cite-se, entre tantas regras, a proposta de conceito de união estável constante do seu art. 61, in verbis: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Como se nota, a proposta menciona a união de duas pessoas, não obrigatoriamente homem e mulher. Acompanhando os debates que ocorrem na Câmara dos Deputados, e diante do momento que vive o país, o projeto de lei 6.583/2013 tem grandes chances de ser aprovado. Se isso ocorrer, não persistindo eventual veto da presidência da República, dois são os caminhos interpretativos para a citada projeção. O primeiro deles é o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Ora, é sabido que o Supremo Tribunal Federal concluiu que a união homoafetiva é entidade familiar protegida pela Constituição Federal, devendo ser aplicadas, por analogia, todas as regras previstas para a união estável heteroafetiva (julgado na ADPF 132/RJ, publicado no Informativo 625 da Corte, de maio de 2011). Em complemento, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, logo após, que é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo, consequência natural da decisão do Supremo, pois se todas as normas são aplicáveis por analogia, o mesmo deve ser dito quanto à conversão da união estável ao casamento, retirada do art. 1.727 do Código Civil (REsp. 1.183.378/RS). Conforme o voto do ministro Luis Felipe Salomão nesse acórdão, proferido em outubro de 2011, "é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. A fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço histórico, mas deve ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da dignidade da pessoa humana. Por isso, não se pode examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo essencial fincado na procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade". Todas essas decisões fizeram o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editar, em 2013, a resolução 175, que veda às autoridades competentes, caso dos responsáveis pelos cartórios de registro civil de todo o país, a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Em suma, o casamento homoafetivo transformou-se em realidade prática do Direito brasileiro. No âmbito da doutrina do Direito de Família, para demonstrar qual a corrente majoritária hoje prevalecente, pontue-se que, na VII Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2015, aprovou-se enunciado segundo o qual é existente e válido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Cabe esclarecer que desse evento participaram juristas com as mais variadas visões sobre o Direito de Família e, mesmo assim, a proposta aprovada conseguiu ampla maioria, o que demonstra uma sedimentação doutrinária a respeito do tema no País. O citado Estatuto da Família, no singular, desconsidera toda essa evolução. Sim, evolução, pois a tendência dos países ocidentais é a inclusão dos direitos civis de casais homossexuais, sem que isso represente qualquer afronta ou ofensa aos direitos das pessoas que pretendem ter uniões heteroafetivas. Nessa perspectiva, o projeto já soa totalmente inconstitucional. Mas não é só. O art. 2º do projeto de lei 6.583/2013 é inconstitucional por desconsiderar o conceito de família monoparental previsto no art. 226, § 4º, do Texto Maior, constituída por um dos ascendentes e seus descendentes. Como antes se transcreveu, a projeção limita a família aos pais que vivem com seus filhos, deixando de fora as famílias monoparentais existentes entre avós e netos. Sem falar em outras entidades que também não foram contempladas, caso das famílias mosaico - de várias origens, oriundas de famílias reconstituídas - e das famílias anaparentais (na expressão criada por Sérgio Resende de Barros) - famílias sem pais, formadas por irmãos ou primos que vivem juntos, com intuito comunitário familiar. Sabe-se, conforme os escritos de vários constitucionalistas nacionais, que a Constituição Federal Brasileira de 1988 é inclusiva, e não exclusiva, afirmação que merece especial atenção quanto tópico que regulamenta as entidades familiares em rol meramente exemplificativo (art. 226). Assim, não pode uma lei infraconstitucional limitar o texto superior na concessão de direitos civis sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Vale dizer, em complemento, que a Lei Maria da Penha já traz um conceito ampliativo, em seu art. 5º, inciso II, ao estabelecer que a família deve ser compreendida "como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa". Essa é a ideia de família que deve prevalecer na realidade brasileira, na opinião deste articulista, não só para os fins de incidência dessa lei, mas também de outras normas. De toda sorte, há um segundo caminho para a interpretação do Estatuto da Família, qual seja o de adaptá-lo ao Texto Maior e a toda essa evolução. Por essa ideia, é possível firmar a premissa segundo a qual o projeto de lei apenas exemplifica algumas formas de família, sem excluir outras, caso de todas as entidades aqui citadas. Se for assim, nosso Congresso Nacional perde precioso tempo de trabalho legislativo, pois as famílias ali previstas já estão amplamente tuteladas, especialmente por serem maioria no Brasil. Pensamos que o trabalho a ser desenvolvido é de proteção de outras constituições famílias, como propõe o Estatuto das Famílias, no plural; e não o Estatuto da Família, no singular. A inclusão deve prevalecer sobre a exclusão, pois esse é o sentido da nossa Lei Maior. Como palavras finais, vale lembrar que a Constituição Brasileira veda a discriminação no seu art. 5º, além de valorizar a dignidade da pessoa humana no seu dispositivo inaugural. A projeção no singular deixa esses valores de lado.
Uma grande infelicidade, um total retrocesso. Com essas fortes palavras pode ser resumida a manutenção da separação judicial e extrajudicial no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Vários dispositivos da norma instrumental emergente continuam a tratar das categorias, o que não deveria ocorrer, em hipótese alguma. Não se olvide que, quando da elaboração do parecer final no Senado Federal, pelo relator senador Vital do Rêgo, foram apresentadas propostas de alteração por meio da emenda 61 - do senador Pedro Taques -, da emenda 129 - do senador João Durval - e das emendas 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142 e 143 - do senador Antonio Carlos Valadares -, visando a retirada do texto dos tratamentos relativos ao malfadado instituto da separação judicial do texto do novo Código. Todavia, as emendas foram afastadas pelo senador Vital do Rego, que assim argumentou: "As emendas em pauta insurgem-se contra a referência à separação (em todas as suas modalidades) como forma de dissolução da sociedade conjugal ao longo do texto do SCD. Argumenta que, com a Emenda à Constituição 66, de 2010, esse instituto teria sido abolido do ordenamento jurídico. Não vingam, porém, as emendas. É pacífico que, após a Emenda à Constituição 66, de 2010, não há mais qualquer requisito prévio ao divórcio. A separação, portanto, que era uma etapa obrigatória de precedência ao divórcio, desvestiu-se dessa condição. Todavia, não é remansoso o entendimento acerca da não subsistência da separação no âmbito da doutrina civilista. (...). Afinal de contas, a Constituição Federal apenas afastou a exigência prévia de separação para o divórcio, mas não repeliu expressamente a previsão infraconstitucional da separação e do restabelecimento da sociedade conjugal. Há quem sustente que a separação continua em vigor como uma faculdade aos cônjuges que, querendo 'dar um tempo', preferem formalizar essa separação, sem romper o vínculo matrimonial. Eventual reatamento dos laços afetivos desses cônjuges separados não haverá de passar por novo casamento, com todas as suas formalidades, mas se aperfeiçoará pelo restabelecimento da sociedade conjugal, ato bem menos formal, que pode ocorrer por via judicial ou extrajudicial. Sublinhe-se que nem mesmo os dispositivos do Código Civil que tratam de separação foram revogados. Ora, será uma intervenção indevida, uma invasão científica, utilizar uma norma processual para fazer prevalecer uma das várias correntes doutrinárias que incandescem na seara do Direito Civil. Dessa forma, enquanto o Código Civil não for revogado expressamente no tocante à previsão da separação e do restabelecimento da sociedade conjugal, deve o Código de Processo Civil - norma que instrumentaliza a concretização dos direitos materiais - contemplar expressamente as vias processuais desses institutos cíveis. No futuro, em outra ocasião, se assim se entender mais adequado, poder-se-á, por via legislativa própria, modificar dispositivos do Código Civil e do Código de Processo Civil para proscrever a separação como um instituto de Direito de Família". Na votação final dos destaques no Senado Federal, realizada no dia 17/12/2014, havia uma insurgência pontuada pela Senadora Lídice da Mata a respeito dessa manutenção. Porém, a ilustre senadora acabou por ser convencida pela conservação da separação judicial no texto, retirando, ao final, o seu destaque. Assim, o novo Código de Processo Civil nasce com um instituto morto em vários de seus dispositivos. Entre os vários diplomas que podem ser mencionados, em termos gerais de incidência das regras atinentes às ações de Direito de Família, o art. 693 do CPC/2015 enuncia que "As normas deste capítulo aplicam-se aos processos contenciosos de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação" (destacamos). Na sequência, vêm as regras específicas "Do Divórcio e da Separação Consensuais, da Extinção Consensual de União Estável e da Alteração do Regime de Bens do Matrimônio". Quanto ao divórcio e à separação judicial consensuais, como primeiro diploma especial, o art. 731 do novo CPC estabelece que as suas homologações, observados os requisitos legais, poderão ser requeridas em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: a) as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns; b) as disposições concernentes à pensão alimentícia entre os cônjuges; c) o acordo atinente à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e d) o valor da contribuição para criar e educar os filhos. Nos termos do seu parágrafo único, se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, conforme as normas relativas à partilha de bens, constantes dos arts. 647 a 658 do mesmo Estatuto Processual emergente. Eventualmente, o divórcio, a separação e a extinção de união estável, feitos consensualmente - não havendo nascituro, filhos incapazes e observados os requisitos legais -, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731. Assim, confirmando a evolução inaugurada pela Lei 11.441/2007 - que inseriu o art. 1.124-A no antigo CPC -, pelo art. 733 do novo Código de Processo Civil, continua viável juridicamente o divórcio extrajudicial, por escritura pública. Lamenta-se, mais uma vez, que a separação extrajudicial esteja expressa no comando. Como é notório, é forte a corrente doutrinária e jurisprudencial segundo a qual a Emenda Constitucional 66/2010, conhecida como Emenda do Divórcio, extingue o instituto da separação de direito, a englobar tanto a separação judicial quanto a extrajudicial. Isso porque o art. 226, § 6º, da Constituição Federal foi alterado, passando a enunciar, de forma direta e objetiva, que "o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio". No âmbito doutrinário, a tese que propugna o fim da categoria é defendida, entre outros, por Luiz Edson Fachin, Giselda Hironaka, Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Zeno Veloso, Álvaro Villaça Azevedo, Rolf Madaleno, José Fernando Simão, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Entendemos que essa é verdadeiramente a posição majoritária sobre a temática no Brasil. Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de voto prolatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão pode ser extraído trecho com a seguinte manifestação acidental: "Assim, para a existência jurídica da união estável, extrai-se o requisito da exclusividade de relacionamento sólido da exegese do § 1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, dispositivo esse que deve ser relido em conformidade com a recente EC 66, de 2010, a qual, em boa hora, aboliu a figura da separação judicial" (STJ, REsp. 912.926/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 22.02.2011, DJe 07.06.2011). Em julgado mais recente, segue a mesma linha a Ministra Isabel Galotti, em decisão monocrática: "Após a EC 66/2010, não mais existe no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação judicial. Não foi delegado ao legislador infraconstitucional poderes para estabelecer qualquer condição que restrinja direito à ruptura do vínculo conjugal" (STJ, Documento 40398425, Despacho/Decisão, DJE 22.10.2014). Seguindo essa visão, deve-se entender que estão revogados tacitamente os dispositivos infraconstitucionais que tratam dos institutos da separação judicial e extrajudicial, caso dos arts. 1.571, 1.572, 1.573, 1.574, 1.575, 1.576, 1.578 e 1.580 do Código Civil; além dos arts. 1.120 a 1.124-A do Código de Processo Civil de 1973. Tais comandos estão revogados de forma tácita por uma incompatibilidade constitucional superveniente, como sustentam os doutrinadores anteriormente citados. A mesma dedução vale para todas as regras do Novo Código de Processo Civil que mencionam a separação de direito. Dando sustentáculo final à premissa aqui defendida, devem ser citadas as precisas e corretas palavras de Lênio Luiz Streck, um dos maiores juristas brasileiros da atualidade, que, antes mesmo da aprovação do texto final do Novo CPC no Senado Federal, já sustentava a inconstitucionalidade do que chamou de repristinação da separação judicial1. Introduzindo o tema, aduz o doutrinador, sobre a Emenda Constitucional n. 66/2010, que "não pode haver dúvida que, com a alteração do texto constitucional, desapareceu a separação judicial no sistema normativo brasileiro - e antes que me acusem de descuidado, não ignoro doutrina e jurisprudência que seguem rota oposta ao que defendo no texto, mas com elas discordo veementemente. Assim, perde o sentido distinguir-se término e dissolução de casamento. Isso é simples. Agora, sociedade conjugal e vínculo conjugal são dissolvidos mutuamente com o divórcio, afastada a necessidade de prévia separação judicial ou de fato do casal. Nada mais adequado a um Estado laico (e secularizado), que imputa inviolável a liberdade de consciência e de crença (CF/1988, art. 5º, VI). Há, aliás, muitos civilistas renomados que defendem essa posição, entre eles Paulo Lôbo, Luís Edson Fachin e Rodrigo da Cunha. Pois bem. Toda essa introdução me servirá de base para reforçar meu posicionamento e elaborar crítica para um problema que verifiquei recentemente. E já adianto a questão central: fazendo uma leitura do Projeto do novo CPC, deparei-me com uma espécie de repristinação da separação judicial. Um dispositivo tipo-Lázaro. Um curioso retorno ao mundo dos vivos"2. E arremata, em palavras finais: "O legislador do novo CPC tem responsabilidade política (no sentido de que falo em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica). Para tanto, deve contribuir e aceitar, também nesse particular, a evolução dos tempos eliminando do texto todas as expressões que dão a entender a permanência entre nós desse instituto cuja serventia já se foi e não mais voltará. Não fosse por nada - e peço desculpas pela ironia da palavra 'nada' -, devemos deixar a separação de fora do novo CPC em nome da Constituição. E isso por dois motivos: a um, por ela mesma, porque sacramenta a secularização do direito, impedindo o Estado de 'moralizar' as relações conjugais; a dois, pelo fato de o legislador constituinte derivado já ter resolvido esse assunto. Para o tema voltar ao 'mundo jurídico', só por alteração da Constituição. E, ainda assim, seria de duvidosa constitucionalidade. Mas aí eu argumentaria de outro modo. Portanto, sem chance de o novo CPC repristinar a separação judicial (nem por escritura pública, como consta no Projeto do CPC). É inconstitucional. Sob pena de, como disse Marshall em 1803, a Constituição não ser mais rígida, transformando-se em flexível. E isso seria o fim do constitucionalismo. Esta é, pois, a resposta adequada à Constituição. Espero que o legislador que aprovará o novo CPC se dê conta disso e evite um périplo de decisões judiciais no âmbito do controle difuso ou nos poupe de uma ação direta de inconstitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal já tem trabalho suficiente'3. Infelizmente, o legislador não se atentou a isso. O trabalho não será só do Supremo Tribunal Federal, mas de toda a doutrina e jurisprudência nacionais. Já começamos a desempenhá-lo, condenando essa triste opção constante do Novo Código de Processo Civil Brasileiro, que será por nós duramente combatida nos próximos anos. ___________ 1 STRECK, Lênio Luiz. Por que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil. Vale lembrar que a repristinação é a restauração de vigência de uma norma revogada, pela revogação, por uma terceira norma, de sua norma revogadora. 2 STRECK, Lênio Luiz. Por que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil.3 STRECK, Lênio Luiz. Por que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil.
Ainda não em vigor, o Estatuto da Pessoa com Deficiência - lei 13.146/2015 - tem gerado grandes debates entre os civilistas, especialmente pelo fato de ter almejado a plena inclusão civil de pessoas que eram tidas como absoluta e relativamente incapazes no sistema anterior. Percebemos, pela leitura de textos publicados na internet, que duas correntes se formaram a respeito da norma. A primeira - à qual estão filiados José Fernando Simão e Vitor Kümpel - condena as modificações, pois a dignidade de tais pessoas deveria ser resguardada por meio de sua proteção como vulneráveis (dignidade-vulnerabilidade). A segunda vertente - liderada por Joyceane Bezerra, Paulo Lôbo, Nelson Rosenvald, Jones Figueirêdo Alves, Rodrigo da Cunha Pereira e Pablo Stolze - aplaude a inovação, pela tutela da dignidade-liberdade das pessoas com deficiência, evidenciada pelos objetivos de sua inclusão. Entre uma ou outra visão, a priori, estamos alinhados aos segundos juristas citados. A propósito, cabe lembrar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência regulamenta a Convenção de Nova York, tratado de direitos humanos do qual o Brasil é signatário, e que  gera efeitos como emenda constitucional (art. 5º, § 3º, da CF/1988 e Decreto 6.949/2009).  Nos termos do seu art. 1º, o propósito da Convenção "é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente".  Todavia, ressalte-se que somente o tempo e a prática - a partir de janeiro de 2016 e não de dezembro de 2015, como constou de nosso texto anterior publicado neste canal - poderão demonstrar se o melhor caminho é mesmo a dignidade-liberdade, ao invés da anterior dignidade-vulnerabilidade.  Não se pode negar que talvez seja tarde demais para se perceber o eventual engano... Pois bem, em matéria de interdição, consideráveis foram as mudanças engendradas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, estando presentes vários atropelamentos legislativos pelo Novo CPC, em vigor a partir de março de 2016. A primeira alteração diz respeito, a saber, se ainda será cabível o processo de interdição ou se viável juridicamente apenas uma demanda com nomeação de um curador. Por certo é que a Lei 13.046/2015 altera o art. 1.768 do Código Civil, deixando de mencionar que "a interdição será promovida"; e passando a enunciar que "o processo que define os termos da curatela deve ser promovido". O grande problema é que esse dispositivo material é revogado expressamente pelo art. 1.072, inciso II, do CPC/2015. Sendo assim, pelo menos aparentemente, ficará em vigor por pouco tempo, entre janeiro e março de 2016, quando o Estatuto Processual passar a ter vigência. Pensamos que será necessária uma nova norma, que faça com que o novo dispositivo volte a vigorar, afastando-se esse primeiro atropelamento legislativo. De qualquer modo, só a edição de uma terceira norma apontando qual das duas deve prevalecer não basta, pois o Novo CPC é inteiramente estruturado no processo de interdição, como se nota do tratamento constante entre os seus arts. 747 a 758. Sendo assim, parece-nos que será imperiosa uma reforma considerável do CPC/2015, deixando-se de lado a antiga possibilidade da interdição. A propósito da superação desse tradicional modelo, pontua Paulo Lôbo que "não há que se falar mais de 'interdição', que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos"1. Constata-se que entre os motivos de revogação de dispositivos do Código Civil que tratam da curatela pelo Novo CPC está o fim de concentrar os legitimados para a ação de interdição no Estatuto Processual. Ademais, a expressão deve, constante do então art. 1.768 do CC/2002, era criticada por ser peremptória, tendo sido substituída pelo termo pode, pelo Novo CPC. Conforme o art. 747 do CPC/2015, que supostamente unificou o tratamento do tema, "a interdição pode ser promovida:  I - pelo cônjuge ou companheiro;  II - pelos parentes ou tutores; III - pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando; IV - pelo Ministério Público. Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial". Repise-se que essa é a norma que irá prevalecer a partir de março de 2016, perdendo vigência, aparentemente, o preceito incluído pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência, que estabelece também a legitimidade ao próprio sujeito (autointerdição). O mesmo deve ser dito em relação ao art. 1.769 do Código Civil, que passou a prever, com a norma de julho de 2015, que o Ministério Público somente promoverá o processo que define os termos da curatela: a) nos casos de deficiência mental ou intelectual; b) se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo 1.768; e c) se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente. Mais uma vez, o Novo Código de Processo Civil revoga esse preceito (art. 1.072, inciso II). Aperfeiçoando a redação do art. 1.178 do CPC/1973, o art. 748 do Novo Codex passa a estabelecer que o Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave: a) se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição; e b) se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do art. 747. O que se percebe é que a legitimidade do MP é somente subsidiária e extraordinária, funcionando como substituto processual, seja por uma ou por outra norma. De toda sorte, o texto alterado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência é mais amplo, ao mencionar a sua legitimidade em caso de deficiência mental ou intelectual, o que não consta do Novo CPC. O art. 1.771 do Código Civil também foi alterado pela lei 13.146/2015. O diploma previa anteriormente que "antes de pronunciar-se acerca da interdição, o juiz, assistido por especialistas, examinará pessoalmente o arguido de incapacidade". Agora, passou a expressar que "antes de se pronunciar acerca dos termos da curatela, o juiz, que deverá ser assistido por equipe multidisciplinar, entrevistará pessoalmente o interditando". Em suma, substitui-se a menção aos especialistas por equipe multidisciplinar, o que é mais consentâneo com as atividades de orientação multicultural. Eis outro dispositivo que também perderá vigência, por ter sido revogado expressamente pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 1.072, inciso II). Nos termos do art. 751 da norma instrumental de 2015, que igualmente concentrou o tratamento da situação e que prevalecerá ao final, o interditando será citado para, em dia designado, comparecer perante o juiz, que o entrevistará minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens, vontades, preferências e laços familiares e afetivos e sobre o que mais lhe parecer necessário para convencimento quanto à sua capacidade para praticar atos da vida civil, devendo ser reduzidas a termo as perguntas e respostas. Não podendo o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver (§ 1º). A entrevista poderá ser acompanhada por especialista (§ 2º). Durante a entrevista, é assegurado o emprego de recursos tecnológicos capazes de permitir ou de auxiliar o interditando a expressar suas vontades e preferências e a responder às perguntas formuladas (§ 3º). A critério do juiz, poderá ser requisitada a oitiva de parentes e de pessoas próximas (§ 4º do art. 751 do CPC/2015). Aqui, o Estatuto Processual é mais minucioso quanto aos procedimentos, apesar de não mencionar a equipe multidisciplinar, mas a atuação de especialista. Mesmo destino, de revogação, terá o novo art. 1.772 do Código Civil, in verbis: "O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador. Parágrafo único. Para a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências do interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa". A principal novidade constante pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência diz respeito à inclusão do parágrafo único, que vem em boa hora, dando preferência à vontade da pessoa. Espera-se, mais uma vez, que uma nova norma surja, para que tal comando não perca eficácia, pois o texto do parágrafo único do diploma é salutar. Com é notório, sempre se considerou que nos casos de interdição de deficientes mentais, ébrios habituais, toxicômanos e pródigos, por ser a interdição relativa, deveria o juiz determinar os limites da curatela, ou seja, da curatela parcial. Essa era a regra retirada do art. 1.772 do CC/2002, em sua redação original; também revogada pelo art. 1.072, inciso II, do CPC/2015. Todavia, novamente, o objetivo da revogação foi apenas de concentrar o tema no diploma instrumental, sendo esse o mesmo sentido pelo mesmo, aparentemente, do art. 753, § 2º, do CPC/2015 ("O laudo pericial indicará especificadamente, se for o caso, os atos para os quais haverá necessidade de curatela"). Todas essas considerações e comparações revelam uma grande confusão legislativa, um verdadeiro caos pelo atropelamento de leis sucessivas e sem o devido cuidado dos seus elaboradores. Existem muitos outros problemas a ser sanados, cabendo expor neste breve trabalho apenas alguns deles. Como se nota, o trabalho dos civilistas e processualistas - sem falar  dos operadores e julgadores que lidam com os casos práticos no seu cotidiano jurídico  - será grande e intenso nos próximos anos, com o fim de sanar todas essas controvérsias e curar os feridos pelos atropelamentos da lei. Tudo está muito confuso, deixando-nos perdidos.  __________  1 LÔBO, Paulo. Com os avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes.
Foi sancionada, no dia 6 de julho de 2015, a lei 13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A norma foi publicada no dia 7 de julho e entra em vigor 180 dias após sua publicação, ao final do mês de dezembro de 2015. Entre vários comandos que representam notável avanço para a proteção da dignidade da pessoa com deficiência, a nova legislação altera e revoga alguns artigos do Código Civil (arts. 114 a 116), trazendo grandes mudanças estruturais e funcionais na antiga teoria das incapacidades, o que repercute diretamente para institutos do Direito de Família, como o casamento, a interdição e a curatela. Interessante observar que a norma também alterou alguns artigos do Código Civil que foram revogados expressamente pelo Novo CPC (art. 1.072). Nessa realidade, salvo uma nova iniciativa legislativa, as alterações terão aplicação por curto intervalo de tempo, nos anos de 2015 e 2016, entre o período da sua entrada em vigor e o início de vigência do Código de Processo Civil (a partir de março do próximo ano). Isso parece não ter sido observado pelas autoridades competentes, quando da sua elaboração e promulgação, havendo um verdadeiro atropelamento legislativo. Partindo para a análise do texto legal, foram revogados todos os incisos do art. 3º do Código Civil, que tinha a seguinte redação: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade". Também foi alterado o caput do comando, passando a estabelecer que "são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos". Em suma, não existe mais, no sistema privado brasileiro, pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade. Como consequência, não há que se falar mais em ação de interdição absoluta no nosso sistema civil, pois os menores não são interditados. Todas as pessoas com deficiência, das quais tratava o comando anterior, passam a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena inclusão social, em prol de sua dignidade. Merece destaque, para demonstrar tal afirmação, o art. 6º da lei 13.146/2015, segundo o qual a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: a) casar-se e constituir união estável; b) exercer direitos sexuais e reprodutivos; c) exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; d) conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; e) exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e f) exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Em suma, no plano familiar há uma expressa inclusão plena das pessoas com deficiência. Eventualmente, e em casos excepcionais, tais pessoas podem ser tidas como relativamente incapazes em algum enquadramento do novo art. 4º do Código Civil. Cite-se, a título de exemplo, a situação de um deficiente que seja viciado em tóxicos, podendo ser tido como incapaz como qualquer outro sujeito. Esse último dispositivo também foi modificado de forma considerável pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. O seu inciso II não faz mais referência às pessoas com discernimento reduzido, que não são mais consideradas relativamente incapazes, como antes estava regulamentado. Apenas foram mantidas no diploma as menções aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos viciados em tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa, com sentença judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida. Também foi alterado o inciso III do art. 4º do CC/2002, sem mencionar mais os excepcionais sem desenvolvimento completo. O inciso anterior tinha incidência para o portador de síndrome de Down, não considerado mais um incapaz. A nova redação dessa norma passa a enunciar as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir vontade, o que antes estava previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de incapacidade absoluta. Agora a hipótese é de incapacidade relativa. Verificadas as alterações, parece-nos que o sistema de incapacidades deixou de ter um modelo rígido, passando a ser mais maleável, pensado a partir das circunstâncias do caso concreto e em prol da inclusão das pessoas com deficiência, tutelando a sua dignidade e a sua interação social. Isso já tinha ocorrido na comparação das redações do Código Civil de 2002 e do seu antecessor. Como é notório, a codificação material de 1916 mencionava os surdos-mudos que não pudessem se expressar como absolutamente incapazes (art. 5º, III, do CC/1916). A norma então em vigor, antes das recentes alterações ora comentadas, tratava das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não pudessem exprimir sua vontade, agora tidas como relativamente incapazes, reafirme-se. Todavia, pode ser feita uma crítica inicial em relação à mudança do sistema. Ela foi pensada para a inclusão das pessoas com deficiência, o que é um justo motivo, sem dúvidas. Porém, acabou por desconsiderar muitas outras situações concretas, como a dos psicopatas, que não serão mais enquadrados como absolutamente incapazes no sistema civil. Será necessário um grande esforço doutrinário e jurisprudencial para conseguir situá-los no inciso III do art. 4º do Código Civil, tratando-os como relativamente incapazes. Não sendo isso possível, os psicopatas serão considerados plenamente capazes para o Direito Civil. Em matéria de casamento também podem ser notadas alterações importantes engendradas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. De início, o art. 1.518 do Código Civil teve sua redação modificada, passando a prever que, até a celebração do casamento, podem os pais ou tutores revogar a autorização para o matrimônio. Não há mais menção aos curadores, pois não se decreta mais a nulidade do casamento das pessoas que estavam mencionadas no antigo art. 1.548, inciso I, ora revogado. Enunciava o último diploma que seria nulo o casamento do enfermo mental, sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, o que equivalia ao antigo art. 3º, inciso II, do Código Civil, que também foi revogado, como visto. Desse modo, perdeu sustentáculo legal a possibilidade de se decretar a nulidade do casamento em situação tal. Em resumo, o casamento do enfermo mental, sem discernimento, passa a ser válido. Filia-se totalmente à alteração, pois o sistema anterior presumia que o casamento seria ruim para o então incapaz, vedando-o com a mais dura das invalidades. Em verdade, muito ao contrário, o casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma deficiência, visando a sua plena inclusão social. Seguindo no estudo das modificações do sistema de incapacidades, o art. 1.550 do Código Civil, que trata da nulidade relativa do casamento, ganhou um novo parágrafo, preceituando que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbil poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador (§ 2º). Trata-se de um complemento ao inciso IV da norma, que prevê a anulação do casamento do incapaz de consentir e de manifestar de forma inequívoca a sua vontade. Advirta-se, contudo, que este último diploma somente gerará a anulação do casamento dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não puderem exprimir sua vontade, na linha das novas redações dos incisos II e III do art. 4º da codificação material. Como decorrência natural da possibilidade de a pessoa com deficiência mental ou intelectual se casar, foram alterados dois incisos do art. 1.557, dispositivo que consagra as hipóteses de anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa. O seu inciso III passou a ter uma ressalva, eis que é anulável o casamento por erro no caso de ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência (destacamos a inovação). Em continuidade, foi revogado o antigo inciso IV do art. 1.557 do CC/2002 que possibilitava a anulação do casamento em caso de desconhecimento de doença mental grave, o que era tido como ato distante da solidariedade ("a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado"). Essas foram as modificações percebidas na teoria das incapacidades, que foi revolucionada, e em sede de casamento. No nosso próximo artigo, a ser publicado neste canal, demonstraremos as alterações geradas pela lei 13.146/2015 quanto à interdição e à curatela e os atropelamentos legislativos frente ao Novo CPC.
A viabilidade jurídica da ação de prestação de contas de alimentos é tema que sempre foi muito debatido nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial. Como bem demonstra Rolf Madaleno, "tratando-se de alimentos, reiteradamente a jurisprudência tem decidido não ser exigível a prestação de contas do guardião de filho credor de pensão alimentícia, em razão da irrepetibilidade dos alimentos, não havendo como o alimentante pretender a eventual restituição de alimentos desviados ou mal empregados".1De fato, podem ser encontrados vários julgados entendendo por sua impossibilidade, por ilegitimidade ativa do alimentante e pela falta de interesse processual, entre outros argumentos (ver: TJ/SP, Apelação 0003673-49.2010.8.26.0099, Acórdão 8.044.325, Bragança Paulista, 9ª câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alexandre Bucci, julgado em 25/11/14, DJESP 20/01/15; TJ/DF, Recurso 2013.01.1.033648-0, Acórdão 766.021, 4ª turma Cível, Rel. Des. Arnoldo Camanho de Assis, DJDFTE 12/03/14, p. 280; TJ/MG, Apelação cível 1.0518.13.016606-0/001, Rel. Des. Washington Ferreira, julgado em 19/08/14, DJEMG 22/08/14; TJ/MG, Apelação cível 1.0643.11.000295-0/001, Relª Desª Áurea Brasil, julgado em 10/07/14, DJEMG 22/07/14; TJ/PR, Apelação cível 1204895-0, Palmas, 12ª câmara Cível, Rel. Juiz Convocado Luciano Carrasco Falavinha Souza, DJPR 12/09/14, pág. 330). Na mesma linha, conforme se retira de decisium do STJ, "segundo a jurisprudência desta Corte, o alimentante não detém interesse de agir quanto a pedido de prestação de contas formulado em face da mãe do alimentando, filho de ambos, sendo irrelevante, a esse fim, que a ação tenha sido proposta com base no art. 1.589 do Código Civil, uma vez que esse dispositivo autoriza a possibilidade de o genitor que não detém a guarda do filho fiscalizar a sua manutenção e educação, sem, contudo, permitir a sua ingerência na forma como os alimentos prestados são administrados pela genitora" (STJ, AgRg. no REsp. 1.378.928/PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª turma, julgado em 13/08/2013, DJe 06/09/13). Além dessa argumentação, a ação de prestação de contas das verbas em estudo vinha sendo rejeitada com base na premissa da irrepetibilidade dos alimentos.Esse era o entendimento majoritário, que foi substancialmente alterado pela lei 13.058, de dezembro de 2014; dispositivo que trouxe modificações substanciais em matéria de guarda. Uma dessas alterações diz respeito à introdução do § 5º no art. 1.583 do CC, com a seguinte dicção: "a guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos". A menção à supervisão e à prestação de contas, sem dúvidas, pode estar relacionada aos alimentos.Esclareça-se, por oportuno, que a fixação da guarda compartilhada (ou alternada) não gera, por si só, a extinção da obrigação alimentar em relação aos filhos, devendo a fixação dos alimentos sempre ser analisada de acordo com o binômio ou trinômio alimentar. Em complemento, quanto à prestação das contas alimentares, passa ela a ser plenamente possível, afastando-se os argumentos processuais anteriores em contrário, especialmente a ilegitimidade ativa e a ausência de interesse processual. Igualmente, não deve mais prosperar a premissa da irrepetibilidade como corolário da inviabilidade dessa prestação de contas.De toda sorte, acreditamos que a exigência da prestação deve ser analisada mais objetiva do que subjetivamente, deixando-se de lado pequenas diferenças de valores e excessos de detalhes na exigência da prestação, o que poderia torná-la inviável ou até aumentar o conflito entre as partes. Essa também é a percepção de João Ricardo Brandão Aguirre, em palestra recentemente ministrada em evento do IBDFAM.2Interessante observar que o texto legal faz referência tanto à prestação de contas objetiva quanto à subjetiva, devendo a primeira prevalecer. Para esta proposta que se faz, entram em cena o princípio da boa-fé objetiva processual e o dever de cooperação imposto às partes da demanda, regramentos que passam a ter um tratamento mais aprofundado no novo CPC, em especial pelos seus arts. 5º e 6º.3 Consigne-se que a boa-fé objetiva já é o norte interpretativo para a conversão da mora em inadimplemento absoluto, a preencher o critério da utilidade da obrigação ao credor, nos termos do art. 395, parágrafo único, do CC.4 Conforme o Enunciado 162, aprovado na III Jornada de Direito Civil (2004), "a inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor". Pensamos que esses parâmetros também devem valer para a ação de prestação de contas.A esse propósito, para a prestação de contas dos alimentos, igualmente servem como guia as precisas palavras de Rolf Madaleno, para quem "sabido quão fértil se presta o Direito de Família para a prática do abuso do direito, vedado pela legislação civil (CC, art. 187), inclusive no instituto dos alimentos, quando os filhos são prejudicados pelos desvios ou pela má gestão do seu crédito alimentar, e se existe a intenção de prejudicar, pelo exercício abusivo do genitor administrador da pensão dos filhos, atenta este ascendente contra os interesses superiores das crianças e dos adolescentes, ao encontrar no desvio dos recursos da prole um meio propício às suas vantagens pessoais, e a prestação de contas exigida pelo alimentante não destituído do poder familiar é a grande reserva a favor dos interesses superiores do alimentante. Mas também pode existir abuso por parte do devedor de alimentos ao encontrar na prestação de contas uma maneira de incomodar o ex-cônjuge com reiteradas admoestações processuais, por suspeitas inconsistentes de malversação dos alimentos, devendo ser bem dosada a rendição das contas, cuja solução também pode passar por uma demanda alternativa de inspeção judicial, realizada por assistentes sociais em visita à residência do alimentando, e sua escola, escutando outros familiares, amigos e vizinhos, até onde for possível e discreto, para apurar e avaliar a realidade e dimensão da pretensão processual de rendição de contas, correndo os custos desta diligência pela parte devedora".5Como nota derradeira, é preciso fazer uma última atualização do tema frente ao Novo CPC. Isso porque os arts. 914 a 919 do CPC/73 tratavam do rito especial da ação de prestação de contas, tanto em relação àquele que teria o direito de exigi-las quanto para o obrigado a prestá-las. No Estatuto Processual emergente, o rito especial foi mantido somente no que concerne a quem tem o direito de exigi-las, nos termos dos seus arts. 550 a 553 (ação de exigir contas). Parece-nos que, para aqueles que são obrigados à sua prestação, a ação deve seguir o procedimento comum, e não mais o especial.____________________1 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense. 2010, p. 897.2 Conforme exposição realizada no Seminário "Os Novos Paradigmas do Direito de Família", promovido em João Pessoa, pelo Ministério Público do Estado da Paraíba e pelo IBDFAM, entre os dias 28 e 30 de maio de 2015, na sede da Procuradoria-Geral local.3 Novo CPC. "Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé". "Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva".4 CC/2002. "Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos".5 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2010, p. 899-900.
Como antes exposto neste canal, o novo CPC traz a opção de equalizar a união estável ao casamento em vários de seus dispositivos, o que fará com que o tema seja analisado de maneira diversa no âmbito do direito material. Também conforme o texto que antecede ao presente, começamos a analisar o art. 73 do Novo Estatuto Processual - equivalente ao art. 10 do CPC/73 -, especialmente a menção à separação absoluta, prevista no seu caput, que não encerrou polêmica anterior sobre o assunto, infelizmente. Para este novo artigo, frise-se que o impacto principal a ser estudado diz respeito à aplicação da regra do art. 73 do Novo CPC para os casos de união estável, como é expresso no seu § 3º, desde que a relação de convivência seja comprovada nos autos. No âmbito do Direito Civil, sempre existiu grande polêmica, doutrinária e jurisprudencial, quanto à incidência, ou não, do art. 1.647 do CC para as hipóteses de união estável, exigindo-se uma outorga convivencial para os atos ali referidos. De qualquer maneira, a outorga do companheiro passa a ser exigida nos casos do inciso II do art. 1.647, em diálogo com o Novo CPC. Como é notório, esse comando material - no mesmo sentido do art. 73 da Norma Instrumental - exige a outorga do cônjuge para pleitear, como autor ou réu, acerca de bens ou direitos relativos a imóveis. A dúvida que se coloca é a seguinte: nas situações dos demais incisos do art. 1.647, que dizem respeito a atos puramente materiais, como a venda ou outras alienações de imóvel, como ficam a fiança e a doação de bens comuns? Haverá necessidade de outorga convivencial em tais hipóteses?  Entre os civilistas, para uma primeira corrente, o art. 1.647 do CC aplica-se à união estável, pelo fato de que o regime de bens, que é regra tanto do casamento quanto da união estável, é o da comunhão parcial de bens (arts. 1.640 e 1.725 do CC/02). Nesse sentido, Regina Beatriz Tavares da Silva afirma que "devem ser consideradas as regras constituídas por disposições especiais (arts. 1.658 a 1.666) e as disposições gerais (arts. 1.639 a 1.657), em que se destaca a proibição de alienação de bem imóvel sem o consentimento do consorte, a não ser que seja escolhido o regime da separação absoluta (art. 1.647), sob pena de anulação do ato".  Esse entendimento é compartilhado por Paulo Lôbo, na sua obra Famílias, com primeira edição de 2008 (Saraiva). O STJ assim já decidiu anteriormente, conforme se depreende da seguinte ementa: "Processo civil. Execução fiscal. Penhora de bem imóvel em condomínio. Exigência de consentimento dos demais. 1. A lei civil exige, para alienação ou constituição de gravame de direito real sobre bem comum, o consentimento dos demais condôminos. 2. A necessidade é de tal modo imperiosa, que tal consentimento é, hoje, exigido da companheira ou convivente de união estável (art. 226, § 3º, da CF), nos termos da Lei 9.278/1996. 3. Recurso especial improvido" (STJ, REsp 755.830/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 07.11.2006, DJ 01.12.2006, p. 291). Entretanto, pontue-se que sempre seguimos uma segunda corrente, que responde negativamente, ou seja, a outorga só pode ser exigida dos cônjuges, e não dos companheiros, pelo fato de ser o art. 1.647 do CC uma norma restritiva de direitos que não comporta interpretação extensiva ou analogia. Por essa linha, a outorga somente é imposta por expressa previsão legal, o que não se verifica no tocante à união estável, a não ser agora, pela regra do art. 73 do CPC/15, para o que consta do inciso II do art. 1.647 do CC/02. Reafirme-se que essa é a melhor posição a ser adotada, mesmo existindo contrato de convivência entre as partes, inclusive celebrado por escritura pública. Concluindo desse modo a jurisprudência estadual: "Apelação cível. Ação declaratória de nulidade de ato jurídico. União estável não declarada. Venda de bem imóvel a terceiro de boa-fé. Inexistência de hipóteses de invalidade do negócio jurídico. Inexistência de nulidade. 1 - Ainda que seja possível vislumbrar pelas provas carreadas a existência de união estável entre apelante e primeiro apelado, a venda de bem imóvel a terceiro de boa-fé não é nula, tendo em vista que a Lei não exige a outorga uxória da companheira. 2 - Não provadas nenhuma das hipóteses de invalidade do negócio jurídico, previstas nos arts. 166 e ss. do CC 2002, não há nulidades a serem declaradas" (TJMG, Apelação Cível 1.0284.07.006501-6/0011, Guarani, Nona Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Bernardes, j. 17.02.2009, DJEMG 16.03.2009). "Ação declaratória de nulidade. Escritura pública de compra e venda. Imóvel. Sentença de improcedência. Negócio jurídico celebrado pelo companheiro sem a anuência da companheira. Possibilidade. Outorga uxória. Desnecessidade. Exigência legal que não se aplica à hipótese de união estável. (...)" (TJSP, Apelação com Revisão 396.100.4/6, Acórdão 2567068, Itararé, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ariovaldo Santini Teodoro, j. 15.04.2008, DJESP 16.05.2008). Esse posicionamento segue a linha de necessidade de diferenciação da união estável em relação ao casamento. Adotando a mesma premissa, e a não subsunção do art. 1.647 do CC à união estável, vejamos recente aresto do STJ, referente a contrato de fiança, assim publicado no seu Informativo n. 535, do ano de 2014: "Direito Civil. Inaplicabilidade da Súmula 332 do STJ à união estável. Ainda que a união estável esteja formalizada por meio de escritura pública, é válida a fiança prestada por um dos conviventes sem a autorização do outro. Isso porque o entendimento de que a 'fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia' (Súmula 332 do STJ), conquanto seja aplicável ao casamento, não tem aplicabilidade em relação à união estável. De fato, o casamento representa, por um lado, uma entidade familiar protegida pela CF e, por outro lado, um ato jurídico formal e solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico. A união estável, por sua vez, embora também represente uma entidade familiar amparada pela CF - uma vez que não há, sob o atual regime constitucional, famílias estigmatizadas como de 'segunda classe' -, difere-se do casamento no tocante à concepção deste como um ato jurídico formal e solene. Aliás, nunca se afirmou a completa e inexorável coincidência entre os institutos da união estável e do casamento, mas apenas a inexistência de predileção constitucional ou de superioridade familiar do casamento em relação a outra espécie de entidade familiar. Sendo assim, apenas o casamento (e não a união estável) representa ato jurídico cartorário e solene que gera presunção de publicidade do estado civil dos contratantes, atributo que parece ser a forma de assegurar a terceiros interessados ciência quanto a regime de bens, estatuto pessoal, patrimônio sucessório etc. Nesse contexto, como a outorga uxória para a prestação de fiança demanda absoluta certeza por parte dos interessados quanto à disciplina dos bens vigente, e como essa segurança só é obtida por meio de ato solene e público (como no caso do casamento), deve-se concluir que o entendimento presente na Súmula 332 do STJ - segundo a qual, a 'fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia' -, conquanto seja aplicável ao casamento, não tem aplicabilidade em relação à união estável. Além disso, essa conclusão não é afastada diante da celebração de escritura pública entre os consortes, haja vista que a escritura pública serve apenas como prova relativa de uma união fática, que não se sabe ao certo quando começa nem quando termina, não sendo ela própria o ato constitutivo da união estável. Ademais, por não alterar o estado civil dos conviventes, para que dela o contratante tivesse conhecimento, ele teria que percorrer todos os cartórios de notas do Brasil, o que seria inviável e inexigível" (STJ, REsp 1.299.866/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.02.2014). Ao final de 2014 surgiu uma outra forma de julgar na Superior Instância, que parece indicar uma terceira via, respondendo depende para a necessidade da outorga convivencial nos casos descritos no art. 1.647 do CC. Conforme acórdão publicado no Informativo n. 554 do Tribunal de Cidadania, de fevereiro de 2015, a invalidade da venda de imóvel comum, fundada na ausência de outorga do companheiro, depende da publicidade conferida à união estável. E essa publicidade se dá mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência de união estável no Cartório de Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou da demonstração de má-fé do adquirente.  Conforme se retira da publicação do aresto, "a interpretação dessas normas, ou seja, do art. 5º da lei 9.278/96 e dos já referidos arts. 1.725 e 1.647 do CC, fazendo-as alcançar a união estável, não fosse pela subsunção mesma, esteia-se, ainda, no fato de que a mesma ratio - que indisfarçavelmente imbuiu o legislador a estabelecer a outorga uxória e marital em relação ao casamento - mostra-se presente em relação à união estável; ou seja, a proteção da família (com a qual, aliás, compromete-se o Estado, seja legal, seja constitucionalmente). Todavia, levando-se em consideração os interesses de terceiros de boa-fé, bem como a segurança jurídica necessária para o fomento do comércio jurídico, os efeitos da inobservância da autorização conjugal em sede de união estável dependerão, para a sua produção (ou seja, para a eventual anulação da alienação do imóvel que integra o patrimônio comum), da existência de uma prévia e ampla notoriedade dessa união estável. No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união" (STJ, REsp. 1.424.275/MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 04.12.2014, DJe 16.12.2014). A este autor parece que, no plano jurisprudencial, a segunda corrente exposta parece ser a tendência da jurisprudência superior. Contudo, não se negue que o Novo CPC tende a aprofundar o debate a respeito dessa problemática nos próximos anos, por mencionar a necessidade da outorga conjugal para a hipótese que está prevista no inciso II do art. 1.647 do CC.Então, por que não aplicar a mesma premissa para as demais situações desse comando material? Confesso que continuo a entender, até o presente momento, que a incidência do Novo CPC diz respeito apenas ao inciso II do preceito civil. Todavia, estou refletindo sobre essa nova extensão, e o meu posicionamento até pode ser alterado no futuro._____________________1 SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil comentado. In: FIUZA, Ricardo. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1.427.