O caso fortuito e a força maior como excludentes de responsabilidade no Código de Defesa do Consumidor
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Atualizado em 30 de janeiro de 2025 13:16
A responsabilidade objetiva no CDC - Código de Defesa do Consumidor é um dos pilares da proteção ao consumidor, conforme disposto nos arts. 12, 13 e 14, que tratam da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço. Entretanto, a doutrina e a jurisprudência têm enfrentado discussões sobre a possibilidade de exclusão da responsabilidade do fornecedor em situações de caso fortuito e força maior. Este artigo examina essas excludentes à luz do CDC, corrigindo equívocos relacionados ao conceito de fortuito interno e distinguindo-o do caso fortuito propriamente dito.
1. Responsabilidade objetiva e o papel do nexo causal
O regime de responsabilidade objetiva no CDC dispensa a comprovação de culpa, concentrando-se na demonstração do dano, do defeito do produto ou serviço e do nexo causal entre eles. Contudo, o art. 12, §3º, e o art. 14, §3º, preveem hipóteses que rompem o nexo causal, como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros.
Nesse contexto, os conceitos de caso fortuito e força maior são frequentemente evocados para afastar a responsabilidade do fornecedor. Ambos se caracterizam por eventos imprevisíveis e inevitáveis, externos à esfera de controle do fornecedor, que interrompem o nexo causal. Todavia, a confusão gerada pelo uso do termo "fortuito interno" exige uma análise mais precisa, especialmente no âmbito da responsabilidade consumerista.
2. Fortuito interno não é caso fortuito
Embora a doutrina frequentemente distinga entre fortuito interno e externo, o tratamento dado ao fortuito interno na prática é equivocado. Equívoco conceitual este que, infelizmente, a jurisprudência e a doutrina, muitas vezes, por reforçar, senão vejamos: "O caso fortuito interno envolve as situações em que o risco natural da atividade econômica desenvolvida pela empresa deve ser absorvido por estas, não tendo o condão de afastar a responsabilidade. Nessa hipótese, o aspecto surpresa que acompanha o caso fortuito não se mostra suficiente para isentar a empresa de responsabilidade..."1 A jurisprudência, inclusive, do STJ, recorre ao conceito de fortuito interno para retratar situações, que não rompem o nexo causal, e que na verdade se referem a defeitos ou falhas no fornecimento de serviços financeiros, senão vejamos: "Para efeitos do art. 543-C do CPC: As instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros - como, por exemplo, abertura de conta-corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos -, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno."2
Ao contrário do caso fortuito, que se refere a eventos imprevisíveis e inevitáveis, o fortuito interno envolve situações previsíveis e controláveis dentro da esfera de atuação do fornecedor. Assim, o fortuito interno não deve ser reconhecido como caso fortuito, mas sim como um defeito (no caso de produtos) ou falha (em serviços). Esse entendimento é defendido por Leonardo Roscoe Bessa3, que critica o equívoco dessa confusão conceitual: "Em vez de analisar presença de fortuito interno ou externo, o correto seria focar no conceito de defeito, em face das legítimas expectativas do consumidor... A noção de defeito resolve muitas situações sem qualquer necessidade de recorrer à ideia de caso fortuito. Em outros termos, a discussão principal nas ações indenizatórias por fato do serviço deve se concentrar no conceito normativo de defeito, ou seja, se, no caso concreto, foi atendida a legítima expectativa de segurança, considerando modo de fornecimento, resultado e riscos que razoavelmente se esperam e época do fato (art. 14, 5 19). No caso dos serviços, a conclusão pela presença de defeito não requer prova técnica (perícia): se dá a partir da argumentação em torno das circunstâncias do fato danoso, da argumentação em torno de expectativa de segurança no caso em exame. Ainda no tocante à ausência de defeito como excludente, pode parecer, numa primeira análise, que não faz qualquer sentido sua previsão: afinal, se o defeito é um dos elementos necessários para configurar o dever de indenizar, parece óbvio que sua ausência afasta, consequentemente, tal dever. E verdade, mas o propósito maior do dispositivo foi indicar que o ônus da prova da ausência do defeito é do fornecedor, o que, reitere-se, pode ocorrer a partir de argumentação. "Portanto, eventos atribuídos ao fortuito interno, como falhas de equipamentos ou erros humanos no processo produtivo, configuram defeitos, atraindo a responsabilidade do fornecedor, e não excludentes de responsabilidade.
3. Fortuito externo e caso fortuito: Excludentes de responsabilidade
Diferentemente do fortuito interno, o fortuito externo caracteriza-se por eventos absolutamente alheios à atividade empresarial, imprevisíveis e inevitáveis, como desastres naturais (enchentes, terremotos) ou atos de guerra. Esses eventos rompem o nexo causal e excluem a responsabilidade do fornecedor.
A força maior e o caso fortuito, embora não mencionados expressamente no CDC, encontram respaldo no art. 393 do CC e na jurisprudência. Quando devidamente comprovados, justificam a exclusão da responsabilidade objetiva, desde que o evento seja totalmente alheio ao controle do fornecedor.
4. Jurisprudência relevante
A jurisprudência brasileira tem enfrentado o desafio de delimitar o caso fortuito e a força maior, além de esclarecer a inadequação do uso do termo "fortuito interno". Nesse Leading case, envolvendo disparo de arma de fogo no interior de uma sala de cinema localizada em conhecido shopping da capital paulista, o STJ afastou a responsabilidade do fornecedor exatamente por entender configurado o caso fortuito externo no caso concreto. O STJ entendeu que os disparos de arma de fogo dentro de uma sala de cinema configuravam caso fortuito externo, rompendo o nexo causal e afastando a responsabilidade da administradora do cinema: "A culpa de terceiro, que realiza disparos de arma de fogo contra o público no interior de sala de cinema, rompe o nexo causal entre o dano e a conduta do shopping center no interior do qual ocorrido o crime, haja vista configurar hipótese de caso fortuito, imprevisível, inevitável e autônomo, sem origem ou relação com o comportamento deste último.4" Em outro caso, a 3ª turma do STJ reconheceu que o roubo à mão armada contra usuários de uma praça de pedágio, administrada por concessionária, configurava caso fortuito externo. A decisão afirmou: "A ocorrência de força maior ou caso fortuito, devidamente comprovada, é suficiente para excluir a responsabilidade objetiva do fornecedor, quando o evento é imprevisível, inevitável e totalmente alheio à atividade desempenhada.5"
Esses precedentes reforçam a necessidade de distinguir corretamente entre eventos internos, que configuram defeitos ou falhas, e eventos externos, que rompem o nexo causal.
5. Conclusão
O correto entendimento do fortuito interno e sua distinção do caso fortuito é essencial para evitar confusões doutrinárias e jurisprudenciais. O fortuito interno não pode ser tratado como excludente de responsabilidade, pois se refere a eventos previsíveis e controláveis pelo fornecedor, caracterizando defeitos ou falhas na prestação de serviços.
Por outro lado, o caso fortuito e a força maior, quando devidamente caracterizados, afastam o nexo causal e, consequentemente, a responsabilidade do fornecedor. Essa distinção é fundamental para preservar o equilíbrio entre a proteção ao consumidor e a segurança jurídica, evitando a aplicação inadequada do regime de risco integral.
Reconhecer essas nuances fortalece o sistema de defesa do consumidor, garantindo que os fornecedores assumam a responsabilidade por riscos inerentes à sua atividade, enquanto preserva a Justiça em situações alheias ao seu controle.
1 XAVIER, José Tadeu Neves. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 115, Jan-Fev./2018, p. 9.
2 (REsp 1.197.929/PR, relator ministro Luis Felipe Salomão, Segunda seção, julgado em 24/8/11, DJe de 12/9/11).
3 In Código de Defesa do Consumidor Comentado. 2ª. edição atualizada, p. 143, Gen Forense, 2011.
4 (AgInt nos EREsp 1.087.717/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda seção, julgado em 13/9/17, DJe de 20/9/17).
5 (REsp 1.872.260/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira turma, julgado em 4/10/22, DJe de 7/10/22).