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Massacre de Columbine e o nexo de causalidade por morte ocorrida 26 anos depois

terça-feira, 8 de abril de 2025

Atualizado em 7 de abril de 2025 13:47

Columbine (Colorado, EUA) 20 de abril de 1999, estudantes do ensino médio chegam à Columbine High School para mais um dia de aula. Perto do horário do almoço, às 11h19 Eric Harris e Dylan Klebold, alunos do local, iniciam ataque previamente planejado utilizando explosivos e armas de alto calibre. O massacre resultou na morte imediata de 12 (doze) alunos e 1 (um professor) e 24 (vinte e quatro) pessoas feridas.

Entre os feridos, estava Anne Marie Hochhalter (17 anos), atingida por dois tiros (no peito e nas costas) que resultaram em paralisia da cintura para baixo. Anne morreu de sepse aos 43 (quarenta e três) anos, em 16 de fevereiro de 2025 e sua morte foi classificada pela médica legista Dawn B. Holmes como homicídio resultante daquele ataque. No relatório de 13 (treze) páginas, a médica indicou como causa da morte complicações decorrentes dos ferimentos à bala. A sepse teria sido resultado de efeitos persistentes dos ferimentos resultantes do massacre, incluindo uma úlcera de pressão que pode ter sido a causa da infecção.

A notícia de que a morte de Anne Marie foi classificada como homicídio, sendo ela incluída na lista de vítimas de Columbine, não causou espanto apenas aos familiares que afirmam que ela sempre se apresentou como uma sobrevivente. Embora o caso tenha origem em um sistema jurídico que se diferencia em vários aspectos da regulamentação brasileira da responsabilidade civil, de fato, a classificação da morte como tal, leva a questionamentos mais profundos sobre a possibilidade de nexo de causalidade, como pressuposto da responsabilidade civil, ser tão longo a justificar eventual indenização pela morte. E é com o olhar da doutrina brasileira que se procederá a presente análise.

"Nexo de causalidade é o pressuposto virtual da responsabilidade civil. É a relação de causa e consequência que se estabelece entre dois fatos que se sucedem no tempo: a conduta culposa ou a atividade de risco e o dano"1. É a causalidade, portanto, que determinará a medida da responsabilidade.

Segundo Flaviana Rampazzo Soares2, o nexo de causalidade é um "traço imaginário entre um acontecimento e um resultado, estabelecendo um liame entre uma conduta e o dano, ambos juridicamente qualificados. Trata-se de uma ligação entre uma ocorrência e um resultado, capaz de responder às perguntas que espontaneamente se anunciam quando se está diante de um prejuízo: Por que? Quem?".

A busca de respostas a tais perguntas exigiria certeza ou a medida da suficiência da causa para ser juridicamente qualificada, o que em casos como o antes noticiado pode ser um grande desafio, não só em razão do longo tempo transcorrido entre a causa inicial da lesão e a morte, mas também em virtude da própria causa clínica da morte. Se é possível afirmar que Anne sofria com as lesões decorrentes do massacre, talvez não seja possível categoricamente afirmar que morte é objetivamente decorrência daquele acontecimento.

Passados 26 anos do ataque, seria possível afirmar ser a morte de Anne um desdobramento previsível ou necessário de seus ferimentos ou trata-se de causa autônoma cujo resultado não pode ser imputado aos tiros que levaram Anne à cadeira de rodas? É possível reconhecer, sem dúvida, que as lesões provocadas pelos tiros têm origem em ato ilícito doloso que provocou séria deficiência na vítima. Mas será que a sepse, que eventualmente pode ter tido origem em uma úlcera de pressão (conforme laudo médico), pode ser associada àquele ato?

Segundo Aguiar Dias3, as funções do nexo de causalidade podem ser classificadas em interna e externa. Interna é a causalidade natural (material ou de fato), ou seja, refere-se à causa no plano natural conforme as regras gerais da natureza. Já a externa (jurídica) é o critério técnico (jurídico e normativo) que busca estabelecer o vínculo adequado entre a conduta e o dano, integrando o suporte fático que determinará (ou não) o dever de indenizar. "Trata-se de um mecanismo destinado à verificação, à apuração, à definição da extensão e ao balizamento das consequências dos danos, que repercutirão tanto no nexo de imputação quanto na determinação da indenização, quando e se for cabível"4.

Dessa forma, é possível afirmar que a causalidade jurídica (externa) sempre dependerá da seleção das consequências indenizáveis. O problema reside na ausência de critérios legais para fazê-lo. A jurisprudência brasileira não se apresenta uniforme na adoção e aplicabilidade das teorias do nexo causal e no estabelecimento de critérios objetivos de aferição, o que dificulta ainda mais a análise em situações complexas.

Poder-se-ia, então, buscar no critério trifásico um auxílio? Por tal modelo, no primeiro momento traça-se abstratamente o curso provável de um determinado acontecimento, buscando-se no padrão médio de conduta a evolução possível dos fatos ou eventos até se chegar ao potencial dano. Na segunda fase, realiza-se a recapitulação do evento concreto e os resultados deles decorrentes. Na terceira fase, faz-se a transposição entre os elementos das duas fases anteriores para verificar a existência de componentes causais comuns e dissonantes, para então se concluir pela verificação do nexo causal ou pelas excludentes de responsabilidade.

Aplicando o critério trifásico, possivelmente a conclusão seria pela inexistência do nexo de causalidade, não só porque o Código Civil, ainda que indiretamente para a responsabilidade extracontratual, tenha adotado como critério da causalidade próxima (danos diretos e imediatos), mas porque claramente o último evento apto a ser considerado determinante não pode ser diretamente associado aos tiros, mas a lesões posteriores decorrentes da vida em cadeira de rodas e que podem ter distintas origens e causas. Afirmar que as úlceras por pressão seriam causas diretas do ato ilícito originário (tiros) seria de um subjetivismo tal que estaria a levar em consideração apenas a condição de vítima do massacre e não propriamente os critérios objetivos necessários à definição do nexo causal.

O percurso estabelecido pelo critério trifásico parece de fácil aplicação, mas não é capaz de dar resposta a todos os desafios da causalidade como o contido no caso aqui apresentado, cuja solução depende não apenas da análise do evento em si, mas especialmente das causas objetivamente aferíveis e previsíveis que conduziram à sepse. Assim, embora se pudesse vislumbrar que a morte de Anne decorra das lesões causadas pelos tiros, a causalidade talvez não possa ser determinada de maneira irrefutável.

Poder-se-ia, então, aventar-se a possibilidade de flexibilização do nexo causal com emprego da teoria do critério probabilístico? Tal teoria afirma que a maior probabilidade estatística quanto a uma determinada causa deve ser considerada na definição do nexo. A dificuldade então, acabaria novamente centrada na própria origem da sepse, cuja definição muitas vezes carece de critérios e evidências médicas científicas objetivas5. Por isso, nessa situação, não se poderia considerar a prova exclusivamente estatística6 (quantitativa) como idônea a determinar o nexo.

Dessa forma, segundo Flaviana Rampazzo Soares, "deve-se estabelecer uma seleção de desdobramentos suficiente, eficiente, necessária e juridicamente qualificada quanto ao dano experimentado. Sendo identificadas consequências imediatas hipotéticas coincidentes com as fáticas (assim consideradas as consequências ordinárias segundo o padrão o observador experiente), então a formação do nexo causal é facilitada, e se forem consequências imediatadas (as quais não decorram de vínculos diretos entre causa e efeito), poderão formar nexo causal de forem previsíveis e provierem de uma conduta ilícita"7.

Nota-se, então, que as clássicas teorias8 do nexo de causalidade e soluções propostas pela doutrina e jurisprudência brasileira talvez não sejam suficientes a dar respostas para casos complexos como de Anne que envolvem transcurso tão longo entre a lesão originária (isso sem falar em outras necessárias discussões sobre prescrição), a morte e a ausência de critérios objetivos médicos para aferição da causa da sepse e sua evolução provável. A certeza em situações como a aqui narrada, não serve de critério para determinar a solução, pois inalcançável do ponto de vista médico. A interrogação aqui deixada, portanto, é suscetível de diferentes respostas que não podem ser informadas por subjetivismos embasados apenas 'na condição de vítima de um massacre', mas que devem levar em conta critérios objetivamente aferíveis sobre a causa da sepse e sua evolução para a morte.

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1 SANTOS, ROMUALDO BAPTISTA. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018. p. 152.

2 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 72.

3 DIAS, Aguiar. Da responsabilidade civil. 10a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 693.

4 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 78.

5 "O nexo causal é a 'esfinge' da responsabilidade civil. Aqueles que não podem responder seu enigma, se bem que não sofrerão um destino bem típico dos contos e histórias mitológicas - sendo mortos e totalmente devorados por esses monstros vorazes -, infelizmente serão excluídos da possibilidade de prosseguir na trajetória dessa matéria para aquilo que propõe a complexidade de nossos tempos" (FARIAS, Cristiano Chaves; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 457).

6 Vale lembrar que a probabilidade estatística não se refere a fatos individuais, mas sim à frequência com que determinada classe de fatos ocorre. "As estatísticas são úteis para demonstrar o risco, ou seja, a probabilidade que eventos semelhantes ao narrado ocorram no futuro. Mas não são suficientes, no entanto, para demonstrar o singular enunciado de feto ocorrido no passado" (CARPES, Artur Thompsen. Quando a estatística de 95% pode não ser suficiente para provar o nexo de causalidade. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, Revista dos Tribunais, v. 25/2020, out./dez. 2020, p. 111-127).

7 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 87.

8 "Teorias são citadas não pelo seu conteúdo intrínseco, mas apenas para conferir uma aparência de legitimidade às escolhas emocionais dos julgadores, normalmente destinadas a favorecer vítimas incapazes de demonstrar o nexo causal" (FARIAS, Cristiano Chaves; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 458).