COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Responsabilidade Civil >
  4. A multifuncionalidade da responsabilidade civil nas reformas sancionadas nos Códigos da França e Bélgica em 2025

A multifuncionalidade da responsabilidade civil nas reformas sancionadas nos Códigos da França e Bélgica em 2025

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Atualizado em 13 de agosto de 2025 08:45

Em uma onda de renovação legislativa, Bélgica e França refletem "l'esprit du temps", sistematizando a responsabilidade civil em vista ao estágio atual de suas sociedades e aquilo que se pretende para os próximos anos. Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme. A final, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. Os códigos oitocentistas são fotografias de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela abraça efeitos da violação de múltiplas e complexas situações patrimoniais, bem como de direitos fundamentais e direitos da personalidade, sem olvidar as consequências lesivas do emprego das tecnologias digitais emergentes, em todos os níveis.

Em ambas reformas, mantém-se a primazia da função compensatória de danos e o correlato princípio da reparação integral. Todavia, na sociedade contemporânea - plural e complexa - danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais, por vezes anônimos, catastróficos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela clássica função compensatória, considera-se a necessidade de compreensão da responsabilidade civil como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Assim, em uma análise bilateral, para além de uma contenção de danos, abre-se espaço para uma contenção de comportamentos antijurídicos, mediante a introdução não apenas da função preventiva, como naquilo que aqui nos interessa, das funções restitutória e punitiva, na Bélgica e França normatizadas na figura do "faute lucrative".

O novo livro 6 do CC belga entrou em vigor em 1º de janeiro de 2025. Substitui os arts. 1382 a 1386 do antigo Código Napoleônico, tendo como objetivo modernizar, clarificar e sistematizar a responsabilidade extracontratual. Em síntese, os seis artigos originais foram ampliados para 55 artigos, com o objetivo de regrar jurisprudência e doutrina prevalentes, incorporando os desenvolvimentos sociais. Ao reduzir a incerteza jurídica, esta codificação pretende conformar a liberdade dos privados à ampla proteção às vítimas.

Especificamente no ponto que nos interessa, imaginemos que um meio de comunicação publique fotos de uma pessoa sem o seu consentimento, violando assim o seu direito de imagem e, dependendo do conteúdo da publicação, a sua reputação e/ou privacidade. No caso de uma figura pública em particular, é provável que essa publicação gere lucros para o autor da violação, nomeadamente através de receitas publicitárias ou do aumento das vendas. No entanto, a reparação tradicional, consubstanciada no dano moral e/ou econômico sofrido pela vítima não raramente alcança montantes tímidos em comparação com o lucro obtido. Destarte, o legislador reconhece que em determinadas situações, o princípio da reparação integral dos danos, não possui efeito dissuasivo, permitindo ao ofensor especular sobre os lucros que obterá com a sua conduta.

Nesse contexto, assim se posicionou a reforma belga do CC:

Art. 6.31 - Objetivos e modalidades de reparação: § 1º. A reparação do dano patrimonial tem como objetivo colocar a pessoa lesada na situação em que ela estaria se o fato gerador da responsabilidade não tivesse ocorrido. A reparação do dano extrapatrimonial tem por finalidade conceder à pessoa lesada uma compensação justa e adequada por esse dano. § 2º. A reparação ocorre in natura ou sob a forma de indenização por perdas e danos. Estas modalidades de reparação podem ser aplicadas simultaneamente, se necessário, para assegurar a reparação integral do dano. § 3º. Quando o responsável tiver, intencionalmente e com o objetivo de obter lucro, violado um direito da personalidade da pessoa lesada ou atentado contra sua honra ou reputação, o juiz poderá conceder à pessoa lesada uma indenização complementar, correspondente à totalidade ou a parte do lucro líquido obtido pelo responsável.1

Conforme se dessume do § 3º do art. 6.31, a restituição do lucro ilícito é canalizada para o interno da responsabilidade civil. Optou-se pelo disgorgement como indenização complementar para hipóteses de violações a situações existenciais. Vale dizer, a remoção de ganhos indevidos é facultada especificamente em condenações por danos extrapatrimoniais, surgindo em hipóteses especiais de intencionalidade de aferição de benefícios econômicos (não pela intenção de causar um dano) na lesão a direitos da personalidade. A regra interage com várias normativas sobre a proteção da propriedade imaterial e, designadamente, com a diretiva 2016/43 da União Europeia2, que prevê remédios restitutórios em alternativa a indenização pelo dano patrimonial, no âmbito da tutela do segredo comercial, reforçando o private enforcement.

Em um mundo ideal, aplica-se o adagio "tort must not pay". Infelizmente, o ilícito não só se paga, como remunera muito bem. Como resposta ao fenômeno da antijuridicidade lucrativa a nova regra é elogiável sob o prisma da segurança jurídica, pois depura o dano extrapatrimonial, preservando unicamente a sua essência compensatória, lastreada na necessidade de reconduzir a vítima a situação semelhante à inocorrência da lesão. Assim, eventual necessidade de sancionar o comportamento antijurídico do ofensor - direcionado ao lucro indevido - será objeto de um tópico complementar da sentença, com motivação própria, capaz de preencher os requisitos normativos, propiciando tanto à vitima como o ofensor a possibilidade de se insurgir contra a indenização restitutória em si, ou, alternativamente, ao seu quantum, independentemente de qualquer discussão quanto à prévia condenação pelo dano extrapatrimonial.

Adiante, no que concerne a França, por mais que a maior parte da ampla reformulação da responsabilidade civil ainda se encontre em discussão no Parlamento, a reforma aprovada em 2025 fere a temática da multifuncionalidade de forma ainda mais ambiciosa que na Bélgica. O art. 1.254 do code, situado no Capitulo V - intitulado "Sanção civil em caso de conduta dolosa que cause dano em série", encontra-se em vigência desde 3 de maio de 2025, tendo como base a lei 2025-391 (LOI DDADUE), que contém várias disposições de adaptação ao direito da União Europeia nas áreas da economia, finanças, ambiente, energia, transportes, saúde e circulação de pessoas.

Art. 1.254: Quando uma pessoa for considerada responsável por violação das obrigações legais ou contratuais relativas à sua atividade profissional, o juiz poderá, a pedido do Ministério Público, perante as jurisdições da ordem judicial, ou do Governo, perante as jurisdições da ordem administrativa, e mediante decisão especialmente fundamentada, condená-la ao pagamento de uma sanção civil, cujo produto será destinado a um fundo voltado ao financiamento de ações coletivas. A condenação ao pagamento da sanção civil somente poderá ocorrer se forem preenchidas as seguintes condições: 1° O autor do dano cometeu deliberadamente uma falta com o objetivo de obter um ganho ou uma economia indevida; 2° A infração constatada causou um ou mais danos a várias pessoas físicas ou jurídicas colocadas em situação semelhante. O montante da sanção será proporcional à gravidade da falta cometida e ao benefício auferido pelo autor da infração. Se o autor for uma pessoa física, o valor da sanção não poderá exceder o dobro do lucro obtido. Se for uma pessoa jurídica, o montante não poderá ultrapassar cinco vezes o valor do lucro auferido. Quando a sanção civil puder ser cumulada com multa administrativa ou penal aplicada pelos mesmos fatos ao autor da infração, o montante global das sanções não poderá ultrapassar o maior limite legal aplicável. O risco de uma condenação à sanção civil não é segurável.3

Embora a responsabilidade civil no direito francês tenha sido historicamente baseada na exclusividade da função compensatória e no princípio da reparação integral, a recente introdução de uma abordagem punitiva no CC marca um desenvolvimento significativo na legislação. De fato, o novo art. 1254 do CC estabelece uma pena civil aplicável à conduta dolosa que cause danos em série por mecanismo de múltiplos indenizatórios, oscilando conforme a natureza de pessoa natural ou jurídica do agente que aufere lucros ilícitos.

O dispositivo estabelece uma sanção autônoma, baseada na punição de condutas fraudulentas consideradas "lucrativas". Doravante, qualquer conduta ilícita lucrativa que cause danos em série provavelmente resultará na aplicação de uma sanção civil, cujos recursos se destinarão ao financiamento de ações coletivas. O escopo do artigo pretende ser aplicável não apenas às relações B2C, mas também às relações B2B. Assim, qualquer pessoa considerada responsável pelo descumprimento de uma obrigação legal no exercício de sua atividade profissional pode estar sujeita a esta penalidade em caso de danos seriais.

Embora alocada no âmbito da responsabilidade extracontratual, a regra pode suscitar a questão da transfiguração da distinção tradicional entre responsabilidade contratual e extracontratual. Neste ponto, o texto é claro: a penalidade civil é aplicável em caso de "descumprimento de obrigações legais ou contratuais relativas à sua atividade profissional", o que sugere que seu escopo abrange tanto a responsabilidade negocial quanto a aquiliana.

A primeira condição para que a sanção civil seja imposta consiste na caracterização da conduta dolosa com fins lucrativos, interpretada da seguinte forma: "1° O autor do dano cometeu deliberadamente uma conduta dolosa com o objetivo de obter um ganho ou economia indevida;" Isso implica, portanto, que a conduta negligente, não obstante a sua gravidade, estaria, portanto, isenta deste regime. Isso evidencia a intenção do legislador de se referir a uma abordagem dissuasiva e não a uma indenização restitutória propriamente dita, pois essa não se prende à intenção do ofensor e sim ao resultado lucrativo ou, ao menos, a economia de despesas propiciada pela prática do ilícito.

Em seguida, e cumulativamente, a infração deve ter causado danos em série: "2° A infração observada causou um ou mais prejuízos a várias pessoas físicas ou jurídicas em situação semelhante." Essa condição visa identificar uma violação sistêmica, cujos efeitos se mostram significativos e repetidos. Ilustrativamente, isso remete às violações localizadas no direito da concorrência ou em questões de conformidade e due diligence. Mais uma vez, coloca-se acento na função pedagógica da responsabilidade civil, considerando-se que a restituição de ganhos indevidos (disgorgement) ou o remédio do reasonable fee (pagamento de um preço razoável pela intromissão no direito alheio) são aplicáveis a uma única conduta antijurídica, independente da aferição de sua reiteração pelo mesmo agente.

O valor da sanção será proporcional à gravidade da infração e ao lucro dela auferido. O texto prevê um limite variável: o dobro do lucro obtido para uma pessoa física e o quíntuplo para uma pessoa jurídica. Esses valores claramente refletem o caráter dissuasivo do mecanismo, considerando-se que se a intenção do legislador fosse a de erigir um remédio puramente restitutório, a premissa seria que ostentasse como valor máximo o lucro obtido pelo infrator, porém jamais um múltiplo sobre ele aplicável. A pena civil reflete a severidade do ilícito, garantindo resposta significativa a comportamentos demeritórios economicamente motivados.

Ressalta-se que as vítimas das lesões seriais não têm poder de iniciativa quanto à aplicação dessa sanção civil. De fato, conforme previsto no art. 1.254 do CC, a pena pode ser imposta por um juiz a requerimento do Ministério Público (para o sistema judiciário) ou do governo (para o sistema administrativo) e por decisão especialmente fundamentada.

No mais, a sanção é insuscetível de seguro, confirmando sua natureza punitiva. Ao proibir a partilha de riscos por meio de contrato de seguro, o legislador pretende responsabilizar integralmente o autor do delito, expondo-o a uma pena pessoal e inescapável, evitando eventual gestão contratual por parte de agentes econômicos, apta a diluir e terceirizar os efeitos dissuasórios da condenação agravada.

As novas disposições determinam que o produto da penalidade civil seja doado a fundos para financiar ações coletivas.

Dessume-se do exposto que o novo art. 1254 do CC francês concilia a tradicional função compensatória a uma singular função punitiva, cuja eclosão requer o cenário da ilicitude lucrativa. Trata-se de resposta direcionada a comportamentos econômicos fraudulentos em larga escala. Portanto, condutas sociais negativamente exemplares, porém dissociadas de intuito econômico, não são alcançadas pela sanção pedagógica. A introdução da sanção civil de cunho dissuasório revela as tensões existentes na responsabilidade civil, oscilando entre sua necessária evolução e o respeito aos seus princípios fundamentais, entre os quais se destaca o princípio da reparação integral.

Apesar das evidentes distinções quanto à critérios de incidência e direcionamento das sanções, as novidades legislativas oriundas de duas jurisdições do civil law, cuja estabilidade normativa é da própria índole, denotam que - como recentemente estabeleceu a Corte Suprema di Cassazione4 Italiana - em sociedades plurais e complexas, a responsabilidade civil pode albergar em seu interno a salutar convivência entre a função compensatória e remédios extracompensatórios, sendo suficiente que critérios objetivos bem delineados estremem divisas, ressignificando o princípio da reparação integral.

_______

1 Art. 6.31 Objectifs et modes de réparation § 1er. La réparation du dommage patrimonial vise à placer la personne lésée dans la situation où elle se serait trouvée si le fait générateur de responsabilité ne s'était pas produit. La réparation du dommage extrapatrimonial a pour but d'accorder à la personne lésée une juste et adéquate compensation de ce dommage. § 2. La réparation a lieu en nature ou sous forme de dommages et intérêts. Ces modes de réparation peuvent être appliqués simultanément si cela est nécessaire pour assurer la réparation intégrale du dommage. § 3. Lorsque le responsable a, intentionnellement et dans le but de réaliser un profit, violé un droit de la personnalité de la personne lésée ou porté atteinte à son honneur ou à sa réputation, le juge peut accorder à la personne lésée une indemnité complémentaire égale à tout ou partie du bénéfice net réalisé par le responsable.

2 Art. 14 : Ao fixar a indenização a que se refere o n.o 1, as autoridades judiciais competentes têm em conta todos os fatores adequados, tais como as consequências econômicas negativas, incluindo os lucros cessantes, que a parte lesada tenha sofrido, os lucros indevidos ganhos pelo infrator e, em casos apropriados, outros elementos para além dos fatores económicos, como os danos morais causados ao titular do segredo comercial pela aquisição, utilização ou divulgação ilegais do segredo comercial. Em alternativa, as autoridades judiciais competentes podem fixar a indenização como um montante fixo com base em elementos tais como, no mínimo, o montante de remunerações ou direitos que teriam sido auferidos caso o infrator tivesse pedido autorização para utilizar o segredo comercial em questão.

3 Chapitre V:- Article 1.254 : Lorsqu'une personne est reconnue responsable d'un manquement aux obligations légales ou contractuelles afférentes à son activité professionnelle, le juge peut, à la demande du ministère public, devant les juridictions de l'ordre judiciaire, ou du Gouvernement, devant les juridictions de l'ordre administratif, et par une décision spécialement motivée, la condamner au paiement d'une sanction civile, dont le produit est affecté à un fonds consacré au financement des actions de groupe. La condamnation au paiement de la sanction civile ne peut intervenir que si les conditions suivantes sont remplies : 1° L'auteur du dommage a délibérément commis une faute en vue d'obtenir un gain ou une économie indue ; 2° Le manquement constaté a causé un ou plusieurs dommages à plusieurs personnes physiques ou morales placées dans une situation similaire. Le montant de la sanction est proportionné à la gravité de la faute commise et au profit que l'auteur de la faute en a retiré. Si celui-ci est une personne physique, ce montant ne peut être supérieur au double du profit réalisé. Si l'auteur est une personne morale, ce montant ne peut être supérieur au quintuple du montant du profit réalisé. Lorsqu'une sanction civile est susceptible d'être cumulée avec une amende administrative ou pénale infligée en raison des mêmes faits à l'auteur du manquement, le montant global des amendes prononcées ne dépasse pas le maximum légal le plus élevé. Le risque d'une condamnation à la sanction civile n'est pas assurable.

4 Cassazione Civile, Sezioni Unite., Sentenza 05/07/2017 n° 16601: "É possível, no sistema italiano, prever o pagamento de uma soma superior àquela estritamente necessária a reintegrar o dano? Deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são preventiva e punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica. A condenação ao pagamento de uma soma superior àquela estritamente necessária a restabelecer o status quo ante se configurará somente se houver uma norma ad hoc, cuja fattispecie, preveja o elemento punitivo".