COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Leitura Legal >
  4. Você, seu sangue e sua medula óssea

Você, seu sangue e sua medula óssea

domingo, 24 de agosto de 2025

Atualizado em 22 de agosto de 2025 09:05

Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas, descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da biblioteca de Alexandria.1

É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho e nem mesmo propôs a popularização dos achados científicos, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio, chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade. As novas práticas médicas produzem uma mudança no humano e, consequentemente, realidades no mundo exterior com reflexo imediato no bem-estar da pessoa.

A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir e, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no art. 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/1997, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia.

Na realidade, a doação nada mais é do que um ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor.

Diga-se, de passagem, a esse respeito, que serve de parâmetro a lei 13.289, de 20/5/16, que criou o selo Empresa Solidária com a Vida, destinado às empresas que desenvolvem programa de esclarecimento e incentivo aos seus funcionários para que sejam doadores de sangue e medula óssea.2

Para ser doador de sangue basta possuir boas condições de saúde e ter entre 16 e 69 anos, desde que a primeira doação tenha sido feita até os 60 anos e pesar mais de 50 kg. A lei permite a doação feita por adolescente, mas exige o termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal. Admite-se a doação feita por homem até quatro vezes ao ano, obedecendo um período de 60 dias de intervalo. Quando mulher, até três doações, com intervalo de 90 dias.

A doação de medula óssea, por sua vez, pode ser feita por qualquer pessoa entre 18 a 55 anos de idade, no gozo de boas condições de saúde. O procedimento é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções. O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e paciente, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando a realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e nasce daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro, quando se submeterá a exames complementares.

Tamanha é a importância do procedimento que o transplante também pode ser realizado com a utilização de células-tronco de cordão umbilical de recém-nascidos, preservadas e doadas voluntariamente pelas mães.

Geralmente o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo, faz-se a consulta ao Redome - Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível.

Com as novas tecnologias apontadas para aprimorar a vida e o bem-estar do homem, respeitadas as condições exigidas, qualquer um pode ser doador e irá contribuir imensamente com a construção de uma sólida formação em humanidades. Basta procurar pelo hemocentro mais próximo e manifestar o interesse. É, sem dúvida, um ato de extremada solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem-estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio.

________

1 Conto Alexandrino, escrito em 1884. Disponível aqui.

2 Disponível aqui