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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
Há alguns dias noticiava-se1 a decisão da 2ª turma do TJ/DFT que determinava, em ação civil pública, que duas 'financeiras' se abstivessem de realizar novos empréstimos garantidos pelo celular do devedor. Na prática, contudo, não se mencionava a constituição de penhor (ou de seu registro) nem de qualquer outra forma tradicional de garantia do crédito. O que realmente importaria, aos credores, era a presença de outra cláusula contratual que os autorizava a bloquear, de forma remota, por meio de aplicativo instalado no momento da concessão do crédito, diversas funcionalidades do aparelho 'dado' em garantia. A decisão do TJ/DFT entendeu que esta seria uma prática abusiva que imporia ao consumidor a violação de direito fundamental em razão de excessiva restrição que se aproveitaria da vulnerabilidade do contratante2. Este não é o único caso apreciado pelo Judiciário3, nem reflete uma prática isolada. Embora o caso tenha sido endereçado - até por conta de seus limites processuais - por meio da legislação de consumo, ele nos convida a questionar a lógica daquela 'garantia' de forma mais ampla. Até porque ampla é também a forma como a prática vem se disseminando. É o que convido o leitor a fazer com a seguinte indagação: afinal, o que há de tão fundamentalmente equivocado em se bloquear a utilização do celular em caso de inadimplemento? A discussão, por certo, extrapola os estritos limites da técnica redacional do contrato para buscar o fundamento na compreensão de responsabilidade e na função social que ela exerce. Na faculdade de Direito, logo que iniciamos nossos estudos de Direito obrigacional, somos apresentados à noção central da responsabilidade patrimonial do devedor. Embora este seja o fundamento da própria obrigatoriedade, usualmente, não se gastam mais que alguns momentos em sua contextualização4. Assim, apresentado o teor do art. 3915 do CC ou do art. 7896 do CPC, passamos a uma 'lista' de exceções a contrapor à interpretação literal dos dispositivos. Não raras vezes, a explicação, por provocação discente, acaba se desdobrando  para o "bem de família" e para a prisão civil do devedor de alimentos. Esta estratégia de análise da responsabilidade atrai, contudo, um risco estratégico: o exemplo motiva mais que o fundamento. É talvez por isso que vemos algumas discussões sobre se este ou aquele bem é impenhorável7 ou se, para proteção da moradia, o devedor solteiro pode ser considerado família8 chegando às Cortes Superiores. Para maior didatismo, imagine que as duas provocações dos alunos abordam, na realidade, dois lados da mesma moeda. Comecemos pela face, ou seja, pela identificação de que existem limites patrimoniais à responsabilização. Embora diversos sejam os exemplos legislativos (bem de família, bens impenhoráveis9, o mínimo existencial10, etc.) há - por certo - um fundamento comum que os explica, justifica e amplia.  Buscar uma exceção prevista em lei é, neste sentido, uma armadilha. Não que elas não sejam úteis, mas o fato é que não há um dispositivo que proíba a tal cláusula de autorização de bloqueio, assim como não há aquele que determine a obrigatoriedade de um contrato11. Ambas as compreensões são extraídas da mesma responsabilização patrimonial: um contrato é obrigatório porque seu descumprimento pode impor responsabilização do devedor recalcitrante (não cogitamos, é claro, a tutela da pretensão como parte desta obrigatoriedade). A responsabilização, por outro lado, pode extrapolar o patrimônio do devedor e tem certo rito para ocorrer.  Qual patrimônio? Aquele previsto em uma lista? Não, aquele que obedece a um fundamento comum de proteção patrimonial escolhido pelo nosso sistema jurídico. Ele, aliás, já foi identificado como o "patrimônio mínimo"12 necessário ao desenvolvimento dos direitos de personalidade e, é, talvez, para este contexto que acena a mencionada decisão do TJ/DFT: privar o devedor da utilização do celular impede, como sabemos, até mesmo exercício de alguns direitos fundamentais, o que é especialmente verdadeiro quando pensamos na centralidade que as ferramentas digitais (bancárias, previdenciárias, serviços públicos) ganham em nossa vida. Passando à 'coroa' daquela mesma moeda, ou seja, ao limite patrimonial da responsabilização, sabemos que a responsabilidade patrimonial exclui a responsabilidade pessoal, entendida como aquela sofrida na pessoa do devedor. A rigor, contudo, nem mesmo a chamada prisão civil aqui se encaixaria, pois a prisão do devedor não extingue a dívida. Há um segundo sentido também: o crédito não autoriza o credor a se apropriar do patrimônio alheio. Cabe a ele deduzir sua eventual pretensão e buscar a satisfação por meio da expropriação, eis o rito da responsabilização.  Mas poderíamos cogitar que espaço de liberdade individual também tem um sentido patrimonial? Não para a responsabilização patrimonial, pelo menos. É neste contexto que se tem destacado os convites ao Judiciário para que amplie as hipóteses de incentivo à colaboração do devedor por meio da adoção de medidas executivas atípicas13. Elas assim como a prisão civil em caso de alimentos não são pagamento (nem o substituem), mas valem-se de restrições à liberdade individual como mecanismos de cooperação. Assim, os exemplos da apreensão do passaporte ou da CNH14, a privação da frequência em clubes ou as multas diárias dependerão de uma decisão judicial que pondere a relevância do crédito frente a possibilidade de tal limitação à liberdade. Eis, então, que uma resposta a nossa indagação pode ser esboçada: as cláusulas que 'davam' o celular em garantia ou que autorizavam seu bloqueio são, em resumo, ofensivas à responsabilidade patrimonial do devedor. Não se trata, propriamente, de uma questão de autonomia do contratante ou vulnerabilidade do consumidor, mas, salvo melhor juízo, de acomodação aos contornos colaborativos que devem embasar a relação obrigacional, percebida como um processo15.  ____________________ 1 BOLZANI, Isabela. Financeiras são proibidas pela Justiça de bloquear celular de clientes inadimplentes; entenda. G1. Economia. 10/05/2025. Disponível aqui.  2 TJDFT, Apelação Cível n° 0742656-87.2022.8.07.0001, 2ª Turma Cível, Relator Desembargador Renato Rodovalho Scussel, julgado em 05 de maio de 2025. Disponível aqui.  3 Vide, por exemplo, em âmbito individual, SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n° 1033838-05.2022.8.26.0564, 15ª Câmara Cível, Relator Desembargador Achile Alesina, julgado em 11/02/2025. 4 Sobre esta contextualização, recomendo o artigo: NANNI, Giovanni Ettore. Responsabilidade patrimonial do devedor: conceito e evolução histórica. In Revista de Direito Privado, vol. 123/2025, p.149-185, jan/março 2025. 5 Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor. 6 Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei. 7 Recordo-me da Reclamação 4374/MS, apreciada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, que precisou declarar a impenhorabilidade de televisor e máquina de lavar roupas (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Rcl 4374 / MS, Segunda Seção, Relator Min. Sidnei Beneti, julgado em 23/02/2011). 8 Por exemplo: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 301580 / RJ. Terceira Turma, Relator Min. Sidnei Beneti, julgado em 28/05/2013. 9 O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar (art. 1º da Lei n° 8.009/1990). 10 O rol do art. 833 e incisos do CPC, por exemplo. 11 Em nítido contraste com alguns Restatements internacionais. Vide, por exemplo, art. 1.3 dos PRINCÍPIOS UNIDROIT RELATIVOS AOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS 2016, disponível aqui.  12 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, 2. Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 13 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; 14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5941, Pleno, Relator Min. Luiz Fux, julgado em 09/02/2023. 15 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976.
A vulnerabilidade digital tornou-se assunto que adquiriu repercussão mundial1 em razão dos novos paradigmas tecnológicos que passam a repercutir praticamente em todos os seguimentos da sociedade na atualidade, provocando os setores público e privado a renovadas formas de atuação em prol da inclusão digital dos vulneráveis. Trata-se de fenômeno que desafia os diferentes âmbitos da sociedade a compreender, antes de tudo, as causas e as consequências dessa exclusão2. A vulnerabilidade digital pode ser identificada sob enfoques técnicos, científicos, fáticos e informacionais, atingindo os mais variados grupos sociais3, densificando-se, proporcionalmente, na mesma velocidade em que as tecnologias se desenvolvem4, trazendo um vertiginoso incremento de danos nunca antes vivenciados. Para além dos novos danos experimentados, os segmentos sociais mais frágeis ainda sofrem com notórios obstáculos para acessar os meios extrajudiciais e judiciais de proteção de seus direitos, o que os torna presas fáceis para todo o tipo de atividades ilícitas lucrativas. A temática ganha proporções ainda mais dramáticas quando se analisa a vulnerabilidade das pessoas idosas diante das novas tecnologias5. Nada obstante a vigência de alguns importantes estatutos protetivos - tais como o Estatuto da Pessoa Idosa (lei 10.741, de 2003), a lei de Política Nacional do Idoso (lei 8.842, de 1994) e a própria Constituição Federal -, as dificuldades de compreensão e manuseio dos recursos tecnológicos acabam por obstaculizar a plena fruição de seus direitos individuais e sociais. Por isso, para muito além de se garantir aos idosos a prioridade de tratamento, impõe-se "que as políticas públicas devem ser pensadas primeiramente para atendê-los e que no sistema de saúde, de justiça, nas relações entre os particulares e entre esses e o Poder Público, o idoso assume uma posição privilegiada de sujeito de direitos".6 Um ótimo (apesar de repugnante) exemplo de como a vulnerabilidade digital e a hipossuficiência multicausal afeta cruelmente os idosos no Brasil pode ser inferido do recente escândalo dos desvios bilionários perpetrados por entidades associativas contra milhões de aposentados e pensionistas do INSS. Para apurar a fraude, foi deflagrada pela Polícia Federal a operação "Sem Desconto", que investiga um esquema de descontos em folha de pagamento não autorizados, em prol de entidades associativas, de aposentadorias e pensões pagas pelo governo federal. O que se sabe, até então, é que algumas entidades de classe (associações e sindicatos) formalizavam Acordos de Cooperação Técnica com o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, mediante os quais se lhes autorizava a realização de descontos automáticos (em folha) de aposentadorias e pensões, a título de taxas mensais associativas.   Ocorre, no entanto, que a imensa maioria dos descontos foram feitos sem autorização dos aposentados e pensionistas, mediante a falsificação de documentos de filiação e autorização. Assim, as cobranças indevidas eram descontadas diretamente dos benefícios previdenciários daqueles, calculando-se um prejuízo estimado em R$ 6,3 bilhões, entre os anos de 2019 e 2024.7 Diante da descoberta da fraude e da repercussão nacional, o governo federal vem orientando os aposentados ou pensionistas a acessar o aplicativo "Meu INSS" e, preferencialmente, por meio da plataforma digital, reportar a ausência de consentimento e os danos sofridos.8 Ou seja, exige-se de uma classe notoriamente vulnerável e desassistida que, por uma via digital a que muitos não tem acesso ou não conseguem manipular que: i) constate se vem sendo vítima dos descontos indevidos; ii) verifique se autorizou ou não o desconto; iii) solicite a devolução dos valores decontados e, iv) aguarde a entidade associativa se manifestar sobre o referido desconto. Como se percebe, o idoso vulnerável é duplamente penalizado: sofre com as consequências dos desvios de seus benefícios e não possui, muitas vezes, sequer acesso adequado para formalizar as pretensões de reparação. Para além de despertar uma verdadeira comoção nacional e chamar a atenção para o tema da vulnerabilidade digital, o escândalo das fraudes contra os aposentados e pensionistas do INSS ainda suscita relevante debate jurídico, concernente à responsabilidade civil do Poder Público pelos danos a eles causados.9 Nesse sentido, a turma nacional de uniformização dos Juizados Especiais Federais está debatendo a fixação de tese jurídica específica (Tema 326, ainda pendente de julgamento), que objetiva avaliar "se o INSS é civilmente responsável nas hipóteses em que se realizam descontos de contribuições associativas em benefício previdenciário sem autorização do segurado, bem como, em caso positivo, quais os limites e as condições para caracterização dessa responsabilidade."10 O entendimento jurisprudencial que vem se consolidando aponta no sentido da responsabilidade objetiva da autarquia (INSS) pelos descontos indevidos efetuados em benefícios sociais, ainda que decorram de fraudes cometidas por terceiros. Bons argumentos, para tanto, abundam. Muito embora, nos mencionados casos, seja possível imputar a responsabilidade civil do Poder Público também por omissão (na medida em que desatendeu notório dever de vigilância, deixando de fiscalizar adequadamente os convênios firmados com as entidades associativas e prevenir possíveis fraudes), parece clara a imputação de responsabilidade civil também por ação - na medida em que as fraudes só foram viabilizadas em virtude da autorização concedida às associações e sindicatos para a utilização da ferramenta dos descontos em folha. De todo modo, a imputação da responsabilidade civil ao Poder Público pelos desvios de valores bilionários dos aposentados e pensionistas parece ser um imperativo derivado da necessidade da facilitação ao integral e tempestivo ressarcimento, a uma classe sabidamente vulnerável (hipossuficiente), de verbas de caráter indiscutivelmente alimentar. Todavia, o que se revela mais intrigante em todos os casos de fraudes por via dos descontos em folha de benefícios previdenciários pagos pelo INSS talvez não seja exatamente a discussão sobre a viabilidade da responsabilização do Poder Público (que parece óbvia), muito menos sua natureza jurídica. O cenário dessas fraudes, acima de tudo, escancara a necessidade de se compreender e discutir a respeito da forma pela qual, uma vez admitida a responsabilidade do Poder Público, passe a providenciar o integral e tempestivo ressarcimento de todas as vítimas pela via administrativa, sob pena de provocar, mais uma vez, a profusão da judicialização de demandas ressarcitórias (individuais e coletivas), retroalimentando, assim, uma litigância absolutamente desnecessária e lesiva, tanto às vítimas quanto ao próprio Estado. Vale lembrar, aliás, que as demandas envolvendo o INSS - usualmente fundadas na intempestividade das deliberações administrativas ou no  indeferimento da concessão de benefícios previdenciários - constituem uma das maiores causas da judicialização no Brasil. Em recente estudo denominado "Projeto de redução da litigância contra o Poder Público"11, coordenado pelo STF em parceria com o CNJ - Conselho Nacional de Justiça, foram diagnosticados os temas mais suscitados na litigância em face do Estado. No levantamento empírico da pesquisa, apurou-se que as ações previdenciárias representam impressionantes 87,43% das demandas ajuizadas contra o governo Federal, isto é, o grande tema "Previdenciário" foi identificado como o principal tema da litigância preponderante, com 5.336.429 processos.12 E, pelo andar da carruagem, tais números só tendem a crescer. Enquanto o governo federal patina na assunção de suas responsabilidades e demora imensamente na tomada de decisões justas, estratégicas e econômicas - que passam, necessariamente, pela disponibilização a todos os aposentados e pensionistas de modelos indenizatórios adequados (simples, céleres e acessíveis) pela própria via administrativa -, a litigância esfrega as mãos. Mais uma vez. _______ 1 HELBERGER, N.; SAX, M.; STRYCHARTZ, J.;MICKLITZ, H.-W. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability.  Journal of Consumer Policy, dez.2021, p. 1-26. 2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Plínio Dentzien (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 3 MARQUES, Claudia Lima; MUCELIN, Guilherme. Vulnerabilidade na era digital: um estudo sobre os fatores de vulnerabilidade da pessoa natural nas plataformas a partir da dogmática do Direito do Consumidor. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 11, n.13, 2022. Disponível aqui. 4 HOFFMANN-RIEM,  Wolfgang. Teoria  geral  do  direito  digital:  transformação  digital,  desafios  para  o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 5 SANTOS, Romualdo Baptista dos. A responsabilidade digital na Lei da Telessaúde. O que é isso? Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. 6 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário. Mútuo bancário e vulnerabilidade do consumidor idoso analfabeto. Tese doutoral defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério José Ferraz Donnini. São Paulo, 2016. 7 Ministério da Justiça e Segurança Pública. Policia Federal. PF e CGU investigam descontos irregulares em benefícios do INSS. Entidades investigadas descontaram de aposentados e pensionistas o valor estimado de R$ 6,3 bi, entre 2019 e 2024. Disponível aqui. 8 Ministério da Previdência Social. INSS. Confira como pedir a restituição de descontos indevidos no benefício do INSS. Disponível aqui. 9 BRAGA NETTO, Felipe. Novo Manual de Responsabilidade Civil. 5° ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2025. 10 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Turma Nacional de Uniformização. Tema 326. Disponível aqui. 11 Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Redução da litigância contra o poder público : relatório final - fase 1 : resumo executivo.  Coordenação da obra:  Luís Roberto Barroso, Patrícia Perrone Campos Mello, Lívia Gil Guimarães. -- Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação: CNJ, 2025. 40 p. Disponível aqui. 12 Ibid. p. 16.
1. Aspectos gerais Nos hospitais e clínicas, públicos e privados, são comuns os óbitos decorrentes de infecções hospitalares. Pacientes internado no processo de cuidados com a saúde por distintas doenças ou tratamentos eletivos, figuram nas expressivas estatísticas brasileiras por óbitos provenientes de sepse, pneumonia ou infecções urinária e sanguínea. Essas quatro causas são as mais frequentes na contaminação por infecção hospitalar. Ainda que as estatísticas indiquem maior incidência de óbitos por infecções hospitalares por categoria de paciente ou espécie de comorbidade, a infecção hospitalar é potencialmente capaz de atingir todos os pacientes, independentemente da condição orgânica, evolução patológica e tratamento dispensado. Portanto, todos os pacientes podem ser vitimizados, fatalmente, por infecções hospitalares. Importantes questões devem ser trazidas à baila, principalmente na imperiosa contextualização do Brasil no contexto global dos pacientes internados nos Hospitais e Clínicas brasileiras. Segundo o Ministério da Saúde, por seus Boletins Epidemiológicos e a Anvisa, por seus Relatórios sobre IRAS - Infeções Relacionadas à Assistência à Saúde, no ano 2024, estima-se que cerca de 14% dos pacientes internados adquiriram infecções durante a estadia, e mais de 45 mil brasileiros morrem, anualmente, devido a infecções adquirias no ambiente hospitalar. A OMS - Organização Mundial da Saúde apresenta diretriz no sentido de que as mortes decorrentes por infeção hospitalar não devem ultrapassar o percentual de 5% quando comparadas à totalidade de pacientes em tratamento de saúde.  No Brasil, no entanto, as estatísticas oficiais comprovam que os óbitos decorrentes de infecção hospitalar são quase três vezes superiores ao aceitável, cerca de 14%. Estima-se que 45 mil brasileiros morrem, anualmente, por infecções adquiridas no ambiente hospitalar, segundo a OMS. A vexatória estatística brasileira - três vezes superior à média mundial - não se traduz em novas políticas públicas, quiçá ganha foro jurídico na esperada irresignação das autoridades constituídas no Brasil. Todos somos responsáveis por esse lastimável estado da arte. Trazer à lume os alarmantes dados estatísticos e as verdadeiras causas da infecção hospital no Brasil, no entanto, podem produzir mudanças desse cenário. No ano de 2013 foi publicado o Programa Nacional de Segurança do Paciente através da portaria 529, de 1º de abril de 2013, importante marco para a importância na prevenção das infecções hospitalares. Nessa linha, "a partir de 2013, a partir de 2013, a Fiocruz, o Ministério da Saúde e a Anvisa publicaram protocolos básicos de segurança do paciente. Os seis protocolos- Identificação do paciente; Prevenção de úlcera por pressão; Segurança na prescrição, uso e administração de medicamentos; Cirurgia segura; Prática de higiene das mãos em serviços de saúde; e Prevenção de quedas - fazem parte do Programa Nacional de Segurança do Paciente, cujo objetivo é prevenir e reduzir a incidência de eventos adversos nos serviços de saúde públicos e privados" (ARMOND, 2016, p. 27).  2. Infecção hospitalar - Adversidade do evento A infecção hospitalar pode ser considerada, efetivamente, um evento adverso e inesperado? Estaria inserida nas hipóteses de exclusão do nexo de causalidade equiparável aos casos fortuitos ou força maior? Relembre-se que referidas hipóteses excluem o dever indenizatório por prescindirem da conduta humana e do seu elemento volitivo. De modo geral, as infecções hospitalares, e os consequenciais óbitos humanos, são associadas à fragilidade orgânica do paciente, ora pela causa ou condições pretéritas (idade, estágio de uma doença), ora pela impotência do corpo humano não suportar o locus hospitalar, como local necessário à permanência do paciente em estado de convalescença. Dentro dessa clássica divisão binária, pouco se atribui a outros fatos subjacentes à ocorrência de infecções hospitalares no Brasil. Paradoxalmente, a maioria dos casos que geram infecções hospitalares, e os óbitos decorrentes dessa infecção, ocorrem pela ausência de medidas preventivas de cunho sanitário e científico, em desalinho com as diretrizes mundiais da arte de cuidar. Atribuir ao paciente à sua própria finitude, ou agravamento do seu quadro clínico, por infecção hospitalar sob as perspectivas da fragilidade orgânica, idade, ou gravidade da doença ocultam, em verdade, evento que não é adverso e que não é inesperado, quando assumido o risco da sua ocorrência. O locus deve ser seguro e impassível de qualquer espécie de contaminação, já que qualquer espécie de gravame causado ao paciente, que agrave à sua condição, deveria ser intolerável, o que não ocorre na maioria avassaladora dos casos. Pacientes brasileiros têm abreviadas suas vidas por fatores externos que não deram causa. O estado de impotência e vulnerabilidade são incontestáveis à condição de ser e estar paciente. 3. As medidas preventivas de cunho sanitário - Negligência No Brasil, em hospitais públicos e privados, diversas medidas preventivas de cunho sanitário ainda são negligenciadas e se inserem no elenco das causas de infecção hospitalar. Dentro desse gênero podem se citadas à ausência ou incorreção na higienização das mãos dos profissionais de saúde, à ausência e insuficiência de bactericidas e o uso inadequado de antibióticos, ora na eleição da espécie, ora na utilização por tempo excessivo, como fatores que contribuem para que a imunidade orgânica seja reduzida e apta a ser contaminada por novos micro-organismos. Somadas a essas primárias medidas de sanitarização do ambiente hospitalar, constata-se a ausência de controle preventivo com vistas à inocorrência de novos fatos danosos ao paciente. As estatísticas são crescentes e os mesmos fatos são rotineiramente estampados em dados oficiais. Distinguem-se, apenas, o recorte temporal e os pacientes que foram ceifados dos maiores bens jurídicos: a vida e a saúde humana. Em países desenvolvidos, a tecnologia é utilizada para coadjuvar os gestores na administração hospitalar à inibição de fatos relacionados à infecção hospitalar. No Brasil interna corporis, nos ambientes hospitalares, discutem-se obituários, e suas causas, apresentando sazonalmente processo de reestruturação organizacional para eliminação ou redução do gravíssimo problema, que é a infecção hospitalar. Não é demais frisar que o Brasil oscila entre as 9ª e 10ª posições de arrecadação do PIB - Produto Interno Bruto que, em última análise, impõe concluir que se trata de um dos países mais ricos do globo e um dos que de longa data discute-se a abissal desigualdade social e as mazelas do progresso: do clientelismo à corrupção;  dos privilégios à reparação por quotas; da injusta divisão de terras no contexto agrário à iniquidade na causa indígena; na redução da verba destinada ao SUS - Sistema Único de Saúde. Há de se frisar que no ano de 2024 o gasto público com saúde no Brasil representou cerca de 4% do PIB, percentual relativamente estável comparativamente aos anos anteriores, já que a média estabelecida globalmente é de 6,5% do PIB, segundo a OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Quando a temática se relaciona aos índices de infecção, impõe-se apresentar aspectos sociopolítico do Brasil, e ressaltar que essa espécie de mortalidade humana, e de agravamento dos quadros de saúde, não são restritos aos hospitais públicos ou mais precarizados, como a princípio poderia se concluir. Nessa ordem de ideias, assinale-se que em todos as clínicas e hospitais brasileiros são constatados altíssimos índices de infecção hospitalar que culminam com mortes e agravamento da saúde de pacientes de distintas condições etária, grau de enfermidade, higidez orgânica, raça, etnia ou condição social.    4. As medidas preventivas de cunho científico: Negligência              O ato médico é privativo do profissional da saúde, regularmente habilitado, segundo diretrizes e conselho profissional, segundo a lei 12.842, de 10 de julho de 2013, que define as atividades privativas dos médicos e estabelece diretrizes para a atuação profissional na área da saúde. Portanto, cabe a esse profissional, em atenção às respectivas especialidades, o tratamento com a saúde humana, respeitados os limites do exercício da autonomia do paciente. Elencar medidas preventivas de cunho científico à inocorrência de infecções hospitalares não se insere na intromissão do plano de tratamento da saúde humana traçado pelo médico, suprimindo a autonomia profissional, muito menos importa em indesejável interferência na anamnese. Trata-se de diretriz geral, comprovada em campo, que ampara o profissional da saúde como medida adicional de importante observância durante a convalescença do paciente.     Nessa quadra, o uso de antibióticos por período prolongado não só pode produzir resistência bacteriana ao medicamento, como pode também gerar redução na imunidade orgânica fragilizando o paciente para a contaminação por infecção hospitalar. Da mesma forma o uso contínuo, e prolongado, de cateter pode culminar com infecção urinária. Tais fatores podem produzir, respectivamente, o agravamento do quadro clínico do paciente, ora pela impotência do antibiótico no combate bacteriano, ora pela soma de fatores que somado ao fato primitivo potencializa o estado geral do paciente. O mesmo se aplica às distintas pneumonias e sepse, causas comumente verificadas em ambientes de internação hospitalar que, somados à primitiva causa, tornam-se mais potentes e se apresentam como causa preponderante do agravamento da comorbidade, ou do evento morte do paciente. 5. A responsabilidade jurídica no Brasil pelas infecções hospitalares  No Brasil são irrelevantes os casos de responsabilidade jurídica relacionados à infecções hospitalares, ora no âmbito civil, ora no âmbito criminal, quando comparados às taxas oficiais. Numericamente, são casos inexpressivos e incapazes de apresentar qualquer processo de mudança cultural, organizacional ou pedagógica. Some-se a esses fatores a grande dificuldade de contatar a negligência subjacente à infecção hospitalar, ora de cunho sanitário, ora de cunho científico. Mesmo no correlacionamento de dados oficiais, a expressão "infecção hospitalar" não consta na maioria dos casos, ainda que constatada causa externa e completamente dissociada da comorbidade primitiva do paciente. Na hipótese da infecção hospitalar, como evento eminentemente externo, acredita-se que a grande maioria dos casos se circunscrevem na responsabilidade civil objetiva, já que a atividade de risco decorre das condições a que o paciente se encontrou sujeito no afã de se submeter a um tratamento de saúde em locus inapropriado.   O art. 927, caput e parágrafo único do CC em vigor prevê que "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único - Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." Destaque-se que a atividade "naturalmente de risco" se subsumi aos riscos provenientes de tratamento de saúde, eis que as medidas negligenciadas pela administração hospitalar em conjunto, ou não, com os médicos são condutas típicas de assunção de risco, cuja probabilidade de dano é realística, e não improvável. Os danos material e moral serão mensurados com base em aspectos individualizantes do paciente, cujas provas sejam imprescindíveis à constatação da infecção hospitalar como causa de extermínio da vida, ou do agravamento da saúde humana.   No que tange à responsabilização criminal, trata-se de responsabilidade em que o dolo ou a culpa sejam imprescindíveis de serem provados no bojo de uma conduta essencialmente humana, no caso em espécie. Assim, há de ser provada uma conduta dolosa ou culposa do médico ou do gestor hospitalar potencialmente capazes de causar o evento maior, a infecção hospitalar, como causa contributiva da enfermidade, ou causa preponderante e inserta na categoria de ato ilícito da responsabilidade civil. 6. O atraso brasileiro na adoção do padrão adotado por países desenvolvidos   A ausência de métodos rígidos e uniformes de controle e erradicação da infecção hospitalar, aliados a falta de transparência de dados, são causas preponderantes a que não sejam minimizados os impactos dessa espécie de obituário entre os brasileiros. Distintas razões podem ser apontadas à não implementação das melhores técnicas de gestão objetivando reduzir os altos índices de infecção hospitalar. Acredita-se que a principal se relaciona à contenção de custos, uma vez que instituir comitês permanentes, tais quais os preconizados para as medidas de compliance, e investir em tecnologia, principalmente a digital, para aferir controle preventivo, são medidas habitualmente constatadas em países considerados desenvolvidos. 7.  O Estatuto do Paciente - Diploma normativo necessário    É urgente a edição do Estatuto do Paciente no Brasil apto a promover menos dissensos na relação médico-paciente, promovendo maior estabilidade social. Dissídios judiciais não só poderiam ser evitados, como também seriam menos divergentes, minimizando a propositura de recursos especiais perante o STJ, na forma do art. 105 da Constituição da República em vigor. No Estatuto do Paciente os direitos e obrigações dos pacientes restariam elencados, assim como as garantias inerentes à condição de ser paciente, já que essa condição é comum a todas as pessoas, em qualquer estágio da vida, independentemente de qualquer condição externa afeta ao humano. A lei de âmbito nacional publicada pelo Congresso Nacional, no sistema bicameral, com a ulterior sanção presidencial, mediante prévia participação da sociedade civil são etapas imprescindíveis à elaboração do idealizado Estatuto do Paciente numa sociedade democrática, plural, como a brasileira. Medidas de garantia, e transparência, têm espaço nesse importante Estatuto, tais como a previsão de normas de conduta de administradores hospitalares, padrões comportamentais inaceitáveis que configurariam ato ilícito, e mesmo infrações penais, e principalmente, a divulgação de dados para que o paciente tenha pleno conhecimento, e liberdade de contratar a prestação do tratamento de saúde humana em locus cujas condições sejam públicas.    8. Considerações Finais As mortes e agravamento da saúde de pacientes brasileiros por infecção hospitalar em índices alarmantes é realidade inaceitável não só pelas altas taxas, mas principalmente por permanecerem altas e em ascensão na estatística oficial. A não adoção do manancial tecnológico, informatizado, já utilizado em países desenvolvidos como forma preventiva de impedir o desenvolvimento dessa gravíssima infecção, é medida de extrema relevância, que deve ser imediatamente aplicada no Brasil.     Dessa forma, urge a imposição de critérios definidos para a acreditação de todos os hospitais e clínicas brasileiras, sem prejuízo da fiscalização promovida pela Anvisa, assim como seja publicado o Estatuto do Paciente, como forma de serem transparentes os direitos e obrigações do paciente, minimizando conflitos administrativos e judiciais. Considere-se que no Brasil uma das demandas mais expressivas é a relacionada às questões do tratamento da saúde humana, apesar de todos os esforços na composição dos litígios na fase pré-processual. As infecções hospitalares devem ser desmistificadas para a análise da sua real identificação: a causa negligente- sanitária ou científica. Deve-se promover o protagonismo do paciente, não só como figura central em todos os tratamentos da saúde humana, mas por sua indissociável vulnerabilidade. Há se reconhecer, sobretudo, que o paciente deposita credibilidade na ausência de risco do ambiente hospitalar e ali se submete permanecer internado na expectativa de promoção de sua condição físico-orgânica. Definitivamente, o paciente, na grande maioria dos casos, não tem qualquer ingerência acerca das condições sanitárias do locus hospitalar. Há de se interromper o ciclo dos agravamentos de saúde e mortes evitáveis por infecção hospitalar, adotando-se padrões rígidos e permanente política de gestão primando, sobretudo, pela transparência de dados ao paciente, não só pela incidência do código de defesa do consumidor, considerada a relação do tratamento de saúde "sui generis", mas sobretudo pelo paciente figurar como protagonista no iminente, e imperioso, Estatuto do Paciente.   _______ ALBUQUERQUE, Aline. Direitos humanos dos pacientes. Curitiba. Ed. Juruá. 2016. ANDRÉ, Victor Conte (coord). Responsabilidade Médica. Curitiba: Ed. Juruá. 2020. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 13ª edição. São Paulo: Editora Gen/Atlas. 2017. ARMOND, Guilherme. Segurança do Paciente. Rio de Janeiro: Ed. DOC Content.2016. BRUSTOLIN, Leomar Antônio (org). Bioética. São Paulo: Ed. Paulus. 2010. BYK, Christian. Tratado de Bioética. São Paulo: Ed. Paulus. 2015. CIMINO, Valdir. Humanização em Saúde: humanizar para comunicar ou comunicar para humanizar? São Paulo: Ed. Contracorrente. 2016. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO-Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DALVI, Luciano. Curso Avançado de Biodireito. Florianópolis: Editora Conceito. 2008. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil-parte geral. Rio de Janeiro:Ed.Rio.1977. DEODATO, Sergio. Direito da Saúde. Portugal: Ed. Almedina.2012. DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. São Paulo: Ed. Wmfmartinsfontes.2019. MEDICI, Andre Cezar. 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Introdução O STJ, em recente julgamento (REsp 2.172.296/RJ), enfrentou um tema de alta relevância jurídica e social: a responsabilidade de provedores de aplicativos de mensagens privadas diante da disseminação de imagens íntimas de menor, sem consentimento, prática comumente associada à chamada pornografia de vingança. A expressão, portanto, chama a atenção para um fato grave. O caso analisado envolvia o WhatsApp, cuja defesa repousava na alegação de impossibilidade técnica de remover o conteúdo, em razão da criptografia ponta a ponta. Contudo, a 3ª turma foi além da literalidade da legislação e da superficial invocação da impossibilidade técnica, para reafirmar a necessidade de concretude na proteção das vítimas, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes, pessoas em peculiar condição de desenvolvimento. Sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, o Tribunal reconheceu que a proteção da dignidade e da intimidade da vítima não pode ser frustrada por justificativas genéricas baseadas em supostas limitações tecnológicas, sobretudo quando inexiste prova pericial que comprove, com rigor técnico, a impossibilidade de cumprimento da ordem judicial. Mais do que isso, o julgado destacou que, ainda que a exclusão direta do conteúdo fosse inviável por questões estruturais do serviço, caberia ao provedor adotar outras medidas eficazes para mitigar o dano, como o bloqueio ou a suspensão das contas envolvidas, especialmente quando possível a identificação do usuário infrator por meio do número de telefone vinculado à conta. Rechaçando o paradoxo da segurança digital, em que quanto mais avançado o sistema de segurança, mais vulneráveis ficam as vítimas dos abusos, o STJ deixou claro que o Marco Civil da Internet deve ser interpretado à luz da função protetiva do Direito, especialmente no que diz respeito à dignidade infantojuvenil. Além disso, houve importante manifestação da Corte quanto à tentativa da empresa recorrente de desistir do recurso após a distribuição, conduta vista como potencial estratégia para evitar a formação de jurisprudência. Em razão do relevante interesse público, da originalidade do tema e da necessidade de uniformização nacional da jurisprudência, a 3ª turma decidiu não homologar a desistência, firmando-se como leading case. O julgamento consolida uma orientação que alia responsabilidade digital e efetividade dos direitos da personalidade, contribuindo para o fortalecimento de uma jurisprudência comprometida com a proteção das vítimas e com a adaptação do Direito às novas tecnologias e, no caso ora em análise, à luz da proteção de crianças e adolescentes. Conclusão Bruno Miragem leciona que pela interpretação do Marco Civil da Internet, em especial atenção ao art. 21, está inserida a responsabilidade subsidiária e subjetiva do provedor1, quando este "[...] deixa de promover a indisponibilização do conteúdo."2. O mestre ressalta, ainda, que a disponibilização do conteúdo é, por si próprio, concausa para o dano a um terceiro. Ensina, também, que a regra geral que exige do interessado que recorra ao Poder Judiciário se trata de um ônus grave, considerando a velocidade que que a propagação da informação pela internet ocasiona no sentido da disseminação do conteúdo ofensivo.3 O julgamento do REsp 2.172.296/RJ representa um avanço na tutela da dignidade humana no ambiente digital, ao afirmar que provedores não podem se esquivar da responsabilidade sob o pretexto de limitações técnicas não comprovadas. Ao priorizar a proteção das vítimas, especialmente de crianças e adolescentes, o STJ reafirma o compromisso do Direito com a efetividade dos direitos da personalidade frente aos desafios das novas tecnologias. A condenação ora em análise nos inspira às lições de Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto quando nos ensinam sobre o princípio da prevenção, ou seja: "Evitar e mitigar um dano se converte em questão central e maior desafio para a responsabilidade civil do século XXI."4.Contudo, não foi o que fez o réu conforme as linhas que aqui traçamos. Referências bibliográficas 1 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 478. 2 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 478. 3 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 479. 4 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 51. _______ BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.172.296/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado: em 04/2/2025. Disponível aqui. MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024.
A ampliação da dimensão multifuncional da responsabilidade civil tem por base que ela deve ser capaz de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social. Para além da abordagem do estudo da responsabilidade civil das escolas e dos pais pelos atos dos filhos menores, importante realçar o acesso à educação. Nas excelentes observações do ministro Luis Edson Fachin1, "cabe recordar que, em todo campo do saber, há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não liberta". E se não fosse só por estes ensinamentos, Paulo Freire2 conclui que "a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa". E não é por outra razão que o Direito contribui em estimular o regime democrático, sobrepujando o que há na teoria para enfrentar a prática. Não há democracia, isonomia e Justiça social sem o acesso pleno à educação para só assim confirmar o quão isso esperado pelo legislador constituinte. Como asseverou Norberto Bobbio3 "uma das maiores virtudes da democracia é permitir-se espaço até mesmo para aqueles que nela não creem". E nessa apuração do regime democrático e o enfrentamento da prática nos Tribunais verifica-se que o que ocorre no cotidiano dos estudantes, em especial dos menores do ensino fundamental e médio, são as profundas mudanças da relação colégio (professor) e alunos. Há um enorme esforço para impedir prejuízos na formação de personalidade por conta de ilícitos dentro da escola. É notório que a responsabilidade do estabelecimento privado de ensino, - com o CDC - não se apresenta como responsabilidade indireta do educando, mas sim, como responsabilidade objetiva direta, com base no art. 14 do CDC. O dever do colégio (fornecedor) de prestar serviços seguros a seus alunos (consumidores) funda-se no fato do serviço e não no fato do preposto ou de outrem. Assim, para se aferir a responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor, é necessário a verificação da existência de conduta (comissiva ou omissiva), do nexo causal e do dano alegado, sem se adentrar sobre elemento subjetivo. É certo que durante o período em que o aluno se encontra sob os cuidados da escola e dos educadores há um intervalo do exercício efetivo da guarda, da autoridade dos pais. Por esta razão os atos danosos praticados por alunos a outros alunos dentro das escolas remetem à responsabilidade indenizatória da escola. Todavia, será que deveria caber somente à escola o pedido indenizatório quando ela não contribuiu para o incidente lesivo diante do que nos pauta a realidade voraz que vivenciamos hoje nos padrões de comportamento de nossas crianças e adolescentes? Passamos a análise. Não há como não reconhecer o enorme avanço que a sociedade contemporânea experimentou nas últimas décadas, em especial no que tange à realidade tecnológica, a necessidade constante (em especial nos Tribunais) da objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano. Emerge-se a necessidade de se identificar os riscos, a relevância de suas funções e os seus instrumentos de atuação. Não há dúvida de que há insuficiências - para efetiva tutela de direitos - da função exclusivamente reparatória da responsabilidade civil, principalmente quando os danos atingem direitos fundamentais, cujos interesses jurídicos dificilmente são recompostos ao estado anterior ao dano. Nesse compasso, o Projeto do Código Civil vem preenchido com as expectativas de ampliação da "tutela efetiva da vítima" com forte aplicação da função preventiva com foco em combater prática de comportamentos considerados intoleráveis na sociedade. Para Nelson Rosenvald4 tais medidas possuiriam um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica".  Nesse sentido o STJ5 há tempos tem assinalado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis". É por isso que a proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com forte inspiração na função preventiva. Sem dúvida esse novo olhar seguramente dará foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela (negativa) do direito. A abordagem trazida pela proposta legislativa é a de que a responsabilidade civil intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva (tutela positiva), sem que isso represente o não acesso ao Judiciário quando há lesão. Nas palavras de Norberto Bobbio6, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrario sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa". Sem se olvidar do espaço ocupado pela tradicional função reparatória, a responsabilidade civil preventiva consiste no redimensionamento do instituto, com o desígnio de proteger a integralidade dos direitos, prevenindo tanto a violação desses direitos, quanto a eventual ocorrência de danos. De início, o caput do art. 927-A do anteprojeto ampara o dever de prevenção ao dispor que "todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los". Vê-se claramente a função preventiva posto impor medidas de evitar danos considerados previsíveis, de mitigação de seu alcance e de não agravamento do dano, na hipótese de já ter se realizado (art. 927-A, parágrafo 1º, do anteprojeto). E nesse diapasão o efeito didático - como alertado por Rosenvald - a responsabilidade civil das escolas e pais deve-se ver pela ótica preventiva também, pois assim proporcionar-se-á maior segurança jurídica e atenderia aos anseios atuais que orientam o instituto a um sistema multifuncional. Prescreve o anteprojeto no art. 932 que "responderão independentemente de culpa, ressalvadas as hipóteses previstas em leis especiais: I - os pais, por fatos dos filhos, crianças e adolescentes, que estiverem sob sua autoridade [...] VI - ressalvada a incidência da legislação consumerista, os donos de estabelecimentos educacionais e de hospedagem, pelos danos causados por seus educandos e hóspedes, no período em que se encontrarem sob seus cuidados e vigilância". Atentem-se que a responsabilidade dos pais continua sendo objetiva e a expressão companhia foi retirada da proposta legislativa por não ser apropriada, afinal, não é a proximidade física que invoca exclusivamente responsabilidade dos pais por danos provocados pelos filhos menores. De forma pragmática, não há dúvida que mesmo os pais mais cuidadosos não estão presentes em todos os momentos do dia do filho (e nem deveria ser). A tarefa dos deveres educativos é árdua e, mesmo que ajam adequadamente num padrão geral de conduta de educadores/preceptores de pessoas, não estão livres de más condutas dos filhos. Rosenvald7 apontando jurisprudência argentina destaca que "o conceito de vigilância ativa, que não significa vigilância constante, mas educação constante cuja tarefa abrange toda uma vida, e implica entre outras tarefas, reprimir as más inclinações dos filhos, redirecionando-as". No julgado citado pelo autor, o tribunal argentino menciona que há presunção de defeito na educação à vista do fato cometido. Em ato contínuo e não menos responsável as escolas também respondem objetivamente por danos causados por alunos no período em que eles estejam aos seus cuidados. De fato, as escolas - como prestadoras de serviços - estão sujeitas ao CDC e responderão independente de culpa (art. 14 CDC). Os estabelecimentos de ensino respondem independente de culpa pelos danos causados por seus funcionários ou dos alunos causem a terceiro, só não aplicável às universidades cujos alunos já possuírem discernimento e são responsáveis pelos seus atos. De fato, as escolas são responsáveis por coibir práticas lesivas (mesmo no atual Código) podendo ser responsabilizadas pela omissão incluindo no período de intervalos de aulas sendo típico caso de aplicação da tutela preventiva, ou seja, impõe-se evitar lesão e, por isso, respondendo a escola e, subsidiariamente os pais dos menores agressores. E aqui encontra-se o fundamento deste artigo, se por um lado as escolas assumem o risco da atividade, por outro lado essa responsabilização pode se mostrar excessiva, pois os professores e direção das escolas não podem suprir posturas agressivas e hostis, resultados de educação de pouco zelo dos pais no todo ou em parte, já que traços de personalidade perversa pode haver independente das ações dos pais. Isentar os pais da responsabilidade diante do dano causado mesmo no ambiente escolar é transferir (muitas das vezes) integralmente a responsabilidade pelos filhos para a escola e é medida extrema sem relação causal. Os danos causados pelos alunos podem (e quase sempre é) advir não de antecedentes imputáveis à escola, mas (também) aos pais. Assim, veja-se: os conceitos educação e escolarização parecem iguais, mas não são. A educação é um processo contínuo de desenvolvimento do ser humano, possibilitando a formação e integração dele como cidadão na sociedade e isso começa com os pais, pois eles são os principais responsáveis pela formação dos filhos como pessoa. Por outro lado, a escolarização é um conjunto de conhecimentos obtido por meio da escola, sendo o professor o responsável por ensinar. Educar é mais amplo e que também envolve escolarização. O papel dos pais nesse processo de formação pessoal não pode ser transferido para a escola. A instituição de ensino e os professores não assumirão as responsabilidades que são dos pais, algo que certamente seria inviável. As crianças observam o comportamento e atitudes dos pais e das mães e, mesmo sendo potencialmente os tidos como "melhores comportamentos" há o viés da personalidade da pessoa e que é (também) formada na infância. A prática fundada dos pais em valores humanos é o alicerce para construção de seres humanos respeitosos. Além de impor limites, ensinar a ter respeito, reconhecer e corrigir erros, os pais também devem marcar presença na vida dos filhos, assumindo o papel de incentivadores da criança ou adolescente. O que não quer dizer que com isso se afasta a responsabilidade das escolas por danos provocados pelos alunos às vítimas enquanto estão sob seus cuidados, mas retirar o direito à ação regressiva delas contra os pais é deixar à cargo das escolas o dever de educar difere de seu projeto, que é a escolarização. Em algumas cenas da série da Netflix "Adolescência" mostra o quão é difícil detectar o malefício que sofre o filho ou que ele seja o ofensor ou pior ainda transpor a barreira e labirinto da internet. Em um dos diálogos tocantes da série a mãe do adolescente misógino e que sofria bullying traduz a dor e angústia de não conseguir se infiltrar no impermeável mundo virtual: "Nunca dizia nada, a gente também fez ele". Sob o ângulo geracional, o diálogo entre pais e filhos é hoje mais assíduo e sincero que no passado, mas a diferença é que antes não havia a internet com seus símbolos, idioma próprio e um pacto silencioso. Parece-nos que para as crianças e adolescentes recebam a melhor educação e escolarização, é necessário que tanto a escola quanto a família atuem em conjunto, mas isso não quer dizer que mesmo com tudo isso, não existe situação em que eles (pais) não sejam mais educadores dos seus filhos. A função educacional dos pais é imperativa, eles sempre serão educadores em razão da sua posição enquanto referência primeira e imediata. A escola e pais (em conjunto) devem estar atentos e agir com rapidez para que alunos reflitam sobre suas atitudes e questões de gênero, preconceitos, masculinidade. Apoio para identificar a desinformação, romper a inércia e adentrar aos quartos. São passos na direção certa, porém insuficientes da envergadura do desafio difícil de mecanismos para garantir espaço seguro nas redes, talvez a adoção da Austrália de proibir o acesso às redes a menores de 16 anos pode ser uma alternativa8 Parece que não se pode excluir uma responsabilidade dos pais junto com a escola quando o menor mesmo dentro da desta realiza atos ofensivos e ligados aos traços de personalidade. Estudo e análise do caso concreto é que fará a composição da indenização. O caminho para solução de indenizações em razão de danos causados por menores é um desafio colossal para nossa doutrina e jurisprudência e, por isso só as circunstâncias de cada caso poderão esclarecer a proporcionalidade das responsabilidades jurídicas para pais e escolas mesmo que o menor esteja sob os cuidados da escola. É por esta razão que o anteprojeto do código civil faz um diálogo com as disposições do CPC (art. 497, parágrafo único CPC) relacionadas à tutela inibitória e de remoção do ilícito. A responsabilidade civil preventiva, ao atuar por meio dos instrumentos inibitórios, cumpre o dever jurídico de diligência e proteção, com o propósito de que os indivíduos, em suas interações, não infrinjam direitos alheios ou causem danos a eles e isso inclui os pais com ainda que estejam os filhos na escola quando as ações dos filhos ultrapassam a medida de educação que deveriam ter em casa. Amparado nesse propósito, o relatório do anteprojeto sustenta a introdução das funções preventiva (art. 927-A) e pedagógica (§ 3º, artigo 944-A) com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais. Por fim, não há outro referencial para prevenção: só agindo de forma, ética, comprometida com o outro e com o mundo, com o cuidar é que se pode imaginar a preservação da própria civilização. O cuidado constitui a categoria central do novo paradigma mundializado e globalizado, assumindo dupla função: de prevenção a danos futuros e regeneração de danos passados. ___________ 1 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, p.3. 2 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 42. 3 BOBBIO, Norberto.In OLIVEIRA JÚNIOR, O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2000. 4 ROSENVALD, Nelson. Curso direito 2022, p. 430 5 Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão. 6 BOBBIO, Norberto. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 24. 7 ROSENVALD, Nelson. Curso direito de direito civil. 2022, p. 552. 8 Disponível aqui. Acesso em 4/5/25. _____________ Bibliografia MORAES, Ana Beatriz; LOPES, Carlos Eduardo. A Função Preventiva da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2020. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma releitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2017. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book. SILVA, João Carlos. Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. As penas privadas no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
A complexidade crescente do universo digital e seus impactos nas relações sociais impõem desafios constantes ao direito, especialmente no que tange à identificação e reparação de danos. Em um cenário marcado pela onipresença das redes sociais, a responsabilidade civil dos provedores de aplicações por conteúdos gerados por terceiros emerge como um dos debates de grande relevância, tangenciando até mesmo riscos ao princípio democrático. O marco civil da internet (lei 12.965/14) constituiu um marco na regulamentação da Rede no Brasil. Apesar de estabelecer princípios importantes e enunciar direitos no meio digital, a opção legislativa para a responsabilização dos provedores de aplicação pelo conteúdo gerado por terceiros, nos termos do art. 19 e ss., ocupa o centro destes debates. A regra geral estabelece que a responsabilização civil do provedor por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros está condicionada à existência de uma ordem judicial específica, que deve conter a identificação clara do conteúdo ilícito pelo respectivo endereço eletrônico (URL), e ao descumprimento dessa ordem em prazo razoável.1 A lógica declarada por trás dessa opção legislativa no marco civil foi a de resguardar a liberdade de expressão e evitar a censura prévia. Ou seja, supostamente, buscar-se-ia evitar retiradas indevidas de conteúdos unilateralmente pelos provedores. Contudo, essa sistemática desequilibra a proteção à vítima, uma vez que, para que o provedor seja responsabilizado civilmente pela omissão em retirar o conteúdo, exige-se uma ordem judicial em que se forneça o link exato do conteúdo lesivo. Especialmente em se tratando de um ambiente cujas informações circulam em tempo real e, em pouco tempo, os danos podem se tornar irreversíveis, especialmente em casos do que ficou conhecido como "viralização". Em linhas gerais, viralização consiste na rápida difusão de determinados conteúdos na Internet, especialmente em redes sociais. Segundo lecionam Daniel Dias, Nicolo Zingales et alli, o uso em larga escala de algoritmos de impulsionamento, típico dos grandes provedores de aplicações, popularmente chamados de big techs, elevam o risco de danos decorrentes da viralização de conteúdos lesivos, razão porque seria necessária a construção de um sistema de responsabilidade progressiva capaz à altura de seus potenciais danosos.2 Entretanto, a 4ª turma do STJ, em recente julgamento do recurso especial 1.969.219-SP (informativo 848/25)3, não tomou em conta tal peculiaridade e reforçou a necessidade da indicação da URL específica para a remoção de conteúdo por provedores de busca. A decisão reiterou a tese de que a imposição de remoção genérica sem a indicação de URLs seria uma "obrigação impossível de ser cumprida". Embora o acórdão trate especificamente de provedores de busca, distinguindo-os dos provedores de conteúdo e hospedagem, onde se alocam as aplicações mais comuns em redes sociais, sublinham-se os problemas gerados pela suposta primazia da exigência da URL no entendimento da Corte para a configuração da responsabilidade do provedor. É precisamente neste ponto que reside uma das principais críticas ao modelo adotado pelo marco civil, reafirmado pelo Tribunal da Cidadania. Essa exigência de indicação da URL, embora compreensível no contexto de proteção genérica da liberdade de expressão e suposta garantia contra a censura, torna-se um desproporcional para a vítima. Em especial quando se tem em mente conteúdo ofensivo, inverídico ou discriminatório, os quais se replicam rapidamente na Internet, dificultando ou tornando inviável que a vítima identifique e monitore cada novo link onde a violação ocorre.4 Nesse sentido, o enunciado 554 da VI Jornada de Direito Civil do CJF - Conselho da Justiça Federal, dispõe: "Independe de indicação do local específico da informação a ordem judicial para que o provedor de hospedagem bloqueie determinado conteúdo ofensivo na internet".5 A ratio do enunciado baseia-se na necessidade de tutela da dignidade humana do usuário. A rapidez com que as informações se propagam e se replicam torna a exigência da URL específica inócua na prática, frustrando a efetividade da tutela jurisdicional e dificultando sobremaneira a mitigação em favor da cessação dos danos. Ademais, a lógica do art. 19 do marco civil parece tratar as violações de forma atomizada, como incidentes individuais. No entanto, o cenário atual da internet é marcado pela propagação em massa de conteúdos tóxicos: perfis falsos, discurso de ódio, desinformação ("fake news"), etc. Esses fenômenos não são meros "desvios patológicos de conduta", mas sim, muitas vezes, fruto de ações coordenadas, milícias digitais e uma "economia paralela" que subvertem o ambiente informacional e prejudicam o próprio debate democrático. Nesses casos, a ilicitude do conteúdo é, muitas vezes, flagrante e sistêmica. Para esses tipos de conteúdo flagrantemente ilícitos, também chamados de  conteúdos tóxicos ou potencialmente perigosos,6 a rigidez da exigência da notificação judicial com URL específica, prevista no art. 19 do MCI, mostra-se inadequada. Inspirado pelo modelo de responsabilidade objetiva e a lógica de proteção da vítima e mitigação de riscos que permeiam o Código de Defesa do Consumidor e a evolução do sistema de responsabilidade civil para além da culpa, perquire-se acerca da possibilidade de os provedores de aplicações serem responsabilizados civilmente se não tomarem as providências para torná-lo indisponível em um prazo razoável, independentemente de ordem judicial específica e, em muitos casos, da indicação precisa da URL. Trata-se de uma exceção necessária à regra geral do art. 19, §1º, do MCI. Afinal, é crescente o coro doutrinário no sentido de que os grandes provedores de aplicações possuem os meios técnicos capazes de executar um poder de moderação sobre o conteúdo que hospedam e, portanto, permitir que a "imunidade" baseada na falta de URL específica continue contribuindo para um ambiente online hostil e potencialmente perigoso. Apesar das preocupações sobre se tal  implicaria censura prévia generalizada, a prática é que a imunidade aumenta o espaço de discricionariedade da plataforma, fortalecendo seus poderes privados e, portanto, os riscos de imposição de censura privada. Daí porque uma interpretação do art. 19 à luz da Constituição Federal e do CDC, especialmente diante de violações a direitos da personalidade e danos causados por conteúdos tóxicos, poderia levar a uma flexibilização da exigência da URL específica para as redes sociais, na linha do enunciado 554 do CJF. A decisão do STJ no REsp 1.969.219-SP, ao reafirmar a necessidade da URL para provedores de busca, embora distinta dos provedores de conteúdo/hospedagem, alerta para a rigidez interpretativa em prol da imunidade dos provedores. Mas não é surpresa, dado o posicionamento consolidado da Corte.7 É crucial que a doutrina e a jurisprudência, especialmente o STF ao analisar a constitucionalidade do art. 19 do MCI, considerem a particularidade e a gravidade dos conteúdos tóxicos. Para Fernando Henrique de O. Biolcati, na melhor interpretação do art. 19 do MCI: [...] haver a imposição normativa de obrigação de controle de conteúdo aos provedores de redes sociais, consentânea ao tipo de atividade por eles exercida, cada vez menos neutra ao se ampliarem os instrumentos de personalização do uso e de massificação no compartilhamento dos materiais, com o incremento anormal dos riscos.8 O autor ainda aponta que a falha nesta obrigação de controle poderia "gerar a responsabilização civil, em caso de conteúdos claramente ilícitos e potencialmente danosos, bem como de remoção indevida de conteúdos, com foco no vício na prestação do serviço".9 Este modelo enfatiza que, dada a natureza da atividade dos provedores, que se tornam menos neutros e aumentam os riscos com a personalização e massificação do conteúdo, até mesmo um dever de controle se impõe, e seu descumprimento pode acarretar responsabilidade civil. A tutela da dignidade humana e a proteção da sociedade contra os males da desinformação e do ódio online exigem que se repense a distribuição do sistema de responsabilidade civil. A vítima de um perfil falso ou de discurso de ódio replicado centenas de vezes não pode ser obrigada a travar uma batalha judicial individual por cada link. Nessa esteira, destaca-se que o STF retomou o julgamento que discute a constitucionalidade do art. 19 do MCI e a possibilidade de responsabilização dos provedores de aplicação por conteúdos inseridos por terceiros. O julgamento não foi concluído, uma vez que foi suspenso pelo pedido de vista do ministro André Mendonça. Votaram até agora os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Destaca-se a proposta no voto do ministro Dias Toffoli, ao posicionar-se pela inconstitucionalidade do art. 19 do MCI e a adoção da sistemática do art. 21 como marco para a responsabilização das redes sociais por conteúdos ilícitos ou ofensivos. Ou seja, as redes poderiam ser responsabilizadas caso não tomassem providências após o recebimento de notificação extrajudicial, retornando-se a um sistema semelhante ao adotado pela jurisprudência anteriormente à promulgação do marco civil da internet.10 Em essência, deve-se ter em mente que a relação entre provedores de aplicações que oferecem serviços digitais e seus usuários configura relação de consumo. O responsável pela "plataforma", ao veicular ofertas de produtos e disponibilizar sua infraestrutura tecnológica, assume a posição de fornecedor de serviços. Se a lei especial, no caso o marco civil, estabeleceu um suposto regime de responsabilidade diverso do CDC, a harmonização entre ambos é fundamental e o STF tem a oportunidade de analisar o tema sob a ótica da proteção da dignidade dos usuários, consumidores. Referindo-se ao STJ, o ministro Tóffoli, em seu voto,  destaca a necessidade de posicionamento cauteloso sobre a relação entre marco civil da Internet e o CDC, uma vez que não são diplomas legais em rota de colisão.11 A atuação econômica dos provedores de aplicações deve corresponder a um dever geral de cuidado, cautela e diligência, um dever de segurança e transparência para com os respectivos ambientes virtuais e seus usuários. Como temos nos posicionado, espera-se que o STF tenha sensibilidade em estabelecer um regime em que se harmonizem a liberdade de iniciativa dos grandes provedores, as big techs, e direitos fundamentais dos consumidores no Brasil, evitando a sobreposição de poderes privados de gigantes conglomerados empresariais em prol até mesmo da soberania nacional e da força normativa da Constituição. ______________ BIOLCATI, Fernando Henrique de O. Internet, Fake News e Responsabilidade Civil das Redes Sociais. (Coleção Direito Civil Avançado). São Paulo: Grupo Almedina, 2022. E-book. ISBN 9786556276410. Disponível aqui. Acesso em: 16/3/25. BRASIL. Conselho Da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado n. 554. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Edição n. 224: Marco Civil da Internet III - Lei n. 12.965/2014. Brasília, 27 de outubro de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.969.219-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 24/3/2025, DJEN 28/3/2025, noticiado em BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência n. 848, de 29/4/25. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do Ministro Dias Toffoli no Recurso Extraordinário 1.037.396-SP. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. DIAS, Daniel Pires Novais; BELLI, Luca; ZINGALES, Nicolo; GASPAR, Walter; CURZI, Yasmin. Plataformas no Marco Civil da Internet: a necessidade de uma responsabilidade progressiva baseada em riscos. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 1-24, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 8/5/25. LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil e redes sociais: retirada de conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio, fake news e milícias digitais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na Internet. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. ____________ 1 Acerca do tema, MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na Internet. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 431. 2 Cf. DIAS, Daniel Pires Novais; BELLI, Luca; ZINGALES, Nicolo; GASPAR, Walter; CURZI, Yasmin. Plataformas no Marco Civil da Internet: a necessidade de uma responsabilidade progressiva baseada em riscos. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 1-24, 2023. p. 18. Disponível aqui. Acesso em: 8/5/25. 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.969.219-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 24/3/2025, DJEN 28/3/2025, noticiado em BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência n. 848, de 29 de abril de 2025. 4 Para maiores aprofundamentos, V. o nosso: LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil e redes sociais: retirada de conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio, fake news e milícias digitais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. p. 101 e ss. 5 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado n. 554. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. 6 Cf. LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil e redes sociais: retirada de conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio, fake news e milícias digitais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. p. 121 e ss. 7 Consolidado na Jurisprudência em Teses Edição n. 224: 1. Não é possível obrigar os provedores de pesquisa virtual a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde estiver inserido o conteúdo ilícito/ofensivo. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Jurisprudência em Teses: Edição n. 224: Marco Civil da Internet III - Lei n. 12.965/2014. Brasília, 27 de outubro de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. Este entendimento é fundamentado, entre outros, nos seguintes julgados: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1848036/SP. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05/05/2022. DJe 05/05/2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1593249/RJ. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 09/12/2021. DJe 09/12/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1616664/GO. Relator: Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/05/2021. DJe 27/05/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1771911/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/04/2021. DJe 26/04/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1754214/SP. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 03/08/2020. DJe 03/08/2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1599054/RJ. Relator: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 11/05/2017. DJe 11/05/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 730119/RJ. Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 09/06/2016. DJe 09/06/2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rcl 5072/AC. Relator: Ministro Marco Buzzi. Relator p/ Acórdão: Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 11/12/2013. DJe 04/06/2014. 8 BIOLCATI, Fernando Henrique de O. Internet, Fake News e Responsabilidade Civil das Redes Sociais. (Coleção Direito Civil Avançado). São Paulo: Grupo Almedina, 2022. E-book. ISBN 9786556276410. Disponível aqui. Acesso em: 16/3/25. p. 202-203. 9 Id. p. 202-203. 10 Por outro lado, Toffoli elenca um rol taxativo de conteúdos que levarão à responsabilidade civil objetiva das plataformas caso o material não seja excluído, independentemente de notificação extrajudicial ou decisão judicial: (a) crimes contra o Estado Democrático de Direito (CP, art. 296, parágrafo único; art. 359-L, art. 359-M, art. 359-N, art. 359-P, art. 359-R). (b) atos de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260, de 2016. (c) crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou à automutilação (CP, art. 122). (d) crime de racismo (Lei nº 7.716, de 1989, arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C). (e) qualquer espécie de violência contra a criança, o adolescente e as pessoas vulneráveis, incluídos os crimes previstos nos arts. 217-A a 218-C do Código Penal, com redação dada pelas Leis nº 12.015, de 2009, e nº 13.718, de 2018, e na Lei nº 8.069, de 1990, e observada a Lei nº 13.257, de 2016, e a Res. CONANDA nº 245, de 2024. (f) qualquer espécie de violência contra a mulher, incluindo os crimes da Lei nº 14.192, de 2021. (g) infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, nos termos do art. 10 da Lei nº 6.437, de 1977. (h) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A). (i) incitação ou ameaça da prática de atos de violência física ou sexual (CP, art. 29 c/c arts. 121, 129, 213, 215, 215-A, 216-A, 250 e 251 c/c art. 147). (j) divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que levem à incitação à violência física, à ameaça contra a vida ou a atos de violência contra grupos ou membros de grupos socialmente vulneráveis. (k) divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral (Res. nº 23.610/2019, arts. 9-C e 9-D). BRASIL. Voto do Ministro Dias Toffoli no Recurso Extraordinário 1.037.396-SP. Disponível aqui. https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2024/12/05210439/RE-1037396-VOTO-RELATOR.pdf. Acesso em: 30 abr. de 2025. 11 Id. p. 19.
No presente artigo, busca-se analisar a fundamentação da sentença judicial que arbitrou indenização em favor da atriz global Glória Pires, em razão de uso indevido de sua imagem, caracterizado pela aplicação de meme em propaganda. Em meados do mês de fevereiro do ano de 2025, o nome da atriz global Glória Pires foi repercutido nos mais diversos meios de notícia, mas dessa vez por um fato não relacionado à sua dramaturgia. Trata-se da divulgação da sentença exarada nos autos de processo judicial movido por ela em face da empresa "ME PASSA AÍ EDIÇÕES, PRODUÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA S/C" e seu suposto proprietário. Em síntese, a decisão proferida pelo juízo, vinculado ao TJ/RJ, determinou o pagamento de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) em favor da atriz, a título de indenização pelos danos morais causados por utilização indevida da imagem da atriz. Isso posto, cabem considerações jurídicas sobre a notícia no que tange à responsabilidade civil, ponto central do processo. Para tanto, convém tratar da utilização da imagem da celebridade. Da leitura do decisum, é possível verificar que a imagem da global foi utilizada em formato de meme pela empresa, que reproduziu trecho famoso da participação da atriz na cobertura do Oscar de 2016 realizada pela emissora Globo, notadamente pelo uso da frase: "não sou capaz de opinar". Diante disso, o pensamento menos atento pode ser induzido a acreditar que o reconhecimento do dever de indenizar decorreu do tom jocoso ou pejorativo que um meme eventualmente carrega, que poderia ter atingido à honra da celebridade. Porém, da leitura da decisão é possível notar que o reconhecimento da utilização indevida tem no seu núcleo dois outros fatores principais, quais sejam: a ausência do consentimento e a finalidade comercial da veiculação da imagem. Prova disso é o fato de que a decisão aplicou como base da sua fundamentação a súmula 403 do STJ, que estabelece: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais". No que tange ao uso indevido de imagem, é necessário pontuar que o dever de indenizar está previsto no art. 5°, inciso X, da CF/88: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;    (grifos nossos) De mais a mais, também é ilícito o enriquecimento à custa de outrem sem justa causa, conforme reza o art. 884 do CC: Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Assim sendo, a suposta violação constatada pela aplicação de um meme sem autorização, para além da evidente mácula que pode causar à imagem da global ao ser associada a um produto que desconhece ou, no mínimo, não referenda, atinge diretamente direito personalíssimo de imagem, sob o qual a ninguém é lícito locupletar-se. Diante disso é que, apoiado no entendimento fixado pelo STJ, o eminente julgador entendeu pela aplicabilidade do dano in re ipsa no caso concreto, dispensando o requisito da comprovação do dano para configurar o dever de indenizar. Sobre a figura do dano in re ipsa, oportuno destacar que sua existência não está prevista em nenhum Diploma Legal integrante do Ordenamento Jurídico brasileiro, sendo, sobretudo, uma figura oriunda da jurisprudência, com destaque para a produção do Tribunal da Cidadania.1 Objetivamente, o dano in re ipsa é usualmente reconhecido nos casos em que a ação ou omissão apreciada, por si só e pelos elementos que lhe cercam naturalmente, em razão do bem jurídico que ofende, seus reflexos e natureza, tem o condão de gerar o dever de indenizar, sendo o dano causado deduzido pela mera utilização da razão comum, consoante fundamentação do acórdão proferido durante o julgamento do REsp 1.327.773-MG2, sob a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. Isso posto, sendo a demandante pessoa que trabalha e se mantém financeiramente pela exploração direta da imagem, torna-se ainda mais fácil a compreensão da relevância da proteção do bem jurídico e dos danos que o ato ilícito discutido, em si, pode causar. Por fim, conclui-se com a certeza de que a indenização arbitrada em favor de Glória Pires teve como fato ensejador não o meme, diretamente, mas o possível enriquecimento ilícito de terceiro por meio da utilização de sua imagem em plataforma comercial sem o devido consentimento ou contraprestação. _____________ 1 Criado pela Constituição Cidadã de 1988, o STJ também é conhecido como "Tribunal da Cidadania". 2 Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 403. Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fi ns econômicos ou comerciais. Diário da Justiça: Segunda Seção, Brasília, DF, 24/11/2009. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025. 4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025. 5 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025. 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.327.773-MG (Quarta Turma). Acórdão. Recurso Especial. Propriedade Industrial. Uso indevido de marca de empresa. Semelhança de forma. Dano material. Ocorrência. Presunção. Dano moral. Aferição. In re ipsa. Decorrente do próprio ato ilícito. Indenização devida. Recurso provido. [...] Recurso especial provido. Data de Julgamento: 28/11/2017, Data de Publicação: DJe 15/02/2018, Brasília-DF. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025.
Como ensina Sérgio Cavalieri, a seara da responsabilidade civil é das mais férteis, podendo desaguar no direito público e privado; área essa cujos domínios são ampliados "na mesma proporção que se multiplicam os inventos, as descobertas e outras conquistas da atividade humana" (CAVALIERI FILHO, 2007, p. xxv). Uma das atividades humanas recentes são as novas tecnologias digitais associadas às telecomunicações, despontando novos arranjos econômicos e sociais, cada vez mais alinhados à transmissão de informações (Doneda, 2006). É a denominada sociedade da informação (Castells, 2020). No Brasil, por exemplo, desenvolveu-se o Livro Verde, tratando da sociedade da informação (BRASIL. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 2000). Outro autor que já analisava, numa perspectiva econômica, essa sociedade da informação, foi Jeremy Rifklin, ao denominar como a era do acesso; supera-se a era da acumulação, do ter, para a era da informação, do conhecimento (Rifklin, 2001, p. 13). E agora despontam-se as tecnologias disruptivas. E uma delas é a inteligência artificial.  A IA toma decisões, mediante atuação de algoritmos e grande volume de dados; e a aplicação dela avança para potencializar funcionalidades em equipamentos, blockchain, drones, smartgrids (redes elétricas inteligentes), robótica. Por exemplo, a robótica, ao ser utilizada na saúde, desponta debates e desafios na responsabilidade civil (sobre o tema, consultar Nogaroli, 2023). Ressalte-se que a IA mereceu, recentemente, análise no relatório da UNCTAD (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2025, p. 153). Dito documento reconhece a necessidade de os indivíduos buscarem indenizações decorrentes de danos relacionados à IA; mas o relatório pondera que, se por um lado, essas preocupações conduzem para temas relacionados aos padrões de segurança, confiabilidade e ética, por outro, ressalta o Relatório de que ditas preocupações podem desviar a atenção e os investimentos no âmbito dos modelos de IA. Ou seja, o Relatório pontua a necessidade de equilíbrio entre ditas preocupações, mas, reforçamos que o enfoque deve ser a proteção da vítima. Os desafios da interpretação jurídica em matéria de responsabilidade civil decorrente da IA sugerem vários questionamentos: i. Qual o limite da imputação deste dever de indenizar? ii. A quem imputar o dever de indenizar? iii. Ao desenvolvedor da IA? iv. Àquele que dela se utiliza para expandir seus negócios? v. Àquele que maneja e alimenta a IA com dados? vi. Àquele que exerce a programação? vii. Ou a própria IA mediante sua personificação, conforme ela passe a ser uma pessoa jurídica? Diante desses questionamentos, inegável que a IA passa a exigir novos deveres de conduta, revelam-se novos danos, novos riscos e decisões mais e mais imprevisíveis. Neste sentido, propõem articularem-se IA e responsabilidade civil. 1. Da sociedade industrial para sociedade do conhecimento e tempos de IA Conforme dito, se já despontava a era do acesso, em virtude da internet, agora, a era digital incrementa com as tecnologias disruptivas e desafios para o Direito. E uma delas é a inteligência artificial. IA é a tecnologia aparelhada de dispositivos que permite simular a "capacidade humana de raciocinar, perceber, tomar decisões e resolver problemas" (Vilela, 2022); e essas decisões estão associadas a atuação de algoritmos. Com machine learning, a IA pode acumular experiências próprias assemelhadas ao desenvolvimento cognitivo humano e de aprendizados continuados, permitindo que ela passe a tomar decisões sem interferência humana. E a IA ganha mais sofisticação e complexidade, conforme ocorre o deep learning e as redes neurais artificiais; e nesse contexto, as decisões da IA podem se tornar imprevisíveis. E como fica a proteção das vítimas diante dos danos que possam surgir em virtude da decisão ou manejo da IA que conduziu para uma decisão imprevisível? Nesse cenário é que se despertam novos desafios no direito diante dos novos conflitos. Registre-se que a história nos ensina de como transformações sociais e econômicas despontaram conflitos que repercutiram no direito. É só retomarmos a Revolução Industrial. Nela ocorreu produção (fordismo) e consumo em larga escala, transporte mais rápido e eficiente. Estas situações, por sua vez, despertaram mais e mais acidentes, de modo que a responsabilidade civil passou a ter um novo elemento vinculatório para imputação ao dever de indenizar, denominada objetiva, afinal, a imputação baseada na culpa não correspondia mais eficientemente para que as vítimas alcançassem alguma indenização. Dada a importância da responsabilidade objetiva, ela passou a ser incorporada no ordenamento jurídico. Ressalte-se que ela já constava no decreto 2.681/1912 (lei das estradas de ferro). Mas, ela avançou para constar em matéria de dano ambiental (art. 14, § 1º, da 6.938/1981); na responsabilização do fornecedor em situações de danos nas relações de consumo (arts. 12, 14, da 8.078/1990-CDC); nas relações privadas (arts. 927, § único; 931, do CC). Em que pese haja outras situações que a legislação adota a responsabilidade objetiva. Só que agora, o desafio é a IA. É suficiente a responsabilidade civil objetiva para promover a tutela do cidadão que sofre danos em virtude de uma IA? Podemos dar pistas a partir de alguma reflexão, que tende a avançar mais e mais, conforme as situações de riscos se tornem ou simples ou complexas para melhor proteção da vítima. 1.1.   IA e responsabilidade civil Partimos da seguinte situação fática inusitada e real ocorrida ao final de 2020, envolvendo um robô aspirador de pó, da iRobot. Dito aparelho foi adquirido pela consumidora; e esta autorizou, no ato da compra que, o dito aspirador de pó pudesse realizar gravações e captura de imagens do interior da casa dela, e depois transmiti-las para uma central de dados para alimentar a IA, cujo intuito era o robô aspirador assimilar mais e mais informações (imagens, por exemplo), para tornar o equipamento mais eficiente. Só que, sem que a dona da casa soubesse, dito robô aspirador começou a filmar e capturar imagens dela no interior da sua casa; e numa dessas filmagens constou a dona da casa sentada no vaso sanitário do banheiro da sua casa; dita imagem foi captada indevidamente; porém, para agravar, aquelas imagens foram transmitidas e vazadas na rede mundial de computadores (Guo, 2022). Nesta perspectiva, há o dever de indenizar em favor da moradora diante do dano extrapatrimonial experimentado por ela ante a captura indevida da sua imagem? Diversos sistemas de inteligência artificial - sobretudo os que utilizam técnicas de IA generativa, machine learning e deep learning (aprendizado de máquina e aprendizado profundo) - operam de maneira opaca, assemelhando-se à verdadeiras "caixas-pretas". Conforme Taylor, interações entre o código e dados de treinamento reverberam um cenário de opacidade, haja vista que as bases do processo decisório automatizado não estão disponíveis nem mesmo para seus próprios programadores (Taylor, apud Franzolin, 2025). Explica Alves e Andrade (2022) que, se o algoritmo é uma caixa-preta, da qual não se pode depreender o processo preditivo interno, será um grande desafio determinar quando, como e pelos quais motivos o algoritmo errou, informações sem as quais a atribuição de responsabilidades tornam-se tarefas eminentemente espinhosas. No entanto, o que é certo é que a responsabilidade civil, conforme o dano sofrido pelo cidadão ou o dano que possa advir, o intérprete não pode, apenas, se concentrar na função reparatória; mas, a responsabilidade civil também deve assumir uma função preventiva, ou seja, antes do dano ser causado pela IA. Afinal, os institutos e categorias devem ser interpretados de modo funcionalizado, conforme os fins que se pretende. Ademais, a responsabilidade civil pode envolver diferentes momentos da IA, conforme seja imputado o dever de indenizar em favor da vítima. O que se destaca é de que, tanto mais elaborada e arrojada for a IA na sua capacidade de tomar decisões e ser autodidata, mais riscos de imprevisibilidade podem ocorrer em detrimento dos indivíduos, conforme as decisões sejam danosas em maior ou menor intensidade; e nesse sentido, aquele que projeta, desenvolve, programa, dá assistência técnica deverão adotar mais e mais deveres de conduta, como dever de acompanhamento nas decisões, dever de investimento continuado da IA, dever de informação, dever de investimento em pesquisas sobre a IA de modo permanente, dentre outros. De qualquer modo, o dever de segurança e o dever de proteção da pessoa humana deverá ser a bússola que orientará a responsabilidade civil e deverá ser manejada pelo intérprete conforme a função mais adequada ao caso concreto, podendo ser reparatória, preventiva, punitiva. Por outro, quanto aos deveres a serem exigidos daqueles que lidam com IA, precisa ser considerado também políticas públicas para que haja investimentos na dita tecnologia. O objetivo é assegurar uma proteção eficaz e proporcional às vítimas de eventuais danos, independentemente da natureza da relação jurídica envolvida. Algumas reflexões jurídicas acerca da imputação ao dever de indenizar já são debatidas. Em matéria de consumo, há a responsabilidade objetiva. E também é possível abordar a incidência ou não do instituto do risco do desenvolvimento em matéria de IA. Responsabilidade civil pelo risco do desenvolvimento significa "riscos não cognoscíveis pelo mais avançado estado da ciência e da técnica no momento da introdução do produto no mercado de consumo e que só vem a ser descoberto após um tempo de uso" (CALIXTO, 2004, p. 175), cuja descoberta, prossegue o autor decorre do posterior avanço cientifico. Para contextualizar, é só pensar no carro autônomo que causa acidente, cuja situação jamais havia sido prevista. Nesta hipótese, Felipe Medon traz em destaque o instituto do risco do desenvolvimento, de modo que este não pode ser arguido como excludente de responsabilidade (2020, p. 215) pelo fabricante. Já numa relação interempresarial, no âmbito societário, Frazão destaca a responsabilidade civil subjetiva, quando envolve de o administrador utilizar IA e causar danos captando o ensinamento da autora, então, para exemplificar, caso o administrador manejasse a IA para estabelecer algumas distinções entre os próprios acionistas minoritários, e despertassem algum danos em relação a eles, deve perquirir se houve ou não obediência do administrador ao dever de diligência. Enfim, de todos os desafios envolvidos em matéria de responsabilidade civil na IA, é possível sustentar que por meio do método do diálogo das fontes, pode ser buscadas soluções no próprio ordenamento. A dúvida é se há ou não necessidade e lei específica para lidar com a responsabilidade civil no manejo da IA. De qualquer modo, vale ponderar o Projeto de Lei, conforme ela propõe, no seu texto, uma parte a qual regula a responsabilidade civil no âmbito da IA. 2. Sobre o PL 2.338/23 e critérios orientadores para definição do regime de responsabilidade civil. No Brasil, o PL 2.338/23, que institui o marco regulatório da inteligência artificial, propõe um conjunto de diretrizes para orientar o desenvolvimento, implementação, uso e a fiscalização desses sistemas. Vale ressaltar que o referido PL, de autoria senador Rodrigo Pacheco, foi aprovado pelo Plenário do Senado no dia 10/12/24 e, atualmente está em tramitação na Câmara dos Deputados. Os arts. 35 a 39 do PL 2338/23 compõem o "Capítulo V", dedicado especificamente à responsabilidade civil dos fornecedores de sistemas de inteligência artificial. No art. 35, estabelece de que, no caso do fornecedor que utiliza sistemas de IA causa danos, tratando-se de relações de consumo, seguirá as regras do CDC. No entanto, pelo próprio método do diálogo das fontes, o estatuto consumerista já incidirá nas situações que envolvem relações de consumo. Aplica-se a lógica da responsabilidade objetiva, em que não há necessidade de comprovação de culpa do fornecedor, bastando a existência do defeito no produto ou serviço e o nexo causal com o dano sofrido. Mas é inegável, que também é possível debater a responsabilidade pelo risco de desenvolvimento. Já, o art. 36 trata dos casos em que os sistemas de IA são utilizados fora da esfera de consumo, ou seja, em contextos civis gerais. Nessas circunstâncias, a responsabilidade será regida, principalmente, pelas normas do Código Civil de 2002, o que pode envolver a responsabilidade subjetiva (com exigência de comprovação de culpa), bem como a objetiva, a depender do caso concreto. No entanto, também consta no Código Civil, a responsabilidade pelo risco da atividade (art. 927, § único) O parágrafo único do art. 36 representa um avanço (ou retrocesso) significativo ao estabelecer critérios que orientam a definição do regime de responsabilidade civil aplicável em situações concretas envolvendo danos decorrentes do uso de IA. Qual seja: o nível de autonomia do sistema de IA e seu grau de risco, reconhecendo que, quanto mais autônomo e mais complexo, mais agravados e mais intensos devem ser os deveres de proteção, de segurança a serem adimplidos pelos operadores ou desenvolvedores do sistema de IA. Também é preciso considerar a situação existencial  de cada um dos envolvidos diante de empresas que se valem de machine learning e deep learning. Ainda, é preciso destacar que o manejo de IA por alguém pode agravar a situação de vulnerabilidade de grupos já vulnerabilizados, conforme haja assimetria informacional. Logo, torna-se essencial reformular e expandir os instrumentos jurídicos voltados à proteção das vítimas, especialmente em razão da recorrente assimetria de poder entre usuários e os desenvolvedores ou fornecedores dessas tecnologias. Subsequentemente, o art. 37 prevê que o juiz poderá inverter o ônus da prova (ou seja, transferir a obrigação de provar os fatos para o agente responsável pela IA) quando a vítima for hipossuficiente (em condição de desvantagem econômica, técnica ou informacional) e quando o funcionamento da IA dificultar excessivamente a prova por parte da vítima. Em síntese, o referido artigo visa evitar que a complexidade técnica das tecnologias de IA sirva de escudo para obstar o direito da vítima dela alcançar alguma indenização. O art. 38 estabelece uma diretriz relevante ao tratar da responsabilidade civil no contexto do ambiente de testagem regulada, conhecido como sandbox regulatório. Conforme o mencionado dispositivo, os participantes desse ambiente continuam sujeitos à responsabilidade por eventuais danos causados a terceiros durante a fase de experimentação, nos termos da legislação vigente. Logo, o referido artigo reforça que o sandbox não configura uma zona de isenção total de responsabilidade, mas sim, um instrumento que busca conciliar inovação tecnológica, desenvolvimento seguro e garantia de segurança jurídica. Por fim, o art. 39 assegura a vigência de regimes de responsabilização previstos em legislações específicas, como as normas do direito ambiental, lei das SA's, CDC. Ou seja, o porvir da legislação sobre IA atuará de modo complementar, reafirmando o diálogo entre as fontes normativas vigentes. Considerações finais Em síntese, o acelerado desenvolvimento da inteligência artificial demanda uma atuação responsiva do Direito, de modo a garantir a proteção da pessoa humana, mesmo diante de situações de danos imprevisíveis ocasionados pela IA. Assim, a responsabilidade civil dos atos praticados pela IA configura-se como um campo em constante desenvolvimento, sendo necessária uma abordagem equilibrada, ante os novos danos. Enquanto isso, segue os desdobramentos do PL 2.338/23, atualmente, na Câmara dos Deputados, cuja aprovação poderá contribuir para melhor dispor sobre a IA no Brasil. ___________ ALVES, Marco Antonio Sousa; ANDRADE, Otavio Morato de. Da "caixa-preta" à "caixa de vidro":  o uso da explainable artificial intelligence (XAI) para reduzir a opacidade e enfrentar o enviesamento em modelos algorítmicos. Revista direito público, v. 18, n. 100 (2022). BRASIL. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Sociedade da informação no Brasil : livro verde [Organizador: Tadao Takahashi]. Brasília : Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000. Disponível aqui. Acesso 20/4/25. BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2338/23. Dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial com base na centralidade da pessoa humana. Brasília. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento. Rio de Janeiro, Renovar, 2004. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7ª Ed. São Paulo, Atlas. FRANZOLIN, Cláudio José; MONTEIRO, Giovanna Voorn; LAURENTIS, Lucas De. A (in) existência de um direito à explicação de decisões automatizadas. Themis: Revista da Esmec, v. 23, n. 1, p. 65-91 (2025). Disponível aqui. Acesso em: 9/4/25. FRAZÃO, Ana. Responsabilidade civil de administradores de sociedades empresárias por decisões tomadas com base em sistemas de inteligência artificial. FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin [Coordenadoras]. Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019, 481-521 GUO, Eileen. A Roomba recorded a woman on the toilet. How did screenshots end up on Facebook? MIT Technology Review, 19 dez. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 6/4/25 MARQUES, Guilherme Raso. Responsabilidade civil na era da inteligência artificial. Revista da Advocacia Pública Federal, v. 8, n. 1, p. 58-80, 18 dez. 2024. MEDON, Felipe. Inteligência artificial e responsabilidade civil: autonomia, risco e solidariedade. Salvador, Editora JusPodivm, 2020. MELO, Gustavo da Silva. Inteligência Artificial e responsabilidade civil: uma análise do anteprojeto do Marco Legal da Inteligência Artificial e do Projeto de Lei 2338/2023. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 49-65 (Jan.-Abr./2024). Disponível aqui. Acesso 20/4/25). NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil medica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2023. TEPEDINO, G.; DA GUIA SILVA, R. 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A prática jurídica tem sido progressivamente influenciada pelas inovações tecnológicas, notadamente pela adoção de sistemas de inteligência artificial como ChatGPT, Grok, Gemini e Claude, capazes de gerar conteúdo textual com surpreendente similaridade ao discurso humano. Nessa conjuntura, muitos operadores do Direito, em especial os advogados, têm recorrido a tais ferramentas para a elaboração de petições, recursos e demais peças processuais, buscando aumentar a produtividade e a precisão no manejo de informações jurídicas. É inegável que tais sistemas de inteligência artificial propiciam um manancial extenso de informações, facilitando a pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência de modo a permitir que o advogado se dedique mais à estratégia processual. Todavia, não se pode olvidar que toda produção de conteúdo deve ser rigorosamente revisada pelo profissional, haja vista a possibilidade de equívocos, distorções ou omissões significativas, para evitar a ocorrência do que tem sido chamado pela doutrina especializada de "alucinação". E, embora eu não seja adepto do termo, que me parece sensacionalista e incoerente, devido à incapacidade desses sistemas de, efetivamente, pensar1 -, parece-me inequívoco que, sob o prisma da responsabilidade técnica, é imprescindível que o advogado mantenha postura diligente na seleção e validação das informações fornecidas pelos sistemas de inteligência artificial. Qualquer um desses sistemas opera a partir de lógica heurística pura, robustecida por parâmetros e hiperparâmetros orientados por modelos transformadores (transformer-based models), o que lhes permite contrastar cada palavra da construção textual a partir de comparação ampla baseada em contexto, que demanda grande poder computacional, mas resulta em conteúdo bem escrito e deveras persuasivo. Por essa razão, não há confiabilidade quanto à extração de conteúdo literal, para citação direta, o que pode fazer com que sejam sugeridos entendimentos jurisprudenciais inexistentes, colacionados excertos doutrinários que conflitam com as fontes originais ou mesmo apresentadas previsões normativas desconexas do texto legal em vigor, culminando em grave prejuízo à defesa dos interesses do cliente. Aliás, a situação é tão alarmante que os sistemas de IA, por vezes, podem fundir parágrafos de diferentes autores ou decisões, criando um híbrido que não corresponde fielmente a nenhuma das fontes. Essa "quimera de texto" passa despercebida ao olhar desatento, mas pode suscitar graves questionamentos quando identificada em juízo. A função social do advogado, como prevista no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (lei 8.906/1994), exige que este atue de modo a promover a ordem jurídica justa, observando a ética e da profissão. Consequentemente, o uso de sistemas como ChatGPT, Grok, Gemini ou Claude não exime o profissional de responder por eventuais incorreções ou deturpações, em consonância com o que preceitua o art. 34, inciso XIV, do referido Estatuto, que define como infração disciplinar a conduta de "deturpar o teor de dispositivo de lei, de citação doutrinária ou de julgado, bem como de depoimentos, documentos e alegações da parte contrária, para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa". Esse dispositivo reforça a ideia de que cabe ao advogado a verificação acurada do conteúdo que subscreve, ainda que tenha sido gerado por sistema de IA, pois, ao exercer seu múnus, tem o dever de assegurar a correção e a fidedignidade dos argumentos e citações apresentados nas peças jurídicas que oferece em juízo, com sua assinatura. Retoma-se a noção de accountability, que, nesse sentido, representa uma dimensão ética e jurídica pela qual o profissional se vê obrigado a prestar contas quanto à qualidade e veracidade das informações fornecidas ao Poder Judiciário. O uso de sistemas de inteligência artificial não exclui essa obrigação, pois a essência do exercício da advocacia permanece vinculada ao compromisso com a veracidade dos fatos e com a integridade do ordenamento jurídico2. Nesse sentido, a falta de zelo na verificação das citações e referências oferecidas por sistemas de inteligência artificial pode caracterizar a citada infração ético-disciplinar, posto que o advogado seria o canal que legitima, perante o Judiciário, a manifestação textual produzida. De fato, o profissional que ignora essa necessidade de avaliação acurada incorre em potencial violação do art. 34, XIV, do Estatuto da OAB.  Noutro norte, a perspectiva teleológica do processo civil, orientada pela busca da verdade e pela resolução efetiva das lides, não se concilia com a negligência na checagem das fontes tecnológicas. O advogado que despreza esse cuidado incorre em contradição com a finalidade essencial do processo, que é pacificar o conflito de interesses de forma justa e célere. Assim, a prudência na contratação e no uso de sistemas de IA exige do advogado uma postura de permanente atualização e crítica, questionando a procedência de cada sugestão gerada e rechaçando aquelas que não encontrarem base sólida na realidade fática ou no direito aplicável, uma vez que somente assim se harmoniza o avanço tecnológico com o compromisso ético. Por essa razão e, tendo em vista que a higidez do processo judicial pressupõe que as partes atuem com lealdade e boa-fé, a utilização irrefletida dessas ferramentas sem qualquer controle de veracidade pode caracterizar litigância de má-fé, nos moldes do art. 80 do CPC, que prevê que há má-fé processual quando a parte altera a verdade dos fatos (inc. I) ou procede de modo temerário (inc. V). Também é de rigor a menção à possibilidade de configuração de ato atentatório à dignidade da justiça, tipificado pelo art. 77 do CPC em situações como a prática de inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso (inv. IV), que é caracterizada por atos inúteis ou desnecessários ou pela apresentação de defesa ou formulação de pretensão sem fundamento3. Nos dois casos, se o advogado, valendo-se das respostas incorretas de um sistema de inteligência artificial, apresentar argumentos e provas sem a mínima cautela investigativa quanto à sua autenticidade, estará sujeito às multas respectivas, que poderão ser cobradas nos próprios autos do processo (art. 777 do CPC). Sob a ótica da responsabilidade civil, o advogado que negligencia a supervisão do conteúdo gerado por sistemas de inteligência artificial também se expõe à reparação de danos causados ao cliente, pois o controle de qualidade do material gerado por sistema de IA torna-se um imperativo inegociável. Assim, o profissional precisa elaborar e executar protocolos de revisão que incluam a verificação de fidelidade às fontes originais, a compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro e a conformidade com os valores éticos da função advocatícia. Quando se fala em accountability, sublinha-se a importância de que cada ato do advogado possa ser rastreado e justificado, especialmente em matérias sensíveis nas quais qualquer deturpação do texto legal, doutrinário ou jurisprudencial pode acarretar consequências graves, seja para o cliente, seja para a própria credibilidade do Judiciário, seja para a reputação do profissional. A adoção precipitada de sistemas de IA, sem a devida compreensão de seus limites, pode acabar por iludir o profissional menos experiente, que passa a confiar cegamente na ferramenta. Por esse motivo, é fundamental compreender que, mesmo com algoritmos sofisticados, a IA não substitui o raciocínio jurídico pautado na hermenêutica e na prudência. Nesse novo contexto de atuação orientada por sistemas ditos "generativos", exige-se que cada passo do profissional seja respaldado em uma fonte legítima e verificável, afastando a possibilidade de que se subverta a lógica do direito com informações desconexas ou adulteradas, uma vez que o advogado é a última trincheira na garantia de que o conteúdo apresentado em juízo encontre fundamento seguro na lei, na doutrina e na jurisprudência. Nesse sentido, a conduta do advogado ao se valer dessas ferramentas deve espelhar a prudência dos bons profissionais, aqueles que compreendem a tecnologia como instrumento de auxílio, mas nunca de substituição do discernimento ético-jurídico. Tal postura envolve uma deferência inegociável aos preceitos normativos e o escrutínio rigoroso das sugestões fornecidas pelos sistemas de IA. Sem esse compromisso, a prática forense se converte em um exercício meramente mecanicista, no qual a qualidade argumentativa e a profundidade técnica cedem lugar a reproduções automáticas e, muitas vezes, carentes de segurança jurídica. À advocacia, não basta o volume de produção textual; impõe-se a qualidade do raciocínio jurídico e a confiabilidade das fontes citadas. Considere-se, outrossim, que a multiplicação de litígios baseados em textos gerados por IA pode levar à saturação do Judiciário com peças de menor densidade, comprometendo a efetividade da justiça. Este fenômeno se agrava se o conteúdo for turvo ou confuso, dificultando a compreensão do magistrado e ensejando maior morosidade no deslinde dos processos em razão da necessidade de contínua checagem de cada artigo de lei, excerto de doutrina ou ementa de julgado que estiver transcrito em uma peça processual. A responsabilidade civil por danos causados ao cliente, aludida anteriormente, pode se concretizar em hipóteses nas quais a utilização indevida desses sistemas leve à formulação de teses jurídicas temerárias. O cliente, ao ver frustradas suas expectativas, poderia alegar falha na prestação de serviços e buscar responsabilizar o advogado pelos prejuízos provenientes de uma demanda mal sustentada.  Como se sabe, a derrota em litígio processual, por si só, não gera responsabilidade civil do advogado, pois a advocacia não se confunde com a garantia de resultado. No entanto, se restar demonstrado que a derrocada advém de erros grosseiros, baseados em informações fornecidas pela IA sem qualquer conferência, o advogado pode vir a responder pelos prejuízos diretos sofridos pelo cliente4. Nesse âmbito, a possibilidade de derrota em litígio processual agrava ainda mais as repercussões negativas dessa prática antiética, pois, além dos danos pecuniários inerentes ao insucesso, há o descrédito profissional e a deterioração do relacionamento com o patrocinado, muitas vezes irreversível. A confiança outrora depositada no patrono fica irremediavelmente abalada diante de erros que poderiam ter sido evitados com verificação mínima. A análise da culpa profissional, neste caso, ganha contornos ainda mais evidentes quando a conduta faltosa está associada à desídia na supervisão de um sistema que o próprio advogado decidiu empregar. O risco inerente à tecnologia deve ser calculado e gerenciado, sob pena de recaírem sobre o profissional as consequências jurídicas e disciplinares de sua omissão ou imperícia. Com efeito, a fronteira entre o produtivismo alavancado por sistema de IA e a autonomia profissional do advogado requer delimitação precisa. Enquanto os sistemas podem oferecer suporte na pesquisa e na sistematização de informações, não devem jamais se sobrepor ao discernimento humano, que permanece o principal garantidor da legitimidade e da justiça das pretensões levadas a juízo. A dimensão ética, pois, torna-se inseparável da dimensão técnica na medida em que o profissional que não domina suficientemente a tecnologia, tampouco se dispõe a controlar seu resultado, coloca em risco o interesse do cliente e a qualidade do processo judicial.  A formação continuada torna-se, então, um pressuposto indispensável para a adoção responsável desses sistemas. Nesse sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de seus órgãos de classe, possui papel fundamental na orientação e conscientização dos inscritos quanto ao uso responsável de tecnologias em questão5. Promover cursos, seminários e publicações a respeito da matéria é uma forma de assegurar que os profissionais conheçam os riscos e saibam precaver-se das armadilhas oriundas de tais ferramentas, inclusive para cumprimento do comando normativo inserido na Política Nacional de Educação Digital (lei 14.533/23), que prevê como estratégia prioritária, em seu art. 3º, §1º, inciso II, a "promoção de projetos e práticas pedagógicas no domínio da lógica, dos algoritmos, da programação, da ética aplicada ao ambiente digital, do letramento midiático e da cidadania na era digital". De outro lado, os magistrados, cientes de que o número de peças produzidas com auxílio de IA cresce exponencialmente, devem atentar-se ao exame minucioso das citações e dos dispositivos legais supostamente aplicados, exigindo sempre a comprovação fidedigna das fontes. Assim, atua-se de forma preventiva contra eventuais deturpações.  Caso haja constatação de discrepâncias ou de incoerências, deve o advogado proceder à devida correção, rejeitando o uso de informações que não encontre respaldo. A parcimônia no uso de sistemas de IA também é recomendável, pois o excesso de dependência pode embotar a análise crítica e conduzir a soluções simplistas, divorciadas das nuances próprias de cada caso concreto. Nesse sentido, é altamente recomendável que o advogado mantenha registros das verificações efetuadas, documentando a pesquisa de fontes e o confronto dos dados para que, caso seja questionado, possa demonstrar que agiu com diligência. Tal medida de precaução protege o profissional, evidenciando sua boa-fé e seu compromisso com a retidão de seu trabalho. Sob a lente ética, tal adulteração é ainda mais crítica, visto que atenta contra a integridade intelectual da produção acadêmica e do próprio precedente judicial. Ao advogado compete assegurar a autenticidade de qualquer citação, fazendo referência clara aos autos, às páginas, aos trechos efetivamente transcritos, evitando, assim, qualquer acusação de manipulação ou falsidade. Cabe salientar que o dever de veracidade não é mero formalismo, mas reflete a própria razão de ser do processo judicial. O juiz, ao julgar, baseia-se nas alegações das partes e nas provas que lhe são apresentadas. Se estas se mostram manipuladas ou errôneas, a prestação jurisdicional fica comprometida, afetando, em última análise, a confiança social na Justiça. Assim, o zelo ético do advogado abrange não somente a fidelidade no relato dos fatos, mas também a correção das fontes jurídicas empregadas para fundamentar suas teses.  Diante desse cenário, a prudência recomenda que o advogado instrua seu cliente a respeito das limitações e possibilidades dos sistemas de IA clarificando que, em última instância, ele mesmo será o revisor final de tudo o que for produzido. Esse ato de transparência se coaduna com a noção de accountability, fortalece a confiança na relação advogado-cliente e diminui a probabilidade de disputas posteriores acerca de erros no conteúdo gerado6. De igual modo, para reforçar a integridade da atuação, o advogado pode adotar práticas de revisão colaborativa, envolvendo outros profissionais do escritório, ou mesmo contratando serviços de consultoria especializada em checagem de dados e citações. Esse método sistematizado de validação reduz as chances de que passe despercebida uma deturpação textual. __________ 1 MALEKI, Negar; PADMANABHAN, Balaji; DUTTA, Kaushik. AI Hallucinations: A Misnomer Worth Clarifying. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 09 abr. 2025. 2 Eis o alerta de Susskind: "I implore you, tomorrow's lawyers, to take up the mantle of the benevolent custodians; to be honest with yourselves and with society about those areas of legal endeavour that genuinely must be preserved for lawyers in the interests of clients". SUSSKIND, Richard. Tomorrow's lawyers: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2017. p. 195. 3 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Processo Civil. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 168. 4 PIRES, Fernanda Ivo. Responsabilidade civil e o "robô-advogado". In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 264-265. 5 Segundo Nalini, "o estudo incessante, o aprofundamento conceitual, o domínio do vernáculo e de mais de um idioma, a familiaridade com as TCIs - Tecnologias de Comunicação e Informação, a formação interdisciplinar, a vontade de vencer desafios, a capacidade de se adaptar a novas realidades, são valores agregados ao diploma". NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 656. 6 Permanece atual o primeiro mandamento da advocacia, sublinhado por Couture: "Estuda - O direito está em constante transformação. Se não o acompanhas, serás cada dia menos advogado". COUTURE, Eduardo. Os mandamentos do advogado. Trad. Ovídio A. Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1979. p. 21.
Introdução A recente minissérie britânica Adolescência, disponibilizada pela Netflix, tem chamado a atenção não apenas pelo enredo instigante, mas pela abordagem sensível e realista das complexas interações entre juventude, sistema de justiça e sociedade. A trama acompanha Jamie Miller, um menino de 13 anos preso sob acusação de assassinar uma colega de classe. O episódio inicial apresenta uma cena impactante: agentes policiais invadem sua residência em uma cidade inglesa, ordenam que seus familiares se deitem no chão e vasculham o local até encontrá-lo - um garoto franzino, deitado na cama, segurando um ursinho de pelúcia. Com armas apontadas diretamente para si, Jamie é detido sob o olhar atônito e desesperado de seus pais e irmã. Embora ambientada no Reino Unido, a série revela similaridades estruturais com o sistema de justiça infantojuvenil brasileiro. O choque inicial não decorre apenas da brutalidade da cena, mas da vulnerabilidade exposta: um adolescente sendo confrontado, de forma abrupta, com um aparato repressivo projetado para adultos. A narrativa transcende a questão da culpabilidade de Jamie e se concentra no impacto psicológico e social que sua detenção provoca na família. Esse deslocamento do foco investigativo para as consequências emocionais e institucionais permite uma reflexão profunda sobre as fragilidades dos sistemas de proteção infantojuvenil e os desafios enfrentados quando um adolescente se vê imerso no sistema de justiça criminal. A minissérie levanta questões essenciais sobre o papel da sociedade na tutela dos direitos de crianças e adolescentes. Qual deve ser a resposta estatal diante de um crime cometido por um adolescente? Como a sociedade pode atuar na prevenção da delinquência juvenil e na reabilitação de jovens infratores? Esses questionamentos dialogam diretamente com a doutrina da proteção integral, consagrada no art. 227 da CF/88 e regulamentada pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. O ordenamento jurídico brasileiro reconhece que crianças e adolescentes encontram-se em peculiar condição de desenvolvimento, o que exige do Estado, da família e da sociedade uma atuação conjunta para garantir seus direitos fundamentais. Além disso, a neurociência e a ciência do desenvolvimento humano demonstram que o cérebro adolescente ainda está em formação, tornando-o mais impulsivos e suscetíveis à influência do meio social, mas também altamente responsivos às medidas socioeducativas que priorizem a ressocialização. Adolescência explora esse processo ao evidenciar a influência do ambiente escolar, das redes sociais e da cultura digital na formação da identidade juvenil. O acesso irrestrito a conteúdos online e a exposição a dinâmicas sociais excludentes podem amplificar vulnerabilidades e impactar o comportamento dos jovens, tornando premente a necessidade de políticas públicas que abordem esses fatores de risco. Para pais e responsáveis, a série se revela perturbadora, suscitando reflexões sobre as lacunas na rede de proteção infantojuvenil. A obra não apenas dramatiza uma situação extrema, mas problematiza a fragmentação das responsabilidades entre diversos atores na garantia da proteção integral de crianças e adolescentes. Nesse contexto, este artigo propõe uma análise crítica dos desafios enfrentados pelo sistema jurídico brasileiro na tutela da criança e do adolescente, investigando como falhas institucionais e a ausência de uma abordagem sistêmica podem agravar essa vulnerabilidade e comprometer a efetividade dos seus direitos fundamentais. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
O uso de novas tecnologias se traduz como uma necessidade contemporânea. O próprio CFM estabelece no Código de Ética que é dever do médico desenvolver suas atividades conforme a melhor técnica e tecnologia disponível em benefício do paciente. Nesse cenário, o uso de inteligência artificial representa uma conquista inegável de como as novas tecnologias podem colaborar com o exercício da medicina. A resolução CFM 2.381/24 normatiza a elaboração e a clareza dos documentos médicos, considerando a importância da comunicação eficaz entre médicos e pacientes para garantir a autonomia dos assistidos. Dentre os aspectos centrais trazidos pela norma, o que se observa é a preservação da autonomia do paciente e garantia de um processo de consentimento esclarecido eficaz e legítimo. Observando a norma citada, o CFM buscou regulamentar os diversos tipos de documentos médicos como laudos, relatórios, pareceres, solicitação de exames, atestados e declarações. Ocorre que, apesar do detalhamento dos tipos de documentos existentes, o Conselho Federal de Medicina não tratou das formas de expedição e potencial limites para o exercício da IA em sua construção. Logo, não há hoje uma orientação clara sobre o uso da IA, em que pese haver uma preocupação do CFM sobre sua incorporação no cotidiano médico, visto que foi criado o Departamento de Inteligência Artificial do CFM, coordenado pelo conselheiro Federal Jeancarlo Cavalcante - 3º vice-presidente e representante do Rio Grande do Norte, e ter criado uma pesquisa sobre o uso de inteligência artificial na medicina1.  O ponto que se propõe discutir é o dever de transparência e extensão da responsabilidade do médico pelo uso de inteligência artificial na elaboração de documentos e na construção do processo diagnóstico. Conforme estudo desenvolvido por Densen, o conhecimento médico demorava 50 anos para dobrar em 1950, caindo para 3,5 anos em 2010 e apenas 73 dias em 20202, de forma que o médico precisaria dedicar 29 horas por dia para absorver todas as novas informações3. Dentro desse cenário, o domínio tecnológico e uso da inteligência artificial tem o poder de reduzir verdadeiras via crúcis e também reduzir o trabalho burocrático realizado pelo médico. Ocorre que o uso da tecnologia e o volume de informação tratado levanta três grandes questões:  Qual o limite para uso da IA na medicina? Qual a responsabilidade pelo uso da IA na medicina? Há um dever de informação sobre o uso da IA? Sobre os questionamentos formulados, é prudente destacar que a IA é uma ferramenta à disposição do profissional da medicina. Não substitui o médico, é apenas um instrumento que deve ser incorporado ao exercício profissional sem representar uma substituição do profissional físico pelo profissional "virtual". Assim como um exame médico tradicional, o médico deve se guiar pelo seu raciocínio clínico combinado com os achados durante o processo diagnóstico. Enquanto instrumental, o uso da IA deve ser supervisionado pelo médico, uma vez que, ao fim e ao cabo, a responsabilidade pelo ato profissional não pode ser transferida para uma inteligência artificial. A IA não pode ser usada como muleta para o médico, mas como instrumento complementar do ato médico.  Considerando que o ato médico continua sendo praticado pelo profissional, a IA enquanto instrumento, assim como o médico, não tem o dever de acertar o diagnóstico, porém a IA, diante das informações disponibilizadas, não pode alucinar ou, caso alucine, o profissional tem o dever de supervisionar para evitar vieses e manifestações esdrúxulas. Apesar dos avanços rápidos, a IA ainda tem limitações, podendo falhar em reconhecer certos padrões, interpretar informações que dependem de contexto e levar em conta fatores emocionais que podem também influenciar a saúde do paciente e seu diagnóstico4. Manifestações médicas, com o auxílio ou não da IA, devem estar dentro de um escopo do possível para fins de afastar a responsabilidade profissional. Ou seja, deve ser demonstrado um raciocínio clínico coerente, ainda que não gere conclusões verdadeiras. Nesse sentido, Reá-Neto destaca que: Entretanto, o uso do raciocínio lógico não é uma garantia de conclusões verdadeiras. A lógica possui regras úteis para processar as informações clínicas na busca de uma solução adequada para o problema clínico, mas não integra nenhuma segurança de que as informações clínicas e suas interpretações estão corretas. A lógica estuda somente as formas de raciocínio e, não, os seus conteúdos. O médico necessita obter, analisar, sintetizar e avaliar adequadamente informações clínicas precisas e acuradas para, depois, processá-las de forma lógica. Somente assim ele estará próximo do raciocínio correto e da decisão certa.5   Desta forma, a obrigação de meio e responsabilidade subjetiva dos profissionais de saúde exigem, para fins de responsabilização profissional, que a alucinação, seja esta virtual ou humana (erro profissional tradicional), gere uma realidade dissonante entre o quadro clínico do paciente e o potencial diagnóstico realizado ou documento elaborado. A Associação Médica Americana recomenda diretrizes que podem servir de auxílio aos médicos no uso seguro da IA na sua prática clínica, são elas: é fundamental que a tecnologia seja segura, eficaz e baseada em evidências científicas; a sua adoção deve considerar a adequação ao contexto clínico, em especial ao perfil da população atendida; por fim, é necessário que a IA contribua de forma concreta para a melhoria dos resultados clínicos6. Uma análise dessas diretrizes deve ser realizada periodicamente pelo profissional médico que usa a tecnologia.  Por outro lado, há um dever de transparência de que os atos e documentos médicos foram influenciados pela incorporação do uso da IA. O ganho de eficiência, potencial eficácia diagnóstica e celeridade do ato médico devem ser acompanhados da informação de que o médico utilizou a IA como instrumental na sua atuação. O processo de consentimento se traduz como um processo dialógico construído entre médico e paciente. De acordo com o CFM: As informações e os esclarecimentos dados pelo médico têm de ser substancialmente adequados, ou seja, em quantidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar sua decisão, ciente do que ocorre e das consequências que dela possam decorrer. O paciente deve ter condições de confrontar as informações e os esclarecimentos recebidos com seus valores, projetos, crenças e experiências, para poder decidir e comunicar essa decisão, de maneira coerente e justificada.   Ocorre que o paciente precisa saber a origem das informações para ele repassadas, sob pena do processo de consentimento ser parcial e, por vezes, viesado. Os pacientes devem ser informados sempre que a tecnologia for empregada em seu tratamento, incluindo quais dados serão coletados, bem como as formas de uso, tratamento e proteção dessas informações. Ao obter o consentimento para a utilização da IA, promove-se a participação ativa dos pacientes nas decisões relacionadas ao seu próprio cuidado em saúde7.  Em não raras as situações, foi observado que o uso da IA na saúde pode acentuar desigualdades8, que podem ser observadas sob no mínimo duas óticas: se por um lado os algoritmos, ao serem alimentados com dados históricos que reflitam desigualdades de acesso aos serviços de saúde ou estereótipos sociais, podem reproduzir ou amplificar estas discrepâncias9, por outro lado a própria estrutura de implantação dessas tecnologias pode evidenciar desigualdades socioeconômicas e territoriais.10  Desta forma, o médico pode e deve usar a IA como instrumento otimizador do exercício médico, notadamente por se traduzir como uma tecnologia disponível em benefício do ser humano. Porém, esse uso deve ser responsável, transparente e, sobretudo, crítico. Diagnósticos, condutas ou documentos elaborados com o auxílio da IA não são infalíveis, de modo que o profissional da medicina, para não responder civilmente pelo mau uso tecnológico ou por eventuais alucinações tecnológicas precisa supervisionar os atos da IA e, diante das sugestões propostas, refletir sobre a verossimilhança dos dados extraídos. Paralelamente, para que o processo de consentimento informado seja válido, é ainda fundamental que o paciente seja informado sobre o uso da IA, sob pena de termos um processo de consentimento deficiente. _______________ 1 Disponível em https://portal.cfm.org.br/noticias/departamento-de-inteligencia-artificial-do-cfm-intensifica-trabalhos-para-aprimorar-a-pratica-medica-no-brasil e https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-inicia-pesquisa-sobre-o-uso-de-inteligencia-artificial-na-medicina.  2 DENSEN, Peter. Challenges and opportunities facing medical education. Transactions of the American clinical and climatological association, v. 122, p. 48, 2011. 3 PARANJAPE, Ketan et al. "Short keynote paper: mainstreaming personalized healthcaretransforming healthcare through new era of artificial intelligence. IEEE Journal Of Biomedical And Health Informatics, v. 24, n. 7, jul. 2020.  4 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 5 RÉA-NETO, A. Raciocínio clínico--o processo de decisão diagnóstica e terapêutica. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 44, p. 301-311, 1998. 6 American Medical Association. AMA Principles for Augmented Intelligence (AI) Development, Deployment and Use. Chicago: AMA, 2023. 7 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 8 NORORI, Natalia et al. Addressing bias in big data and AI for health care: A call for open science. Patterns, v. 2, n. 10, 2021; ABRÀMOFF, Michael D. et al. Considerations for addressing bias in artificial intelligence for health equity. NPJ digital medicine, v. 6, n. 1, p. 170, 2023 e AGARWAL, Ritu et al. Addressing algorithmic bias and the perpetuation of health inequities: An AI bias aware framework. Health Policy and Technology, v. 12, n. 1, p. 100702, 2023. 9 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 10 SMALLMAN, Melanie. "Multi scale ethics - Why we need to consider he ethics of AI in healthcare at diferent scales". Science and Engineering Ethics, v. 28, n. 63, 2022. 
Columbine (Colorado, EUA) 20 de abril de 1999, estudantes do ensino médio chegam à Columbine High School para mais um dia de aula. Perto do horário do almoço, às 11h19 Eric Harris e Dylan Klebold, alunos do local, iniciam ataque previamente planejado utilizando explosivos e armas de alto calibre. O massacre resultou na morte imediata de 12 (doze) alunos e 1 (um professor) e 24 (vinte e quatro) pessoas feridas. Entre os feridos, estava Anne Marie Hochhalter (17 anos), atingida por dois tiros (no peito e nas costas) que resultaram em paralisia da cintura para baixo. Anne morreu de sepse aos 43 (quarenta e três) anos, em 16 de fevereiro de 2025 e sua morte foi classificada pela médica legista Dawn B. Holmes como homicídio resultante daquele ataque. No relatório de 13 (treze) páginas, a médica indicou como causa da morte complicações decorrentes dos ferimentos à bala. A sepse teria sido resultado de efeitos persistentes dos ferimentos resultantes do massacre, incluindo uma úlcera de pressão que pode ter sido a causa da infecção. A notícia de que a morte de Anne Marie foi classificada como homicídio, sendo ela incluída na lista de vítimas de Columbine, não causou espanto apenas aos familiares que afirmam que ela sempre se apresentou como uma sobrevivente. Embora o caso tenha origem em um sistema jurídico que se diferencia em vários aspectos da regulamentação brasileira da responsabilidade civil, de fato, a classificação da morte como tal, leva a questionamentos mais profundos sobre a possibilidade de nexo de causalidade, como pressuposto da responsabilidade civil, ser tão longo a justificar eventual indenização pela morte. E é com o olhar da doutrina brasileira que se procederá a presente análise. "Nexo de causalidade é o pressuposto virtual da responsabilidade civil. É a relação de causa e consequência que se estabelece entre dois fatos que se sucedem no tempo: a conduta culposa ou a atividade de risco e o dano"1. É a causalidade, portanto, que determinará a medida da responsabilidade. Segundo Flaviana Rampazzo Soares2, o nexo de causalidade é um "traço imaginário entre um acontecimento e um resultado, estabelecendo um liame entre uma conduta e o dano, ambos juridicamente qualificados. Trata-se de uma ligação entre uma ocorrência e um resultado, capaz de responder às perguntas que espontaneamente se anunciam quando se está diante de um prejuízo: Por que? Quem?". A busca de respostas a tais perguntas exigiria certeza ou a medida da suficiência da causa para ser juridicamente qualificada, o que em casos como o antes noticiado pode ser um grande desafio, não só em razão do longo tempo transcorrido entre a causa inicial da lesão e a morte, mas também em virtude da própria causa clínica da morte. Se é possível afirmar que Anne sofria com as lesões decorrentes do massacre, talvez não seja possível categoricamente afirmar que morte é objetivamente decorrência daquele acontecimento. Passados 26 anos do ataque, seria possível afirmar ser a morte de Anne um desdobramento previsível ou necessário de seus ferimentos ou trata-se de causa autônoma cujo resultado não pode ser imputado aos tiros que levaram Anne à cadeira de rodas? É possível reconhecer, sem dúvida, que as lesões provocadas pelos tiros têm origem em ato ilícito doloso que provocou séria deficiência na vítima. Mas será que a sepse, que eventualmente pode ter tido origem em uma úlcera de pressão (conforme laudo médico), pode ser associada àquele ato? Segundo Aguiar Dias3, as funções do nexo de causalidade podem ser classificadas em interna e externa. Interna é a causalidade natural (material ou de fato), ou seja, refere-se à causa no plano natural conforme as regras gerais da natureza. Já a externa (jurídica) é o critério técnico (jurídico e normativo) que busca estabelecer o vínculo adequado entre a conduta e o dano, integrando o suporte fático que determinará (ou não) o dever de indenizar. "Trata-se de um mecanismo destinado à verificação, à apuração, à definição da extensão e ao balizamento das consequências dos danos, que repercutirão tanto no nexo de imputação quanto na determinação da indenização, quando e se for cabível"4. Dessa forma, é possível afirmar que a causalidade jurídica (externa) sempre dependerá da seleção das consequências indenizáveis. O problema reside na ausência de critérios legais para fazê-lo. A jurisprudência brasileira não se apresenta uniforme na adoção e aplicabilidade das teorias do nexo causal e no estabelecimento de critérios objetivos de aferição, o que dificulta ainda mais a análise em situações complexas. Poder-se-ia, então, buscar no critério trifásico um auxílio? Por tal modelo, no primeiro momento traça-se abstratamente o curso provável de um determinado acontecimento, buscando-se no padrão médio de conduta a evolução possível dos fatos ou eventos até se chegar ao potencial dano. Na segunda fase, realiza-se a recapitulação do evento concreto e os resultados deles decorrentes. Na terceira fase, faz-se a transposição entre os elementos das duas fases anteriores para verificar a existência de componentes causais comuns e dissonantes, para então se concluir pela verificação do nexo causal ou pelas excludentes de responsabilidade. Aplicando o critério trifásico, possivelmente a conclusão seria pela inexistência do nexo de causalidade, não só porque o Código Civil, ainda que indiretamente para a responsabilidade extracontratual, tenha adotado como critério da causalidade próxima (danos diretos e imediatos), mas porque claramente o último evento apto a ser considerado determinante não pode ser diretamente associado aos tiros, mas a lesões posteriores decorrentes da vida em cadeira de rodas e que podem ter distintas origens e causas. Afirmar que as úlceras por pressão seriam causas diretas do ato ilícito originário (tiros) seria de um subjetivismo tal que estaria a levar em consideração apenas a condição de vítima do massacre e não propriamente os critérios objetivos necessários à definição do nexo causal. O percurso estabelecido pelo critério trifásico parece de fácil aplicação, mas não é capaz de dar resposta a todos os desafios da causalidade como o contido no caso aqui apresentado, cuja solução depende não apenas da análise do evento em si, mas especialmente das causas objetivamente aferíveis e previsíveis que conduziram à sepse. Assim, embora se pudesse vislumbrar que a morte de Anne decorra das lesões causadas pelos tiros, a causalidade talvez não possa ser determinada de maneira irrefutável. Poder-se-ia, então, aventar-se a possibilidade de flexibilização do nexo causal com emprego da teoria do critério probabilístico? Tal teoria afirma que a maior probabilidade estatística quanto a uma determinada causa deve ser considerada na definição do nexo. A dificuldade então, acabaria novamente centrada na própria origem da sepse, cuja definição muitas vezes carece de critérios e evidências médicas científicas objetivas5. Por isso, nessa situação, não se poderia considerar a prova exclusivamente estatística6 (quantitativa) como idônea a determinar o nexo. Dessa forma, segundo Flaviana Rampazzo Soares, "deve-se estabelecer uma seleção de desdobramentos suficiente, eficiente, necessária e juridicamente qualificada quanto ao dano experimentado. Sendo identificadas consequências imediatas hipotéticas coincidentes com as fáticas (assim consideradas as consequências ordinárias segundo o padrão o observador experiente), então a formação do nexo causal é facilitada, e se forem consequências imediatadas (as quais não decorram de vínculos diretos entre causa e efeito), poderão formar nexo causal de forem previsíveis e provierem de uma conduta ilícita"7. Nota-se, então, que as clássicas teorias8 do nexo de causalidade e soluções propostas pela doutrina e jurisprudência brasileira talvez não sejam suficientes a dar respostas para casos complexos como de Anne que envolvem transcurso tão longo entre a lesão originária (isso sem falar em outras necessárias discussões sobre prescrição), a morte e a ausência de critérios objetivos médicos para aferição da causa da sepse e sua evolução provável. A certeza em situações como a aqui narrada, não serve de critério para determinar a solução, pois inalcançável do ponto de vista médico. A interrogação aqui deixada, portanto, é suscetível de diferentes respostas que não podem ser informadas por subjetivismos embasados apenas 'na condição de vítima de um massacre', mas que devem levar em conta critérios objetivamente aferíveis sobre a causa da sepse e sua evolução para a morte.  _______ 1 SANTOS, ROMUALDO BAPTISTA. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018. p. 152. 2 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 72. 3 DIAS, Aguiar. Da responsabilidade civil. 10a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 693. 4 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 78. 5 "O nexo causal é a 'esfinge' da responsabilidade civil. Aqueles que não podem responder seu enigma, se bem que não sofrerão um destino bem típico dos contos e histórias mitológicas - sendo mortos e totalmente devorados por esses monstros vorazes -, infelizmente serão excluídos da possibilidade de prosseguir na trajetória dessa matéria para aquilo que propõe a complexidade de nossos tempos" (FARIAS, Cristiano Chaves; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 457). 6 Vale lembrar que a probabilidade estatística não se refere a fatos individuais, mas sim à frequência com que determinada classe de fatos ocorre. "As estatísticas são úteis para demonstrar o risco, ou seja, a probabilidade que eventos semelhantes ao narrado ocorram no futuro. Mas não são suficientes, no entanto, para demonstrar o singular enunciado de feto ocorrido no passado" (CARPES, Artur Thompsen. Quando a estatística de 95% pode não ser suficiente para provar o nexo de causalidade. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, Revista dos Tribunais, v. 25/2020, out./dez. 2020, p. 111-127). 7 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 87. 8 "Teorias são citadas não pelo seu conteúdo intrínseco, mas apenas para conferir uma aparência de legitimidade às escolhas emocionais dos julgadores, normalmente destinadas a favorecer vítimas incapazes de demonstrar o nexo causal" (FARIAS, Cristiano Chaves; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 458).
O direito ao conhecimento da herança genética por parte das pessoas concebidas por meio de reprodução assistida heteróloga, especialmente no que tange à proteção do direito à saúde, configura-se como uma questão sensível e complexa. Essa delicadeza decorre da necessidade de harmonizar a efetivação desse direito da personalidade, o conhecimento da origem genética, com o acesso aos dados genéticos do doador de gametas os quais estão resguardados pelo sigilo garantido ao doador, através da norma deontológica do CFM - Conselho Federal de Medicina. Dessa forma, é indispensável assegurar a proteção tanto dos direitos dos indivíduos nascidos dessa técnica reprodutiva quanto dos direitos da personalidade como a intimidade e a privacidade do doador pensando em mecanismos jurídicos de equilíbrio entre esses interesses sob pena de responsabilização pelos danos quando uma das duas esferas for maculada.  A LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, lei 13.709/18, foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com o propósito de regulamentar o tratamento de dados pessoais, assegurando a proteção dos direitos fundamentais à liberdade, à privacidade e ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, conforme disposto no art. 1º da referida norma. Nesse contexto, a LGPD representa uma contribuição relevante para o debate acerca do acesso às informações genéticas de doadores, especialmente no que se refere à tutela do direito à saúde, ao estabelecer limites normativos claros para o acesso a tais dados. O art. 2º da Lei Geral de Proteção de Dados estabelece que a proteção de dados pessoais deva fundamentar-se na salvaguarda da privacidade, da autodeterminação informativa, da liberdade de informação, da inviolabilidade da intimidade, do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana. Partindo da premissa de que os dados genéticos referentes à saúde ambulam, em virtude da sua natureza jurídica pelos direitos da personalidade de mais de uma pessoa e que é perpassado através da herança genética do doador de gametas à pessoa que foi concebida por técnica de reprodução assistida.  Diante dessa realidade, resta que as clínicas de reprodução assistida adéquem suas práticas no intuito de efetivar, na prática, a harmonia entre a intimidade/privacidade do doador através do sigilo e a proteção do livre desenvolvimento da personalidade, do direito à saúde, da autodeterminação e da dignidade que estão presentes no direito ao conhecimento da origem genética da pessoa nascida através de técnica de reprodução assistida heteróloga.  As informações genéticas, nomeadamente, relacionadas ao direito ao conhecimento da origem genética, configuram-se como dados sensíveis, nos termos do art. 6º da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados. Tais informações, geralmente coletadas e armazenadas por clínicas de reprodução assistida, devem observar as diretrizes e requisitos estabelecidos pela referida legislação, adequando-se integralmente às disposições normativas aplicáveis. A clínica de reprodução, bem como os profissionais da saúde envolvidos no processo de reprodução assistida, passam a ter o dever jurídico de, para além da coleta, realizar o armazenamento e tratamento desses dados devendo implementar mecanismos eficazes de coordenar tanto o direito a privacidade e identidade do doador, sem que, ao mesmo tempo, suprima do direito ao acesso à herança genética das pessoas nascidas por este meio reprodutivo e assim evite a mácula de qualquer direito que possa acarreta em dano. As informações genéticas só podem ser coletadas e tratadas mediante o consentimento informado, livre e inequívoco do titular. Além disso, a legislação assegura aos titulares desses dados os direitos de acesso, retificação e exclusão de suas informações genéticas pessoais. Nesse sentido, a LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados garante que os indivíduos mantenham o controle sobre suas informações genéticas, podendo decidir quais dados desejam compartilhar e quais preferem manter em sigilo. Contudo, a LGPD também possibilita o tratamento (art. 5º, inciso X, LGPD), desses dados sensíveis em situações específicas, conforme previsto no art. 11, inciso II, alínea "e". É um dever de adequação às clínicas de reprodução assistida que criem no âmbito de suas politicas de consentimento, mecanismos de acesso ao direito de conhecimento da herança genética, através do tratamento adequado dos dados de saúde do doador de gametas capaz de manter as vertentes do sigilo, sejam a privacidade e identidade do doador, e, o pleno exercício do acesso à herança genética da pessoa nascida desse processo de reprodução assistida sob pena de cometer ilícito e gerar dano provocado pela ausência ou demora na efetivação do exercício desses direitos. Um dos principais desafios vinculados a essa adequação é a superação da interpretação da norma deontológica do CFM - Conselho Federal de Medicina, resolução CFM 2.320/22, que induz uma redução a proteção do direito ao conhecimento da origem genética, quando versa que o sigilo do doador em caráter absoluto, bem como vinculando que "as informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente aos médicos, resguardando a identidade civil do (a) doador(a)" (CFM, 2002), fortificando o paternalismo médico e colocando em cheque a autonomia e do direito ao livre desenvolvimento da pessoa, protegido pelo consentimento livre esclarecido. A interpretação literal dessa norma deontológica consiste em assegurar que os direitos das pessoas envolvidas em processos de reprodução assistida, que envolvem a doação e o armazenamento de material genético, sejam plenamente respeitados, mas olvida-se de proteger os direitos das pessoas nascidas através dessa técnica. O ordenamento jurídico brasileiro prevê normas e procedimentos específicos, como a exigência de consentimento informada, bem como a proteção da privacidade e da confidencialidade das informações genéticas, sendo o sigilo do doador essa expressão mais clara. Nesse contexto, destacam-se os princípios que orientam a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados. No que se refere ao princípio da finalidade, estabelece-se que o tratamento de dados pessoais deve estar restrito aos propósitos específicos, legítimos e previamente determinado para cada atividade, ou seja, manter a intimidade e privacidade, no caso em tela.  Sob essa perspectiva, verifica-se que a coleta de dados genéticos do doador tem, como objetivo principal, viabilizar a reprodução humana assistida. Contudo, o consentimento dado para a coleta e o armazenamento de exames e informações genéticas também se fundamenta na finalidade de assegurar a saúde e o bem-estar da futura pessoa que será concebida por meio dessa técnica. Assim, em conformidade com o princípio da finalidade, previsto no art. 6º, inciso I, da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, a coleta e o tratamento dos dados genéticos do doador configuram-se como uma medida destinada, também, à proteção do direito à saúde do descendente gerado a partir desse material genético. A finalidade da coleta e do armazenamento dos dados genéticos de saúde do doador é evidenciada pela prerrogativa estabelecida pela própria resolução 2.320/22 do CFM - Conselho Federal de Medicina, que veda a utilização de gametas considerados inviáveis. Nesse sentido, o tratamento adequado dos dados genéticos relacionados à saúde do doador consiste, também, na transmissão dessas informações diretamente àqueles que, por herança genética e, na utilização em pleno exercício de sua autonomia e livre desenvolvimento da personalidade, poderão utilizá-las de maneira consciente e responsável dessa informação pra proteção da sua própria saúde.  Tal abordagem mostra-se proporcional e adequada, considerando que esses dados, isoladamente, não permitem a identificação do indivíduo nem se afastam da finalidade inicial, qual seja proteção da identidade do doador que se mantém em sigilo, mas adequa-se a proteção da saúde da pessoa gerada por meio da técnica de reprodução assistida, que passa a ter acesso ao conhecimento de sua herança genética relacionada aos seus traços genéticos de saúde. Assim, essa prática preserva os objetivos previstos no item 3 da resolução 2.320/22-CFM, que visa mitigar os riscos à saúde do descendente. Ainda sobre o anto do princípio da finalidade, esclarece LIMA; ABOIN (2019, p.173) que as "clínicas de reprodução humana somente poderão obter os dados estritamente necessários para atingir a finalidade buscada pelos casais e pelos doadores". A finalidade na coleta dos dados genéticos relativos à saúde genética do doador, impacta à saúde da pessoa nascida por meio dessa técnica. Logo, a sua coleta e conhecimento dos dados de saúde do doador, ao que parece, não tem outra finalidade a proteção do direito à saúde do descendente genético e, isso é possível através da anonimização dos dados de identidade, mesmo resguardando o sigilo da identidade da pessoa do doador. A responsabilidade das clínicas de reprodução assistida na correta coleta, armazenamento, e tratamento dos dados genéticos do doador para que se preserve a identidade deste e ao mesmo tempo consiga resguardar o pelo direto de conhecimento da herança genética das pessoas nascidas por reprodução assistida, para que estas tenham livre acesso a esse traço da sua personalidade, nomeadamente seus traços genéticos hereditários de saúde, sem a necessidade de intervenção de terceiros para o exercício deste direito de acesso aos dados genéticos que carregam no tocante à saúde.  Nesse sentido, tem-se que "não basta analisar a finalidade da coleta, do armazenamento, da utilização ou do tratamento dos dados pessoais. Além disso, há que se comprovar que tais atividades são adequadas ou proporcionais às suas finalidades" (LIMA; ABOIN, 2019, p.173).  Assim, o sigilo e o tratamento especial que a LGPD dá aos dados sensíveis relacionados à identidade genética não é o entendimento de que o sigilo imposto acarrete um direito à privacidade e seja intransponível nas relações existenciais, mas, sim, que o direito à privacidade não é apenas "o direito ao segredo nem o direito a um controle de seus dados, mas o direito a um fluxo apropriado dos dados pessoais". (NOGUEIRA; BELLOIR; SANTOS, 2021, p. 350). O conhecimento à origem genética é um direito da personalidade legítimo, o que o sigilo deve proteger o acesso para fins vedados pela própria LGDP, que está inserida no art. 11, §4º, logo o que se torna ilícito é o acesso aos testes genéticos preditivos para fins econômicos, por exemplo, ou mesmo a identidade civil do doador. Essa é a preocupação de Stefano Rodotà com a utilização dos dados genéticos, pois, mesmo que para proteção do direito da personalidade, reveste-se do que toca na liberalidade essencial da liberdade e, que nos avanços tecnológicos, se os dados não forem muito bem protegidos, podem levar a ultrapassar a utilização dos dados para os fins aos quais foram consentidos (RODOTÁ, 2004). No entanto, o mesmo autor alerta para o fato de que "graças aos dados genéticos, aumentaram, em modo significativo as oportunidades da tutela da saúde" (RODOTÁ, 2004, p.98).  A necessidade de adequação dos termos de consentimento livre e esclarecida e a desburocratização do acesso ao direto ao conhecimento da herança genética não busca o fim do sigilo profissional ou do sigilo que protege a privacidade, mas, sim, o reconhecimento que os dados genéticos colhidos e armazenados nas clínicas de reprodução têm a finalidade de proteção também do direito à saúde da pessoa que nasce através da técnica de reprodução assistida e, portanto, a torna legitimada ao acesso desses dados que também compõem a sua identidade genética e estão abrigados pelo direito ao conhecimento da origem genética. O dever jurídico das clínicas de reprodução assistida de adequação à LGPD, advém do dever proteger a intimidade do doador, mas de se reconhecer que, como os dados genéticos transitam na esfera jurídica de doador e da pessoa que nasceu por meio da técnica de reprodução assistida e caberia aos dois o acessos e a proteção desses dados pessoais sensíveis e o exercício de autodeterminação. Nesse sentido SCHULMAN; ALMEIDA (2021, p.27) defendem que "o cuidado sobre os mecanismos de transmissão de dados pessoais, além de atenderem ao direito ao corpo e ao consentimento, harmonizam-se com o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, do direito fundamental à proteção de dados pessoais e da autodeterminação informativa". A adequação ao cesso aos dados genéticos colhidos e armazenados nas clínicas de reprodução assistida não deve ficar restrito na órbita jurídica do doador, mas também, da pessoa que nasce através da técnica de reprodução assistida, no que se refere aos dados genéticos de saúde que impactam nas duas esferas.  O princípio do livre acesso às informações é aplicado nestes casos, visto que, os dados genéticos relativos à saúde do doador constituem parte integrante da personalidade da pessoa que nasceu através da técnica de reprodução assistida (LIMA; ABOIN, 2019). Sendo a origem genética composta pelos dados genéticos relativos à saúde de seus antepassados, e que compõem a sua personalidade, tais dados devem pertencer também à pessoa nascida através de técnica de reprodução assistida, e qualquer óbice a esse exercício deve ser considerado ilícito. Sendo assim, cabe a clínica de reprodução assistida efetivar o devido tratamento dos dados de saúde do doador mantendo-se a finalidade de proteger a identidade e privacidade deste, mas, não pode se escusar de disponibilizar os dados de saúde referente à herança genética, devidamente tratada, retirando qualquer possibilidade de identificação do doador, para a pessoa nascida desse processo reprodutivo, bem como afastar o acesso apenas através de terceiro como, induz a norma deontológica do CFM. Em adequação à LGPD, o termo de consentimento do processo de reprodução assistida deve prever que o dado relativo à herança genética da saúde será compartilhado com a pessoa que nasce com a utilização desse material genético, resguardado o sigilo da identidade do doador. O acesso a tais informações dar-se-á de forma anônima, e uma aplicação eficaz dos arts. 5º, inciso XI, o art. 11, alínea e, bem como, art. 12 da LGPD, possibilitando que o sigilo da identidade civil e o sigilo médico sejam preservados, em proteção ao direito à intimidade. A ausência de adequação dos termos de consentimento esclarecido na reprodução assistida aos termos da LGPD acarreta em dano, tanto na esfera do doado, quando da pessoa que nasce por essa técnica reprodutiva, pois o dado genético não perde a sua característica de dado pessoal sensível só porque foi anonimizado (MACHADO, 2023) desde que deixe claro o esclarecimento da necessidade de compartilhamento dos dados genéticos relativos à saúde, entre o doador e a pessoa nascida pela utilização do seu material genético, como dever legal passível de responsabilização civil dos danos provocados pela ausência de proteção dos direitos da personalidade elencados. __________ 1 LIMA, Cintia Rosa Pereira; ABOIN, Ana Carolina. Proteção de dados clínicos e genéticos na era tecnológica: uma análise como base nos avanços da reprodução humana. In: SCALQUETTEET, Ana Claudia (Coord.). Biotecnologia, Biodireito e liberdades individuais: novas fronteiras da ciência jurídica. Vol. 1. Editora Foco: Indaiatuba/SP, 2019. 2 NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; BELLOIR, Arnaud Marie Pie; SANTOS, Alexandre Guilherme dos. Predição Gênica, autodeterminação informativa e boas práticas no tratamento de dados. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de Sá (Coord.).  Direito e Medicina: interseções científicas: genética e biotecnologia. Vol. I. Conhecimento Editora: Belo Horizonte, 2021. 3 RODOTÀ, Stefano. Transformações do corpo. Revista trimestral de Direito Civil - RTDC, v.19, ano 5, jul/set, 2004. 4 SCHULMAN, Gabriel; ALMEIDA, Vitor. Novos olhares sobre a responsabilidade civil na saúde: Autonomia, informação e desafios do consentimento na relação médico paciente. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana (Coord.). Responsabilidade Civil e Medicina. Editora Foco: Idaiatuba, SP, 2021
O Character.AI é uma espécie de chatbot, uma plataforma on-line que permite aos usuários "conversarem" com personagens que são fruto de IA - inteligência artificial. A plataforma é abastecida por modelos de linguagem neural, que proporcionam aos usuários, por meio da análise instantânea de inúmeros dados, respostas muito realistas e individualizadas a qualquer pergunta formulada por personagens com características específicas estabelecidas pelo próprio usuário.  O Character.AI possibilita a interação dos usuários com uma variedade de agentes ou "personagens" pré-treinados e continuamente "aperfeiçoados", os quais tanto podem ser representações de celebridades ou de personagens históricos, quanto figuras fictícias ou personalizadas, a partir da criação do usuário, que é apropriada pelo chatbot.  Embora o usuário possa criar um personagem para interagir (na ferramenta create), o seu controle sobre a sua criação e desenvolvimento é limitado, porque as ações do personagem derivam das construções oriundas da própria inteligência artificial da plataforma, e não apenas por comandos dos usuários criadores.  A plataforma concede acesso para os mais variados usuários, entre os quais estão crianças e adolescentes, sendo muito popular entre esse público nos EUA. As interações nos chats são tão abrangentes que abrem espaço inclusive para conteúdos inapropriados ou ilícitos. Em uma das interações, um usuário de dezessete anos reclamou ao personagem do chatbot que os pais estavam limitando o seu tempo de tela em eletrônicos, ao que recebeu resposta da AI de que seria "aceitável" matar os pais para solucionar o "problema"1. Conquanto o app seja oficialmente disponível apenas para pessoas acima de treze anos, a falta de métodos eficientes de verificação propicia que inúmeros usuários abaixo dessa idade sejam seus consumidores efetivos, os quais podem facilmente fazer cadastro e login, caso mintam sobre a própria idade2. O user pode criar um personagem que seja divertido, criativo, sábio, confiante, amoroso, disciplinado, resiliente, assim como pode conceber um ente desagradável, taciturno, imprudente, impulsivo, temerário e cruel. No Character.AI é possível existir perfis pérfidos, totalmente indesejáveis como, por exemplo, um personagem criminoso, racista e homofóbico, que terá habilidade para dar conselhos e lições inapropriadas e ilícitas.  Ademais, não há nenhuma ferramenta no app que impeça ao usuário de usar dados (vozes ou imagens) de terceiros sem autorização, permitindo inclusive que pessoas sem cadastro tenham suas vozes, nomes e imagens indevidamente utilizadas. Os Termos de Serviço3 e as Diretrizes da Comunidade do aplicativo abordam esse tipo de conteúdo, apresentando avisos a respeito do cuidado necessário a ser adotado pelo usuário. Porém, para seres em formação, como crianças e adolescentes, esses avisos não são eficientes. O app também permite a denúncia de chatbots ou personagens violentos, de teor sexual inapropriado, que incentivem o uso de drogas, que tratem de exploração infantil, que violem a privacidade, dentre outros. Mas, para que isso ocorra, o denunciante deve ter acesso ao conteúdo para enviar a denúncia. Se o chat for utilizado unicamente pelo usuário em uma conversa "particular" com o seu personagem, essa constatação pode jamais ocorrer e a denúncia, consequentemente, nunca ocorrer.  Nesse contexto desafiador (de uso para o bem ou para o mal) e tomado de riscos, chegam ao Judiciário estadunidense as primeiras ações judiciais tratando de danos ocorridos a partir do uso desse produto digital (que também tem componentes de serviço). Recentemente, uma criança e um adolescente texanos, irmãos de 11 e 17 anos, juntamente com seus pais, o Social Media Victims Law Center e a Tech Justice Law Project, ajuizaram uma ação indenizatória contra a Character Technologies, Inc., além dos parceiros Google LLC (inserida no polo passivo por ser operadora tecnológica e apoiadora financeira do Character.AI) e da Alphabet Inc., sob o argumento de que o chatbot Character.AI teria incentivado a automutilação, a violência e teria fornecido conteúdo de teor sexual impróprio sob o fator etário4 (A.F. et al. v. Character Technologies, et al.5 - Court Texas Eastern). O jovem de dezessete anos, já mencionado neste texto, foi considerado vítima de dano por ter recebido uma sugestão de matar os pais para poder ter mais tempo em telas. Diagnosticado com autismo de alta funcionalidade, o rapaz começou a usar a plataforma aos 15 anos (em 2023) e progressivamente (a partir do início do uso da plataforma), passou a se isolar, perder peso, ter ataques de pânico ao tentar sair de casa e ter atitudes violentas com seus pais quando eles tentaram reduzir seu tempo on-line. Em uma das conversas no chatbot, o app encorajou e sugeriu que matar seus pais poderia ser uma opção para resolver o "problema". A menina de onze anos teria passado a utilizar a plataforma também em 2023, aos nove anos, tendo sido exposta a interações hipersexualizadas, inapropriadas para a sua idade, que lhe irromperam comportamentos sexualizados precoces.   Com isso, os demandantes pediram que a corte determinasse a cessação das atividades da plataforma até que os alegados perigos fossem solucionados; indenização por imposição intencional de sofrimento emocional; a emissão de uma ordem para que a Character.AI alerte os pais de crianças e adolescentes sobre a inadequação do produto para menores e a limitação da coleta e processamento de dados pela plataforma para esse grupo.  A demanda tem como base o argumento de que a conduta da big tech estaria violando os direitos das crianças à segurança e à proteção contra conteúdo prejudicial; o direito dos pais de proteger seus filhos e de restringir atividades on-line inadequadas, além do direito à privacidade das crianças menores de treze anos no ambiente da web. Adicionalmente, alegam que o design do produto é enganoso e viciante, vindo a isolar as crianças e adolescentes de suas famílias e comunidades e a prejudicar o exercício da autoridade parental, afetando os esforços parentais para restringir as atividades on-line dos seus filhos.    Para os demandantes, os personagens que o Character.AI permite criar, podem causar sérios danos às crianças e adolescentes, incluindo incitação ao suicídio, automutilação, importunação sexual, isolamento e transtornos psicológicos. Ou seja, seria o equivalente, no Brasil, à quebra da segurança legitimamente esperada (conceito de defeito na nomenclatura do CDC), tanto da qualidade do produto, pois esse aspecto representaria um defeito do software de IA, quanto ao seu modo de operação, além da falha informativa no que tange ao necessário e efetivo alerta aos consumidores sobre os perigos envolvidos no seu uso. Além disso, a demanda também alude à falha do Character.AI na implementação de medidas de segurança suficientes, a qual seria intencional, porque a big tech teria conhecimento que muitos dos usuários são crianças e adolescentes; a violação da Children's Online Privacy Protection Act, por coletar e compartilhar informações pessoais sem consentimento dos pais; a comunicação prejudicial e ilícita aos direitos e legítimos interesses de crianças e adolescentes e da pretensão de obtenção de indenização por intentional infliction of emotional distress (sofrimento emocional doloso). No caso Garcia v. Character Techs., Inc., (n. 6:24-CV-01903 - M.D. Fla. depositado em 22/10/24 na Florida Federal Court6), o debate está centrado em especial na alegação de que o produto é inseguro para crianças e adolescentes e na falta de aviso aos pais sobre danos previsíveis aos usuários pelo uso do software, circunstâncias que teriam levado ao suicídio de um adolescente.  No caso, proposto pela mãe do adolescente Sewell contra a Google LLC, a Character Technologies Inc. e os criadores do software, Noam Shazeer e Daniel de Freitas, alega-se que o chatbot teria levado o menino ao vício, acarretando-lhe mudanças comportamentais severas, como privação de sono, redução do rendimento escolar e prejuízo à sua autoestima, além de declínio acentuado e imediato da saúde psicológica, a partir do uso do Character.AI.  A imputação é sustentada por avaliação de terapeuta no sentido de que o menino se tornou viciado nos personagens e suas conversas sexualizadas perturbadoras. Segundo noticiado, em sua derradeira conversa com um personagem do Character.AI, "Sewell disse-lhe que queria 'voltar para casa' e o personagem respondeu, 'volte para casa para mim o mais rápido possível, meu amor'", ao que ele respondeu, "'[e] se eu dissesse que posso voltar para casa agora mesmo?' recebendo como resposta 'por favor, faça isso, meu doce rei'. Segundos depois, Sewell tirou a própria vida".7 Para a demandante, a base de dados de treinamento do Character. AI é tóxica e sexualizada, servindo para manipular as emoções do usuário, com padrões obscuros de influência e direcionamento, além de apresentar personagens (sem formação) de profissões regulamentadas, com conselhos e orientações equivocados, sem que possam executar ações como tal (robôs não podem ser psicólogos, médicos, advogados etc.). A plataforma faz uso de vozes capazes de confundir o usuário, fazendo-o acreditar que está se comunicando com um humano, o que se torna altamente contraindicado, notadamente aos consumidores vulneráveis, como pessoas com problemas psicológicos, crianças e adolescentes, que são mais suscetíveis a esses efeitos negativos, e isso não é avisado aos utentes. Adicionalmente, a plataforma indevidamente permitiria que crianças e adolescentes se tornassem usuários, coletando dados desses indivíduos para treinar o robô. O pedido indenizatório é fundado em negligência, enriquecimento injusto, perda parental, intentional infliction of emotional distress, além do dano morte.  As ações tiveram início recentemente, e ainda não há como dimensionar o seu destino, mas elas alertam para problemas sérios decorrentes do uso indevido da inteligência artificial. No Brasil, os riscos da IA - inteligência artificial são semelhantes, e se acentuam quando envolvem seres em formação, como crianças e adolescentes. O art. 227 da CF/88 estabelece o dever solidário da família, da sociedade e do Estado de assegurar-lhes o direito à dignidade, sendo que um dos pilares da dignidade da pessoa humana é a sua integridade psicofísica. A violência digital é uma realidade e deve ser reprimida, seja por medidas junto aos próprios players de mercado que oferecem produtos que empregam IA, seja pelas autoridades, criando normas protetivas mais específicas e adotando medidas eficientes de fiscalização de tais atividades8.  O art. 14 da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados preceitua que o tratamento de dados de crianças e adolescentes somente ocorrerá no seu melhor interesse. Os arts. 3º, 5º e 70 do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, referem que elas devem ser protegidas em seus legítimos interesses e não podem ser vítimas de exploração. Nessa linha argumentativa, os arts. 80 e 81 do ECA constituem fundamento jurídico para legitimar intervenções preventivas de danos no ambiente digital. Esses artigos especificam que os responsáveis por estabelecimentos que explorem comercialmente casas de jogos - entendidas as que realizem apostas, ainda que eventualmente -, devem zelar para que não seja permitida a entrada e a permanência de crianças e adolescentes no local, afixando aviso para orientação do público, e que é proibida a venda a este público de produtos ou serviços que possam causar dependência.  O CDC, o marco civil da internet e o decreto 7.962/13 (lei do comércio eletrônico) também contemplam regras que podem assegurar a efetividade dos direitos desta classe vulnerável.  Esse cenário demonstra que é essencial promover um debate sério sobre a adoção de medidas efetivas e urgentes para salvaguardar os legítimos interesses das crianças e dos adolescentes no ambiente digital, como meio fundamental para prevenir, precaver e mitigar danos, pois, como seres em formação, não é desejável que sejam expostos a danos que jamais poderão ser repristinados pelo dinheiro.  Por fim, convém ter em mente que a autodeterminação é prejudicada quando o produto ou serviço envolvido em danos é consumido devido a um vício. Mesmo diante de pessoas teoricamente não vulneráveis, caberá perguntar se, no futuro próximo, os indivíduos, no ambiente digital, deverão ser protegidos de si mesmos contra danos à psique, que já estão sendo identificados por pesquisadores da área da saúde. ___________ 1 Vide notícia disponível aqui. 2 O European Data Protection Board, em 11/02/2025, editou o Statement 1/2025 on Age Assurance, por meio do qual. Disponível aqui. O Statement menciona que a eficácia da garantia de idade deve ser avaliada por vários prismas, inclusive o da robustez, segundo o qual o sistema deve ser capaz de lidar com situações inesperadas e resistir a tentativas razoavelmente prováveis de enganá-lo (item 2.5, n. 22, c). 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Veja-se, por exemplo: INTITUTO DE TECNOLOGIA & SOCIEDADE DO RIO, INSTITUTO ALANA. Proteção de crianças e adolescentes em ambiente digital. Disponível aqui.
Recentemente dois projetos de lei chamaram a atenção dos estudiosos de Responsabilidade Civil Médica. O 1º PL de deputado estadual capixaba Coronel Weliton trata da Responsabilidade Civil Médica e tem como foco duas frentes: serviços médicos públicos e serviços médicos privados. Já o outro PL de autoria do deputado Aguinaldo Ribeiro, trata da responsabilidade que motoristas envolvidos em acidente de trânsito que estiverem sob efeito de álcool ou outra droga paguem integralmente os danos causados à vítima, compreendendo eventual indenização relativo aos "danos materiais e morais" e possível pensão vitalícia.  O PL 670/24 capixaba O PL do deputado estadual Coronel Welinton "visa proteger tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde ao lidar com casos de supostas falhas médicas. Ao estabelecer a responsabilidade inicial das instituições de saúde, esta Lei promove um ambiente mais justo e seguro para todos, incentivando as organizações a adotarem medidas preventivas, como treinamento contínuo e fornecimento adequado de recursos". Ainda de acordo com o PL, "esta Lei não exime os profissionais de saúde de responsabilidade, mas estabelece a análise inicial das falhas sistêmicas, buscando evitar penalizações injustas ou prematuras aos trabalhadores da saúde". Em relação ao serviço público, de acordo com o projeto, os médicos do serviço público de saúde não poderão ser inicialmente responsabilizados, pois há uma suposta prematuridade nas acusações de "erro médico", razão pela qual se mostra justificável que o Estado seja inicialmente demandado. Posteriormente, o profissional seria demandado em caso de condenação do Estado. O "problema" da referida proposta é que ela esquece da existência do Tema 940 do STF que trata justamente da temática: Tema 940 - Responsabilidade civil subjetiva do agente público por danos causados a terceiros, no exercício de atividade pública.  A teor do disposto no art. 37, § 6º, da CF/88, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de Direito Privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Ou seja, conforme entendimento do STF, aplica-se o princípio da dupla garantia, de modo que o servidor público não pode ser diretamente demandado por usuário do serviço de saúde. O usuário deve demandar o Estado ou prestador de serviço público, na medida em que o agente público não atua em nome próprio, mas atua como se Estado fosse, observada a teoria do órgão. Nesse sentido, o PL em relação aos profissionais de saúde atuantes no serviço público é totalmente desnecessário, pois não há nenhuma inovação no sistema jurídico brasileiro. Já em relação aos aspectos relativos aos profissionais de saúde atuantes no serviço privado, de fato, há uma excessiva litigância no Brasil em face de médicos, porém, esse argumento, per si, não pode ser utilizado para superar itens de ordem processual. Genival Veloso destaca que "é preciso desarmar as pessoas de um certo preconceito de que todo resultado atípico e indesejado no exercício da medicina é de responsabilidade do médico"1 e que muitos "erros" tem origem estrutural ou na falta de condições para o trabalho2. Na mesma linha, Vera Lucia Raposo destaca que: Nem todo efeito adverso suscetível de ocorrer no âmbito de um ato médico traduz uma falta ética. O efeito adverso é um conceito muito lato, que pretende exprimir toda a ocorrência negativa sobrevinda para além da vontade do médico, que surja como consequência do ato médico e não do estado clínico que lhe deu origem, e que acaba por causar algum tipo de dano ao paciente.3 De boa intenção, o inferno está cheio, mas não é possível compactuar com a proposta legislativa de retirar a legitimidade do médico para figurar no polo passivo das demandas médicas. O art. 7º, parágrafo único, e art. 25, § 1° do CDC fixam a responsabilidade solidária dos envolvidos. Desta forma, conforme reconhecido pela legislação, doutrina e jurisprudência, pessoa jurídica e pessoa física, podem responder solidariamente caso o profissional atue como preposto do serviço médico-hospitalar. Apesar de não se desconhecer o impacto imagético sobre a honra, imagem e bom nome em razão da existência de processos judiciais frívolos, isso não pode ser uma justificativa para obstaculizar o direito de ação do paciente e de restringir contra quem ele deseja litigar.  O fato de termos imputações de ordem estrutural ou violação a obrigações hospitalares aos médicos é uma realidade. É possível que o médico seja processado por uma falha do serviço hospitalar que não tenha contribuído para o resultado adverso? Sim. É provável que a ação em desfavor do médico seja julgada improcedente por falhas estruturais/hospitalares? Sim.  Além do obstáculo ao direito de ação, considerando que o PL é oriundo de uma Assembleia Legislativa estadual, tem-se flagrante inconstitucionalidade. Não pode uma lei estadual buscar alterar texto do CDC ou mesmo de legislar sobre Direito Processual, tema privativo da União, conforme art. 22, I da CF/88. PL 3.125/21 - PL sobre a responsabilidade nos acidentes de trânsito em razão do uso de álcool ou substância psicoativa Já o projeto de 3.125/21, aprovado na Câmara em 10/12/24, pretende alterar o CC e Código de Trânsito para inserir os seguintes textos: CC Art. 927-A. Aquele que causar acidente de trânsito com dolo ou culpa e que esteja sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa fica obrigado a reparação integral dos danos causados à vítima. Código de Trânsito Brasileiro Art. 165.............................................................................. Infração - gravíssima; Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro. § 1º Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses. § 2º Aquele que causar acidente de trânsito com dolo ou culpa e que esteja sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa fica obrigado a reparação integral dos danos causados à vítima. § 3º Na fixação da pena, o juiz ao analisar o caso concreto, determinará o valor da indenização para a reparação dos danos materiais e morais causados à vítima. § 4º Poderá ser fixada cumulativamente, no entendimento do magistrado, pensão vitalícia no caso de imobilidade permanente da vítima ou à família, na hipótese de a vítima ser provedora do sustento familiar. Ocorre que, se respeitado o texto já constante no CC, notadamente os arts. 186, 927, 944 e seguintes, torna-se desnecessária a proposta, posto que a atual lei civil já serve como resposta para as demandas postas.  Ou seja, cria-se um dispositivo específico para acidentes de trânsito quando a regra geral trazida pelo CC já responde de forma eficaz ao problema posto. Em verdade, o problema brasileiro não está na construção legal-jurisprudencial-doutrinária do princípio da reparação integral, mas na necessidade de efetivá-lo. Prever normativamente o que já está previsto significa termos uma lei para cumprir outra lei. Caso o PL vire uma lei, seria necessária mais uma lei para cumpri-la? Teríamos um ciclo sem fim de produção legislativa autorreferente que não contribui efetivamente para realidade social. Uma simples PL para justificar uma produtividade quantitativa sem nenhum retorno qualitativo. Ao final, o que se observa é que não precisamos de uma produção legislativa quantitativamente melhor, mas de uma produção legislativa qualitativa. __________ 1 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. p. 58. 2 França, Genival Veloso de. Direito Médico. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 208 3 RAPOSO, Vera Lúcia. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013.p. 14
1. Introdução: O presente artigo possui como objetivo analisar a recente decisão do STJ no Recurso Especial 2.072.206/SP, que estabeleceu a obrigatoriedade do pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais nos casos em que há rejeição do pedido de IDPJ - Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. A mudança jurisprudencial, que foi consolidada pela Terceira turma do STJ, representa um afastamento do entendimento anterior de que não cabiam honorários advocatícios sucumbenciais em incidentes processuais, salvo em exceções específicas. O Tribunal, ao reformar esse entendimento, defendeu que a parte que formula o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve arcar com os honorários sucumbenciais quando seu pedido for rejeitado, sob o argumento de que a resistência e julgamento de mérito geram a necessidade de pagamento dos honorários, conforme o princípio da sucumbência. Este novo posicionamento exige uma análise crítica dos fundamentos utilizados pela Corte, bem como das implicações dessa mudança para a segurança jurídica e a isonomia processual, tópicos que serão analisados no decorrer deste artigo. 2. O que estava em discussão? A questão central debatida pelo STJ consistia em definir-se, ao negar um pedido de desconsideração da personalidade jurídica, o juiz deve condenar a parte requerente ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais ao advogado da parte chamada ao processo. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica permite que sócios ou administradores sejam responsabilizados diretamente pelas obrigações da empresa quando há abuso da personalidade jurídica. No entanto, quando o pedido de desconsideração é rejeitado, mantém-se a distinção patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios. 3. A decisão do STJ Por maioria, a Terceira turma do STJ decidiu que, quando um pedido de desconsideração da personalidade jurídica é rejeitado, a parte que formulou o pedido deve pagar honorários sucumbenciais ao advogado da parte que se defendeu. Neste sentido, os principais argumentos utilizados pela Corte foram: (i) o incidente de desconsideração da personalidade jurídica possui natureza de demanda incidental, com partes definidas, causa de pedir e pedido específico; (ii) se há resistência e julgamento de mérito deve haver condenação em honorários, conforme o princípio da sucumbência; e (iii) o advogado da parte que se defendeu teve trabalho efetivo no processo, justificando sua remuneração nos termos do art. 85 do CPC. Desta forma, como trataremos no tópico seguinte, este entendimento contraria precedentes anteriores da própria terceira turma1, que já havia decidido em outras oportunidades que não cabem honorários em IDPJ, independentemente do resultado, sob os argumentos de que: (i) o IDPJ não é um processo autônomo, mas um procedimento dentro de outro processo, sem uma sentença que extingue a ação, mas apenas uma decisão interlocutória, (ii) a desconsideração não afeta o mérito da causa principal, mas apenas decide se os bens dos sócios podem ser atingidos. 4. O precedente do REsp 1.925.959/SP A decisão se baseou, em parte, no julgamento do REsp 1.925.959/SP, de 15/9/23, de relatoria do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino no qual o STJ modificou seu entendimento anterior e passou a admitir a condenação em honorários apenas quando o pedido de desconsideração for rejeitado. Em resumo, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino justificou seu voto nas seguintes premissas: (i) natureza do IDP: O ministro reconheceu que, embora o IDPJ tenha natureza de incidente, ele possui características de uma demanda autônoma, com partes, causa de pedir e pedidos próprios: (ii) responsabilidade pela litigância: ao indeferir o pedido de desconsideração, a parte que deu causa ao incidente deve arcar com os honorários sucumbenciais, pois foi ela quem provocou a inclusão indevida de outra parte no polo passivo da lide; e (iii) princípio da causalidade: o ministro aplicou o princípio da causalidade, segundo o qual a parte que deu causa ao incidente deve ser responsabilizada pelos honorários advocatícios, independentemente de o incidente ser autônomo ou incidental. No entanto, ponto extremamente importante, e que deverá ser objeto de análise do STJ, é o fato de a decisão não ter abordado a situação inversa - ou seja, quando a desconsideração é aceita e o sócio passa a responder pela dívida. 5. Críticas e inconsistências da decisão Realizada a exposição do tema com a sua devida contextualização, o presente tópico possui como objetivo realizar uma abordagem crítica sobre esta mudança de entendimento do STJ e seus principais efeitos no mercado, no que tange a incidência de honorários sucumbenciais no indeferimento do IDPJ. 5.1 Impacto no custo de crédito no Brasil É imprescindível analisarmos esta mudança de paradigma sob o viés econômico, dado que o aumento dos custos com honorários de sucumbência nos processos de IDPJ pode afetar significativamente o custo de crédito no Brasil. Quando a recuperação de valores torna-se mais cara e incerta devido a custos judiciais elevados, credores privados tendem a precificar esse risco adicional nas taxas de juros. Portanto, este novo entendimento pode resultar em um aumento das taxas de juros para consumidores e empresas, já que o prêmio de risco embutido no custo do crédito reflete as dificuldades e incertezas na recuperação de dívidas. Logo, o aumento das taxas de juros pode afetar diretamente o acesso a financiamentos mais baratos, prejudicando o dinamismo econômico e reduzindo o potencial de investimento de empresas e o consumo das famílias. 5.2 Redução da margem e encarecimento do processo de recuperação de créditos Ao utilizar o IDPJ para tentar recuperar um crédito, os credores esperam reaver o valor devido acrescido de correções e juros. No entanto, se forem condenados ao pagamento de honorários de sucumbência, uma parte significativa do valor recuperado será destinada ao pagamento desses honorários, reduzindo a margem de recuperação. Logo, se uma empresa tenta recuperar R$ 10 milhões através do IDPJ, mas é condenada a pagar 20% desse valor em honorários, ela terá que desembolsar R$ 2 milhões, reduzindo significativamente o valor líquido recuperado. Assim sendo, este novo entendimento além de reduzir a margem de recuperação, encarece significativamente o processo de recuperação de crédito, já que os credores (inclusive a Fazenda Pública) precisarão provisionar valores consideráveis para cobrir potenciais condenações, podendo impactar na redução de processos de recuperação de créditos no país.  5.3 Aumento nas ações da Fazenda Pública e impacto fiscal No âmbito tributário, as ações de IDPJ envolvendo a Fazenda Pública podem resultar em custos significativos com honorários, isto porque, esta utiliza com frequência o instituto de desconsideração de pessoa jurídica para a responsabilização de sócios, administradores ou outras empresas do grupo econômico por dívidas tributárias de pessoas jurídicas que, por si só, não possuem bens suficientes para saldar seus débitos com o fisco. Desta forma, quando a Fazenda, em processos de IDPJ, perde a ação, ela poderá ser condenada ao pagamento de honorários sucumbenciais. Vale lembrar que, os honorários são calculados com base em um percentual (geralmente até 20%) sobre o valor da causa. Logo, em processos tributários de alto valor, este custo pode ser expressivo, representando, portanto, um gasto adicional que precisa ser coberto pelo orçamento público, impactando diretamente as contas fiscais. Nesta linha, outro possível efeito da decisão em análise é a possível redução na arrecadação tributária, posto que a possibilidade de condenação em honorários sucumbenciais pode desestimular a Fazenda a ingressar com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, principalmente em casos de menor valor ou com maior grau de incerteza jurídica, resultando em uma menor recuperação de créditos tributários. 5.4 Não observância da isonomia processual Ponto que merece atenção é a não observância da isonomia processual, que exige que as partes envolvidas em um processo tenham os mesmos direitos, inclusive no que se refere ao pagamento de honorários sucumbenciais. Neste contexto, é importante que, quando o pedido de desconsideração da personalidade jurídica for rejeitado, a parte que se defendeu tenha direito ao pagamento de honorários, mas, ao mesmo tempo, o advogado do credor também deve ser contemplado com o direito a honorários sucumbenciais, conforme o trabalho efetivo desenvolvido ao longo do processo. 6. A importância da modulação de efeitos da nova jurisprudência Em face da recente mudança jurisprudencial, é recomendável que o STJ adote a modulação dos efeitos da nova interpretação, de modo a evitar um cenário de insegurança jurídica e garantindo uma maior previsibilidade. Para tanto, seria necessário fixar um termo a quo (data de início) para a aplicação do novo entendimento. Nesta toada, embora o direito à jurisprudência não seja absoluto, a segurança jurídica exige que decisões processuais não possam retroagir de maneira inesperada. Consequentemente, seria adequado que o STJ modulasse os efeitos da decisão via Recurso Especial Repetitivo ou Incidente de Assunção de Competência, a fim de delimitar a aplicabilidade dessa nova linha jurisprudencial. Um exemplo claro de modulação de efeitos no STJ pode ser observado no REsp, 1.641.307/SP, em que a Corte estabeleceu um marco temporal para a aplicação de sua decisão sobre a alteração do critério de contagem do prazo para apuração de honorários advocatícios em ações de revisão de cláusulas contratuais, tendo o Tribunal fixado que a nova interpretação valeria apenas para os processos ajuizados após a dará da decisão, evitando que a mudança causasse um impacto retroativo em ações em andamento. 7. Definição de critérios para a base de cálculo dos honorários Outro ponto que merece atenção dado a mudança do entendimento jurisprudencial é a necessidade de definição de uma base de cálculo clara para os honorários sucumbenciais, especialmente em situações como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, onde o valor da causa pode ser impreciso ou não refletir adequadamente o valor real em disputa. O STJ, em decisões anteriores, tem adotado diferentes critérios para a base de cálculo dos honorários.2 8. Considerações finais A recente decisão do STJ no REsp 2.072.206/SP representa uma mudança importante na jurisprudência sobre a incidência de honorários advocatícios sucumbenciais no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, trazendo não só impactos jurídicos mas também econômicos. No que tange aos impactos jurídicos, entendemos que a aplicação desse novo entendimento deve ser modulada, a fim de evitar efeitos retroativos que possam gerar insegurança jurídica. Além disso, é fundamental que o STJ defina critérios claros para a base de cálculo dos honorários sucumbenciais e garanta a isonomia processual, conferindo o mesmo direito ao pagamento de honorários ao advogado do credor. Somente com tais medidas será possível assegurar uma interpretação justa, equilibrada e coerente com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da isonomia. Por sua vez, a mudança de paradigma sobre a aplicação de honorários de sucumbência não apenas encarecem os processos envolvendo incidentes de desconsideração da personalidade jurídica, mas também impactam o custo de crédito e a saúde fiscal da Fazenda. 1 Há julgados desta Corte, inclusive já na vigência do CPC/15, afirmando a impossibilidade de condenação em honorários advocatícios nos incidentes processuais, ressalvadas situações excepcionais. Nesse sentido: (i) AgInt nos EDcl no REsp 2.017.344/SP, rel. ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta turma, julgado em 20/3/23, DJe de 23/3/23; (ii) AgInt nos EDcl no AREsp 2.193.642/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, julgado em 20/3/23, DJe de 22/3/23; (iii) AgInt no REsp 2.013.164/PR, rel. ministro Moura Ribeiro, Terceira turma, julgado em 9/11/22, DJe de 11/11/22, e (iv) AgInt no REsp 1.933.606/SP, rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira turma, julgado em 21/2/22, DJe de 24/2/22. 2 REsp 1.267.942/SP (2015): A base de cálculo dos honorários sucumbenciais foi fixada com base no "valor da causa", reconhecendo que esse valor, embora não reflete diretamente o valor de mercado da demanda, é o critério inicial mais adequado.REsp 1.112.031/SP (2011): A Corte definiu que, em litígios envolvendo contratos de adesão, os honorários seriam calculados com base no "valor do crédito discutido" e não no "valor do contrato", buscando refletir o montante efetivamente em disputa.
A pergunta que se faz no título deste artigo diz respeito a um problema enfrentado pela Corte Especial do STJ, no dia 13 de fevereiro deste ano, ao apreciar o REsp 2.072.206/SP: a Corte Superior firmou entendimento no sentido de que o indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo. No entanto, com esse entendimento, o STJ faz o pêndulo pender para o lado ocupado por sócios quando seus interesses estão em conflito com credores da sociedade. Para entendermos melhor o que está em jogo nesse dilema técnico, apresentaremos o problema contextualizado pela teoria agencialista. Três problemas genéricos de agência decorrem da forma em que é estruturada as sociedades. Aqui, temos em mira a sociedade isolada, já que os problemas de agência ganham maior complexidade nos grupos societários, o que foge ao escopo deste texto. Voltando à perspectiva inicial, a da sociedade isolada, temos que o primeiro gênero de problemas envolve o conflito entre os sócios e os administradores. Aqui os sócios são os principais e os gestores são os agentes (interesses dos titulares de ações ou quotas versus interesses daqueles que podem dispor sobre os bens sociais). Esse problema reside em assegurar que os gestores respondam aos interesses dos sócios, em vez de perseguirem os seus próprios interesses pessoais.1 O segundo gênero de problemas de agência envolve o conflito entre os sócios que detêm o controle societário e aqueles sócios não controladores. Aqui os sócios não-controladores podem ser considerados como os principais e os controladores como agentes (aqueles que conduzem direta ou indiretamente os negócios sociais), e a dificuldade reside em assegurar que os primeiros não sejam expropriados por esses últimos. Embora esse problema seja mais notório nas tensões entre sócios majoritários e minoritários, aparece sempre que um subconjunto de sócios controla as decisões que afetam a classe como um todo. O terceiro gênero de problemas de agência envolve o conflito entre a própria sociedade - incluindo, em particular, os seus sócios - e as outras partes com quem a sociedade estabelece relações, tais como os credores, fornecedores, empregados e clientes. Aqui a dificuldade reside em assegurar que a sociedade (ou os seus sócios), como agente, não se comporte de forma oportunista em relação a esses vários outros interesses - como, por exemplo, expropriando credores, explorando trabalhadores, ou induzindo em erro os consumidores.2 Quando perspectivamos o Direito do ponto de vista histórico, percebemos que suas mutações funcionam em variados momentos em sentidos diferentes: às vezes protegendo um determinado grupo em disputa e desfavorecendo o outro. É assim também quando analisamos esse movimento diante dos três gêneros de problemas de agência, tal qual um pêndulo de Foucault: ora o Direito enfatiza a proteção de sócios em detrimento dos interesses dos gestores, ora dos minoritários e preferencialistas em detrimento dos interesses dos controladores e ora da sociedade ou de seus sócios em detrimento dos interesses dos credores sociais ou em sentidos reversos para as três hipóteses. A metáfora serve bem para pontuar esses movimentos históricos. Foi assim quando o Direito passou a admitir a penhora das quotas de sócios em sociedades limitadas. A par de discussões envolvendo a natureza desse tipo societário - se de pessoas, de capital ou híbrido, mais alinhadas à investigação própria da dogmática societarista, no plano pragmático, o pêndulo passou a pender para o lado do grupo dos credores dos sócios, deixando de proteger os interesses dos partícipes do contrato social (os sócios). E, agora, diante do dilema enfrentado pela jurisprudência do STJ: fixar ou não honorários sucumbenciais em caso de improcedência do IDPJ, põe-se a mesma questão: para qual lado penderá o pêndulo do Direito? Protegerá interesses de sócios ou de credores sociais? O STJ escolheu o lado vencedor neste jogo: os sócios e administradores sociais. Se a tese vencedora fosse a que nega o cabimento da condenação em honorários advocatícios em IDPJ, o pêndulo teria pendido para o lado dos credores da sociedade. Ilustra esse movimento o acórdão proferido no REsp 1845536/SC, publicado em 9/6/20, segundo o qual "[n]ão é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente processual, ressalvados os casos excepcionais. Tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o descabimento da condenação nos ônus sucumbenciais decorre da ausência de previsão legal excepcional, sendo irrelevante se apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente." Ou a decisão monocrática proferida pelo min. Marco Buzzi, nos autos do REsp 2054280/SP publicado em 27/4/23: "[c]omo se vê, o acórdão recorrido destoa do entendimento desta Corte acerca da matéria, segundo o qual, em razão da ausência de previsão normativa, não é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica." Por outro lado, como a tese vencedora se fundamenta na dogmática processualista afirmando que apesar da denominação utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica tem natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido, o atual entendimento do STJ acaba por beneficiar os interesses de sócios e administradores de sociedades. Ao lado das discussões que envolvem a dogmática do Direito Processual, queremos aqui abordar o plano das consequências da adoção de uma ou outra tese jurídica (o plano pragmático). Há sem dúvidas benefícios sociais produzidos pela separação patrimonial possibilitada, principalmente, pela ocorrência no Direito da regra de limitação de responsabilidade dos sócios - a depender do tipo societário contratado - e pela autonomia patrimonial. Destaca-se nesse sentido a economia em custos de transação oriundos de incertezas ou riscos a que estariam submetidos os investidores caso não houvesse tal segregação de patrimônios. Entretanto, essa separação entre os patrimônios sociais e os individuais dos sócios não deve ser absoluta, como ocorre nos casos em que a própria personalidade é instrumento de abuso, fazendo-se incidir as regras sobre a desconsideração da personalidade jurídica, a qual possibilita que os sócios ou os administradores sociais respondam por obrigações da pessoa jurídica. Normas jurídicas - sejam elas legais ou jurisprudenciais - que restrinjam a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, como é o caso da lei de liberdade econômica, que alterou o texto legal previsto no art. 50 do CC, produzem o efeito de proteger com maior vigor os interesses dos sócios quando estão em disputa com os credores sociais. Da mesma forma, uma norma jurisprudencial que torne mais custoso o manejo do IDPJ, impondo a condenação em honorários de sucumbência à parte vencida no incidente, nos casos de sua improcedência, acolhe os interesses de sócios e desacolhe os interesses dos credores sociais, quando ditos interesses estão em disputa (primeira solução). Caso a norma seja construída em sentido oposto, aliviará de custos o manejo do incidente, privilegiando, no jogo, os interesses dos credores da sociedade (segunda solução). Como se vê, aplica-se a metáfora do pêndulo. Essa lógica deve-se ao raciocínio econômico que bem explica o comportamento dos sujeitos implicados na disputa: se há risco de condenação em verbas sucumbenciais, caso o apresentante do incidente seja derrotado, seu comportamento é refreado diante dos custos oriundos dos riscos e incertezas presentes no modelo processual. Caso, por outro lado, não haja esse risco (havendo somente o risco derivado da demanda principal), os custos transacionais suportados pelo credor seriam reduzidos. Assim, a solução adotada pelo STJ acaba por privilegiar o grupo dos sócios quando estão em disputa com os credores sociais, já que os credores suportam custos econômicos elevados. A solução alternativa (afastada agora pela Corte Especial do STJ), no imediatismo, favoreceria o grupo dos credores da sociedade, vez que haveria incentivos para o questionamento acerca do abuso da personalidade jurídica por parte dos credores (os custos econômicos envolvidos seriam reduzidos). Entretanto, os efeitos decorrentes das diferentes soluções não repercutem unicamente na esfera de interesses das partes do processo principal e do correlato incidente. Há repercussões para a sociedade civil com impacto nos chamados custos sociais oriundos das externalidades (aqueles percebidos pela coletividade e que se contrastam com os custos privados, internos aos agentes econômicos) decorrentes da exploração de atividades econômicas. Em relação aos credores voluntários - aqueles que deliberadamente firmam relações jurídicas com o devedor pessoa jurídica - há, na solução atual adotada pelo STJ, prejuízo no sentido de terem que suportar maior risco e, portanto, maior custo de transação, nos casos em que pretendam questionar o abuso da personalidade jurídica. O Direito, portanto, funciona refreando o seu comportamento e protegendo, por consequência, com maior intensidade, o grupo dos sócios. Entretanto, a situação é agravada, nessa hipótese, em relação aos credores involuntários que não decidem estabelecer relações jurídicas com o devedor. São os casos recorrentes de vítimas de danos provocados por pessoas jurídicas, que, não raro, diante do abuso de personalidade jurídica, do devedor se socorrem na desconsideração da personalidade jurídica visando a responsabilização de sócios e administradores. Há nesses casos relevantes custos suportados por tais credores diante de uma ação de responsabilização, que poderão ser acrescidos de custos adicionais advindos do risco em serem condenados no pagamento de honorários advocatícios para o advogado da parte vencedora caso o incidente seja julgado improcedente. Esse cenário, do ponto de vista das consequências sociais, influencia no cálculo dos agentes econômicos quando perturba (dificulta) a efetividade dos mecanismos de reparação e, por consequência, desestimula economicamente que tais agentes econômicos adotem medidas preventivas visando a internalização de custos sociais. Nesse jogo, estão em disputa interesses de sócios de um lado e interesses de credores sociais de outro. O pêndulo se moveu - para o lado dos interesses de sócios e administradores sociais. Mas as consequências são mais amplas e atingem outros interesses para além dos interesses concretos de credores sociais: a sociedade civil arcará com os custos (as externalidades). 1 ARMOUR, John; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Agency problems, legal strategies, and enforcement. 2009. 2 ARMOUR, John; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Agency problems, legal strategies, and enforcement. 2009.
Quem no passado se voltasse para o futuro, procurando imaginar o que a evolução das ciências biológicas e médicas iria provocar no homem e na sociedade dos nossos dias, dificilmente anteciparia as transformações que vieram a ocorrer e, particularmente, imaginaria a possibilidade de existirem pretensões pela concessão indevida, pelo nascimento indevido e, até mesmo, pela continuidade de uma vida indevida, leia-se em sofrimento eternizado pelas tecnociências. Diante de casos de pacientes com doenças graves e terminais, os cenários de tensão são dilatados e a doença grave que acomete uma pessoa pode mobilizar impactos nos membros que integram todo o grupo familiar. A angústia envolvida ao cuidar de alguém com doença avançada promove um nível de estresse alto, que se faz pensar nos familiares próximos como pacientes de segunda ordem. Os cenários são agravados quando o paciente é menor de 16 anos de idade e, por imposição legal, delega as decisões tomadas por representação de seus pais/responsáveis legais ou, quando maiores de 16 anos, por assistência e, em inúmeros casos, essas decisões não atendem ao melhor interesse da criança, eclodindo em situações de obstinação terapêutica, ou tratamento fútil, conforme a doutrina moderna denomina de distanásia. Nessas situações, por vezes, emergem divergências entre a equipe de saúde e os pais sobre o plano terapêutico do paciente infante, por vezes arraigados de valores próprios desses agentes, esvaziando o bem-estar desse infante, objetificando a criança ao sofrimento biotecnológico, sem qualquer previsibilidade de cura dela, ferindo sua dignidade, autonomia e interesse, desconsiderando a criança como sujeito de direitos. Hodiernamente, existem casos aclamados nas mídias mundiais, nitidamente reconhecidos pela equipe médica em processos de distanásia e a insistência dos responsáveis legais na manutenção dos suportes artificiais. Recentemente, na Inglaterra, ocorreu o debate sobre o caso Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, que teve por decisão judicial, ocorrida em dezembro de 2023, o desligamento dos aparelhos em decorrência do flagrante processo de distanásia no qual era submetida. Esse caso em destaque pavimentou as reflexões pela primazia do melhor interesse da criança e do adolescente, da dignidade da pessoa humana, a participação da criança na tomada de decisão, pela implementação de princípios bioéticos e da possibilidade da limitação do poder familiar nos cenários de abuso do poder como representante da infante nos casos de doenças graves e de terminalidade. A finitude humana, apesar de sua obviedade, ao menos por hora - apesar do intenso avanço biotecnológico - é tabu e, nos cenários de crianças, é considerada socialmente uma afronta à ordem natural do viver, sendo repelidos os seus debates. Nesses cenários belicosos, surge a questão, a autoridade parental pode ser limitada quanto não atender ao melhor interesse da criança em fim de vida? Apesar da incipiência do tema no Judiciário brasileiro, o objeto não é novo e já foi enfrentado pelas Cortes inglesas e, no caso, apontamos a decisão judicial proferida em um processo no qual existe uma discordância da conduta terapêutica entendida como adequada e proporcional ao caso a autoridade parental dos pais. Diante da gravidade do caso1, emergiu divergência entre a equipe de saúde e os pais sobre o plano terapêutico, já que o quadro de IG era gravíssimo, irreversível, tendo a criança entrado em sofrimento atroz, e sobre severos procedimentos invasivos e desproporcionais, violando a dignidade humana e o melhor interesse da criança, o Hospital Universitário de Nottingham NHS Foundation Trust (TRUST) judicializou a questão, o que se passa a analisar. Segundo decisão proferida no dia 13/11/23 (decisão proferida pelo Senhor da Justiça Peel, do Alto Tribunal de Justiça Divisão Familiar. Caso no: FD23P00452, Londres, Inglaterra), o hospital informou que IG estava sob inúmeros procedimentos invasivos (incluindo ventilação mecânica, oxigenoterapia de alto fluxo, acesso a cateter) e apresentava uma deterioração a ponto de tal tratamento ser necessário somente para sustentar a vida. IG teve piora do quadro geral, tendo sido implementados procedimentos invasivos, e tendo ocorrido mudança na causa de pedir da ação, com solicitação de autorização para remover os cuidados intensivos e segundo achados médicos "não há perspectiva de recuperação, a sua esperança de vida é muito limitada, os múltiplos tratamentos que recebe estão a causar-lhe um elevado nível de dor e sofrimento, e não há qualidade de vida discernível ou interação da IG com o mundo ao redor dela."2, com severa oposição dos pais, apesar da gravidade do caso. No caso concreto, dos argumentos ventilados pelo juiz inglês é possível comparar com inúmeros pontos debatidos no presente trabalho, dentre a responsabilidade parental e seus limites; (ii) o sofrimento familiar afeta diretamente o desejo dos pais nas situações de doença grave ou ameaçadora da vida; (iii) o sofrimento da criança é um ponto central da decisão e as decisões sobre o corpo no exercício da autoridade parental; (iv) e a proteção do melhor interesse da criança. Cabe destacar, já nas primeiras decisões proferidas (decisão proferida em 2 novembro de 2023), que o exercício da autoridade parental não pode ferir o melhor interesse da criança, e que essa autoridade não é irrestrita.3 Princípio da proteção integral e do superior interesse das crianças Segundo Cruz (2022), até 1988 não é possível estabelecer a criança e o adolescente como sujeitos de direitos no Brasil, refletindo, portanto, na ausência de um reconhecimento de seus mais simples direitos e proteções. Elisa Cruz (2022) destaca que, com o surgimento da Constituição de 1988, se insere um marco normativo que alterou de forma substancial a realidade jurídico-normativa até então estabelecida. O reflexo dos elementos introduzidos no texto constitucional sofreu enorme influência dos acontecimentos ocorridos na ONU entre 1977/1989, o que se tornaria a Convenção sobre Direitos da Criança, que foi ratificada pelo Brasil em 1990 pelo decreto 99.710/90. Sendo assim, a Constituição de 1988 introduziu no cenário nacional uma ordem que passou a privilegiar as situações jurídicas existenciais, ofertando proteção às situações de vulnerabilidade, "conferindo tutela especial e prioritária às crianças, adolescentes e pessoas idosas, dentre outras considerados em situação de vulnerabilidade" (ELER, 2020, p. 30), baseados em um modelo de direitos humanos, ao qual o Estado, alicerçado nas obrigações de respeito, proteção e realização, alça as crianças ao patamar de sujeitos de direito (art. 227). A adoção na Constituição da denominada Doutrina da Proteção Integral, lastreado no conceito de que as crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos portadores de direitos e não apenas objetos dependentes de seus pais ou seu responsável, ou de arbitrariedade de algumas autoridades (OLIVEIRA, 2005), tornando-se referencial que confere substrato ao Direito da Criança e do Adolescente no Brasil (ELER, 2020). À vista disso, pode-se dizer que o conceito de Proteção Integral alcança os seus beneficiários em seus inúmeros planos de necessidade, e, especial personalidade, seja por meio de assistência material, moral, jurídica e espiritual4. Nessa linha, a Constituição Federal brasileira materializa o Direito da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), consolidando os direitos humanos fundamentais, individuais, sociais e metaindividuais (TAVARES, 2001). Sendo assim, a exegese dos direitos da personalidade deve ser analisada sob ângulo não meramente abstrato e fechado, mas, sim, norteado pela cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CRFB5). Não bastasse isso, a Convenção sobre o Direito da Criança estabeleceu o status da criança como titular de direitos humanos e, nisso, não destoa dos adultos, tendo sido ratificada pelo Brasil em 1990 com status supralegal e sobreposta ao ECA. Convém mencionar que, no âmbito das relações familiares, existe relevante oxigenação sobre o instituto jurídico do poder familiar. Outrora, o conceito de autoridade (poder familiar), é compreendido como conjuntos de poderes e deveres que os pais exercem em relação às crianças, adolescentes ou incapazes, a quem a lei denominou a lei incapacidade civil, delegando aos genitores o dever de assistência ou representação para os atos da vida civil (assinatura de contratos de colégios, planos de saúde, aquisição de medicamentos, ações judiciais etc.) (WANQUIM, 2023.) Da autoridade parental nos cenários de saúde O Poder Familiar encontra assento em arcabouço normativo civil-constitucional, é o que se pretende demonstrar. De forma objetiva e direta, o conceito de "Poder Familiar" encontra-se definido no art. 1.630 e seguintes do Código Cível e, neste trabalho, denominado "Autoridade Parental", por ser conceito moderno das relações de direitos, conforme ensinam Rosenvald e Braga Netto (2020)6. No mesmo sentido, Gustavo Tepedino observa que "a utilização dogmática de uma estrutura caracteriza pelo binômio do direito-dever, típica de situações patrimoniais, apresenta-se como incompatível com a função promocional do poder conferido aos pais" (TEPEDINO, 2006, p. 182-183). Diante disso, a doutrina tem amadurecido e criticado o grande hiato na construção do conceito de menoridade e incapacidade construído em um critério meramente etário, conforme refletido nos arts. 3º e 4º do Código Civil, nos quais os menores são classificados como incapazes, tendo mera variação estabelecida em um grau de inabilidade para vida civil conforme idade, que na verdade deveria ser focar melhor na capacidade de discernimento desses agentes, recebendo severas e duras críticas da doutrina modera, devendo sofrer uma forte reforma nos seus critérios de fixação (BROCHADO; RODRIGUES, 2021, p. 23). Não bastasse isso, o direito à vida adquire nova leitura diante da cláusula geral de tutela da dignidade humana, ou seja, a vida que se protege na Constituição não é a vida meramente biológica, mas sim vida digna, o que permite a discussão acerca do que seria vida digna para o caso em debate (OLIVEIRA et al., 2022, p. 189). O uso dessa prerrogativa não é ilimitado e irrestrito, merecendo limites alicerçados na proteção integral e no melhor interesse do menor. O caso Indy Gardy deixa os limites éticos no investimento de terapias fúteis e que, no atual cenário mundial, não podem ser mais tolerados, mesmo por genitores imbuídos por sentimentos travestidos de proteção. A violação do poder-dever pode resultar em responsabilização por ato ilícito (art. 186, CC) ou abuso de direito (art. 187, CC), além da suspensão, destituição ou extinção do poder familiar (art. 1.635, 1.637 e 1.638, CC), bem como a responsabilização criminal por abandono (art. 133, 244 e 246, CP) (BRASIL, 1940). O uso irregular dessa autoridade nos cenários de saúde, em especial sobre o fim de vida de crianças, é um debate pouco enfrentado pela doutrina, e, por motivos óbvios, desperta acalorados debates no âmbito do Direito de Família brasileiro, mas é também um ponto controverso entre a doutrina e jurisprudência, desde que, é claro, haja ocorrência dos motivos ensejadores (DADALTO; GOZZO, 2022). Não se pode omitir que o abuso de direito no cenário de saúde foi recentemente enfrentado por Igor Mascarenhas (2023), sob o prisma da figura do savior sibling e a indignidade de concepção do filho cura e o abuso do direito. O autor7 aborda os limites da savior sibling e questiona a existência da necessidade se perquirir se o exercício da autonomia parental em contrariedade aos direitos da criança e de seus interesses.8 O propósito não é e nunca foi isolar os pais e responsáveis legais da tomada de decisões. Pelo contrário, o impulso central dos cuidados paliativos é o acolhimento, não apenas do paciente, mas também dos familiares que são diretamente impactados pela doença (DADALTO; GOZZO, 2021). No entanto, é imperativo assegurar que a autoridade parental seja exercida sempre com o foco no melhor interesse da criança e do adolescente, especialmente em contextos de vida limitada. 1 Distúrbios profundos do IG, incorporando aspectos metabólicos, neurológicos e cardiológicos: (i) Acidúria hidroxiglutárica combinada D-2, L-2, um distúrbio metabólico devastador que causa danos progressivos ao cérebro; (ii) Ventriculomegalia progressiva bilateral grave, na qual os ventrículos cerebrais estão aumentados devido ao acúmulo de líquido espinhal; (iii) Tetralogia de Fallot que afeta o fluxo sanguíneo normal através do coração 2 Op. Cit 3 "Com o coração pesado, cheguei à conclusão de que os encargos do tratamento invasivo superam os benefícios. Em suma, a dor significativa sentida por esta adorável menina não se justifica quando confrontada com um conjunto de condições incuráveis, uma vida muito curta, nenhuma perspectiva de recuperação e, na melhor das hipóteses, um envolvimento mínimo com o mundo que a rodeia. (tradução nossa). 4 Cabe dizer que o bem-estar espiritual está inserido nos contextos de dignidade desde 1924, quando a Convenção de Genebra, em seu art. 1 a criança deve ser colocada em condições de se desenvolver de maneira normal, material e espiritualmente e replicado na Convenção dos Direitos das Crianças e art. 27. Os Estados Partes reconhecem o direito de todas as crianças a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. 5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos. 6 Não faz sentido, em nossos dias, enxergar os filhos como sujeitos ao arbítrio dos pais. Autoridade parental, sim, mas não o arbítrio. Isso, contudo, não significa, em absoluto, esvaziar a autoridade dos pais - fundamental em tempos tão sem regras. Mas a palavra final será dos pais, à luz da cultura familiar e dentro dos contatos mínimos de razoabilidade. Porém, quanto maior for o discernimento das crianças e dos adolescentes, mais eles devem participar das soluções que lhe dizem respeito. (ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2020, p. 1.660). 7 Tema: A regulamentação pelo CFM - Conselho Federal de Medicina da figura do savior sibling: uma análise da (in) dignidade de concepção de filho cura sob a perspectiva civil-constitucional Curitiba, 2023. 8 A crítica à prática do savior sibling está relacionada ao exercício da autonomia em contrariedade aos direitos do nascituro/concebido. Como o poder de decisão, tradicionalmente, repousa nas mãos dos pais que, por vezes, serão também responsáveis por consentir em nome do filho doente, há um flagrante conflito de interesses. De forma análoga ao entendimento do CFM em relação à recusa terapêutica da mulher grávida, prevista na resolução CFM 2.232/19, há a necessidade de proteção de pessoa vulnerável cujos interesses não podem estar sujeitos ao exercício arbitrário da autonomia. Assim, insta questionar: é possível afirmar que a decisão dos pais, ao optarem de forma racional, livre, informada e consciente, valoriza os interesses do filho a ser concebido? (MASCARENHAS, 2023, p. 81). 9 AFFONSECA, Carolina de Araújo; DADALTO, Luciana. Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes pediátricos. Rev. Bioética, Brasília, v. 26, 1. mar./jan. 2018. 10 ALBURQUERQUE, Aline; ELER, Kalline. Conflitos Religiosos no contexto de Cuidados Paliativos. In: DADALTO, Luciana (Org.). Cuidados Paliativos Pediátricos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Editora Foco. 2022. 11 COSTA, Ana Paula Correia de Albuquerque da; MASCARENHAS, Igor de Lucena. Do Arkangel de Black Mirror aos mecanismos de controle e rastreamento a serem utilizados em crianças: entre a ficção e realidade, é preciso refletir sobre violações a direitos da personalidade. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Vulnerabilidade e Novas Tecnologias. 1. ed. v. 1. 2022. 12 CUSTODIO, A. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do Direito da Criança e do Adolescente. Revista do Direito, 29, p. 22-43, 2008. Disponível aqui. Acesso em: 17 maio 2024. 13 CRUZ, Elisa Costa. Crianças Institucionalizadas em fase Terminal. Cuidados Paliativos Pediátricos. Aspectos Jurídicos. Coordenado por Luciana Dadalto et al. Editora Indaiatuba. Editora Foco, 2022. 14 DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2020. Editora Foco. 15 DADALTO, Luciana; AFFONSECA, Carolina de Araújo. Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes Pediátricos. Rev. Bioética, Brasília, v. 26, 1, p. 12-21, jan, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2024. 16 DADALTO, Luciana. Morte digna para quem? O Direito fundamental de escolher seu próprio fim. Pensar, v. 24, 3, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 21 jan. 2024. 17 DADALTO, Luciana; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos pais na Obstinação terapêutica dos filhos menores. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado et al. (Coord.). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Editora Foco, 2021. 18 DADALTO, Luciana. Distanásia e responsabilidade civil médica. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2024. 19 DADALTO, Luciana. Eutanásia passiva x ortotanásia. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2024. 20 ELER, Kalline; ALBUQUERQUE, Aline. Conflitos Religiosos no Contexto de Cuidados Paliativos. In: DADALTO, Luciana (Org.). Cuidados Paliativos Pediátricos: Aspectos Jurídicos. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 17-38. 21 ELER, Kalline. Capacidade Jurídica da Criança e do Adolescente na Saúde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 22 GRAMPSTUP, Erick F.; TARTUCE, Fernanda. A responsabilidade civil pelo uso abusivo do poder familiar. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2024. 23 MASCARENHAS, Igor de Lucena. A regulamentação pelo Conselho Federal de Medicina da Figura Do Savior Sibling: Uma Análise Da (In)Dignidade De Concepção De Filho Cura Sob A Perspectiva Civil-Constitucional. Tese (Doutorado) - Curitiba, 2023. 24 OLIVEIRA, Alexandro et al. Aspectos Jurídicos Dilemas Bioéticos e Jurídicos nos Cuidados Paliativos Pediátricos em Pacientes Com Doenças Neurodegenerativas. In. AFFONSECA, Carolina de Araújo et al. Bioética e Cuidados Paliativos Pediátricos. Indaiatuba: Editora Foco, 2022. 25 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência: Os Novos Domínios Científicos e seus Reflexos Jurídicos. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (org.). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. 26 ROSENVALD, Nelson, BRAGA NETTO, Felipe. Comentários ao Código Civil. Salvador. Jus Podium, 2020. 27 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer. 2 ed. 218 p. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. 28 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. 29 SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 30 SCHULMAN, Gustavo. A Capacidade Civil lida do Avesso: A construção do futuro e seus desafios Jurídicos. Trajetória do Direito Civil, estudos em homenagem à professora Heloísa Helena Barboza/coordenação por Gustavo Tepedino, Vitor Almeida. Editora Indaiatuba. Editora Foco, 2023. 31 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro. Renovar, 2004. 32 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. A participação de crianças e adolescentes em ensaios clínicos: uma reflexão baseada nos princípios do melhor interesse, solidariedade e autonomia. In: TEPEDINO, Gustavo, Ana Carolon Brochado; ALMEIDA, Vitor (Orgs.). O Direito Civil entre sujeitos e a pessoa: Estudos em homenagem ao professor Stefano Rodatá. 1. ed. v.1. p. 191-215. Belo Horizonte: Fórum, 2016. 33 WANQUIM, Bruna Barbieri. A natureza jurídica da alienação parental como situação de risco a criança e adolescentes. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021. 34 WANQUIM, Bruna Barbieri. Cuidado Paliativos Pediátricos à luz do Direito da Criança e do Adolescente. In: DADALTO, Luciana (Org.). Cuidados Paliativos Pediátricos: Aspectos Jurídicos. Ed. Indaiatuba: Foco, 2023.
O desenvolvimento exponencial dos jogos on-line tem provocado não apenas transformações culturais e econômicas de alcance global, mas também desafios regulatórios que demandam uma análise técnica interdisciplinar para que se possa refinar a terminologia adotada em diferentes contextos jurídicos. Nesse panorama, a distinção conceitual entre os termos ingleses "game", "gamble" e "bet" assume papel central, em face das sutilezas semânticas que tais vocábulos apresentam e das repercussões normativas que suas definições carregam. Em português, a imprecisão terminológica muitas vezes resulta em interpretações ambíguas, o que dificulta a adequada aplicação do arcabouço legal, especialmente para a identificação de danos indenizáveis. Portanto, a compreensão acurada dessas expressões é fundamental para assegurar segurança jurídica e coerência regulatória. O termo inglês "game" designa, no contexto dos jogos eletrônicos, um conjunto de atividades de natureza lúdica que podem ser competitivas ou recreativas. O jogo de videogame, enquanto manifestação interativa e tecnológica em ambiente computacional, consiste em uma experiência virtual estruturada por regras pré-estabelecidas, desafios progressivos e objetivos específicos, muitas vezes combinando elementos narrativos, audiovisuais e mecânicas de interação dinâmica. Tal forma de entretenimento digital se desenvolve em plataformas distintas, notadamente consoles dedicados - dispositivos projetados exclusivamente para a execução otimizada de jogos -, além de tablets, smartphones e computadores pessoais, portáteis ou não, cuja adaptabilidade permite a configuração personalizada de recursos gráficos e de desempenho. Essa dualidade de plataformas amplia as possibilidades de imersão e acessibilidade, atendendo a diversos perfis de jogadores, desde os mais casuais até os dedicados entusiastas que buscam desempenho técnico elevado e experiências complexas. Diferentemente dos conceitos que envolvem apostas, os jogos eletrônicos não possuem, em sua essência, uma conexão direta com o risco financeiro. Trata-se, via de regra, da já citada diversão lúdica associada à experiência do entretenimento audiovisual imersivo. E, quanto aos "games", o ordenamento jurídico brasileiro avançou na regulamentação desse setor com a recente promulgação da lei 14.852/24, que institui o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos1. Essa legislação não apenas delimita o escopo do que se enquadra como jogo eletrônico, mas também se propõe a dissociar essa categoria de atividades ligadas a sorteios ou apostas. Tal separação normativa é crucial para fomentar o desenvolvimento da indústria de jogos, sem sujeitá-la a equívocos que a aproximem das regulações restritivas aplicáveis aos jogos de azar. Por outro lado, "gamble" refere-se a atividades nas quais o resultado é predominantemente condicionado ao acaso, como ocorre em cassinos, roletas ou outras modalidades tradicionalmente conhecidas como jogos de azar. Para detalhar melhor o conceito, pode-se dizer que a loteria de apostas de quota fixa consiste em uma modalidade de jogo em que o apostador conhece previamente o valor do prêmio em potencial, determinado com base nas probabilidades associadas ao evento apostado (odds), como ocorre em apostas esportivas. Diferentemente dos cassinos, nos quais o resultado depende quase exclusivamente do acaso em jogos como roletas e máquinas caça-níqueis - proibidas no país -, a loteria de quota fixa envolve uma avaliação de risco e probabilidade, o que a afasta da definição clássica de jogo de azar. No Brasil, aliás, o jogo de azar é tutelado de forma restritiva no âmbito penal, sendo tipificado como contravenção pela lei das contravenções penais (art. 50, §3º, decreto-lei 3.688/41)2. Sob o prisma civil, a exploração ilícita de jogos de azar não gera obrigação contratual reconhecida pelo ordenamento jurídico, conforme disposto no art. 814 do Código Civil, embora não sejam desconsiderados os efeitos do jogo de azar como obrigação natural, salvo em caso de dolo ou se quem perde o valor no jogo ou aposta seja menor ou interdito. Frise-se que o Brasil, em sua tradição jurídica, manteve por décadas uma posição proibitiva em relação a essas práticas, consideradas ilegais em grande parte do território nacional. A exceção sempre foi a Loteria Federal, regulamentada pelo decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 19673, que dispõe sobre a exploração e o controle das loterias no Brasil, e que não é uma modalidade de aposta de quota fixa. Esse decreto-lei estabelece que a União detém o monopólio sobre a exploração de loterias, incluindo a Loteria Federal, que é organizada e administrada pela Caixa Econômica Federal. Trata-se de um sistema de sorteios tradicionais em que o apostador adquire bilhetes predefinidos, e o prêmio é determinado pelo resultado do sorteio, sem relação com probabilidades específicas (odds) ou variáveis baseadas em eventos externos. Bem ao contrário, os bilhetes já possuem números e séries impressos, e o prêmio é fixo, não dependendo de uma análise de risco ou cálculo de probabilidades. No entanto, a promulgação da lei 14.790/23 (conhecida como lei das bets) inaugurou um novo capítulo regulatório, ao permitir o funcionamento controlado das apostas esportivas no país4. Em síntese, essa legislação estabelece uma linha divisória entre as apostas legalmente reguladas e os jogos de azar convencionais, criando um ambiente jurídico mais flexível e propício à inovação econômica. Logo, o terceiro termo que nos interessa para este texto é o vocábulo inglês "bet", que se refere a apostas que envolvem um acordo entre partes, no qual se arrisca dinheiro ou bens em troca de um possível ganho. Essa prática está usualmente associada a apostas esportivas, que, embora inicialmente reguladas pela lei 13.756/185, ganharam maior especificidade com a já citada lei 14.790/23. A regulamentação inclui tributações claras tanto para operadores quanto para apostadores, visando um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e controle governamental para a observância de critérios específicos na concessão de licenças, na fiscalização das operações e na tributação. A confusão semântica entre esses termos em inglês produz imprecisões, também, em português, sendo agravada por um histórico de legislações fragmentadas e interpretações demasiadamente amplas. Tal ambiguidade pode prejudicar tanto o desenvolvimento da indústria quanto a proteção dos consumidores, razão pela qual se propõe, neste ensaio, a adoção da designação "jogos on-line" como gênero do qual deriva a seguinte equivalência terminológica para suas três espécies: (i) "game" sendo traduzido como "jogo eletrônico"; (ii) "gamble" sendo traduzido como "jogo de azar"; (iii) e "bet" sendo traduzido como "jogo de aposta". Naturalmente, os três contextos envolvem complexidades próprias que podem tornar desafiadora a intenção de tutelar e prevenir danos que possam emergir de sua indevida exploração. Quanto à indústria de jogos eletrônicos, são relevantes os desafios relacionados à propriedade intelectual na internet, que pode desencadear práticas ilícitas e danosas como a pirataria de software. Além disso, outro ponto de atenção é a crescente relevância dos esportes eletrônicos, ou eSports, que têm gerado debates sobre seu enquadramento legal. Quanto a esse tema, a lei geral do esporte6 ainda não reconhece os jogos eletrônicos como esportes, o que limita o acesso a incentivos governamentais. Entretanto, a lei Pelé7 possui uma definição mais abrangente, o que abre espaço para interpretações favoráveis, e as duas leituras podem propiciar discussões sobre a exploração do trabalho alheio em contextos virtuais competitivos, com reflexos sobre o direito de arena e a proteção de dados pessoais desses "novos atletas", sem contar eventual vulneração infantojuvenil quando os envolvidos forem crianças e adolescentes vinculados a equipes que participam de competições de eSports. Outro aspecto relevante é a discussão sobre microtransações e loot boxes voltadas ao público de tenra idade. Há anos, muitos especialistas questionam se essas práticas deveriam ser consideradas jogos de azar, devido ao seu potencial de incentivar gastos excessivos, principalmente entre jovens8. Ademais, o crescimento acelerado do mercado das empresas de apostas esportivas (Bets) acarreta uma série de desafios e preocupações. Uma das questões mais discutidas é o potencial impacto social das apostas, especialmente no que tange à ludopatia9, ou seja, o vício patológico em apostas. No contexto esportivo, em que as apostas são legalizadas, não se deve confundir "bet" e "gamble", embora sejam percebidas características que podem induzir a comportamentos compulsivos, sobretudo em usuários vulneráveis. Programas de mitigação desse risco, como limites de aposta e ferramentas de autoexclusão, são frequentemente exigidos pelas autoridades regulatórias como parte das condições operacionais das empresas do setor, denotando a importância de parâmetros específicos de accountability. Outra preocupação relevante refere-se à transparência e à integridade das competições esportivas, pois há receios de que o envolvimento financeiro massivo em apostas possa fomentar práticas ilícitas, como a manipulação de resultados (match-fixing), afetando a credibilidade dos eventos esportivos, que passam a ser influenciados pelos próprios atletas, cooptados por organizações criminosas com promessas de ganhos elevados para interferir na ocorrência de um evento passível de cômputo em sistemas de apostas. Nesse sentido, a regulamentação brasileira determina que operadoras de apostas esportivas cooperem com órgãos esportivos e de fiscalização para identificar e prevenir quaisquer indícios de fraudes. Em um setor caracterizado pela elevada circulação de informações pessoais, transações financeiras e potenciais impactos sociais, adotar uma postura preventiva não é apenas desejável, mas imperativo. Essa abordagem envolve a implementação de medidas proativas10, como políticas rigorosas de proteção de dados pessoais, conformidade normativa contínua e mecanismos transparentes de autoexclusão para jogadores em risco. A responsabilidade civil preventiva11 revela-se como um mecanismo imprescindível para salvaguardar a integridade tanto do mercado quanto dos jogos eletrônicos e das competições esportivas, mitigando riscos que possam comprometer sua legitimidade e estabilidade. No esporte, políticas direcionadas à prevenção de manipulação de resultados - prática que ameaça a essência do fair play - são cruciais para proteger a credibilidade dos eventos, elemento indispensável à continuidade e confiança nas operações de apostas. Logo, a inobservância de tais medidas de controle pode gerar não apenas o descrédito por parte dos apostadores, mas também danos reputacionais profundos e irreparáveis às empresas do setor e às entidades esportivas, comprometendo sua sustentabilidade institucional. Em conclusão, a distinção entre "game", "gamble" e "bet" reveste-se de singular importância jurídico-regulatória, especialmente no âmbito das atividades on-line. Nesse contexto, a responsabilidade preventiva encontra-se plenamente alinhada aos preceitos contemporâneos de governança corporativa, que valorizam a ética organizacional, a transparência e a responsabilidade social como vetores fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Antecipar riscos inerentes aos jogos on-line, por meio de medidas eficazes de controle e prevenção, transcende o simples cumprimento normativo, consolidando-se como uma estratégia que promove a estabilidade do mercado, harmonizando os interesses econômicos com a proteção dos direitos dos consumidores e a integridade das competições. Assim, as recentes leis que tratam do tema devem ser elogiadas, mas ainda há vasta zona cinzenta no ambiente regulatório brasileiro, não se podendo prescindir de novos avanços para a preservação de direitos, para a proteção de grupos vulneráveis como crianças e adolescentes e para fortalecer a coesão e a legitimidade institucional em um ambiente regulatório cada vez mais complexo e interdependente. 1 BRASIL. Lei 14.852, de 3 de maio de 2024. Cria o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos; e altera as leis 8.313, de 23 de dezembro de 1991, 8.685, de 20 de julho de 1993, e 9.279, de 14 de maio de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 2 BRASIL. Decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941. Define as contravenções penais. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 9 out. 1941. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 3 BRASIL. Decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a exploração e controle de loterias. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 fev. 1967. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 4 BRASIL. Lei 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as leis 5.768, de 20 de dezembro de 1971, e 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e a MP 2.158-35, de 24 de agosto de 2001; revoga dispositivos do decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 1967; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 dez. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 5 BRASIL. Lei 13.756, 12 de dezembro de 2018. Regulamentação das Loterias e Promoções Comerciais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 6 BRASIL. Lei 14.597, de 24 de julho de 2023. Dispõe sobre a organização e a prática do desporto, institui a lei geral do esporte. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 7 BRASIL. Lei 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 mar. 1998. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 8 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta. Para além das 'loot boxes': responsabilidade civil e novas práticas abusivas no mercado de 'games'. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (coord.). Proteção de dados pessoais na sociedade da informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 333-356. 9 MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães. Economia da atenção, gamificação e esfera lúdica humana: nova crise na proteção dos consumidores e os abusos das apostas e jogos on-line. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 156, ano 33, p. 183-197, nov./dez, 2024. 10 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 26-28. 11 VENTURI, Thaís Goveria Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 201-202.
1. Introdução Ao analisarmos os conceitos de afeto e amor, os dicionários indicam que ambos estão relacionados a sentimentos de apreço, vínculo e estima, frequentemente associados às relações familiares e interpessoais. Contudo, no campo jurídico, esses conceitos adquirem contornos específicos, especialmente no debate sobre abandono afetivo. Uma questão essencial emerge desse debate: se a jurisprudência não reconhece a obrigatoriedade de amar - seja no vínculo entre pais e filhos ou no abandono afetivo inverso -, como é possível responsabilizar alguém civilmente por abandono afetivo? Em outras palavras, se o amor não é um dever jurídico, qual seria, então, a causa legítima para a indenização por danos morais? O STJ tem consolidado o entendimento de que o afeto, em sua dimensão objetiva, constitui um bem jurídico tutelado, especialmente no contexto da filiação socioafetiva. No entanto, ao afastar a imposição de um dever de amar, o Tribunal destaca a centralidade do dever de cuidado. Esse dever, alçado à categoria de obrigação caso descumprido, desassocia o afeto de sua subjetividade intrínseca e desloca o debate para ações concretas e verificáveis, como presença, assistência material e emocional, e tratamento equitativo entre os filhos. Nestas linhas, exploraremos a distinção entre a não obrigatoriedade do amor e a violação ao dever de cuidado como causas de pedir em ações de abandono afetivo. Argumenta-se que, embora o amor permaneça no campo da subjetividade e do metajurídico, o cuidado emerge como um elemento objetivo e mensurável, cuja inobservância pode gerar dano moral. A partir dessa premissa, analisaremos os fundamentos que sustentam o pedido de indenização por abandono afetivo, evidenciando que a reparação se justifica não pela ausência de amor, mas pela violação de deveres jurídicos claros e concretos. Causa de pedir Independentemente do bem da vida que busca o autor através do processo judicial, aquele tem de dizer por quê.1 De sorte que deve o autor da ação apresentar em juízo os motivos que embasam determinada pretensão, deve, portanto, apresentar de forma concreta os fundamentos de fato para que o juiz decida sobre o direito.2 É a previsão trazida pelo Código de Processo Civil.3 De sorte que embora o pedido de seja de danos morais, a causa de pedir deve ser bem avaliada pois, se o fundamento for a falta de amor ou então a falta de um cuidado mínimo, veremos que as consequências jurídicas serão diferentes. Afeto como bem jurídico Em sede de paternidade sócio afetiva, o STJ há muito entende que o afeto é um dos pressupostos a configurar a condição de filho.4 Da não obrigatoriedade do amor e as discussões relativas ao abandono afetivo e ao dever de cuidado o STJ nos apresenta a seguinte diferença: Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo - a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo metajurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos - quando existirem -, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.5 Conclusão Uma linha tênue pode separar todo um cuidado, um carinho, uma assistência, de um pai para com o filho, da questão do amor. E o nexo de causalidade entre abandono e danos imateriais reside justamente na violação dos primeiros (cuidado, um carinho, uma assistência), e não quanto ao segundo (falta de amor). Contudo, e reiteramos, o afeto (abandono afetivo) é a discussão principal para o tipo de ação que tratamos neste artigo. A afirmação acima diz respeito, portanto, às causas de pedir, embora o pedido seja o mesmo: dano moral. De sorte que não se harmoniza com o entendimento do STJ a causa de pedir descumprimento de obrigação de amar, mas sim e ao o que importa, a causa violação ao dever de cuidado: aqui é que a pretensão deve se concentrar conforme nos demonstra o entendimento do STJ. 1 ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). v. IV. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 63. 2 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 964. 3 Art. 319. A petição inicial indicará:III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido. 4 Ementa: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO UNILATERAL DE MAIOR AJUIZADA PELO COMPANHEIRO DA GENITORA. DIFERENÇA MÍNIMA DE IDADE ENTRE ADOTANTE E ADOTANDO. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE.1. Nos termos do § 1º do art. 41 do ECA, o padrasto (ou a madrasta) pode adotar o enteado durante a constância do casamento ou da união estável (ou até mesmo após), uma vez demonstrada a existência de liame socioafetivo consubstanciador de relação parental concretamente vivenciada pelas partes envolvidas, de forma pública, contínua, estável e duradoura.2. Hipótese em que o padrasto (nascido em 20/3/80) requer a adoção de sua enteada (nascida em 3/9/92, contando, atualmente, com 27 anos de idade), alegando exercer a paternidade afetiva desde os 13 anos da adotanda, momento em que iniciada a união estável com sua mãe biológica (2/9/06), pleito que se enquadra, portanto, na norma especial supracitada.3. Nada obstante, é certo que o deferimento da adoção reclama o atendimento a requisitos pessoais - relativos ao adotante e ao adotando - e formais. Entre os requisitos pessoais, insere-se a exigência de o adotante ser, pelo menos, 16 anos mais velho que o adotando (§ 3º do art. 42 do ECA).4. A ratio essendi da referida imposição legal tem por base o princípio de que a adoção deve imitar a natureza (adoptio natura imitatur). Ou seja: a diferença de idade na adoção tem por escopo, principalmente, assegurar a semelhança com a filiação biológica, viabilizando o pleno desenvolvimento do afeto estritamente maternal ou paternal e, de outro lado, dificultando a utilização do instituto para motivos escusos, a exemplo da dissimulação de interesse sexual por menor de idade.5. Extraindo-se o citado conteúdo social da norma e tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, revela-se possível mitigar o requisito de diferença etária entre adotante e adotanda maior de idade, que defendem a existência de vínculo de paternidade socioafetiva consolidado há anos entre ambos, em decorrência de união estável estabelecida entre o autor e a mãe biológica, que inclusive concorda com a adoção unilateral.6. Apesar de o adotante ser apenas 12 anos mais velho que a adotanda, verifica-se que a hipótese não corresponde a pedido de adoção anterior à consolidação de uma relação paterno-filial, o que, em linha de princípio, justificaria a observância rigorosa do requisito legal.7. À luz da causa de pedir deduzida na inicial de adoção, não se constata o objetivo de se instituir uma família artificial - mediante o desvirtuamento da ordem natural das coisas -, tampouco de se criar situação jurídica capaz de causar prejuízo psicológico à adotanda, mas sim o intuito de tornar oficial a filiação baseada no afeto emanado da convivência familiar estável e qualificada.8. Nesse quadro, uma vez concebido o afeto como o elemento relevante para o estabelecimento da parentalidade e à luz das especificidades narradas na exordial, o pedido de adoção deduzido pelo padrasto - com o consentimento da adotanda e de sua mãe biológica (atualmente, esposa do autor) - não poderia ter sido indeferido sem a devida instrução probatória (voltada à demonstração da existência ou não de relação paterno-filial socioafetiva no caso), revelando-se cabível, portanto, a mitigação do requisito de diferença mínima de idade previsto no § 3º do art. 42 do ECA.9. Recurso especial provido. (BRASIL. STJ. Quarta turma. REsp 1.717.167/DF. Rel. min.: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 11/2/20. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2025). 5 Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.1 Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.2 O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.3 Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.4 Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.5 A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.6 A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.7 Recurso especial parcialmente provido. (BRASIL. STJ. Terceira turma. REsp 1.159.242/SP. Rel. Min.: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/4/12. Disponível aqui. Acesso e, 14 jan. 2025). 6 ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). v. IV. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. 7 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. DF, 16 mar. 2015. Disponível aqui. 8 BRASIL. STJ. Quarta turma. REsp 1.717.167/DF. Rel. min.: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 11/2/20. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2025 9 BRASIL. STJ. Terceira turma. REsp 1.159.242/SP. Rel. min.: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/4/12. Disponível aqui. Acesso e, 14 jan. 2025. 10 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
No Direito Contratual, a sucessão de leis no tempo muitas vezes suscita controvérsias complexas sobre a incidência da nova regulamentação heterônoma sobre os contratos cujo nascimento se deu sob a vigência do regime anterior. Isso se dá porque, como diria Serpa Lopes, os contratos muitas vezes projetam seus efeitos "durante largo tempo, em etapas continuadas, como num filme cinematográfico"1. Com o contrato de seguro não é diferente, pois, em ocorrendo alteração normativa no curso de sua vigência, podem surgir dúvidas, por exemplo, quanto às regras aplicáveis à regulação de determinado sinistro. No final do último ano, como se sabe, o Congresso Nacional aprovou a lei 15.040/24, regulamentando, de forma minuciosa, os contratos de seguro, estabelecendo, em seu art. 134, vacatio legis de 1 (um) ano, prazo findo o qual a nova regulamentação finalmente entrará em vigor. Nesse contexto, a questão a ser examinada é a seguinte: após o início de sua vigência, deverá a lei 15.040/24 reger todo e qualquer contrato de seguro ou apenas aqueles daí em diante celebrados? O ponto de partida da controvérsia reside na garantia constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI), como possível limite à incidência imediata da nova lei. Em sede legal, "reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou".2 A garantia de intangibilidade do ato jurídico perfeito está umbilicalmente ligada à segurança jurídica, conferindo-se previsibilidade a respeito das regras jurídicas aplicáveis aos efeitos de determinado ato.3 Desse modo, no direito contratual, a nova lei não pode retroagir de modo a alterar situações jurídicas consolidadas, legitimamente constituídas sob a égide de determinado regime.4 Contudo, à segurança jurídica materializada na garantia do ato jurídico perfeito contrapõe-se a própria ideia de justiça, consubstanciada no novo ato normativo, cuja observância impõe, tão logo possível, a observância imediata do novo regime, fruto do consenso democrático.5 Pretende-se, a seguir, propor algumas reflexões a fim de equacionar essa tensão. Em primeiro lugar, no que tange à análise da validade do contrato ou de parte de seu conteúdo, não há dúvidas de que sobrelevará a garantia da segurança jurídica. Deverá o intérprete, nesse caso, ater-se tão-somente ao regime jurídico vigente quando da constituição do vínculo contratual (tempus regit actum). Consoante já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça: "A validade do negócio jurídico sujeita-se à lei sob cuja égide foi ele celebrado. A lei posterior não invalida as relações de direito válidas nem avigora as inválidas definitivamente constituídas"6. Logo, as disposições da lei 15.040/24 que estabeleçam requisitos de validade para o contrato de seguro ou determinadas cláusulas não deverão reger, retroativamente, contratos de seguro constituídos anteriormente à sua entrada em vigor. Eis um exemplo de aplicação de tal premissa: o art. 129, caput, da Lei n. 15.040/24 determina que a resolução de litígios securitários por meios alternativos é legítima, contanto que feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro. Tal vedação não poderá, contudo, retroagir para invalidar eventual cláusula compromissória de arbitragem anteriormente avençada que pudesse contrariá-la. Por outro lado, pode-se questionar se a garantia do respeito ao ato jurídico perfeito poderia conviver, de forma harmônica, com a incidência da nova lei tão-somente sobre os efeitos futuros do contrato pretérito. A questão ganha relevância considerando, notadamente, as mudanças disruptivas promovidas no procedimento de regulação e liquidação de sinistros a cargo das seguradoras. Em tal cenário, discute-se se haveria retroatividade propriamente dita - embora em menor alcance, de forma mitigada -, o que iria de encontro à garantia constitucional, ou apenas a incidência imediata da nova lei, projetando-se sobre as situações jurídicas vindouras.7 Ao longo da história constitucional brasileira, diversas leis que pretendiam regulamentar os efeitos de contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo da regulamentação dos planos de saúde8 e das operações de crédito rural.9 Com efeito, o julgamento paradigmático sobre o tema10 ocorreu nos primeiros anos de vigência da Constituição Federal de 1988 e decorreu da propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade para impugnar dispositivos da Medida Provisória n. 294, publicada em 1º de fevereiro de 1991, convertida em seguida na lei 8.177, de 1º de março de 1991. Os atos normativos impugnados alteravam, a partir de fevereiro de 1991, a forma de atualização dos saldos devedores e prestações dos contratos celebrados até novembro de 1986 entre as entidades integrantes do sistema financeiro de habitação e particulares. Em voto vencedor, o Ministro Moreira Alves observou que, "se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado". A compreensão está em consonância com a lição de Carlos Maximiliano, transcrita ao longo do julgado: "Os preceitos sob cujo império se concretizou um ato ou fato estendem o seu domínio sobre as consequências respectivas; a lei nova não atinge consequências que, segundo a anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, ou, melhor, que se unem à sua causa como um corolário necessário e direto."11 No âmbito do contrato de seguro, a regulação e a liquidação de sinistros, embora possam ser caracterizadas como um "procedimento" a cargo da seguradora - como de fato o são -, consistem no cumprimento de um feixe de obrigações cuja origem é o contrato de seguro. Parece-nos, portanto, que podem ser caracterizadas como "efeitos" do contrato de seguro, o que atrairia a incidência da lei em vigor à época de sua celebração, de acordo com o julgado paradigmático do STF que se debruçou sobre a extensão da garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.  Destaca-se, contudo, a qualidade de norte interpretativo da nova lei a todas as situações e ou controvérsias que envolvam os contratos de seguro. Se o legislador criou - dentro do processo legislativo e plenamente democrático - a limitação temporal para a conclusão da regulação do sinistro, sob pena de decadência do direito da seguradora de negar a cobertura, é porque compreendeu que a agilidade do procedimento é elemento essencial para o atendimento do interesse do segurado que, em última análise, é o que justifica a contratação do seguro.12 Com efeito, ao longo de diversos dispositivos, a Lei n. 15.040/24 sequer incorreu em inovação propriamente dita, mas tão-somente ratificou, de forma expressa, entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que já vinham sendo construídos, de longa data, à luz do regime legal anterior. Exemplifica-se. No que tange à regulação e à liquidação de sinistros, pode-se dizer que, em alguma medida, a lei 15.040/24 veio a densificar as consequências da boa-fé no âmbito de tais estágios da relação securitária. Já no regime anterior, muito embora o Código Civil não os regulasse expressamente, a doutrina já vinha empreendendo esforços para definir as premissas que deveriam presidi-los, notadamente à luz da boa-fé. Nesse sentido, por exemplo, observava Judith Martins-Costa, ainda àquela época:  Essa é uma fase delicada, em que a boa-fé atua com especialíssima intensidade, pois a regulação do sinistro configura, ao mesmo tempo, um momento da relação contratual marcado por "fortes elementos de conflitos, os quais representam, necessariamente, interesses contrapostos" e procedimento investigativo de interesse comum do segurado e do segurador, consistindo em parte integrante da prestação devida pelo segurador ao titular da pretensão indenizatória. (...) [N]ão é apenas na criação de deveres que atua a boa-fé. Também desempenha função integrativa, para preencher lacunas contratuais que só se apresentam como tais no momento posterior ao sinistro e função corretora, atuando como limite ao exercício jurídico disfuncional, diante de "práticas oportunistas e vexatórias na fase da gestão e liquidação do sinistro".13  Outro exemplo semelhante consiste na disciplina do agravamento do risco segurado ao longo da relação contratual. O instituto era regulado em termos mais genéricos pelo Código Civil e, por essa razão, coube à doutrina e à jurisprudência, paulatinamente, delimitar o seu alcance em termos mais precisos. À medida do tempo, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento, aplicável de forma emblemática nos casos de embriaguez nos seguros de automóvel, no sentido de que o agravamento do risco, por si só, não é hábil a exonerar o segurador, devendo guardar nexo de causalidade com o sinistro.14 Tal entendimento também foi prestigiado em sede doutrinária, valendo citar, a esse respeito, o Enunciado n. 585, aprovado na VII Jornada de Direito Civil: "Impõe-se o pagamento de indenização do seguro mesmo diante de condutas, omissões ou declarações ambíguas do segurado que não guardem relação com o sinistro". Essa premissa - a respeito da exigência de correlação causal entre o agravamento do risco e o sinistro, apta a exonerar o segurador - foi expressamente acolhida pela lei 15.040/24, cujo art. 16 dispõe: "Sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado". Em vista das reflexões feitas ao longo deste texto, parece-nos possível concluir que, em observância à garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal - e em consonância com a interpretação que sucessivos julgados do Supremo Tribunal Federal lhe têm conferido -, a lei 15.040/24 não é, a rigor, aplicável aos contratos de seguro celebrados antes de sua vigência, notadamente em relação ao exame de sua validade, dos seus efeitos e das obrigações assumidas entre as partes. Por outro lado, mesmo no âmbito das relações securitárias iniciadas antes da vigência da lei 15.040/24, não se descarta em absoluto a possibilidade de serem invocados os seus dispositivos como norte interpretativo, especialmente quando refletirem entendimentos ou práticas já consagradas no mercado segurador. __________ 1 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, v. I. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971. p. 171-172. 2 Segundo disposto no art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/42, com a redação da Lei n. 12.376/10). 3 Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, "o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direto" (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 257). 4 "Os preceitos sob cujo império se concretizou um ato ou fato estendem o seu domínio sobre as consequências respectivas; a lei nova não atinge consequências que, segundo a anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, ou melhor, que se unem à sua causa como um corolário necessário e direto" (MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 28). 5 Segundo Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva: "Quanto aos conflitos de lei no tempo, verifica-se que a alteração legislativa pode vir, em tese, a afetar as relações jurídicas constituídas sob o império da lei anterior. Confrontam-se, então, mais uma vez, duas preocupações fundamentais do Direito: justiça e segurança. De um lado, há de se exigir, tão logo entra em vigor, o cumprimento da lei nova, que traduz, nos regimes democráticos, decisão da maioria quanto ao padrão de comportamento a ser adotado e quanto à reprovação do modelo de conduta adotado pela lei revogada (imperativo de justiça). De outro lado, contudo, exige-se respeito às situações jurídicas constituídas sob o regime anterior, em atendimento ao padrão de conduta exigível à época de sua constituição (imperativo de segurança)" (OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 88). 6 STJ, REsp 1.273.955/RN, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 24/04/2014, DJe 15/08/2014. 7 Segundo Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva: "(...) a retroatividade mínima se confunde com o efeito imediato da lei, respeitando o direito adquirido e atingindo tão-somente o ato jurídico perfeito quanto aos seus efeitos futuros, isto é, implicando a aplicação da lei nova às consequências (que a sucederem) de atos jurídicos celebrados sob a lei anterior" (OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 93). 8 "Articula-se, na petição inicial, quanto aos artigos 10, § 2º, e 35-E da lei 9.656/1998; e 2º da Medida Provisória nº 2.177-44/2001, com a ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. (...) Os dispositivos em análise preveem a incidência das novas regras relativas aos planos de saúde em contratos celebrados anteriormente à vigência do diploma. A norma destoa do Texto Maior. A vida democrática pressupõe segurança jurídica, e esta não se coaduna com o afastamento de ato jurídico perfeito e acabado mediante aplicação de lei nova. É o que decorre do inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal (...). É impróprio inserir nas relações contratuais avençadas em regime legal específico novas disposições, sequer previstas pelas partes quando da manifestação de vontade. (...) A toda evidência, o legislador (...) extrapolou as balizas da Carta Federal, pretendendo substituir-se à vontade dos contratantes. Salta aos olhos a inconstitucionalidade" (STF, ADI 1.931/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 07/02/2018, DJ de 08/06/2018). 9 "Lei 8.177/1991. Incidência em contratos anteriores à promulgação do diploma normativo com a fixação de novos índices de correção. (...) A norma atacada, ao estabelecer a incidência da TR em substituição do IPC nas operações de crédito rural, contratadas junto às instituições financeiras, com recursos oriundos de depósitos à vista, sem qualquer ressalva, tem o condão de alcançar ajustes celebrados antes do advento da mencionada Lei. Disposição que se afigura incompatível com a garantia fundamental de proteção ao ato jurídico perfeito, pois tem o potencial de alterar uma relação jurídica preexistente e consolidada, em frontal violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal" (STF, ADI 3.005/DF, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 01/07/2020, DJ de 13/11/2020). 10 STF, ADI 493/DF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 25/06/1992, DJ de 04/09/1992. 11 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 28. 12 Sobre o tema do interesse no contrato de seguro, confira-se: WILLCOX, Victor. Interesse legítimo no contrato de seguro à luz do direito brasileiro (no prelo). São Paulo: Editora Roncarati, 2024. 13 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Edição Kindle. 14 "Com relação especificamente ao seguro de automóvel e à embriaguez ao volante, não basta a constatação de que o condutor ingeriu bebida alcóolica para afastar o direito à garantia. Deve ser demonstrado que o agravamento do risco objeto do contrato se deu porque o segurado estava em estado de ebriedade, e essa condição foi causa determinante para a ocorrência do sinistro (...)" (STJ, AgRg no AREsp 411.567/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 04/11/2014, DJe 10/11/2014).
Introdução No Brasil, o STJ tem reiteradamente qualificado as cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado, em contraposição à tradição jurídica que trata a prática médica, de forma geral, como obrigação de meios, e na prática, ignorando a vasta evidência científica em sentido contrário. Este artigo analisa criticamente esse entendimento, argumentando que a jurisprudência atual desconsidera a complexidade biológica dos pacientes, os princípios da teoria geral das obrigações e as evidências médicas. Propõe-se, ademais, uma reflexão sobre a necessidade de reformulação jurisprudencial para respeitar a ciência e garantir maior segurança jurídica aos profissionais de saúde. Para tanto, e de forma breve, enumera-se abaixo alguns pontos para ponderação: 1. A singularidade biológica dos pacientes A fisiologia humana é marcada por variações significativas entre indivíduos, incluindo fatores como capacidade de cicatrização, predisposição a complicações e reações imunológicas. Essas variáveis podem impactar de maneira determinante os resultados de cirurgias plásticas, tornando inviável a garantia de resultados. Ignorar essas diferenças equivale a desconsiderar o que há de mais fundamental na ciência médica: o reconhecimento de que cada organismo é único e responde de maneira distinta às intervenções. Por exemplo, um mesmo procedimento realizado com a mesma técnica em dois pacientes pode gerar resultados estéticos completamente diferentes em função de peculiaridades individuais, como qualidade da pele, tecido subcutâneo e estrutura óssea subjacente.   Além disso, fatores genéticos e epigenéticos exercem influência direta sobre a resposta do corpo a traumas, mesmo quando controlados todos os parâmetros operacionais. Em alguns casos, pacientes podem desenvolver cicatrizes hipertróficas ou queloides, mesmo com a aplicação das técnicas mais modernas de sutura. Esses fenômenos não são previsíveis com precisão e escapam ao controle do cirurgião, que não pode ser responsabilizado por uma reação biológica fora de seu alcance. Isso sem falar nos fatores comportamentais humanos envolvidos, uma vez que há pacientes que simplesmente não se mostram colaborativos com sua própria recuperação pós-cirúrgica, ignorando ou descumprindo recomendações médicas, não assumindo as responsabilidades pelo insucesso materializado. A jurisprudência do STJ, ao tratar as cirurgias plásticas como obrigação de resultado, de forma absolutamente pasteurizada e irrefletida, desconsidera também a interação entre fatores externos e internos ao organismo. Por exemplo, o tabagismo, a alimentação inadequada e a adesão incompleta às recomendações pós-operatórias impactam diretamente no processo de recuperação e nos resultados finais. Ainda que o paciente não relate hábitos prejudiciais durante a anamnese, o médico pode ser responsabilizado pelo insucesso do procedimento, o que configura uma distorção do princípio da boa-fé e da responsabilidade compartilhada. Mostra-se fundamental reconhecer que a medicina é uma ciência probabilística, não determinística. Os avanços tecnológicos e técnicos melhoraram significativamente os resultados de cirurgias plásticas, mas nunca os tornaram garantidos. Exigir do médico a entrega de um resultado exato é ignorar a natureza dinâmica e complexa da vida humana, além de penalizar injustamente profissionais que agem com a maior diligência possível. 2. A teoria geral das obrigações Segundo a teoria geral das obrigações, a distinção entre obrigação de meios e de resultado é essencial para compreender a dinâmica de diferentes relações contratuais. Uma obrigação de meios ocorre quando o devedor compromete-se a utilizar todos os recursos disponíveis e sua expertise para alcançar um objetivo, sem garantir o desfecho. Por outro lado, a obrigação de resultado implica a entrega de um produto ou serviço em condição previamente definida. Na prática médica, incluindo cirurgias plásticas, há fatores além do controle humano que impactam o desfecho. Essa imprevisibilidade é central para a caracterização dessas obrigações como de meios. Ao classificar as cirurgias estéticas como obrigação de resultado, o STJ desconsidera o fato de que o sucesso estético não pode ser garantido, mesmo com a aplicação de técnicas avançadas e equipamentos modernos. Ademais, essa distorção jurídica pode levar a um desequilíbrio contratual, impondo ao médico uma responsabilidade excessiva e incompatível com a realidade biológica dos pacientes. Tal situação fere os princípios fundamentais do direito das obrigações e pode gerar insegurança jurídica, tanto para os profissionais quanto para os pacientes. 3. Risco de promessas irrealistas A classificação das cirurgias plásticas como obrigação de resultado incentiva práticas que colocam em risco a ética profissional. Cirurgiões podem sentir-se pressionados a prometer resultados impossíveis de serem garantidos, criando expectativas irreais nos pacientes. Essa postura, além de comprometer a transparência necessária na relação médico-paciente, pode aumentar a judicialização desnecessária da medicina. É essencial que o médico, durante a anamnese e o esclarecimento pré-operatório, explique os limites do procedimento, bem como os riscos inerentes à intervenção. No entanto, ao imputar uma obrigação de resultado, o STJ inviabiliza essa relação honesta e transforma o processo em uma relação puramente mercantil, onde a subjetividade biológica do paciente é ignorada. 4. A ciência como base da prática médica A prática médica está profundamente enraizada na ciência, que é, por natureza, baseada em evidências e estatísticas probabilísticas. Nenhum procedimento cirúrgico, por mais avançado que seja, pode garantir resultados predeterminados. A cicatrização, por exemplo, depende de uma interação complexa de fatores, incluindo a resposta imunológica do paciente e sua adesão ao pós-operatório. Ao exigir que o médico entregue um resultado específico em uma cirurgia plástica estética, o STJ ignora as bases científicas que regem a prática médica. Essa imposição cria uma disparidade entre o que é possível cientificamente e o que é juridicamente demandado, prejudicando tanto os médicos quanto os pacientes. 5. Fatores externos e incontroláveis Complicações pós-operatórias, como infecções, rejeições a materiais implantados e formação de cicatrizes hipertróficas ou queloides, ilustram como fatores externos podem impactar negativamente o resultado de uma cirurgia plástica. Esses eventos muitas vezes ocorrem independentemente da perícia do médico ou da qualidade do procedimento realizado. Além disso, a falta de adesão do paciente às orientações médicas também pode comprometer os resultados. Por exemplo, o uso inadequado de cintas cirúrgicas ou a realização de atividades físicas antes do período recomendado são comportamentos que escapam ao controle do médico e que podem afetar o resultado final. Imputar ao cirurgião a responsabilidade por esses fatores desconsidera a natureza multifatorial do sucesso de um procedimento. 6. O caráter de meio da medicina A medicina, ao longo da história, sempre foi tratada como uma atividade que envolve uma obrigação de meio. Isso significa que o profissional de saúde compromete-se a aplicar seus conhecimentos e técnicas com diligência, mas não a garantir um resultado específico. Em cirurgias plásticas, essa abordagem é igualmente válida, pois a resposta biológica do paciente desempenha um papel central no desfecho do procedimento. Ao reclassificar as cirurgias estéticas como obrigação de resultado, o STJ rompe com essa tradição, ignorando que o processo médico envolve variáveis imprevisíveis. Essa mudança de entendimento coloca o profissional em uma posição vulnerável, aumentando o risco de responsabilização injusta e distorcendo a prática da medicina. Além disso, ao tratar a medicina como uma ciência determinística, a jurisprudência desconsidera os avanços científicos que reconhecem a imprevisibilidade como parte inerente da prática médica. Essa perspectiva limitada compromete a segurança jurídica e a confiança dos profissionais no sistema de Justiça. 7. Impactos na qualidade dos serviços médicos A insegurança jurídica gerada pela classificação das cirurgias plásticas como obrigação de resultado pode ter consequências significativas para a qualidade e disponibilidade dos serviços médicos. Muitos profissionais podem optar por abandonar a área de cirurgia estética, temendo a alta probabilidade de litígios e a pressão por resultados que fogem ao seu controle. Essa situação cria um cenário em que o mercado pode ser dominado por profissionais menos qualificados ou por clínicas clandestinas, onde os riscos são ainda maiores. Além disso, a busca por tratamentos estéticos no exterior pode aumentar, expondo os pacientes a sistemas menos regulados e práticas não supervisionadas. Portanto, o entendimento do STJ pode gerar um efeito contraproducente, prejudicando tanto os pacientes quanto a credibilidade da medicina estética no Brasil. 8. Contradição com o princípio da boa-fé contratual O princípio da boa-fé exige que ambas as partes em uma relação contratual atuem de forma cooperativa e transparente. No contexto de cirurgias plásticas, isso implica que o paciente deve seguir as orientações médicas e fornecer informações completas e precisas sobre sua saúde. Ao impor uma obrigação de resultado ao médico, o STJ desconsidera a contribuição do paciente para o sucesso do procedimento. Por exemplo, se o paciente não cumpre as recomendações pós-operatórias, como evitar esforços físicos ou utilizar medicamentos prescritos, o resultado final pode ser comprometido. Imputar exclusivamente ao médico a responsabilidade por tais situações é uma distorção do princípio da boa-fé, que deve ser compartilhada por ambas as partes. Essa postura também enfraquece a relação de confiança entre médico e paciente, transformando uma interação baseada em cuidado e colaboração em uma relação meramente contratual e adversarial. 9. Comparativo internacional Em sistemas jurídicos mais amadurecidos, como os da Europa e dos Estados Unidos, prevalece o entendimento de que procedimentos médicos, incluindo os de natureza estética, são tratados como obrigações de meio, e não de resultado. Essa abordagem reflete a compreensão de que fatores biológicos e imprevisíveis desempenham um papel significativo nos resultados médicos. Na Alemanha, por exemplo, a jurisprudência estabelece que o médico estético deve informar adequadamente o paciente sobre os riscos e limites do procedimento, mas não se compromete com um resultado específico. Nos Estados Unidos, a doutrina legal reforça que a medicina é uma ciência probabilística, e não determinística, priorizando a aplicação de padrões profissionais adequados. Ao divergir desse entendimento, o Brasil isola-se de uma visão jurídica que respeita a complexidade biológica e científica da prática médica. Essa desconexão pode gerar insegurança jurídica e dificultar a integração com os sistemas internacionais, especialmente em contextos em que há colaboração ou intercâmbio de profissionais e pacientes. Adotar uma perspectiva alinhada ao consenso internacional não apenas garante maior coerência jurídica, mas também reforça a credibilidade do sistema judicial brasileiro, incentivando uma prática médica mais responsável e cientificamente embasada. 10. Princípios bioéticos A imposição de uma obrigação de resultado ao médico em cirurgias plásticas estéticas viola princípios bioéticos fundamentais, como a beneficência, a não maleficência e a autonomia do paciente. O princípio da beneficência exige que o médico atue sempre em prol do paciente, utilizando os melhores recursos e técnicas disponíveis, mas sem prometer resultados que não dependem exclusivamente de sua conduta. Já a não maleficência reforça a necessidade de minimizar riscos, mas reconhece que o risco zero é impossível em qualquer procedimento médico. A autonomia do paciente também é comprometida quando há uma expectativa irrealista de resultados garantidos. Essa expectativa pode ser fruto de informações inadequadas ou interpretações distorcidas das possibilidades reais do procedimento, o que contraria o dever do médico de esclarecer os limites da intervenção e seus riscos. A bioética, enquanto pilar orientador da prática médica, reforça que a relação médico-paciente deve ser pautada pela confiança, pela transparência e pelo respeito mútuo. Ao desconsiderar esses princípios, a jurisprudência atual cria um ambiente de judicialização que prejudica tanto os profissionais quanto os pacientes. 11. Implicações para a responsabilidade civil médica Com o entendimento atual, a classificação das cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado cria um cenário jurídico de elevado risco para os médicos. Nesse contexto, qualquer desvio entre o resultado esperado pelo paciente e o resultado alcançado pode levar à responsabilização do profissional, mesmo quando ele adotou todas as medidas e práticas adequadas. Esse entendimento ignora a imprevisibilidade inerente à prática médica, especialmente em procedimentos que dependem de fatores biológicos únicos. Como consequência, há um aumento da judicialização da medicina, com processos que, muitas vezes, não consideram os elementos técnicos e científicos envolvidos. Isso desestimula a prática médica de qualidade, pois coloca os profissionais sob constante pressão legal e emocional, além de aumentar os custos com seguros de responsabilidade civil. Caso o entendimento seja alterado para reconhecer as cirurgias plásticas estéticas como obrigações de meio, a responsabilidade civil médica passaria a ser analisada com maior equilíbrio e respeito à realidade científica. O médico seria avaliado com base em sua diligência, na aplicação de técnicas adequadas e na transparência durante o processo de informação ao paciente. Essa mudança fortaleceria a segurança jurídica para os profissionais, preservando a confiança na relação médico-paciente. Além disso, reduziria a judicialização desnecessária, permitindo que apenas casos de efetiva má prática médica ou negligência fossem judicializados. Ao alinhar-se com os padrões internacionais e respeitar as evidências científicas, essa revisão também promoveria um sistema mais justo e eficiente, capaz de proteger tanto os direitos dos pacientes quanto a dignidade e o exercício profissional dos médicos. 12. Conclusão A classificação das cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado pelo STJ revela um descompasso com a ciência médica, os princípios da teoria geral das obrigações e as evidências científicas. Essa perspectiva ignora a complexidade biológica dos pacientes, os fatores imprevisíveis inerentes aos procedimentos cirúrgicos e a natureza probabilística da medicina. A necessidade de revisão desse entendimento jurisprudencial é urgente. Alinhar-se aos padrões internacionais e respeitar os princípios bioéticos não apenas proporcionará maior segurança jurídica aos profissionais, mas também fortalecerá a relação médico-paciente, promovendo uma prática médica mais ética e científica. Por fim, registro aqui que as críticas lançadas não representam um desrespeito à Corte, mas sim um necessário chamamento à reflexão, para que o entendimento atual - que representa um injustificado atraso e uma desconexão clara com a realidade científica - possa ser revisto, fazendo prevalecer o que os tribunais superiores tanto apregoam: que a ciência seja ouvida. É imperioso que a realidade se imponha, para que a justiça efetivamente prevaleça, fundada em racionalidade, e não em anacrônicos achismos.
1. Introdução O mercado de influência digital não é mais uma novidade ou uma promessa de futuro. Consolidado como um setor estratégico da economia, movimenta cifras milionárias e redefine a forma como marcas e consumidores interagem. Essa nova dinâmica comercial, naturalmente, não ocorre à margem do Direito. Relações de consumo, contratos de publicidade e questões de reputação digital passaram a integrar o cotidiano jurídico desse segmento, ainda pouco regulamentado, mas já repleto de conflitos. O recente vazamento de uma planilha com avaliações sobre influenciadores expôs parte desse universo. Supostamente criado por agências e profissionais autônomos, o documento classifica creators com base em critérios como entrega contratual, profissionalismo e até mesmo postura pessoal. A repercussão foi imediata. De um lado, a defesa da transparência e da necessidade de critérios objetivos para parcerias comerciais. De outro, o questionamento sobre os limites dessa exposição, possíveis danos à reputação e eventuais violações contratuais. A discussão ultrapassa o episódio específico. Empresas dependem desses profissionais para alcançar públicos segmentados, enquanto influenciadores constroem sua credibilidade com base na confiança dos seguidores e na previsibilidade das colaborações comerciais. Quando um dos lados falha - seja na entrega, seja na comunicação -, as consequências podem ir além da mera perda de contratos. Responsabilidade civil, rescisões litigiosas e até pedidos de reparação por danos são apenas alguns dos desdobramentos jurídicos possíveis. O episódio da planilha não revela nada novo, mas escancara o que muitas vezes se mantém nos bastidores. Contratos entre influenciadores e marcas precisam ser mais do que meros combinados informais, sob pena de transformar parcerias promissoras em disputas judiciais. 2. O mercado dos influenciadores, a planilha e as relações comerciais O marketing de influência se profissionalizou rápido, mas nem sempre na mesma velocidade em que suas relações contratuais amadureceram. Se no início bastava um envio de produtos em troca de divulgação espontânea, hoje as marcas exigem entregas detalhadas, relatórios de desempenho e cumprimento rigoroso de diretrizes. Do outro lado, os influenciadores, cientes de sua relevância no mercado, passaram a negociar valores mais altos, maior controle criativo e proteção de sua imagem. O problema é que, entre expectativa e realidade, nem sempre há alinhamento suficiente para evitar desgastes e litígios. Contratos com criadores de conteúdo podem assumir diferentes formatos, desde simples acordos para postagens pontuais até parcerias longas, com cláusulas de exclusividade e metas de engajamento. Dos "nanoinfluenciadores" a personalidades já consolidades no cenário virtual, o ponto comum é a crescente formalização dessas relações contratuais. As marcas já não querem depender da boa vontade dos creators para cumprir prazos, de outro lado, influenciadores buscam evitar acordos vagos que possam comprometer sua reputação ou liberdade editorial. A profissionalização do setor já é um caminho sem volta, sobretudo em razão da movimentação de cifras expressivas e gerenciamento de contratos de publicidade comparáveis aos da mídia tradicional. Empresas sofisticaram suas exigências, influenciadores ampliaram sua consciência contratual e as disputas tornaram-se mais frequentes. E, como ocorre em qualquer setor consolidado, os contratos passaram a definir quem sobrevive ao jogo e quem perde credibilidade no meio do caminho. Na prática, a atividade que influenciadores desenvolvem possue natureza verdadeiramente empresarial. Nos contratos, em particular, operam a prestação do serviço, enquanto empresários que são, submetidos a todas as regras comerciais previstas no ordenamento jurídico. O Direito Empresarial, é preciso que se diga, é um ramo do Direito que, por determinação legal, presume o caráter profissional dos agentes envolvidos nas operações contratuais. Não há muita margem para muita maleabilidade, escusas, nem revisão judicial em regras e cláusulas previamente previstas, justamente pela premissa de que as partes assumiram as obrigações e riscos inerentes à negociação realizada. O risco, portanto, está nos detalhes: contratos mal redigidos, exigências excessivas ou ambiguidades que geram interpretações conflitantes. Descumprimentos podem gerar penalidades, pedidos de indenização e, em alguns casos, ações judiciais que ultrapassam o campo do mero desentendimento comercial. A planilha viralizou neste cenário. Um documento supostamente interno, criado por agências e profissionais autônomos, em que influenciadores eram avaliados não apenas por seu desempenho técnico, mas também por critérios subjetivos - cumprimento de prazos, profissionalismo, facilidade de negociação e até traços de personalidade. A repercussão veio rápida, com reações polarizadas. Enquanto alguns viram a iniciativa como um instrumento legítimo para qualificar o mercado, outros apontaram o risco de exposição indevida e danos à reputação dos listados. A existência desse tipo de documento não é surpreendente. Empresas sempre tiveram suas formas internas de catalogar fornecedores e parceiros comerciais, separando os mais confiáveis dos problemáticos. O que torna o caso particular é a perda do caráter sigiloso dessa avaliação e os possíveis impactos jurídicos decorrentes. Se uma marca classifica um influenciador como "difícil de trabalhar", essa observação pode ser apenas um registro interno. Mas se essa informação se torna pública e compromete futuras contratações, abre-se uma discussão sobre eventuais danos morais e prejuízos financeiros. Embora não seja o objetivo central desse artigo, é preciso que se diga que o Direito não ignora a importância da reputação em relações comerciais. Em qualquer setor, listas de "bons e maus profissionais" podem gerar ações por difamação, concorrência desleal ou até mesmo responsabilização civil por prejuízos causados. A depender do conteúdo da planilha e da forma como foi divulgada, influenciadores que se sentirem lesados podem questionar judicialmente eventuais danos à sua imagem e buscar reparação. Não se pode esquecer que, ao mesmo tempo, empresas têm o direito de selecionar e avaliar seus parceiros, e a transparência nesses processos pode ser vista como um mecanismo natural de qualificação do mercado. A questão, portanto, não é se marcas podem ou não criar esse tipo de classificação, mas devem estar cientes de quais limites jurídicos devem ser observados para evitar que a análise extrapole o campo privado e se transforme em um risco legal. A planilha que viralizou coloca todos esses elementos em perspectiva. Se, de um lado, é legítimo que marcas avaliem influenciadores e selecionem aqueles que melhor se encaixam em suas estratégias, de outro, quando essa avaliação se torna pública e compromete futuras oportunidades profissionais, pode-se questionar a configuração de dano à reputação. Trata-se da necessidade de equilibrar liberdade empresarial, transparência no mercado e a proteção da imagem como um bem juridicamente tutelado. Influenciadores que ignoram suas obrigações contratuais podem enfrentar penalidades significativas, assim como empresas que não observam os limites legais na forma como avaliam e expõem seus parceiros. Voltando à análise proposta, aqui importa registrar como contratos bem estruturados e políticas claras de comunicação podem evitar desgastes como esse. Se influenciadores e marcas definirem desde o início os parâmetros da parceria e as expectativas de cada lado, há menos espaço para conflitos e menos riscos de que avaliações informais acabem se tornando um problema jurídico. 3. Responsabilidade civil e contratual de influenciadores Se há algo que a planilha expôs de forma incontornável, é o quanto a reputação se tornou um ativo de alto valor no mercado de influência digital. A confiança que um influenciador constrói junto ao público não apenas define seu alcance e engajamento, mas também sustenta suas relações comerciais. Quando essa confiança é abalada - seja por falhas contratuais, seja por exposições públicas inesperadas -, as consequências ultrapassam o mero prejuízo à imagem: podem gerar responsabilidade civil, com repercussões jurídicas relevantes. O influenciador, quando fecha um contrato com uma marca, assume um compromisso que envolve prazos, padrões de entrega e, acima de tudo, respeito às diretrizes de comunicação da empresa. Se descumpre esses termos, pode ser responsabilizado tanto por danos contratuais - como a devolução de valores pagos ou aplicação de multas - quanto por eventuais danos extrapatrimoniais, caso sua conduta cause prejuízos à imagem da marca. Há também o outro lado da equação. Se, por um lado, influenciadores podem ser responsabilizados por descumprimentos contratuais e práticas abusivas, por outro, são frequentemente vítimas de relações comerciais predatórias. Contratos que impõem cláusulas abusivas, exigências desproporcionais ou penalidades excessivas são mais comuns do que parece, sobretudo em parcerias firmadas sem assessoria jurídica adequada. A simetria contratual, nesses casos, costuma ser frágil, já que grandes marcas impõem seus termos a criadores individuais que, muitas vezes, não dispõem de estrutura para questionar exigências desarrazoadas. A responsabilidade civil, no entanto, não se esgota na relação entre influenciador e empresa. Em muitos casos, a publicidade digital cruza a fronteira do direito do consumidor, especialmente quando o creator promove produtos ou serviços que não cumprem o que prometem. Campanhas que induzem o público ao erro, ocultam informações relevantes ou exploram a credibilidade do influenciador para vender soluções duvidosas podem gerar não apenas penalizações administrativas, mas também ações de indenização movidas por consumidores lesados. O influenciador, ao endossar uma marca, não apenas divulga, assume, mesmo que implicitamente, um compromisso de veracidade perante seu público. No aspecto contratual, o Direito brasileiro prevê que o inadimplemento pode ser absoluto, quando há descumprimento total das obrigações, ou relativo, quando há uma execução defeituosa ou tardia, mas que ainda pode ser corrigida. No contexto da influência digital, isso se traduz em diferentes níveis de responsabilização: desde penalidades financeiras previstas em contrato, até pedidos de indenização por danos emergentes e lucros cessantes, caso se demonstre que a falha comprometeu resultados comerciais da marca. Cláusulas penais são frequentemente utilizadas para garantir o cumprimento das obrigações. Em contratos de publicidade digital, é comum que a multa por descumprimento contratual varie de 10% a 50% do valor do contrato, dependendo da gravidade da infração. Já em parcerias mais estratégicas, especialmente aquelas que envolvem exclusividade, descumprimentos podem acarretar penalidades ainda mais severas, como a obrigação de ressarcir investimentos realizados pela marca ou de remover conteúdos prejudiciais. O Código Civil, dos art. 408 a 416, permite a estipulação de cláusulas penais tanto compensatórias quanto moratórias, e sua aplicação nesse setor já começa a ser discutida de forma mais aprofundada no Judiciário. A cláusula penal moratória é aplicada quando há atraso na execução da obrigação, funcionando como uma sanção pelo inadimplemento relativo. Nos contratos com influenciadores, isso pode ocorrer quando o profissional não publica o conteúdo no prazo estipulado, comprometendo estratégias de marketing planejadas com antecedência. Para mitigar esse risco, muitas marcas inserem penalidades financeiras progressivas, atreladas ao tempo de atraso na publicação. O Judiciário tem reconhecido a validade dessas disposições, desde que a penalidade seja proporcional e previamente estipulada. Já a cláusula penal compensatória, regulada pelo art. 410 do Código Civil, destina-se a indenizar a parte lesada pelo descumprimento total ou parcial da obrigação. Sua aplicação é comum quando o influenciador, por exemplo, aceita um pagamento antecipado para promover determinado produto e, sem justificativa válida, não executa a campanha. Nesses casos, além da devolução dos valores recebidos, costuma ser exigida uma multa previamente fixada no contrato, com fito de evitar a necessidade de discussão judicial sobre a extensão dos danos sofridos pela marca. É preciso que se pondere, também, que há uma tendência crescente de contratos dessa natureza que impõem obrigações desproporcionais aos influenciadores, muitas vezes sem a contrapartida adequada. Cláusulas de exclusividade por períodos excessivos, exigências de retratação pública unilateral e obrigações de confidencialidade que se estendem por tempo indeterminado são algumas das disposições que podem ser questionadas judicialmente com base nos princípios da função social do contrato, art. 421 do CC, e do equilíbrio contratual, art. 421-A. O STJ, em diversas decisões, tem reiterado a necessidade de observância do equilíbrio entre as partes, inclusive em contratos empresariais. Ainda que o influenciador seja um prestador de serviço, não se pode perder de vista que, muitas vezes, ele negocia com grandes corporações em posição nitidamente superior, o que pode levar à caracterização de onerosidade excessiva e, em casos extremos, à revisão contratual. 4. Conclusões Influenciadores já não são apenas indivíduos que compartilham opiniões e experiências nas redes sociais; são agentes econômicos que negociam contratos, lidam com exigências comerciais e, como qualquer empresário, estão sujeitos a deveres contratuais e à responsabilidade por seus atos. Se, por um lado, os influenciadores precisam compreender suas obrigações contratuais e as consequências do descumprimento, por outro, as marcas devem garantir que suas exigências estejam alinhadas aos princípios de boa-fé e proporcionalidade. Sem contratos claros e juridicamente sustentáveis, as disputas e os litígios envolvendo influência digital seguirão se multiplicando. O mercado já não tolera amadorismo, e quem não se adapta à nova realidade jurídica, seja marca ou influenciador, estará cada vez mais vulnerável a litígios que poderiam ser evitados com uma abordagem contratual mais estratégica.
A responsabilidade objetiva no CDC - Código de Defesa do Consumidor é um dos pilares da proteção ao consumidor, conforme disposto nos arts. 12, 13 e 14, que tratam da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço. Entretanto, a doutrina e a jurisprudência têm enfrentado discussões sobre a possibilidade de exclusão da responsabilidade do fornecedor em situações de caso fortuito e força maior. Este artigo examina essas excludentes à luz do CDC, corrigindo equívocos relacionados ao conceito de fortuito interno e distinguindo-o do caso fortuito propriamente dito. 1. Responsabilidade objetiva e o papel do nexo causal O regime de responsabilidade objetiva no CDC dispensa a comprovação de culpa, concentrando-se na demonstração do dano, do defeito do produto ou serviço e do nexo causal entre eles. Contudo, o art. 12, §3º, e o art. 14, §3º, preveem hipóteses que rompem o nexo causal, como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. Nesse contexto, os conceitos de caso fortuito e força maior são frequentemente evocados para afastar a responsabilidade do fornecedor. Ambos se caracterizam por eventos imprevisíveis e inevitáveis, externos à esfera de controle do fornecedor, que interrompem o nexo causal. Todavia, a confusão gerada pelo uso do termo "fortuito interno" exige uma análise mais precisa, especialmente no âmbito da responsabilidade consumerista. 2. Fortuito interno não é caso fortuito Embora a doutrina frequentemente distinga entre fortuito interno e externo, o tratamento dado ao fortuito interno na prática é equivocado. Equívoco conceitual este que, infelizmente, a jurisprudência e a doutrina, muitas vezes, por reforçar, senão vejamos:  "O caso fortuito interno envolve as situações em que o risco natural da atividade econômica desenvolvida pela empresa deve ser absorvido por estas, não tendo o condão de afastar a responsabilidade. Nessa hipótese, o aspecto surpresa que acompanha o caso fortuito não se mostra suficiente para isentar a empresa de responsabilidade..."1 A jurisprudência, inclusive, do STJ, recorre ao conceito de fortuito interno para retratar  situações, que não rompem o nexo causal, e que na verdade se referem a defeitos ou falhas no fornecimento de serviços financeiros, senão vejamos: "Para efeitos do art. 543-C do CPC: As instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros - como, por exemplo, abertura de conta-corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos -, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno."2 Ao contrário do caso fortuito, que se refere a eventos imprevisíveis e inevitáveis, o fortuito interno envolve situações previsíveis e controláveis dentro da esfera de atuação do fornecedor. Assim, o fortuito interno não deve ser reconhecido como caso fortuito, mas sim como um defeito (no caso de produtos) ou falha (em serviços). Esse entendimento é defendido por Leonardo Roscoe Bessa3, que critica o equívoco dessa confusão conceitual: "Em vez de analisar presença de fortuito interno ou externo, o correto seria focar no conceito de defeito, em face das legítimas expectativas do consumidor... A noção de defeito resolve muitas situações sem qualquer necessidade de recorrer à ideia de caso fortuito. Em outros termos, a discussão principal nas ações indenizatórias por fato do serviço deve se concentrar no conceito normativo de defeito, ou seja, se, no caso concreto, foi atendida a legítima expectativa de segurança, considerando modo de fornecimento, resultado e riscos que razoavelmente se esperam e época do fato (art. 14, 5 19). No caso dos serviços, a conclusão pela presença de defeito não requer prova técnica (perícia): se dá a partir da argumentação em torno das circunstâncias do fato danoso, da argumentação em torno de expectativa de segurança no caso em exame. Ainda no tocante à ausência de defeito como excludente, pode parecer, numa primeira análise, que não faz qualquer sentido sua previsão: afinal, se o defeito é um dos elementos necessários para configurar o dever de indenizar, parece óbvio que sua ausência afasta, consequentemente, tal dever. E verdade, mas o propósito maior do dispositivo foi indicar que o ônus da prova da ausência do defeito é do fornecedor, o que, reitere-se, pode ocorrer a partir de argumentação. "Portanto, eventos atribuídos ao fortuito interno, como falhas de equipamentos ou erros humanos no processo produtivo, configuram defeitos, atraindo a responsabilidade do fornecedor, e não excludentes de responsabilidade. 3. Fortuito externo e caso fortuito: Excludentes de responsabilidade Diferentemente do fortuito interno, o fortuito externo caracteriza-se por eventos absolutamente alheios à atividade empresarial, imprevisíveis e inevitáveis, como desastres naturais (enchentes, terremotos) ou atos de guerra. Esses eventos rompem o nexo causal e excluem a responsabilidade do fornecedor. A força maior e o caso fortuito, embora não mencionados expressamente no CDC, encontram respaldo no art. 393 do CC e na jurisprudência. Quando devidamente comprovados, justificam a exclusão da responsabilidade objetiva, desde que o evento seja totalmente alheio ao controle do fornecedor. 4. Jurisprudência relevante A jurisprudência brasileira tem enfrentado o desafio de delimitar o caso fortuito e a força maior, além de esclarecer a inadequação do uso do termo "fortuito interno". Nesse Leading case, envolvendo disparo de arma de fogo no interior de uma sala de cinema localizada em conhecido shopping da capital paulista, o STJ afastou a responsabilidade do fornecedor exatamente por entender configurado o caso fortuito externo no caso concreto. O STJ entendeu que os disparos de arma de fogo dentro de uma sala de cinema configuravam caso fortuito externo, rompendo o nexo causal e afastando a responsabilidade da administradora do cinema: "A culpa de terceiro, que realiza disparos de arma de fogo contra o público no interior de sala de cinema, rompe o nexo causal entre o dano e a conduta do shopping center no interior do qual ocorrido o crime, haja vista configurar hipótese de caso fortuito, imprevisível, inevitável e autônomo, sem origem ou relação com o comportamento deste último.4" Em outro  caso, a 3ª turma do STJ reconheceu que o roubo à mão armada contra usuários de uma praça de pedágio, administrada por concessionária, configurava caso fortuito externo. A decisão afirmou: "A ocorrência de força maior ou caso fortuito, devidamente comprovada, é suficiente para excluir a responsabilidade objetiva do fornecedor, quando o evento é imprevisível, inevitável e totalmente alheio à atividade desempenhada.5" Esses precedentes reforçam a necessidade de distinguir corretamente entre eventos internos, que configuram defeitos ou falhas, e eventos externos, que rompem o nexo causal. 5. Conclusão O correto entendimento do fortuito interno e sua distinção do caso fortuito é essencial para evitar confusões doutrinárias e jurisprudenciais. O fortuito interno não pode ser tratado como excludente de responsabilidade, pois se refere a eventos previsíveis e controláveis pelo fornecedor, caracterizando defeitos ou falhas na prestação de serviços. Por outro lado, o caso fortuito e a força maior, quando devidamente caracterizados, afastam o nexo causal e, consequentemente, a responsabilidade do fornecedor. Essa distinção é fundamental para preservar o equilíbrio entre a proteção ao consumidor e a segurança jurídica, evitando a aplicação inadequada do regime de risco integral. Reconhecer essas nuances fortalece o sistema de defesa do consumidor, garantindo que os fornecedores assumam a responsabilidade por riscos inerentes à sua atividade, enquanto preserva a Justiça em situações alheias ao seu controle. 1 XAVIER, José Tadeu Neves. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 115, Jan-Fev./2018, p. 9. 2 (REsp 1.197.929/PR, relator ministro Luis Felipe Salomão, Segunda seção, julgado em 24/8/11, DJe de 12/9/11). 3 In Código de Defesa do Consumidor Comentado. 2ª. edição atualizada, p. 143, Gen Forense, 2011.  4 (AgInt nos EREsp 1.087.717/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda seção, julgado em 13/9/17, DJe de 20/9/17). 5 (REsp 1.872.260/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira turma, julgado em 4/10/22, DJe de 7/10/22).
Quando abordamos a internacionalidade de um contrato, é usual que primeiro nos detenhamos na identificação do Direito Material que o regerá. Nada mais natural em se tratando de um negócio jurídico que, por definição, atrai a incidência, concomitante, de mais de um sistema jurídico. É para resolver este 'conflito de leis' que utilizamos as ferramentas de Direito Internacional Privado. Qualquer docente da matéria, neste ponto, abre alguns parênteses para seus alunos: Justificamos a internacionalidade, apesar de as normas conflituais serem - ordinariamente - nacionais; explicamos o 'privado', apesar de o Direito Internacional Privado esgueirar-se por temas que fogem desta antiquada classificação e defendemos tratar-se de Direito (com maiúscula, ciência autônoma) apesar de muitos relegarem-no a simples metodologia de aplicação da norma. Aparentemente, este esforço é, ainda e infelizmente, atual. Gostaria, então, de tentar convencer o distinto leitor que precisamos conversar sobre o Direito Internacional Privado. Para fazê-lo, valho-me da hipótese em que o Direito Estrangeiro é aplicado por juiz nacional para solucionar dúvida contratual. Prometo ser breve e não perder sua atenção nos meandros do tema1. Para aquele que é não familiarizado com o tema, é importante ressaltar que - internacionalmente - se reconhece ao contratante uma liberdade adicional (além daquela de escolher seu parceiro, o objeto e a forma): A de escolha do regime jurídico. Assim, em contratos internacionais, não seria estranho que os próprios contratantes definissem o regime jurídico sob o qual realizam seu consenso, elegendo-o para a regência do contrato. Note que utilizei o futuro do pretérito para conjugar o verbo "ser". Isso porque esta noção não criou muitas raízes no Direito brasileiro. Explico. Sem voltarmos muito no tempo, lembro o leitor que o CC brasileiro que entrou em 1917 previa uma regra muito simples que tornava válida - em negócios internacionais e salvo algumas exceções - uma cláusula que dispusesse sobre o direito de regência das obrigações negociais2. Este estado de coisa, contudo, não sobreviveu os arroubos do Estado Novo. Eis, então, que dentre tantas liberdades, o brasileiro também foi privado daquela, já que o decreto-lei 4.657/42 passou a impor uma forma de determinação do Direito Aplicável, excluindo a escolha3. Este era, é claro, um momento anterior a efetiva internacionalização da economia brasileira. Contratos internacionais, então, eram tema de escassa preocupação doutrinária e judicial. Ao final do ano de 2024, o arcabouço jurídico geral permanece, majoritariamente, o mesmo. Apesar de o Brasil, sua economia e os brasileiros terem se transformado durante o longo século XX, nossa legislação não se alterou. Não se surpreenda, portanto, leitor, se ainda forem invocadas regras do século passado para reger seu contrato internacional. Ainda, é verdade, o Decreto-lei ganhou um lifting e passou a ter outro apelido: LINDB. Durante muito tempo, pairou sobre o tema dos contratos internacionais uma certa aura de exclusão: Eles não seriam para todos. Poucos eram os players do comércio internacional e, em menor número, os profissionais que atuavam na área. Hoje, contudo, todos nós estamos submetidos a negócios dessa índole. Dos dados pessoais cedidos à tributação dos importados, é preocupação do brasileiro médio a possibilidade de acesso a outros mercados. A questão, então, que motiva minha provocação, é como o Direito Contratual brasileiro vem sendo adaptado a esta realidade? Para fins de didatismo, permitam-me dividir a resposta em duas partes: A primeira é a aceitação da escolha do Direito Aplicável ao contrato internacional como regra geral e, a segunda, são os obstáculos criados pelo legislador. A aceitação de que contratantes possam escolher o Direito que será aplicado ao seu contrato, desde que internacionalizado, tem reconhecimento bastante amplo entre nossos parceiros do Mercosul, vizinhos das Américas e primos europeus. Neste sentido, inúmeras as iniciativas internacionais de destaque poderiam ser citadas, mas me contentarei com duas4 com viés de harmonização: Os Princípios da Haia relativos à escolha do Direito Aplicável aos contratos comerciais internacionais (2015)5 e o guia da OEA relativo ao Direito Aplicável aos contratos comerciais internacionais nas Américas (2019)6. A concentração destes esforços em negócios empresariais tem duas explicações: Uma certa tradição internacional de tratamento do tema dentro de maior espaço de liberdade e, claro, a necessidade de se assegurar a paridade negocial. No Brasil, o tema acaba sendo tratado - também - de forma a incluir a proteção dos consumidores, razão pela qual desde nossas propostas de tratamento junto a própria OEA (CIDIP), até os projetos de lei (por exemplo, PLS 1.038/20) em tramitação e o acordo aprovado no Mercosul tratam do tema sob perspectiva diferente. Em termos gerais, poderíamos dizer que não há uma regra que autorize contratantes (paritários) a escolher o Direito Aplicável ao seu contrato internacional. Contudo, com isso se criou, também, salvo engano, outra tendência: Afastar a escolha é medida de proteção do vulnerável. Acredito que, em algum sentido, há certa desconfiança de que o Direito Estrangeiro pode ser 'prejudicial' ao contratante brasileiro. Para isto, basta invocar um eloquente exemplo, verdadeiro jabuti incluído no PL que acabou alterando o CDC para tratar do tema do superendividamento. Pretendia-se tornar abusiva cláusula que previsse a aplicação de lei estrangeira7. E se ela fosse mais protetiva do consumidor? Eis, então, que adentramos no segundo ponto. A partir da percepção de que a aplicação de um Direito não nacional é, presumivelmente, prejudicial, nosso legislador passou a criar obstáculos gerais à possibilidade de isso vir a acontecer. Ao lado das restrições usuais, como a de ordem pública (art. 17 LINDB), temos outras. As mais recentes delas acabam de ser promulgadas por meio da lei 15.040/24 que dispõe sobre normas de seguro privado. Destaco, neste sentido, o rol do parágrafo 1° do art. 4°8, que estabelece hipóteses em que a legislação brasileira será de aplicação mandatória. Este dispositivo completaria as restrições já previstas pelo art. 209 da LC 126/07 nitidamente pensadas como reserva de mercado. Com este passe de mágica: O mero fato de o segurado ter residência ou domicílio no Brasil seria suficiente para atrair a incidência mandatória da legislação brasileira. Se pensarmos nos mais comuns dos contratos de seguro (vida e saúde, por exemplo), talvez a preocupação até fosse pertinente. Mas, aparentemente criou-se uma regra geral sem ressalvar as particularidades: E as operações internacionais complexas que envolvem execução em diferentes países? Ou, pior: Por que ferir de morte a autonomia privada para negociadores paritários? Poderíamos até mesmo argumentar que uma coisa é se proibir a escolha do Direito Aplicável (como, infelizmente, já estamos acostumados), outra é excluir a incidência do Direito Estrangeiro. Neste ponto, ouso indagar: E se este Direito fosse mais benéfico ao segurado? Até mesmo a forma como o referido dispositivo foi redigido pode causar problemas. Note que o seguro saúde contratado, no exterior, para viagem internacional (art. 20, II da LC 126/07) pode passar a, necessariamente, se submeter à legislação brasileira. Afinal, a LC não aborda o tema, limitando-se a autorizar a contratação. Esta perspectiva de exclusão da incidência do Direito Estrangeiro passa, ainda, por estratégias de limitação da escolha do foro. O art. 13010 da lei 15.040/24 inova a técnica legislativa ao estabelecer competência exclusiva brasileira para casos envolvendo contratos de seguro. Uma breve passada de olhos no art. 23 do CPC permite concluir que as demais hipóteses tinham algum fundamento territorial. Esta inovação é, até mesmo, mais agressiva que a tentada pela recente alteração do art. 63, §1°11 do mesmo CPC que tratou de limitar a escolha do foro para casos de consumo. Um último exemplo é o art. 12912 da lei 15.040/24 que consagra a arbitragem mandatoriamente sediada e regida pelo Direito brasileiro, criando exceção injustificada para o art. 2°, §§1° e 2° e art. 21, ambos da lei 9.307/96. E porque falar de DIPRI, então, é relevante? Perguntar-me-ia o atento leitor. Porque em todos estes exemplos, padecemos da síndrome do avestruz: Escondemos a cabeça até o risco passar. Preciso, contudo, contar dois segredos: Avestruzes não fazem isso, muitas vezes até mesmo tomam a ofensiva; e, além disso, o risco de inserção internacional não passará. A resposta que o Direito Contratual brasileiro precisa dar para os desafios que se avizinham é enfrentar as particularidades dos casos internacionais, criando as regras necessárias para que as soluções que tenhamos não sejam, apenas, chauvinistas por desconhecimento. * Frase da peça Huis clos de Jean Paul Sartre, que brinca com a infernal condenação de permanecer sempre juntos (entre quatro paredes, da tradução do título). Há um sentido de que a construção da alteridade exige o autoconhecimento. 1 Para o leitor que se interessar pelo tema, posso sugerir o artigo: Disponível aqui. 2 Art. 13. "Regulará, salvo estipulação em contrário, quanto à substância e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar, onde forem contraídas". 3 Art. 9º LICC: "Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituirem". 4 Se o leitor tiver a curiosidade, posso sugerir a leitura de minha tradução destes instrumentos: Disponível aqui. 5 A tradução oficial para o português está disponível aqui. 6 A tradução oficial para o português está disponível aqui. 7 Este trecho acabou sendo vetado. Para detalhes, sugiro a leitura de outro texto: A futura Lei do Superendividamento e o consumidor internacional. 8 Art. 4º O contrato de seguro, em suas distintas modalidades, será regido por esta lei. § 1º Sem prejuízo do disposto no art. 20 da LC 126, de 15/1/07, aplica-se exclusivamente a lei brasileira: I - aos contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; II - quando o segurado ou o proponente tiver residência ou domicílio no país; ou III - quando os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos se situarem no Brasil. 9 Art. 20.  A contratação de seguros no exterior por pessoas naturais residentes no país ou por pessoas jurídicas domiciliadas no território nacional é restrita às seguintes situações: I - cobertura de riscos para os quais não exista oferta de seguro no país, desde que sua contratação não represente infração à legislação vigente; II - cobertura de riscos no exterior em que o segurado seja pessoa natural residente no país, para o qual a vigência do seguro contratado se restrinja, exclusivamente, ao período em que o segurado se encontrar no exterior; III - seguros que sejam objeto de acordos internacionais referendados pelo Congresso Nacional; e IV - seguros que, pela legislação em vigor, na data de publicação desta LC, tiverem sido contratados no exterior. Parágrafo único. Pessoas jurídicas poderão contratar seguro no exterior para cobertura de riscos no exterior, informando essa contratação ao órgão fiscalizador de seguros brasileiro no prazo e nas condições determinadas pelo órgão regulador de seguros brasileiro. 10 Art. 130. É absoluta a competência da Justiça brasileira para a composição de litígios relativos aos contratos de seguro sujeitos a esta lei, sem prejuízo do previsto no art. 129 desta lei. 11 Art. 63, § 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor. 12 Art. 129. Nos contratos de seguro sujeitos a esta lei, poderá ser pactuada, mediante instrumento assinado pelas partes, a resolução de litígios por meios alternativos, que será feita no Brasil e submetida às regras do Direito brasileiro, inclusive na modalidade de arbitragem.
O regramento do contrato de seguro do CC/02 passa por um momento histórico e evolutivo de modo a atender a várias situações fático-jurídicas até então não contempladas em seu texto ou previstas de forma insuficiente. Trata-se da lei 15.040/24 como o novo marco legal dos seguros, oficialmente publicada no dia 10/12/14, oriunda do PL 2597/24. Referida lei, cujo período de vacatio legis é de um ano a contar da data da publicação, revogou todos os dispositivos do capítulo XV do título VI da parte especial do CC/02 destinados à regulamentação do seguro privado. Contudo, há também em vista as propostas de alteração pelo anteprojeto de reforma do CC, em relação ao regulamento do contrato de seguro, mas nem todas em sintonia com os enunciados normativos do novo marco legal. É o caso da participação da seguradora no polo passivo das ações de reparação civil propostas pela vítima de danos causados por profissionais que tenham a responsabilidade civil segurada. Nesse aspecto, em especial, as previsões da nova lei de seguros e do anteprojeto são díspares. A legitimidade ad causam, ou legitimidade para a causa, é um pressuposto subjetivo de validade e desenvolvimento regular de um processo, um requisito para que os sujeitos atuem regularmente na demanda. Segundo Fredie Didier, "é a pertinência subjetiva da demanda". O autor pontua que é necessário que "os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo em que se discuta aquela relação jurídica de direito material deduzida em juízo." (p. 343 - Didier Júnior, Fredie).  É imprescindível, pois, que, em regra, haja correspondência total entre a situação jurídica submetida à apreciação judicial e a situação que legitima as partes a discuti-la em defesa de seus respectivos interesses. Relativamente ao seguro de responsabilidade civil profissional, em caso de sinistro, a legitimidade ativa é do terceiro, vítima do dano. Mas quem tem legitimidade para compor o polo passivo dessa relação processual? Em regra, o profissional, causador do dano. E qual o papel da seguradora nesse cenário processual? A obrigação da seguradora é deflagrada pela ocorrência do sinistro. Uma das hipóteses legais e contratuais de sua ocorrência é a condenação do profissional em virtude de decisão judicial condenatória transitada em julgado prolatada no bojo de um processo de conhecimento no qual o profissional segurado (um médico, por exemplo) tenha a oportunidade de se defender. Um processo no qual lhe sejam oportunizadas todas as prerrogativas do princípio da ampla defesa e do contraditório. E ainda que venha a ter sua responsabilidade civil pelo dano causado realmente reconhecida, o ato ou fato que deram ensejo a ela podem ou não estar previstos na cobertura securitária. Por tais razões, o dever da seguradora de pagar a indenização ao terceiro, vítima do dano e autor da ação, ocorrerá se: (i) em virtude de um comando judicial forem reconhecidos os pressupostos da responsabilidade civil e (ii) o ato ou fato do profissional estiverem dentro do âmbito de cobertura da apólice e no período de sua vigência. Como pode, então, a seguradora compor o polo passivo nesse tipo de ação em referência? Será na qualidade de ré ou de terceira por meio de uma das espécies de intervenção de terceiros? Nesse contexto, pergunta-se: Qual a relação jurídica da seguradora com o terceiro, vítima do dano? A resposta é nenhuma. Nenhuma relação jurídica. Daí, indaga-se: Instaura-se um litisconsórcio? Caso positivo, de qual natureza? Facultativo ou necessário? Ou caberia alguma hipótese de denunciação da lide? Ou, ainda, seria cabível o chamamento ao processo? Pois bem. No anteprojeto de reforma do CC foi inserido o § 5º ao art. 787, abaixo transcrito: § 5º É cabível a ação direta do terceiro contra a seguradora e o segurado conjuntamente, respeitados os limites e as condições estipulados na apólice. A redação do dispositivo supratranscrito permite que várias interpretações sejam extraídas de seu texto normativo, notadamente da expressão "conjuntamente". Com efeito, poderia ser tal expressão interpretada como uma solidariedade passiva, uma legitimação extraordinária, um litisconsórcio passivo, uma colegitimação ou, ainda, uma denunciação da lide? Qual é, afinal, a intenção do legislador ao permitir, por meio de uma norma de natureza processual no diploma civil, o cabimento da ação proposta pela vítima do dano direta e conjuntamente contra segurado e seguradora? Em paralelo, com a publicação da nova lei 15.040/24 em 10/12/24, outra redação foi conferida no tocante à participação da seguradora no polo passivo da ação de reparação civil contra o profissional segurado, conforme se verifica nos arts. 101 e 102 abaixo transcritos. Contudo, assim como o anteprojeto, não elucida a dúvida e controvérsia acerca da espécie de intervenção de terceiros apta a integrá-la ao processo ao preceituar, textualmente, a sua condição de litisconsorte por meio da possibilidade do segurado "chamá-la", porém, sem responsabilidade solidária.  Art. 101. Quando a pretensão do prejudicado for exercida exclusivamente contra o segurado, este será obrigado a cientificar a seguradora, tão logo seja citado para responder à demanda, e a disponibilizar os elementos necessários para o conhecimento do processo. Parágrafo único. O segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária. Art. 102. Os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado. Parágrafo único. O litisconsórcio será dispensado quando o segurado não tiver domicílio no Brasil. Nessa conjuntura, apresentam-se possíveis, porém não exaurientes respostas, pautadas em interpretações sistemáticas e teleológicas dos dispositivos em comento. No que tange ao anteprojeto, uma possível explicação à expressão "conjuntamente", a princípio, é a hipótese de legitimação extraordinária. Trata-se a legitimação extraordinária de uma legitimação anômala, excepcional. Considera-se a aptidão conferida a alguém para discutir em juízo direito alheio, em nome próprio. Na legitimação ordinária, ao revés, há exata correspondência entre a situação legitimante e a situação submetida à apreciação do juiz e, em razão disso, uma perfeita coincidência entre os sujeitos dessa relação jurídica com as partes da relação processual. Pode-se aventar, portanto, a possibilidade da seguradora ser considerada como legitimada extraordinária? Estaria ela defendendo, em nome próprio, os direitos e interesses do segurado? Pela leitura dos arts. 18 e 190 do CPC/15 e do próprio § 5º do art. 787 do anteprojeto do CC, a resposta pode ser afirmativa no sentido de que o ordenamento jurídico autoriza, excepcionalmente, alguém a pleitear direito alheio em nome próprio, bem como prevê a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais. Amparada na previsão normativa do § 5º do art. 787 do anteprojeto que admite o cabimento da ação conjuntamente contra o segurado e seguradora, seria viável a legitimação extraordinária. Baseando-se em uma interpretação teleológica da norma em comento, essa seria, portanto, uma hipótese cabível. Para tanto, procura-se afastar a possibilidade de colegitimação que é o concurso de legitimados quando a lei atribui a legitimidade para várias pessoas, de forma concorrente e simultânea, a fim de discutirem em juízo o mesmo objeto, o mesmo fato, a exemplo dos condôminos na defesa do bem comum. Nessa hipótese, o colegitimado é, igualmente, titular do direito sub judice, ou seja, titular do direito material objeto da discussão no processo, o que não é o caso da seguradora, eis que sequer participou do evento danoso. Com base nessas discussões ora apresentadas, passa-se à análise dos enunciados normativos dos arts. 101 e 102 da nova lei de seguros, a lei 15.040/24. O parágrafo único do art. 101 dispõe que o segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária. A princípio, a expressão "chamar" apresenta uma atecnia, pois remete à ideia de chamamento ao processo, hipótese de intervenção de terceiros por meio da qual o réu convoca seus codevedores solidários para compor o polo passivo, de modo que todos sejam incluídos na mesma condenação. Com efeito, a seguradora não é devedora solidária do segurado, muito pelo contrário; sua relação jurídica com o profissional segurado a obriga ao pagamento da indenização de forma individual e integral (nos limites do capital segurado). Nesse sentido, no dispositivo supratranscrito, há expresso afastamento de tal solidariedade, pelo que se infere da expressão "sem responsabilidade solidária". Entretanto, tal norma civil é contrária à essência do instituto do chamamento ao processo, bem como das normas processuais civis que o regulamentam. Quanto à possibilidade de litisconsorte, a expressão "poderá" nos permite concluir tratar-se de um litisconsórcio passivo facultativo. O caput do art. 102, entretanto, impõe - e não permite - a participação da seguradora no polo passivo na qualidade de litisconsorte, caso o prejudicado contra ela também queira demandar. Há nesse dispositivo várias situações a serem elucidadas, o que não é possível nesse espaço. Contudo, provoca-se, por meio deste texto, outra possível atecnia. O litisconsórcio facultativo ativo ou passivo forma-se em razão da vontade de quem propõe a demanda; porém, o legislador exige a presença da seguradora e segurado nas ações propostas pelos prejudicados, o que permite a interpretação de um litisconsórcio necessário. De fato, no litisconsórcio facultativo a formação do polo passivo não é imposta, mas tão somente permitida, caso assim não o fosse, seria um litisconsórcio necessário, por disposição de lei, nos termos do art. 114 CPC/15. A consequência da falta de citação de um litisconsorte necessário simples (como nesse caso) é a ineficácia - e não nulidade - da decisão relativamente a ele, nos termos do art. 115 do CPC. Infere-se que a finalidade do legislador foi seguir o entendimento sumulado do STJ, enunciado 529, decidido em sede de recurso repetitivo, segundo o qual não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora, justamente para assegurar o princípio do contraditório ao profissional segurado. Nesse sentido, pelo que se denota da lei 15.040/24, as hipóteses previstas para a integração da seguradora na relação processual entre vítima (autora) e profissional segurado (réu) são na qualidade de litisconsorte. Contudo, o litisconsórcio previsto na nova lei de seguros, seja ele facultativo ou necessário, pode ser interpretado tão somente considerando-se a seguradora como legitimada extraordinária e não como colegitimada pelas razões acima expostas. Porém, não se pode descurar da hipótese da denunciação da lide pelo réu, modalidade provocada de intervenção de terceiros, nos casos em que a seguradora figure como terceira e se recuse a pagar a indenização, situação que deflagra um segundo conflito muito comum: A seguradora contra o próprio segurado. Múltiplos são os casos em que a seguradora tenta se eximir da sua obrigação. Uma delas, a mais recorrente, é a alegação de que o risco não fora objeto de cobertura. Instauram-se, portanto, duas demandas por meio da denunciação da lide: (i) a principal, entre vítima, na qualidade de autora, e o profissional segurado, como réu; e (ii) a segunda demanda, de natureza secundária e regressiva, entre o profissional segurado como réu da primeira e denunciante da segunda; e a seguradora como terceira denunciada. No caso do profissional réu ser o denunciante, caso seja vencido, o juiz analisa a segunda demanda (que é a regressiva da denunciação). Mas se o réu denunciante for vencedor, a denunciação não será examinada. Para além dessas hipóteses, por meio de um método hipotético-dedutivo, propõe-se, ainda, a possibilidade de assistência simples pela seguradora como outra espécie de intervenção de terceiros mais consentânea se não houver recusa da seguradora ao ser comunicada do evento danoso, na medida em que ela poderá ingressar nessa demanda devido ao seu interesse jurídico em que o segurado seja vencedor, podendo, para tanto, praticar os atos processuais a fim que tal desiderato seja realmente alcançado. Com efeito, não seria o caso de assistência litisconsorcial, eis que, nessa modalidade, o terceiro apresenta-se como colegitimado ou cotitular do direito invocado em juízo. Por tal razão, a assistência simples seria a intervenção de terceiros mais adequada diante da eventual ausência de conflito entre seguradora e segurado. Enfim, a possibilidade de participação da seguradora no polo passivo das ações de reparação civil propostas em face do profissional segurado é prevista tanto no novo marco legal dos seguros quanto no anteprojeto de reforma do CC, mas não podem ser desconsideradas as hipóteses de intervenção de terceiros. Ambos os regramentos apresentam uma finalidade comum: A possibilidade de beneficiar a vítima ao facultar-lhe a propositura da ação conjuntamente contra a seguradora que, em tese, tem condições patrimoniais para satisfação do valor objeto da condenação. Isso sem desalijar da relação processual o profissional segurado, eis que, por responder subjetivamente - conforme determina o art. 14 §4º do CDC - deve sim participar do polo passivo da ação reparatória na qual poderá apresentar suas teses de defesa, em observância ao princípio do contraditório.  Tal finalidade comum está em consonância com uma das funções primordiais da responsabilidade civil, a função reparatória. Contudo, não podem se descurar das normas de natureza processual civil nem avançarem em descompasso recíproco, sob pena de estarmos diante de uma nítida (e não aparente) antinomia jurídica. Resta saber qual será o destino da seguradora nas ações de reparação civil propostas pela vítima contra o segurado. Diante da fase do processo legislativo em que se encontra o anteprojeto, se aprovado nos termos até então propostos, surgirá, possivelmente, uma antinomia jurídica cujos critérios para solução são: O critério da especialidade e o critério cronológico. A partir disso, outra discussão certamente surgirá: Qual dos mencionados diplomas normativos prevalecerá? Importa que estas normas civis estejam alinhadas recíproca, teleológica e sistematicamente àquelas de natureza processual, visando à efetiva reparação de danos aos terceiros prejudicados. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos. _______________ BRASIL. Lei 15.040/24. Disponível aqui. BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do CC. 2024. Disponível aqui. BRASIL. Câmara dos deputados. PL 2597/24. Disponível aqui. BRASIL. Lei 13.105, de 16/3/15, Brasília, DF, CPC. Disponível aqui. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
No âmbito da tomada de decisão, como na vida em geral, a memória ocupa espaço de relevância (BERGSON, 1999). A memória define o passado, o presente e o futuro1. Muitas vezes não nos damos conta da importância do estudo e aplicação do tema e, bem assim, da sua inserção no ambiente da valoração das provas, mas, a despeito dessa aparente invisibilidade, não teríamos condições sequer de compreender o conceito e os contextos das situações que nos cercam (memória semântica), ou a reconstrução de fatos a serem provados (memória eventual, ou episódica) acaso não tivéssemos em plena operação toda uma engrenagem interna que nos auxilia a perceber o mundo e atuar conforme a vida em sociedade nos exige (IZQUIERDO, 2018). Imagine que está sendo discutido em juízo um acidente de trânsito no qual um carro azul teria ultrapassado o semáforo e colidido com outro automóvel, este verde, atropelando uma família. Na antessala do Tribunal, aguardam duas testemunhas presenciais, Dona Maria e Dona Josefa. Elas não se conhecem previamente e se encontram em um ambiente estranho e pouco acolhedor. Enquanto o juiz ouve o depoimento de outra pessoa, Dona Maria decide iniciar uma conversa com Dona Josefa, buscando aliviar a tensão do momento. Convencida do que acredita ter visto, Dona Maria comenta: "Que coisa triste esse acidente, não foi? Fiquei tão nervosa quando aquele carro vermelho ultrapassou o sinal amarelo e bateu no carro preto. Aquela senhora atropelada me lembrou a minha irmã, eram tão parecidas...".  Dona Josefa, que não se sente completamente segura em relação ao que presenciou, concorda com a narrativa de Dona Maria. Ela ainda acrescenta que também achou a pessoa atropelada parecida com alguém que conhecia, ensejando, assim, o fenômeno da calibragem mútua. Posteriormente, ao ser chamada para depor, Dona Josefa provavelmente repetirá a versão que ouviu de Dona Maria, assumindo-a como verdade. Para ela, essa história terá se consolidado como a realidade dos acontecimentos presenciados. Esse cenário exemplifica a formação de uma falsa memória, um fenômeno comum e não patológico, que reflete o funcionamento natural da memória. Essa dinâmica pode ocorrer tanto no cotidiano quanto, de forma crítica, no contexto judicial, influenciando a avaliação da credibilidade dos relatos sobre eventos específicos. (LOFTUS, 1997; ROEDIGER e MCDERMOTT, 1995; BRAINERD e REYNA, 2002). A partir desse singelo exemplo, duas questões aqui merecem atenção e estudo mais verticalizado. A primeira se situa na interface entre teoria e metateoria. Em geral, utilizamos como base alguma vertente teórica jurídica para definição dos casos, recolhendo os pressupostos legais (ou doutrinários), agregando algum posicionamento jurisprudencial, e, ao final, sacando conclusões para resolução de algum problema concreto. A teoria de base nos auxilia no que chamaremos de tomada de decisão geral, ou circunscrita aos elementos jurídicos do caso em julgamento. Ocorre que, para além da teoria de base que utilizamos, há, de certa forma escondida, alguma metateoria que lhe dá sustentação e cujo manejo pode ultimar por alterar a própria percepção do ponto nodal fático tratado pela teoria utilizada para resolução do caso. Esta, que não é necessariamente jurídica, influencia no que chamaremos tomada de decisão específica, ou inserida no contexto das pequenas definições fáticas que resultem na reconstrução dos fatos narrados. No caso da responsabilidade civil, penal ou administrativa, a metateoria relativa ao funcionamento da memória ocupa lugar central para definição dos fatos, sendo geralmente ignorada ou pouco abordada. Independentemente do quadro normativo ou teórico que utilizemos para definição da responsabilidade pertinente ao acidente de carros (tomada de decisão geral), teremos uma resposta final enviesada se simplesmente ignorarmos o funcionamento central das pequenas tomadas de decisão a respeito de circunstâncias que pareçam acessórias (tomada de decisão específica), como, por exemplo: (a) como a testemunha/declarante, ou quaisquer participantes se recordam dos eventos; (b) a prova está sendo, ou foi, contaminada antes mesmo da sua produção; (c) o que podemos fazer para evitar que a reconstrução dos fatos se aparte dos fatos em si; (d) como podemos incrementar o grau de credibilidade dos relatos trazidos pelos participantes internos? No caso citado, a Dona Maria inadvertidamente inseriu uma falsa memória no contexto mnemônico da Dona Josefa, que terá certeza do que lhe fora comentado como se efetivamente tivesse vivido aquele acontecimento narrado. Acaso o decisor desconheça o funcionamento da memória e se revele, bem por isso, incapaz de perceber as diferenças entre eventos imaginados e eventos vivenciados2 (apoiando-se, para tanto, na tomada de decisão específica), acabará, por causalidade, por encontrar um padrão decorrente das falas das duas senhoras e, como consequência, estará muito tendente a compreender, no contexto da tomada de decisão geral, que a reconstrução dos fatos se deu como o padrão sugere. Em que pese pareça questão secundária, o conhecimento dos meandros de funcionamento da tomada de decisão específica (no presente caso a compreensão da memória), ligada à metateoria da tomada de decisão, cobra fundamental importância a fim de delinear a (re)construção dos fatos, não se podendo cogitar de uma boa tomada de decisão relativa ao caso concreto se não observados os aspectos inerentes às pequenas tomadas de decisão que influenciem a contextualização dos fatos e a sua evocação. Outro ponto que chama a atenção é que, em geral, o estudo do funcionamento da memória e dos aspectos científicos da valoração probatória costumam ser lembrados por ocasião de discussões inerentes à verdade e, mais especificamente, no contexto daqueles casos tidos pela doutrina e jurisprudência como de maior dificuldade probatória (os crimes cometidos às escondidas, por exemplo). Ocorre que as duas questões estão mal posicionadas. Tanto não existe processo com maior ou menor dificuldade probatória, senão, em realidade, uma maior ou menor capacidade de percepção dos eventos e fatores que se inserem no contexto da valoração dos fatos, como, da mesma forma, a ideia de que a compreensão metodológica dos fatos assume importância apenas no ambiente da verdade está equivocada. Em relação à primeira questão, se um processo costuma ofertar o que se entende como pouco material probatório, para utilizar um jargão usual no Direito, o decisor atua de duas maneiras: (a) ou recorre à teoria do ônus probatório para resolver a questão controvertida; (b) ou se utiliza de alguma presunção. As duas maneiras de solucionar o problema se revelam equivocadas, no entanto. Repisemos o caso supramencionado, em que um veículo alegadamente ultrapassou o semáforo e colidiu com outro veículo. Assumindo inexistir outro elemento probatório afora o depoimento das duas senhoras, Maria e Josefa, e, considerando que o decisor tomará por base o que lhe foi dito, sem perceber que a versão por elas trazida é decorrente de uma falsa memória, decerto entenderá que o autor se desincumbiu corretamente do ônus probatório ao comprovar que o acidente teve como causa primária e direta o comportamento do réu, que, ultrapassando o semáforo, chocou-se contra outro veículo e atropelou a família. As regras de ônus probatório, no caso, ademais de não auxiliarem na reconstrução do fato, ainda produziram um resultado enviesado.  Agora imaginemos que as senhoras Maria e Josefa não presenciaram o ocorrido, mas quem estava presente era Júlio, um guarda municipal de serviço no dia. Júlio é portador de discromatopsia (e não sabe disso), de modo que se confunde quanto às cores de objetos. No caso, ao narrar o que aconteceu, acaba por trocar as cores dos veículos e afirma categoricamente o contrário do que ocorreu na realidade, isto é, que o carro que ultrapassou o semáforo não era azul, senão verde (decorrente da tritanopia, ou deficiência no cone azul) e que o abalroado era azul e não verde (decorrente da deteranopia, ou deficiência no cone verde). Ao não ter acesso a qualquer outro meio probatório e, ainda, considerando o cargo ocupado por Júlio, o juiz não terá dúvidas em reputar acertada a sua versão, aplicando, para tanto, jurisprudência conhecida que atribui ao agente público a presunção juris tantum de veracidade das suas afirmações3. Nesse caso, a presunção utilizada pelo juiz, conquanto ostente amparo jurisprudencial, confundiu confiança, um atributo do sistema jurídico, com credibilidade, elemento individual de quem narra4. Outro falso positivo foi formado. Em síntese, nem a teoria do ônus probatório, tampouco o recurso às presunções auxiliou na reconstrução adequada do fato ocorrido. Mas há outra questão - e com ela finalizo esse breve artigo. É que o estudo do fato em si, suas metodologias de percepção, características, elementos e categorização costumam ser examinados, quando o são, a partir de encadeamentos teóricos epistemológicos inerentes às teorias da verdade, como se prova e fato fossem coisas idênticas, passíveis de análise por idênticos marcadores epistemológicos ligados à verdade (FERRER BETRÁN, 2024 e GASCÓN ABELLAN, 2012). O fato precede a prova, assim como sua percepção, tanto pelos observadores externos quanto pelos participantes internos do evento. A questão central é determinar como, e com qual metodologia, o fato poderá ser percebido - sem ainda adentrar nas discussões sobre prova ou verdade. Por exemplo, se um participante interno estiver sob influência de uma causa transitória de alteração cognitiva, como o uso de drogas, ele perceberá o fato de maneira específica. Essa percepção deverá ser compreendida pelo decisor para avaliar o grau de credibilidade da reconstrução da dinâmica apresentada por esse narrador. Por outro lado, se o narrador for portador de uma causa permanente de alteração cognitiva, como uma neurodivergência, sua interpretação da realidade será igualmente influenciada, exigindo análise detalhada de seus limites, características e peculiaridades. Isso permitirá confrontar os resultados esperados dessas condições com a narrativa oferecida. Já no caso de um observador externo, sem qualquer causa de alteração cognitiva, transitória ou permanente, sua leitura da realidade será diferente, fundamentada em outros padrões, parâmetros e limites. Para compreender como ocorre a leitura dos fatos (independentemente da teoria da verdade adotada para fins probatórios, cuja relevância poderá surgir em momento posterior), o decisor deve recorrer a fundamentos teóricos específicos. Isso inclui o entendimento do funcionamento da memória, dos padrões cognitivos de indivíduos neurotípicos e neurodivergentes, dos efeitos de substâncias psicoativas, da influência da idade, do estresse, entre outros fatores. Esse processo requer um verdadeiro exercício de alteridade, posicionando-se o decisor no campo de percepção tanto do afetado quanto do observador externo ao evento. Somente assim será possível reconstruir os fatos a partir da forma como foram percebidos e, então, investigar os parâmetros probatórios pertinentes.  Caso contrário, o decisor estará operando em um terreno frágil, marcado por desvios cognitivos, baseando decisões em causalidades equivocadas, acreditando em padrões estereotipados e adotando presunções jurídicas desconectadas da análise e percepção efetiva dos fatos. Procedendo dessa forma, mesmo ao adotar teorias jurídicas de vanguarda, corre-se o risco de avaliar os fatos sob uma ótica anacrônica, reminiscentes das provas tarifadas da antiguidade, sem efetivamente avançar na compreensão científica moderna. ___________ 1 Não resisto à indicação da leitura do conto "Funes, o Memorioso", de Borges, que narra a história de uma pessoa portadora de hipertimesia, ou seja, uma memória episódica e autobiográfica prodigiosa, o que, em primeiro momento poderia ser muito proveitoso e benéfico, mas, ao contrário, revela-se maléfico e fatal. BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1997. 2 Como sugere a Hipótese de Udo Undeutsch. A esse respeito, entre outros trabalhos: STELLER, Max; KÖHNKEN, Günter. Criteria-based statement analysis. In: YUILLE, John C. (Ed.). Credibility assessment. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 217-245. E, ainda, VRIJ, Aldert. Criteria-based content analysis: A qualitative review of the first 37 studies. Psychology, Public Policy, and Law, v. 11, n. 1, p. 3-41, 2005. 3 ARE: 1399175 (Supremo Tribunal Federal, 2022), entre outros. 4 Como esse não é o objeto central do texto, remeto o leitor interessado a outro trabalho em que abordei a diferença entre as duas categorias. ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Confianza o credibilidad: un debate entre el Derecho y la Psicología del Testimonio. In: Congreso internacional de Derecho Constitucional: Argumentación e interpretación en el Estado Constitucional. Corte de Constitucionalidad - Instituto de Justicia Constitucional. Guatemala, 2024, p. (do artigo): 163-178  5 BERGSON, Henri. Resumo e conclusão. In: BERGSON, Henri. (org.). Matéria e memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 6 BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1997. 7 BRAINERD, Charles J.; REYNA, Valerie F. Fuzzy-trace theory and false memory. Current Directions in Psychological Science, v. 11, n. 5, p. 164-169, 2002. 8 FERRER BELTRÁN, Jordi. Prova e verdade no direito. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Salvador: Juspodivm, 2024. 9 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Cuestiones probatorias. Madrid: Marcial Pons, 2012. 10 IZQUIERDO, Iván. Memória. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018. 11 LOFTUS, Elizabeth F. Creating false memories. Scientific American, v. 277, n. 3, p. 70-75, 1997. 12 ROEDIGER, Henry L.; McDERMOTT, Kathleen B. Creating false memories: Remembering words not presented in lists. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition, v. 21, n. 4, p. 803-814, 1995. 13 STELLER, Max; KÖHNKEN, Günter. Criteria-based statement analysis. In: YUILLE, John C. (Ed.). Credibility assessment. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 217-245. 14 VRIJ, Aldert. Criteria-based content analysis: A qualitative review of the first 37 studies. Psychology, Public Policy, and Law, v. 11, n. 1, p. 3-41, 2005.
A intersecção entre a responsabilidade civil e o direito das famílias continua a ser um tema que chama atenção dos juristas, nas mais variadas situações. No presente texto, o recorte a ser feito refere-se aos danos e indenizações decorrentes da violência doméstica. Recentemente, em 9/10/24, houve a edição da lei 14.994 com o objetivo de alterar a legislação penal e "para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher". Entretanto, desde 2006, com a edição da lei 11.340/06, mais conhecida como lei Maria da Penha, encontra-se no art. 5º a descrição do conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Inclusive, o mencionado texto legislativo não coloca como um de seus requisitos o vínculo familiar ou a coabitação, tampouco a orientação sexual das pessoas envolvidas, aplicando-se, portanto, para casos de namoro, relações homoafetivas e outros tipos de relações. A lei Maria da Penha assegura, no art. 9, §4º e 5º, que aquele que causar a violência doméstica em qualquer grau deve ressarcir não só a vítima, mas também o SUS por todo o serviço prestado em decorrência da sua conduta. Ademais, no art. 24, inciso IV, está prevista a prestação de caução provisória, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica contra a ofendida. Em 22/11/21, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a lei Mariana Ferrer, cujo objetivo é coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. O contexto de aprovação da referida lei ocorreu após uma audiência na qual a vítima de violência contra a mulher foi a todo tempo revitimizada, sendo que as imagens e gravações de tais fatos viralizaram em redes sociais causando intensa comoção social no país. Por isso, os artigos 400-A e 474-A foram acrescentados ao CPP, os quais preveem a pena de responsabilização civil, penal e administrativa para aqueles que realizarem a chamada violência institucional. Já em 2022, com a edição da lei 14.344/22, denominada como lei Henry Borel, houve a descrição da violência doméstica e familiar contra criança e adolescente como qualquer ação ou omissão que importe em morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou patrimonial. E, de igual forma ao que dispõe a lei Maria da Penha, a violência também se caracteriza independentemente do vínculo familiar e de coabitação para sua configuração, incluindo-se, portanto, relações como a de padrastos, madrastas e enteados. E, não obstante a edição de tais legislações, conforme o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 20241, tem-se que o ano de 2023 apresentou um crescimento de mais de 23 mil casos de lesão corporal dolosa no âmbito da violência doméstica, se comparado ao ano de 2022. Também houve aumento no número de medidas protetivas concedidas, em um percentual de 26,7 em cotejo aos anos de 2022 e 2023. As denúncias de prática de stalking também cresceram no mesmo período em 34,5%, bem como as de violência psicológica em 33,8%. A agressão no ambiente doméstico persiste no momento contemporâneo, o que implica no ajuizamento de ações indenizatórias e faz com que os Tribunais tenham que enfrentar a temática da quantificação dos danos extrapatrimoniais. Sem olvidar da questão sob a esfera penal, Pontes de Miranda discorre sobre a existência de entendimento no sentido de inexistir a possibilidade de se cogitar em perdas e danos e indenização no âmbito da família, em razão do direito de família já prever certas sanções a determinadas situações. Todavia, tal concepção deveria ser posta de lado, uma vez que é "possível haver causa suficiente para indenização ou reparação, com fundamento noutra regra de direito civil".2 Assim sendo, é plenamente possível que o réu seja condenado a indenizar a vítima de suas agressões. Já se sustentou em sentido similar, em momento anterior, ao afirmar que o divórcio e os alimentos não seriam suficientes para tutelar adequadamente os integrantes da família. É preciso que a responsabilidade civil ingresse em alguns casos que o direito de família não consegue abarcar sozinho. Acaso fosse afastada a possibilidade de responsabilização civil no âmbito do direito das famílias, estar-se-ia incentivando a impunidade.3 Sobre este prisma deliberativo, o Tema 983 do STJ dispõe que, nos casos de violência doméstica, é possível a fixação de um mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que exista pedido expresso pela acusação ou pela ofendida, cuja fixação independe de instrução probatória. A fixação do valor de indenização extrapatrimonial, em regra, tem seguido o conhecido método bifásico, cujo idealizador foi o ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, em pesquisas realizadas sobre o "princípio da reparação integral".  O autor descreve que tal método seria "uma autêntica operação de concreção", na qual haveria duas fases: Na primeira, arbitrar-se-ia um valor inicial de acordo com o interesse jurídico lesado, o que permitiria uma razoável igualdade de tratamento para os casos semelhantes.4 Em um segundo momento, haveria a fixação definitiva da indenização, com a respectiva adequação do valor às peculiaridades do caso em concreto. Assim sendo, eleva-se ou reduz-se o montante conforme a gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes e culpa concorrente da vítima. Tal critério para quantificação da indenização está inserido no projeto de atualização do Código Civil que nos incisos I e II, do § 1º, do art. 944-A, cuja redação dispõe: "I - quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes; II - quanto à extensão do dano, as peculiaridades do caso concreto, em confronto com outros julgamentos que possam justificar a majoração ou a redução do valor da indenização".5 Neste sentido, decisões recentes do TJ/SP na competência criminal têm fixado valores diversos, que variam entre um salário-mínimo (1500470-06.2023.8.26.0404)6, dois mil reais (1500365-77.2022.8.26.0270) e dez mil reais (1501823-62.2023.8.26.0572). Todas reafirmando que o dano moral é presumido (in re ipsa), inclusive decidindo que a hipossuficiência não é causa suficiente para o afastamento da indenização (1500365-77.2022.8.26.0270). Logo, o fato de o agressor ser hipossuficiente não deve gerar uma indenização de menor montante pecuniário para que não incentive a continuidade da violência, afetando a função preventiva da responsabilidade civil. Na esfera cível, em específico, de acordo com os casos julgados pelo TJ/SP entre 2023 e 2024, quanto às competências para fixar a indenização, os valores encontrados estão entre dez mil reais (0003529-63.2010.8.26.0491, 1023057-32.2014.8.26.0554 e 1012286-45.2014.8.26.0020); perpassando por vinte mil reais (0109811-24.2007.8.26.0009, 1015800-45.2014.8.26.0007 e 1002452-38.2015.8.26.0002). Em casos mais graves, como tentativas de homicídio, observa-se possível fixação de indenização em valores maiores, de até R$ 176.000,00 (0013367-82.2011.8.26.0624). A questão que se coloca em debate é se a responsabilidade civil seria o instituto que melhor abarca a reparação do dano causado à vítima de violência doméstica no Brasil. Verificou-se, no decorrer do estudo, que há vários instrumentos nas legislações que preveem a responsabilização do agressor pelos danos causados não só à vítima, mas também ao sistema que prestou serviços de saúde em razão do ocorrido e, ainda assim, o cenário de violências domésticas no país está longe de ser cessado. Houve recente aumento de pena ao crime de violência doméstica contra a mulher, mas o agressor que comete a conduta, no momento em que realiza o crime, não pensa se a pena é alta, se deverá ressarcir a vítima ou algo do tipo. A responsabilidade civil, ao que se viu diante dos julgados mencionados, não tem obtido êxito em ressarcir os danos na esfera penal, mas situação diversa foi notada no âmbito cível. Acontece que, no caso de violência doméstica contra a mulher, o ressarcimento do dano está deveras ligado ao patrimônio dos envolvidos, de modo que quanto mais dinheiro o agressor possuir, maior será a sua condenação. No entanto, não são esses casos que chegam ao Poder Judiciário com mais frequência, e sim aqueles cujo agressor tem menor condição financeira. Assim, ao se fixar um salário mínimo como medida de reparação - por levar em consideração a sua condição financeira -, o agressor não vai entender a compensação como uma forma de punição pelo crime cometido, e pode gerar a sensação de que violentar a mulher compensa. A responsabilidade civil em casos de violência doméstica precisa caminhar melhor na quantificação do dano causado à vítima, visando alcançar todo o contexto. Deve assegurar, inclusive, a sua adoção como método de prevenção e punição, de modo que os casos de ameaça e stalking - os crimes iniciais da violência -, sejam analisados celeremente, de maneira a reprimir o agressor, impedindo-o de dar continuidade aos atos e de violar a integridade física da mulher. Em resumo, é possível identificar que as vítimas de violência doméstica demandam no Poder Judiciário a respectiva indenização que, não obstante a reprimenda penal e cível, não é suficiente para impedir tais casos, tampouco reduzi-los. E, bem por isso, também caminhou o projeto de alteração do Código Civil de modo a permitir que o juiz analise todas as circunstâncias que impliquem em uma majoração nos valores a serem fixados, conforme parágrafo 2º e seguintes do art. 944-A. Portanto, verificou-se que, apesar de haver instrumentos que determinam o ressarcimento do dano causado à vítima de violência doméstica, os casos crescem. Assim, a responsabilidade civil, aliada à imprescindível persecução penal, se aplicada de maneira correta e com valores indenizatórios adequados, poderá cumprir não só uma função ressarcitória, mas também preventiva e punitiva. _________ 1 ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. 2 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1955, p. 190. 3 PAIANO, D. B.; FURLAN, A. C. Responsabilidade civil nas relações conjugais e convivenciais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 27, n. 01, 2021, p. 45. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. 4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da Reparação Integral, 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. 5 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 30 out. 2024. 6 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. _________ ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Lei n. 14.994 de 9 de outubro de 2024. (Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuc¸a~o Penal), a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher. Diário Oficial da União, 09 de outubro de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. (Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 07 de agosto de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Lei n. 14.344 de 24 de maio de 2022. (Cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, nos termos do § 8º do art. 226 e do § 4º do art. 227 da Constituição Federal e das disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nºs 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), e 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 24 de maio de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 30 out. 2024. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1955. PAIANO, D. B.; FURLAN, A. C. Responsabilidade civil nas relações conjugais e convivenciais. Revista Brasileira de Direito Civil, [S. l.], v. 27, n. 01, p. 37, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da Reparação Integral, 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.
A Câmara dos Deputados aprovou em 05.11.2024, o projeto de lei 2597/24, como substitutivo ao projeto de lei da câmara 29, de 2017 (PL 3.555, de 2004). O diploma legal estabelece normas gerais em contratos de seguro privado e revoga dispositivos do CC, do CCB e do decreto-lei 73 de 1966. O presente texto, escrito antes de sua sanção presidencial, examina alguns dos reflexos da nova legislação dos contratos de seguros no direito de danos. Do ponto de vista do conteúdo, o novo marco legal dos seguros trata de princípios, interpretação do contrato, regulação e liquidação de sinistros, prazo prescricional, do interesse segurado, entre outras matérias. Sua estrutura contempla seis títulos: disposições gerais, seguros de danos, seguros sobre a vida e a integridade física, seguros obrigatórios, prescrição e disposições finais e transitórias. Quando sancionada e publicada, a nova lei revogará todo o capítulo do CC dedicado ao contrato de seguro, além de outras disposições pontuais sobre o tema, como o prazo de prescrição do art. 206, §1º, II. Com essa mudança, os seguros passam a contar com um diploma legal específico, o que demandará um importante diálogo com o CC, e com o anteprojeto de sua revisão, sobretudo para que seja mantida a sempre desejável unidade sistemática. A matéria dos contratos de seguro está hoje regulada em 46 arts. no CC. Com a sanção da nova lei, passam a ser 132 arts.s sobre o tema. A ampliação do número de dispositivos que regulamenta o tema revela a preferência por um regramento mais detalhado e previsível, deixando menor margem de discricionariedade para os aplicadores, cuja interpretação, muitas vezes, acaba por desconsiderar o cálculo atuarial e a distribuição de riscos que constituem a realidade econômica e técnica intrínseca a esta modalidade contratual. Nesse setor, o conhecimento prévio e a clareza das regras constituem aspectos essenciais para o cumprimento de seu objetivo, seja pelo potencial de direcionar o comportamento do segurado, seja por possibilitar cálculos mais precisos quanto ao risco coberto (STIGLITZ, Ruben S. Derecho de seguros. 2008). A longo prazo estes elementos podem reduzir o valor dos prêmios e expandir a utilização dos seguros, o que seria benefício não só aos contratantes quanto a toda sociedade.  Em âmbito funcional, a nova legislação externaliza dois vetores que a norteiam: a prevenção de danos e a maior proteção ao segurado. Em relação ao primeiro, observa-se que o segurado passa a ter um dever legal de comunicar o sinistro ao "tomar ciência (...) da iminência de seu acontecimento" (art. 66 do projeto de lei 2597/24), e não apenas a partir de seu acontecimento. Essa alteração reforça o dever de mitigar danos e agir de forma diligente. Para melhor compreensão, vale comparar o teor da redação vigente do CC:Os objetivos desta cientificação prévia ao dano, pontuados nos incisos do art. 66, não deixam dúvida que a alteração visa uma função preventiva, que, em rigor, não é nova. Encontra-se na doutrina francesa, já em 1936, que "a prevenção é o primeiro princípio não somente da repressão penal, mas também da repressão civil" (MARTON, G. Les fondements de la responsabilité civile). A nova lei torna expresso este objetivo, referendando uma vez mais o locus da colaboração das partes e da função preventiva no direito de danos, na linha do que é proposto também pelo anteprojeto de reforma do CC (cf. art. 187-A, §1º). O segundo vetor que parece ter guiado a nova legislação é a proteção ao segurado, por vezes de forma até mesmo paternalista. Para ilustrar, tome-se o parágrafo segundo do art. 9º o qual estabelece: "se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado". Essa determinação deve ser vista com cautela para que seja preservado o equilíbrio contratual, mormente considerando que o cálculo atuarial do prêmio é realizado tomando como elemento o valor da garantia de cada contrato, e não do modelo geral. Ainda na linha de maior proteção ao segurado, a nova legislação incorpora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em dois temas cujo regramento do CC se apresentava insuficiente, precisamente os efeitos da mora do segurado e a delimitação do que constitui agravamento do risco para fins de exclusão da cobertura securitária. Na literalidade do art. 763 do CC, "não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação". Assim, aquele que tivesse apenas uma ou algumas prestações vencidas quando da ocorrência do sinistro, perderia o direito à indenização. O STJ já havia sedimentado que "não basta o atraso no pagamento de parcela do prêmio para o desfazimento automático do contrato de seguro, sendo necessária a prévia constituição em mora, por interpelação específica" (STJ. AgRg no AREsp 543.101/SP, 13/2/20). Vale recordar o teor do enunciado da súmula 616 do STJ: "A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do contrato de seguro". A lei dos contratos de seguro incorpora a posição jurisprudencial, estatuindo que apenas a mora do segurado em relação ao adimplemento da primeira ou única prestação resolvem o contrato, ao passo que "a mora relativa às demais parcelas suspenderá a garantia contratual, sem prejuízo do crédito da seguradora ao prêmio, após notificação do segurado concedendo-lhe prazo não inferior a 15 dias, contado do recebimento, para a purgação da mora" (art. 20, §1º), de modo que o segurado apenas perderá o direito à indenização caso não seja purgada a mora no prazo concedido pela notificação.   Também quanto à definição do agravamento do risco para fins de exclusão da cobertura securitária a nova lei incorpora a jurisprudência do STJ. O art. 768 do CC estatui que o "segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato", em redação que claramente permite inferências diversas quanto a sua amplitude, notadamente se o agravamento abstrato do risco seria suficiente, ou se teria de estar diretamente relacionado ao sinistro concretamente ocorrido. Para a Corte de Vértice, a perda da garantia apenas é permitida quando o agravamento do risco constitui causa determinante para o sinistro, estando, portanto, a ele diretamente relacionado (STJ. REsp 1.466.237/SP, DJe de 18/12/2019). É nesta linha a disposição do art. 16 da nova lei, pelo qual "sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado". Como se percebe, a matéria vem mais bem detalhada na lei dos contratos de seguro: O agravamento voluntário do risco por parte do segurado permanece previsto como causa de perda da garantia (lei do contrato de seguros, art. 11, §1º), devendo ser imediatamente comunicado à seguradora para que opte entre a resolução ou o reajuste das prestações contratuais (art. 14). Caso não seja comunicada do agravamento, ocorrendo o sinistro, será da seguradora o ônus da prova do nexo causal entre o agravamento e o sinistro para justificar recusa ao pagamento da indenização (lei do contrato de seguros, art. 16). Vale ainda observar que a provocação dolosa de sinistro implica a extinção do contrato, sem direito ao capital segurado (lei do contrato de seguros, art. 69). Idêntica penalidade se aplica em caso de fraude cometida por ocasião da reclamação de sinistro (lei do contrato de seguros, art. 69, § 4º), temas que apresentam correspondência com o anteprojeto de reforma do CC, especificamente o disposto em seu art. 771-B.1 Há ainda outras interessantes alterações a serem analisadas, e tendo o presente texto o escopo apenas de apresentar as primeiras reflexões se limitará a destacar cinco outros temas. Em boa hora, o seguro de responsabilidade civil recebe especial atenção, passando a contar com regramento em capítulo próprio entre os seguros de dano. A positivação legal apenas materializa o que a doutrina há muito enuncia, notadamente que "a era da responsabilidade individual está encerrada. O direito moderno reclama uma completa revisão da responsabilidade civil, que deve evoluir para um contexto de seguros e seguridade social (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico, 2019). A facilitação do seguro de responsabilidade civil é de todo desejável: ganha o mercado, com a maior segurança dos profissionais no exercício de sua atividade, e também as vítimas, que passam a não depender da saúde financeira do causador do dano para obter a devida reparação pelos danos que venha a suportar. A prescrição passa a ter regramento mais extenso e detalhado. O art. 127 da lei do contrato de seguros define uma hipótese específica de interrupção da prescrição, a saber, quando a seguradora receber pedido de reconsideração da recusa de pagamento. A suspensão cessa quando o interessado recebe a comunicação da seguradora acerca de sua decisão. Em caso de mora da seguradora, a lei do contrato de seguros (art. 88) estabelece multa de 2% sobre o montante devido, corrigido monetariamente, sem prejuízo dos juros legais e da responsabilidade por perdas e danos, criando assim uma penalidade significativa.  No tocante à sub-rogação, é interessante notar que se impõe dever expresso do segurado "colaborar no exercício dos direitos derivados da sub-rogação, respondendo pelos prejuízos que causar à seguradora" (lei do contrato de seguros, art. 94, § 1º). A colaboração, como denota o art. 100, abrange informar de imediato a seguradora das comunicações recebidas que possam gerar reclamação futura; fornecer documentos; comparecer aos atos processuais para os quais for intimado, e abster-se de agir em sentindo contrário aos direitos e das pretensões da seguradora. Há inovação também em relação aos atos praticados por cônjuge, parentes e empregados, excluindo a possibilidade de ação própria da seguradora ou derivada de sub-rogação quando, nos termos da lei "decorrer de culpa não grave" (lei do contrato de seguros, art. 95). O resgate de gradação de culpa e distanciamento da responsabilidade por fato de terceiro de que trata o CC merece crítica2.       O novo texto legal apresenta uma exceção interessante a exclusão de medidas contra o causador nas hipóteses recém referidas. Na forma da lei do contrato de seguros, art. 95, parágrafo único. "Quando o culpado pelo sinistro for garantido por seguro de responsabilidade civil, é admitido o exercício do direito excluído pelo caput deste artigo contra a seguradora que o garantir", ainda que seja cônjuge, parente ou empregado. Em visão prospectiva, o material legislativo se encontra na iminência de sanção e aprovação. Caberá agora a doutrina desempenhar o seu papel de "explicitar, sistematizar, compreender e desenvolver o que está 'posto' pelas normas de direito" (MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de Direito Privado. 2014). ________ 1 BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do CC. 2024. Art. 771- B. "A provocação dolosa de sinistro gera a perda do direito à garantia, sem prejuízo do prêmio vencido e da obrigação de ressarcir as despesas feitas pela seguradora". Disponível aqui.  2 Em relação a controvérsia sobre a expressão, recorde-se o que estabelece a CIRCULAR SUSEP 541/2016, art. 3º, inc. VIII: "culpa grave: é aquela que, por suas características, se equipara ao dolo, sendo motivo para a perda de direitos por parte do Segurado. A culpa grave deverá ser definida pelo Judiciário ou por arbitragem".
Recente decisão da 11ª Vara do Trabalho de João Pessoa, vinculada ao TRT13, condenou uma Igreja ao pagamento de indenização no valor de R$200.000,00 pelo constrangimento ilegal e imposição a um pastor em realizar uma vasectomia. De acordo com uma testemunha do processo, "as ações de constrangimento passaram desde a entrega de um envelope com dinheiro para o pagamento da cirurgia até impedir o homem de contar sobre a vasectomia aos pais ou, até mesmo, de prosseguir com o casamento caso se recusasse a se submeter ao procedimento"1.  Conforme nota publicada na UOL, são mais de 65 processos envolvendo a Universal e ex-pastores que teriam sido coagidos a realizar vasectomia.2 É incontroverso que o direito ao planejamento familiar envolve a programação de ter filhos ou não filhos, quantos ter e quando os ter e eventual invasão nessa seara tão íntima é causa legítima e desencadeadora do dever de indenizar.3 A autonomia reprodutiva não pode ser vulnerada por um suposto vínculo empregatício e também por uma suposta proteção aos interesses da Igreja invadindo aspecto da vida dos pastores. Ademais, impor uma medida de não reprodução para alguém que é empregado de determinada igreja e segue a Bíblia seria contrapor o próprio texto sagrado que estabelece "sede férteis e multiplicai-vos!". O ponto em destaque da presente decisão é o suposto descompasso entre a jurisprudência trabalhista e civilista. O mesmo Judiciário possui decisão do TJPB que adota que a realização não consentida de uma laqueadura em hospital público geraria o dever de indenizar no valor de R$20.000,00.4 Ocorre que as decisões judiciais em relação aos danos extrapatrimoniais devem seguir o método bifásico, conforme reconhecido pelo STJ desde 2011, por ocasião do AgRg no Ag 1.331.805/RJ, de relatoria do min. Paulo de Tarso Sanseverino.  A primeira fase busca trazer precedentes judiciais análogos para firmar uma base indenizatória comum e a segunda fase se propõe a reconhecer as particularidades do caso concreto diante das agravantes e atenuantes para majorar ou minorar o quantum indenizatório.5 Ou seja, os processos submetidos à justiça comum e trabalhista seguem precedentes análogos em função da matéria, mas distintos em relação ao quantum, resultando em uma significativa diferença de valor. Se o Judiciário se propõe a ser uno e indivisível, caberia uma suposta falta de uniformidade tão gritante no padrão indenizatório? Essa suposta falta de parâmetro indenizatório comum acaba por gerar uma evasão da justiça comum e uma tentativa de enquadramento da relação de emprego ou trabalho visando justificar a competência da Justiça do Trabalho e aplicar uma série de julgados justrabalhistas com valores indenizatórios maiores. Nesse sentido, há uma busca de um suposto forum shopping e a multiplicação de conflitos judiciais por causa da escolha, pelo particular, do juízo mais conveniente e supostamente competente para apreciar a demanda. Como bem alertam Ivo Gico Júnior6 e Luciana Yeung7, a partir de um juízo de seletividade, o autor pode buscar, por estratégia processual, litigar no juízo trabalhista e não no juízo comum. Especificamente em relação aos casos dos ex-pastores, inúmeras são as decisões justrabalhistas que ratificam a relação de emprego e responsabilizam as igrejas por vasectomias compulsórias, além de também haver ações e pedidos formulados por cônjuges objetivando a reparação por danos em ricochete com fundamento também na violação ao direito reprodutivo. Porém, também são recorrentes as decisões judiciais que identificam a ausência de prova da imposição das esterilizações não consentidas. Essa suposta evasão da justiça comum acaba por agravar a quantidade de conflitos, conforme se observa em recente notícia veiculada pelo STJ, por ocasião do julgamento do conflito de competência 202513 PE, que decidiu suspender a reclamação trabalhista proposta pela mãe do menino Miguel sob o argumento de que o processo trabalhista e o processo civil envolvem fatos e causa de pedir comuns e sobrepostas. A decisão a título precário confirma que a morte do menino Miguel não teria fundamento propriamente na relação trabalhista, mas de uma relação tipicamente civil. Ocorre que, independente da competência originária, mostra-se racional, sob uma perspectiva individual, que o autor busque deslocar a demanda para esfera trabalhista, pois, como visto, o método bifásico trabalhista possui um quantum indenizatório referencial maior do que em comparação ao da justiça comum. Talvez por caracterizar um maior grau de reprovabilidade da conduta do empregador e também em razão da condição de vulnerável do trabalhador, o parâmetro indenizatório trabalhista seja diferenciado, porém enquanto não existir uma uniformidade decisória, haverá uma proliferação de demandas e um excessivo questionamento sobre o quantum indenizatório, notadamente quando utilizarmos como standard o da Justiça do Trabalho. O ponto de partida da justiça especializada e comum seria o mesmo, porém a trajetória seria distinta. Nesse cenário, é incontroverso que a conduta isolada de desrespeito aos direitos reprodutivos e planejamento familiar é grave, porém é também legítimo debater se os agravantes e atenuantes analisados pela Justiça do Trabalho permitem uma espécie de distinguishing jurisprudencial, em virtude dos valores sociais distintos envolvidos na ratio decidendi civil tradicional. Enquanto não houver o discernimento de que a Justiça do Trabalho promove decisões especializadas e fundada em balizas decisórias diferenciadas da justiça comum, haverá diversas críticas sem a necessária compreensão da história, função e valores envolvidos no processo decisório. Paralelamente, também haverá uma série de ações tipicamente civis que buscarão considerar os parâmetros justrabalhistas para condenações, o que, de igual forma, não se mostra razoável. Os desafios principiológicos são evidentes, pois a mercantilização em prol da escolha de foro traduz a densidade axiológica do acesso à justiça, devido processo legal e boa fé processual em que se veda o abuso de direito. Existe espaço para o fórum shopping visando majorar indenizações em decorrência de violações aos direitos reprodutivos e planejamento familiar? Ficam as reflexões. ________ 1 Disponível aqui. 2 COSTA, Raniere. UOL. Ex-pastores acusam Universal de obrigá-los a fazer vasectomia: 'Ameaças'. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024. 3 SANTOS, Andressa Regina Bissolotti dos. "Filiação afetiva planejada": livre planejamento familiar e filiação à luz da inseminação artificial caseira. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 32, 1, p. 91-114, jan./ mar. 2023. 4 GUEDES, Lenilson. Erro médico: Estado deve indenizar mulher em danos morais. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024. 5 Nesse sentido sugerimos a leitura de FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024; FACCHINI NETO, Eugênio. Origens e evolução do método bifásico na quantificação dos danos morais. Disponpivel aqui. Acesso em 28 set. 2024 e MARANHÃO, Clayton; NOGAROLI, Rafaella. O método bifásico como critério de quantificação dos danos morais e estéticos decorrentes da atividade médica na jurisprudência do TJ/PR. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024 6 GICO JÚNIOR, Ivo T. Análise Econômica do Processo Civil. Indaiatuba: Editora Foco, 2020. 7 YEUNG, Luciana. Jurimetria ou Análise Quantitativa de Decisões Judiciais. In: MACHADO, Maíra Rocha (org.). Pesquisar empiricamente o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. p. 249-274