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Dívidas contraídas em cassinos estrangeiros: A ordem pública como conceito dinâmico

terça-feira, 29 de julho de 2025

Atualizado em 28 de julho de 2025 14:08

A CPI das bets, instaurada pelo Senado Federal, evidenciou um dado que já era de conhecimento geral: há muito dinheiro envolvido nesse mercado. Segundo dados do Banco Central, as casas de apostas movimentam até R$ 30 bilhões por mês - um volume superior ao de muitos setores consolidados da indústria e dos serviços. A título de comparação, as loterias da Caixa movimentaram "apenas" R$ 25 bilhões no ano de 2024.1

Apesar dos alertas emitidos por entidades de saúde em relação à ludopatia (vício em jogos) e por órgãos de defesa do consumidor quanto ao superendividamento e comprometimento da renda familiar - muitas vezes alimentado pela ilusão de mudança de vida através das apostas -, pouco tem sido feito no campo legislativo e na formulação de políticas públicas eficazes. A situação é ainda mais grave quando se observa a vulnerabilidade das classes "C", "D" e "E", fortemente impactadas por esse fenômeno.

Nesse cenário, evidencia-se uma contradição notável: ao mesmo tempo em que os cassinos são proibidos em território nacional, as apostas eletrônicas estão liberadas e amplamente exploradas. Tal paradoxo é agravado pelo fato de que o Poder Judiciário brasileiro vem sendo acionado por devedores - geralmente pertencentes às classes "A" e "B" - que contraíram dívidas em cassinos estrangeiros e passam a ser demandados judicialmente no Brasil. O Brasil das múltiplas realidades e desigualdades se reflete também nessa dicotomia: cassinos podem operar livremente no exterior e buscar o recebimento de seus créditos aqui, onde a atividade é formalmente proibida. Já as apostas e loterias supervisionadas pelo Estado operam em ambos os ambientes, físico e digital.

Desde 2017, o STJ, por meio do REsp 1.628.974/SP, sob relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, já havia se posicionado a favor da exigibilidade de dívidas oriundas de cassinos estrangeiros, com base no art. 9º da LINDB, segundo o qual a qualificação e regência das obrigações devem observar a lei do local em que se constituíram. Assim, se a dívida foi validamente constituída no exterior, pode ser exigida no Brasil, desde que respeitadas as normas processuais e materiais brasileiras.

O caso envolvia um brasileiro que havia emitido cheques no valor de US$ 1 milhão em um cassino em Las Vegas, Nevada. O relator argumentou que tal dívida não divergia, em essência, de outras formas de exploração estatal do jogo, como raspadinhas, bingos e loterias. Em que pese o passado de reprovabilidade social do jogo, já se vislumbrava em 2017 um contexto de maior tolerância e até mesmo de incentivo institucional à atividade. Essa visão foi acompanhada pelos ministros Marco Aurélio Bellizze e Paulo de Tarso Sanseverino.

Contudo, os ministros Nancy Andrighi e Moura Ribeiro divergiram, apontando que a cobrança judicial no Brasil de dívidas oriundas de jogos de azar configuraria ofensa à ordem pública. Para eles, embora não houvesse impedimento para a cobrança no país de origem, tal pretensão não deveria prosperar no território nacional. Essa corrente, contudo, foi vencida.

Mais recentemente, no julgamento do REsp 1.891.844/SP, em 13/5/25, a 4ª turma do STJ reafirmou o entendimento anterior: dívidas decorrentes de jogos de azar contraídas no exterior são exigíveis no Brasil, desde que sejam válidas segundo a legislação estrangeira. O caso era semelhante ao de 2017, envolvendo o mesmo cassino e o mesmo montante.

O julgamento de 2025 possui, entretanto, maior densidade histórico-social. Em 2017, a aceitação social das apostas já era perceptível, mas agora ela se consolidou de maneira quase irreversível. Se antes se discutia uma possível ofensa à ordem pública, esse argumento hoje se mostra superado pela normalização social das apostas.

Segundo levantamento do portal Globo Esporte, todos os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro são patrocinados por casas de apostas, sendo que 90% possuem uma delas como patrocinadora máster.2 Além disso, mais de 15% da população brasileira com mais de 16 anos realizou pelo menos uma aposta em 2024. Para se ter uma ideia da penetração desse mercado, há hoje mais brasileiros apostando do que investindo em produtos financeiros como CDBs, fundos de investimento ou ações na Bolsa de Valores.3

A ordem pública, outrora apontada como barreira à cobrança de dívidas de jogo, já não exprime reprovação social suficiente para sustentar tal tese. Apostar passou a ser encarado como comportamento ordinário, sendo o não apostador, por vezes, percebido como exceção. A contemporaneidade não apenas tolera, como estimula as apostas - e o faz com respaldo midiático, institucional e mercadológico.

Se, como ensina a doutrina, a ordem pública é um conceito mutável, moldado pela moral e pela ordem jurídica vigente em determinado momento histórico, então não é possível sustentar que a cobrança de dívidas de jogo represente hoje uma afronta a esse conceito jurídico indeterminado. O julgado de 2017 apresentou divergência e a votação foi 3x2. Já a votação do processo de 2025, julgado caso análogo, foi unânime. A sociedade brasileira "evoluiu" para aceitar - ou ao menos naturalizar - as apostas, ainda que isso represente, paradoxalmente, uma regressão em termos de saúde pública, equilíbrio financeiro e bem-estar social.

Nesse contexto, a invocação da ordem pública para impedir a cobrança de dívidas contraídas em cassinos estrangeiros se mostra anacrônica. A discussão relevante hoje não é mais apenas jurídica, mas política e social: é necessário debater, com urgência, a criação de políticas públicas que enfrentem os efeitos deletérios das apostas, locais ou estrangeiras, na vida dos brasileiros.

Talvez, num futuro próximo, os impactos psíquicos, financeiros e sociais causados por esse sistema de apostas, especialmente entre os mais vulneráveis, passem a ser reconhecidos como elementos que verdadeiramente atentam contra a ordem pública. Mas, para tanto, será preciso deixar de lado a hipocrisia institucional e encarar, com seriedade, os prejuízos reais causados por uma atividade que, embora legalizada, permanece largamente desregulada.

Enquanto isso não ocorre, e em nome da coerência normativa e da previsibilidade jurídica, é necessário reconhecer a exigibilidade de dívidas contraídas de forma válida no exterior, sem recorrer a conceitos que já não guardam aderência com a realidade social. Apesar de desigual em múltiplos aspectos, as consequências jurídico-sociais dos jogos de azar atingem a todos.

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1 MÁXIMO, Weltton. Apostadores destinam até R$ 30 bi por mês a bets, informa BC. Disponível aqui.

2 LOIS, Rodrigo. Todos os clubes do Brasileirão 2025 são patrocinados por bets. Disponívvel aqui.

3 GARCIA, Alexandre Novais. Brasil tem mais apostadores do que investidores em CDBs, Fundos e Bolsa. Disponível aqui.