A opinião social como determinante para o posicionamento judicial e a eventual responsabilização civil
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado em 20 de agosto de 2025 14:35
Nos últimos dias, o debate público voltou-se intensamente para temas como "adultização", sharenting1 e exploração da imagem de crianças e adolescentes em redes sociais. O gatilho para essa discussão foi o vídeo investigativo produzido pelo influenciador Felca, com quase cinquenta minutos de conteúdo que se aproxima de uma verdadeira reportagem. O material revelou práticas ilícitas que, até então, passavam despercebidas - ou eram ignoradas - pela mídia tradicional, pelas autoridades competentes e até mesmo pela sociedade.
Apesar de contar com mais de 20 milhões de seguidores, o influenciador em questão não era figura amplamente conhecida do grande público, em razão das bolhas algorítmicas que segmentam a audiência digital. No entanto, para agências de marketing, anunciantes e seguidores fiéis, tratava-se de um verdadeiro fenômeno, classificado como o sexto maior influenciador do Brasil, atrás apenas de nomes gigantescos como Anitta, o ex-casal Zé Felipe e Virgínia, Vinicius Jr. e Neymar.2
O problema central que emerge desse caso é a normalização do inaceitável: a exploração da imagem de crianças e adolescentes, seja para satisfazer a lascívia de terceiros, seja para fins econômicos, o que constitui conduta criminosa.3-4 O contraste entre a reverência institucional e a posterior derrocada pública do influenciador é emblemático. Em 2024, por exemplo, ele foi homenageado pela Assembleia Legislativa da Paraíba como "inspiração para os jovens do estado", em razão de sua trajetória de "superação e ações sociais"5 . Hoje, essa mesma figura é alvo de forte reprovação social e jurídica.
O vídeo de Felca retirou a coletividade da caverna platônica. Passou-se a enxergar, de forma incontornável, a gravidade das práticas imputadas ao influenciador. Advogados, magistrados, promotores e juristas, que até então interpretavam as condutas sob a ótica da licitude, passaram a reconhecer as potenciais ilicitudes e a gravidade da exploração digital infantojuvenil.
Vale observar que denúncias semelhantes já haviam sido levantadas. A influenciadora Antônia Fontenelle, ainda que marcada por erros passados - como no episódio envolvendo a atriz Klara Castanho, em que foi condenada civil e criminalmente -, havia denunciado publicamente práticas atribuídas ao influenciador Hytalo Santos. Todavia, sua manifestação, restrita a um público mais alinhado a um espectro ideológico específico, foi silenciada pela própria opinião pública e até mesmo pelo Judiciário, resultando em ações de indenização e criminais contra ela.
Em processo em trâmite perante o 1º Juizado Especial Cível de João Pessoa, em sede de tutela provisória, foi determinada a suspensão temporária de um vídeo de Fontenelle, sob o fundamento de potencial violação à honra e à imagem do autor, nos termos do artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal.
De acordo com a inicial, o influencer "soma, em suas redes sociais, mais de 40 milhões (quarenta milhões) de seguidores, o que evidencia a solidez de sua carreira e a extensa rede de fãs que o acompanham diariamente" e estaria sendo caluniado, injuriado e difamado pela Sra. Antonia Fontenelle. O simples fato de ter milhões de seguidores não pode servir como escudo para a prática de ilícitos. Ter seguidores, por vezes, é um mero indicativo de conseguir capturar a audiência, jamais um sinônimo de boa índole.
Eis um breve trecho da inicial com as acusações realizadas por Fontenelle:
Isso é uma influência. Isso que eu vou acabar de ler pra vocês. Muitas coisas vão acontecer. Olha, eu tô recebendo uns vídeos bizarros de um tal de Hytalo, não sei das quantas. Esqueci o sobrenome dele porque me deu até dor de cabeça.
Eu tava de manhã trabalhando, correndo pra cima e pra baixo e vi umas coisas de uma cara que tem 16 milhões de seguidores, que ele fica cercado de crianças, de adolescentes. É uma adolescente atrás da outra engravidando.
Esse cara distribui presente, distribui prêmio e o canal dele é toda a vida inteira sexualizando crianças.
Eu já mandei mensagem para a Damares, eu vou arrumar um tempo essa semana, e se Deus quiser, ela vai arrumar a agenda dela também entendeu? Para que a gente se reúna para falar a respeito do canal desse Hytalo.
Não é possível que o Ministério Público vá fechar os olhos para um negócio desse. Sabe? Isso é um absurdo. Isso é um absurdo.
E detalhe, eu fico para morrer.
Algum deputado, sabe? Alguém tem que despertar e esse projeto tem quer ser aprovado e tem que vigorar para ontem.
Pais, chocadeiras que botaram filhos no mundo e que não cuidam e que deixam nas mãos desse tipo de meliante, tem que ser preso. Porque a culpa não é só desse infeliz, irresponsável, não,. A culpa são dos pais que vendem seus filhos por nada.
Eu vi quase nada do canal desse infeliz, eu fiquei... Eu fiquei esbabacada, eu falei, não é possível, não é possível. Ele tem milhões de seguidores e fica um monte de gente comentando, filhinho pra cá, filhinho pra lá, sensualizando, meninas de 14 anos dançando igual puuuuuuuta de quinta categoria. Entendeu? E os pais fechando os olhos pra isso. Uma barbárie. Uma barbárie.
Então, esse estudo vai ter que ser grande, porque tem muita criança lá e esses pais vão ter que serem responsabilizados. É para ontem. Então, não é uma coisa pra eu vir aqui e só reclamar, não.
Isso aí a gente vai denunciar no Ministério Público, a gente vai pedir, entendeu? Que algo seja feito. Daqui a pouco o inferno vai se levantar contra mim, que são esses próprios pais, que são os fãs desses acéfalos.
É uma cagada. O que está acontecendo com esse país, gente? Pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus. Chegamos num lugar onde a gente não tem mais pra onde ir.
Chegamos no fundo do poço.
Sem uma única análise sobre os fatos imputados, o Douto Juízo do 1º Juizado Especial Cível de João Pessoa decidiu que:
No caso dos autos, verifica-se que a parte promovida Antonia Fontenele de Brito possui canais e/ou inscrições em plataformas digitais, que atingem milhões de usuários. Por este fato e tendo em vista a possível violação ao direito de liberdade de expressão, ocasião em que será analisado quando da prolação da sentença, faz-se mister não a exclusão, mas tão somente a suspensão temporária da referida publicação, de modo que os usuários não tenham acesso ao referido vídeo. (Processo 0868861-85.2024.8.15.2001 - Decisão assinada em 05.12.2024)
Para a sorte da Sra. Antonia Fontenelle, ainda não há sentença nos autos e é muito provável que ela seja de improcedência. De igual forma, o influencer havia processado outra pessoa que supostamente também teria violado os direitos da personalidade e excedido a liberdade de expressão. De acordo com a tutela antecipada proferida nos autos:
Segundo narra o autor, a primeira requerida, após o término do relacionamento que mantinham, passou a veicular nas redes sociais - especialmente Facebook, Instagram e TikTok - vídeos e publicações com conteúdo ofensivo e calunioso, acusando-o de ser "P-didy" - expressão que, no contexto apresentado, tem conotação depreciativa e está associada à suposta prática de prostituição de adolescentes, sem qualquer base fática ou indício probatório. As postagens foram feitas nos perfis pessoais da ré, com marcação direta ao perfil do autor, gerando ampla visualização e repercussão negativa. Alega-se que os conteúdos expõem o autor a situações vexatórias, com abalo à imagem, honra e reputação pessoal e profissional.
E continua a referida decisão:
No caso concreto, a documentação acostada à inicial revela, em juízo de cognição sumária, a presença de publicações em redes sociais com conteúdo que, ao menos em tese, imputam ao autor condutas criminosas e moralmente reprováveis, sem prova mínima de sua veracidade, o que configura ofensa potencial à honra, à imagem e à dignidade pessoal, valores constitucionalmente protegidos (CF, art. 5º, incisos V e X).
A manutenção de tais conteúdos nas plataformas digitais, sobretudo quando de acesso público e de ampla visualização, acarreta exposição indevida e prejuízos de difícil reparação, tornando presente o requisito do periculum in mora. (Processo 0830424-38.2025.8.15.2001)
Ocorre que, com a publicação do vídeo de Felca, em 6 de agosto de 2025, houve uma mudança abrupta de posicionamento. A tutela concedida em 08.08.2025 foi revogada em 09.08.2025 sem qualquer fato novo que justificasse juridicamente a alteração. O ilícito já estava presente desde o início, mas a guinada interpretativa decorreu, essencialmente, da pressão social e da ampla repercussão midiática.
Esse cenário expõe uma reflexão incômoda: até que ponto a opinião social condiciona o Judiciário? A revogação de tutelas provisórias sem provocação da parte é rara. O direito não mudou, tampouco os fatos ou as imputações. O que mudou foi a percepção coletiva sobre a gravidade da conduta, tornando insustentável a proteção judicial antes conferida ao influenciador.
É preciso reconhecer que a popularidade digital e o sucesso comercial não constituem salvo-conduto para a prática de ilícitos. O que se apresenta como fortaleza construída sobre números de seguidores pode, em verdade, ser apenas um castelo de areia.
Em última análise, talvez não seja necessário criar novos direitos para enfrentar situações como esta, mas sim retomar uma análise jurídica técnica e menos influenciada por clamor ou prestígio social/virtual. A responsabilização civil deve ser pautada por critérios objetivos e normativos, e não por flutuações do ambiente digital.
Ainda assim, é inegável que, a partir da investigação de Felca, muitos processados por denúncias anteriores ganharam uma espécie de "redenção judicial". A opinião social mudou, e, com ela, também a postura do Judiciário. O episódio reforça a importância de refletir sobre a tênue linha entre a legítima proteção da honra e da imagem e a necessidade de expor, coibir e responsabilizar condutas ilícitas, especialmente quando envolvem a exploração de crianças e adolescentes.
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1 MEDON, Filipe. (Over) Shareting: a superexposição da imagem e dos dados pessoais de crianças e adolescentes a partir de casos concretos. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 31, n. 02, p. 265-265, 2022.
2 Disponível aqui.
3 Sobre o tema, sugerimos a leitura de outro texto publicado na coluna de autoria de Caio César do Nascimento Barbosa, Glayder Daywerth Pereira Guimarães e Michael César Silva: Superexposição de crianças e adolescentes e a hipersexualização de influenciadores mirins nas plataformas digitais. Disponível aqui.
4 Sobre o tema de responsabilidade civil dos influenciadores, sugerimos a leitura de texto publicado na coluna.
5 Disponível aqui.