"Corrupção" ética
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Atualizado em 14 de fevereiro de 2025 12:51
Ele morava na nossa amada rua Stella, na esquina da primeira das duas vilas ali existentes. Nós nos reuníamos na segunda, mais abaixo, em frente ao campinho do glorioso Olímpicos da Vila Mariana. Frequentávamos também a vila de cima onde alguns moravam.
Seu nome, Abdala Belhaus. Homem de uns oitenta anos. Sempre de paletó e gravata, talvez envergando um colete, se não me falha a memória. O certo: era um são-paulino fervoroso. Conselheiro do "O Mais Querido" ou "Clube da Fé", como queiram. Não tinha outro assunto a não ser futebol, ou melhor, o São Paulo Futebol Clube.
Nascido no Líbano, sua acentuada pronúncia emprestava um sabor especial à sua fala. Conversávamos muito, quer na rua Stella, quer na Cubatão, onde eu morava. Nossos encontros eram sempre marcados por deliciosas histórias do tricolor, de seus bastidores, de jogadores e especialmente de uma sua especial atribuição que narrarei em outro parágrafo.
Conhecedor da história do clube, pois o viu nascer, participou de todas as suas esplêndidas conquistas. Conviveu com Cícero Pompeo de Toledo; Manuel Raimundo Paes de Almeida; Laudo Natel; Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, meu pai, Henry Aidar; Porfírio da Paes e tantos outras figuras responsáveis pela nossa grandeza. Digo nossa, pois para quem não sabe, embora o fato seja notório, sou tricolor de quatro costados.
Sempre mencionava um fato que lhe cobria de satisfação e orgulho. O lendário são-paulino Roberto Gomes Pedrosa após cada jogo ia à sua casa deliciar-se com a comida árabe preparada por sua esposa.
Falei de uma missão que lhe era atribuída e por ele cumprida com fidelidade e absoluta regularidade. Tinha ele a incumbência de arrecadar recursos junto aos comerciantes da rua 25 de março, claro que nossos torcedores, para socorrer despesas do clube.
Pode-se imaginar que tais despesas fossem para algum auxílio aos jogadores ou gastos administrativos, dispêndios para o departamento médico e tantos outros. Não, nenhum centavo ia para o clube. A arrecadação era para premiar o juiz de futebol que não prejudicara o nosso time durante uma partida. Tenho dúvidas se o prêmio era dado após os jogos...
Mas ele afirmava que sim. A entrega era sempre posterior, para manter o árbitro neutro. Apenas não queria que nos prejudicasse. Será?
Mas a característica mais marcante dessa louvável e generosa missão: a recompensa, segundo ele, pela boa conduta, jamais era dada em metal sonante. Jamais, enfatizava ele. Com o produto da arrecadação comprava um relógio, um mimo qualquer, uma bela caneta ou uma joia para a esposa do agraciado. Era uma rigorosa questão de ética. Dinheiro jamais.
O sr. Abdalla tinha o perigoso hábito de atravessar constantemente a movimentada rua Cubatão. Algumas vezes eu o adverti dos riscos, outros o fizeram. Turrão, não nos ouviu. Morreu atropelado ao atravessar a mesma rua. Grande saudade do Abdala Belhaus. Talvez tenha sido o último "corruptor" desprovido de interesses pessoais. E a sua causa era nobre. Grande saudade!