COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Responsabilidade Civil >
  4. Oversharenting e responsabilidade civil dos pais na era das redes sociais

Oversharenting e responsabilidade civil dos pais na era das redes sociais

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado em 13 de outubro de 2025 10:41

O famoso e recente vídeo do youtuber Felca sobre "adultização precoce" gerou imenso impacto em diversos setores da sociedade. Sem coincidência, no dia 17/9/25 foi sancionado o assim chamado "ECA digital", que cria regras para combater a adultização de crianças no mundo virtual - quer se trate de redes sociais, sites, programas, aplicativos, jogos eletrônicos, etc. Contudo, já há algum tempo essa preocupante questão ocupa áreas limítrofes entre o direito familista e a responsabilidade civil.

De acordo com dados de 2024 da ITU - União Internacional de Telecomunicações, compilados pela ONU, as crianças brasileiras de até 14 anos estão entre as pessoas que mais utilizam a internet no país, alcançando nível de acesso próximo a 95%1. No que tange à participação ativa dessas crianças, por meio de perfis, a TIC Kids Online Brasil divulgou dados alarmantes: 88% da população brasileira entre 9 a 17 anos possui perfis em plataformas digitais.2

A palavra sharenting nasce na língua inglesa como junção dos termos share (compartilhar) e parenting (parentalidade), referindo-se à prática dos responsáveis legais de expor, de forma excessiva, informações sobre crianças e adolescentes nas redes sociais (Medon, 2021)3. Já o fenômeno do oversharenting se refere a abusos parentais nos planos quantitativo e qualitativo4, ou seja: compartilhamento de dados pessoais, vexatórios ou abusivos disseminados na rede de forma irrazoável e irresponsável - e quase sempre com fins lucrativos.5

A difusão de dados de crianças e adolescentes gera diversos riscos sociais, incluindo ameaças à integridade física, psíquica e moral por contatos maliciosos de terceiros; a hiperexposição de dados pessoais e discriminação; a modulação e manipulação de comportamento; e a microssegmentação da prática abusiva e ilegal da publicidade infantil6. Também há o risco de roubo de identidade e captura da narrativa da história da vida, vez que a construção da identidade pessoal está intimamente ligada à construção da identidade virtual, que é modulada por terceiros.7

Dados recentes evidenciam a gravidade do problema: na América Latina e Caribe, cerca de 18% dos menores sofreram abuso com imagens online e 12% receberam solicitações sexuais pela internet em 2024 (Relatório de Desenvolvimento Humano, 2025). No Brasil, a SaferNet registrou 71.867 denúncias de exploração infanto-juvenil em 2023, um aumento de 70%.8

Portanto, o sharenting configura um fenômeno de risco multifacetado, que compromete não apenas a privacidade das crianças, mas também sua integridade física, psíquica e moral9. A propagação irresponsável de dados na internet possibilita manipulação de comportamento, potencializa os riscos de exploração criminosa e ameaça a construção da identidade infantil. Imperativo que sejam assegurados às pessoas em desenvolvimento os adequados instrumentos de prevenção e reparação da esfera civil. 

À luz desses pressupostos, verifica-se que compartilhar ou permitir o compartilhamento de conteúdo de caráter degradante ou impróprio, relativo a menores, fere direito fundamental das crianças e adolescentes, notadamente a imagem, a honra, e a vida privada (art. 5º incisos V e X da CF/88). Essa conduta viola o disposto nos arts. 17 e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que impõem um dever geral de preservar a imagem e a identidade dos infantes, bem como protegê-los de qualquer ação de caráter vexatório ou constrangedor10

Realizada pelos genitores, a exposição excessiva viola o dever parental de dirigir a educação dos filhos (art. 1634 do CC/02), configurando autêntico abuso de direito (art. 187 do CCB). Malfere, ainda, a LGPD, que em seu art. 14 exige que o tratamento de dados dos infantes seja realizado sempre de acordo com o seu melhor interesse e sob obrigatório consentimento e diligência dos responsáveis legais.11

No plano jurisprudencial, relevante foi o julgamento do REsp 1.783.269/MG, pelo STJ12. Nele foi reconhecida a responsabilidade civil do provedor de internet que, após notificado, nega-se a excluir publicação ofensiva envolvendo menor de idade, sendo-lhe imposto o pagamento de indenização pelos danos morais causados à vítima.13

Já no REsp 1.887.697/RJ, o STJ afastou qualquer dúvida sobre a aplicação das regras da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares, diante da amplitude conferida pelos arts. 186 e 927 do CC de 200214. Assim, a responsabilidade civil decorrente do sharenting insere-se no âmbito da responsabilidade extracontratual (aquiliana), podendo a pretensão indenizatória ser exigida dentro do prazo prescricional de três anos (art. 206, §3º, V, do CC/0215), a ser contado a partir da maioridade.

Ainda no campo pretoriano, o TJ/MG reconheceu a responsabilidade civil do genitor que, por meio de publicações em redes sociais, expôs aspectos pessoais da vida de seu filho menor, inclusive desabafos sobre a paternidade e conflitos familiares. A Corte entendeu que essa conduta, enquadrada no fenômeno do sharenting, configurava ato ilícito por violar direitos da personalidade da criança, gerando sofrimento e angústia, sendo, portanto, passível de reparação por danos morais16.

Todavia, importa frisar que nem todo compartilhamento é nocivo e que o ato de publicar conteúdo relacionado a menores de idade não acarreta automaticamente uma violação do dever parental de proteção. Em caso no qual houve a divulgação, pela própria genitora, da imagem de uma criança com autismo - acompanhada de relatos sobre os cuidados demandados em razão da condição neurotípica -, o TJ/SP afastou a obrigação de indenizar, prestigiando a liberdade de expressão parental de compartilhar dados sobre os próprios filhos de forma razoável e justificada.17

Em síntese, necessária é a implementação, no contexto parento-filial, das funções preventiva18 e repressiva da responsabilidade civil, direcionadas ao combate às condutas lesivas ao melhor interesse criança ou a adolescente, seja em razão do volume ou da qualidade do conteúdo exteriorizado. No atual cenário de onipresença das redes sociais, a adequada formação psicossocial dos menores exige a tutela responsável de sua imagem e a mitigação das consequências sociais e psicológicas do sharenting - incluindo-se a reparação integral do dano causado por exageradas exposições midiáticas perpetradas por genitores gananciosos.

_______

1 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Human Development Report 2025: A matter of choice: People and possibilities in the age of AI [Relatório de Desenvolvimento Humano 2025: Uma questão de escolha: Pessoas e possibilidades na era da IA]. Nova Iorque: UNDP, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2025. No que tange à participação ativa dessas crianças, por meio de perfis, a TIC Kids Online Brasil, divulgou dados alarmantes que estimam que 88% da população brasileira entre 9 a 17 anos possuí perfis em plataformas digitais (ONLINE, Tic Kids. Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC Kids Online Brasil 2024 [livro eletrônico] / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. - São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2025).

2 ONLINE, Tic Kids. Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC Kids Online Brasil 2024 [livro eletrônico] / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. - São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2025. A partir da análise dos dados da TIC Kids, a maior parte dos usuários se concentram na rede social Instagram, seguido pelo Youtube e o TikTok. O acesso majoritário a essas redes pode sofrer alteração de acordo com o recorte da faixa etária, porém, é notável o crescimento do acesso às redes sociais na primeira infância, visto que, entre os anos de 2023 a 2025, houve um aumento de 13% no percentual da quantidade de crianças que acessam as redes sociais até os seis anos de idade.

3 MEDON, Felipe. (Over)sharenting: a superexposição da imagem e dos dados de crianças e adolescentes na internet e os instrumentos de tutela preventiva e repressiva. Disponível aqui. Acesso em: 22 out. 2025.

4 Assim, por mais que a prática ganhe percepção nos casos midiatizados, a superexposição também ocorre de forma silenciosa, pela violação da imagem subjetiva em virtude de compartilhamento não habitual ou pouco visualizado (TEPEDINO, Gustavo; MEDON, Felipe. A superexposição de crianças por seus pais na internet e o direito ao esquecimento. Indiatuba, SP: Editora Foco, 2021. Proteção de dados: temas controvertidos. Ebook).

5 "Em suma, o que realmente alarma são os pais que se utilizam da imagem dos filhos para angariar retorno financeiro, como é o caso de muitas famílias que vivem a vida a partir da renda advinda de canais do YouTube, como mencionado. A partir da discussão sobre o sharenting em casos como esses, surge a necessidade de avaliarmos quais direitos da criança estão sendo violados pelos pais, nessa má gestão de seu poder familiar, e em que ponto estão sendo atingidos seus direitos de personalidade" (SOARES, Marcelo Negri; PRAZAK, Maurício Ávila; TOKUMI, Carine Alfama Lima. A Possível Violação de Direitos de Personalidade de Crianças e Adolescentes pelos Pais e Consequências Jurídicas Ocasionadas pelo Fenômeno Conhecido como Sharenting. In: Revista Direito Comercial nº 54 - Ago/Set de 2023.

6 HARTUNG, Pedro; HENRIQUES, Isabella; PITA, Marina. A proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; SARLET, Ingo Wolfgang; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; BIONI, Bruno (coords). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

7 TEPEDINO; MEDON. Op. Cit.

8 OLIVEIRA, Marcelo. Safernet recebe recorde histórico de novas denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil na internet. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2025.

9 O Manifesto em Defesa da Melhoria da Governança de Dados de Crianças e Adolescentes, da UNICEF, exigiu o aperfeiçoamento da regulamentação para imposição de sanções e deveres acerca do compartilhamento de dados infantis. DAY, Emma; BYRNE, Jasmina; RAFTREE, Linda; UNICEF. The case for better governance of children's data: a manifesto. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 31 ago. 2025.

10 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 13563, 16 jul. 1990.

11 BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 ago. 2018.

12 REsp n. 1.783.269/MG, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 18/2/2022.

13 A decisão, ao ponderar entre a liberdade de expressão do emissor da publicação e os direitos da personalidade da criança, conferiu primazia ao interesse do infante, destacando que a solução de demandas dessa natureza deve observar os princípios basilares do Direito da Criança e do Adolescente, notadamente a proteção integral, o melhor interesse e a prioridade absoluta, consagrados no art. 227, caput, da Constituição Federal. Nesta linha de raciocínio, se ao provedor de internet se imputa responsabilidade civil pela manutenção do conteúdo, com ainda maior razão deve ser responsabilizado aquele que promoveu a divulgação ilícita da informação, inclusive o próprio genitor.

14 REsp n. 1.887.697/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 23/9/2021.

15 BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 11 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 24 de out. 2025

16 TJ/MG - Proc. nº 5008307-59.2021.8.13.0105, 3ª Vara Cível de Governador Valadares/MG, 23/04/2025.

17 TJSP; Apelação Cível 1015089-03.2019.8.26.0577; Relator (a): Vito Guglielmi; Órgão Julgador: 6a Câmara de Direito Privado; Foro de São José dos Campos - 6a Vara Cível; Data do Julgamento: 13/07/2020; Data de Registro: 13/07/2020.

18 Ocorre que como a pessoa humana não se realiza não mediante um único esquema de atuação subjetiva, mas por uma complexidade de situações qualificáveis caso a caso, sua tutela não pode se esgotar no "tradicional perfil do ressarcimento do dano. Assume consistência a oportunidade de uma tutela preventiva: o ordenamento deve fazer de tudo para que o dano não se verifique e seja possível a realização efetiva das situações existenciais". PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 766-768.