Inteligência artificial e consentimento do paciente: Desafios e limites
terça-feira, 12 de agosto de 2025
Atualizado em 11 de agosto de 2025 09:35
O modelo tradicional de atendimento de saúde, que ainda traz seus resquícios na contemporaneidade, baseia-se no paternalismo médico, o qual restringia o paciente ao papel decisivo de apenas acatar determinações médicas ou recusar o atendimento.
Com o tempo, esse modelo foi perdendo espaço para o modelo horizontal, baseado na relação dialógica capaz de fazer com que profissional e utente cheguem a um consenso quanto ao caminho que será percorrido no atendimento.
A informação ganha importância no palco do Direito Médico, a exigir-se que seja qualificada, acessível e inteligível, com a finalidade de permitir que o paciente tome decisões fundamentadas e seguras.
Tudo parecia estável e em trajetória segura, mas os avanços tecnológicos que são expostos e impostos em progressão geométrica levam à reflexão sobre o impacto inexorável da inteligência artificial no Direito Médico, especialmente no consentimento do paciente. Afinal, esses avanços podem interferir decisivamente no trajeto de atendimento e no processo decisório, potencialmente tanto para trazer-lhes benefícios quanto para causar interferências prejudiciais.
E essa avaliação, investigação e estudo não desconsidera a premissa primordial de que a informação é elemento essencial na relação médico-paciente, compondo uma marcha chamada "processo informativo-decisório", cujo conteúdo e extensão pode variar conforme o tipo de atendimento, mas sempre deve garantir que este compreenda plenamente sua situação e as opções disponíveis quanto ao porvir.
E a informação (o processo informativo-decisório) pode levar ao consentimento, consubstanciado na manifestação da vontade do paciente, construída a partir de um prévio encadeado informativo e de esclarecimento, a permitir que o usuário tome decisões de diversas ordens, como realizar ou recusar um procedimento, adiá-lo, buscar alternativas ou ouvir uma segunda opinião.
A tecnologia, por sua vez, é parte integrante da jornada do paciente e como dito, inegavelmente ganhará cada vez mais espaço no atendimento de saúde. Muitos atores desse setor estão a utilizar ferramentas de IA, como chatbots, para obterem informações médicas preliminares, submetendo dados sensíveis para análise. No entanto, a precisão e utilidade das respostas dependem de vários fatores, incluindo a qualidade dos prompts e a capacidade dos modelos de IA para efetivamente prestarem algum auxílio útil e tecnicamente adequado.
A questão está posta em todas as suas nuances e vulnerabilidades, pois atualmente qualquer pessoa consegue lançar seus dados (inclusive os sensíveis) em plataformas de IA, sem que haja qualquer regulação mínima, sem saber de que modo a IA e seus agentes estão utilizando tais dados e sem ter ciência quanto ao modo pelo qual esses dados podem estar sendo empregados no treinamento dessa IA.
Quanto ao resultado do uso da IA, ainda que inúmeras ferramentas estejam em constante e acelerado aprimoramento e, em alguns casos, possam oferecer respostas mais rápidas e detalhadas do que médicos humanos, há outros riscos significativos envolvidos. Modelos de IA podem errar, e na área da saúde, um erro pode gerar consequências graves. Enquanto um equívoco em um conselho sobre jardinagem pode ser inofensivo, um erro em uma orientação médica pode ser fatal.
E mesmo em um mundo no qual a tecnologia galga espaços em progressão geométrica, o princípio da incolumidade das esferas jurídicas permanece como estandarte, ao estabelecer que nenhuma intervenção pode ocorrer sem que seja permitida por parte do paciente ou de quem por ele responda. A ausência do consentimento pode gerar responsabilidade jurídica, tanto na esfera penal - com enquadramentos como constrangimento ilegal, lesão corporal ou até homicídio - quanto na esfera civil, resultando em indenizações.
Além da legalidade, o processo informativo-decisório tem papel importante na constituição de um profícuo vínculo de confiança entre médico e paciente. Quando este compreende plenamente a sua situação e participa ativamente do encadeamento dos atos que dizem respeito a atenção da sua saúde, os resultados tendem a ser melhores, inclusive no sentido de ser coerente com a sua própria biografia.
A colaboração do paciente é um fator essencial para o sucesso da intervenção médica, a informação e a sua decisão efetiva beneficia todo o sistema de saúde, não se restringindo apenas à proteção do paciente ou à defesa do médico. A IA pode ser uma ferramenta para a construção de argumentos e levantamento de dados (desde que oriundos de fontes idôneas), para auxiliar na tomada de decisão, para servir como apoio à cooperação do paciente ou mesmo na apresentação de informações necessárias à tomada de decisão.
Mas isso não elimina a necessidade de consentimento, e o conhecido "termo de consentimento livre e esclarecido" não deve ser tratado como mera formalidade documental para evitar responsabilidade jurídica. Trata-se de uma prova importante do processo essencial de informação e participação ativa do paciente na condução da sua saúde, podendo ser emitido com o auxílio da tecnologia, mas isso não elimina o dever do médico de fazer o paciente passar pelo processo informativo-decisório prévio, o qual também poderá ter o apoio de IA, nos termos do que será exposto neste texto.
Igualmente é essencial para a melhor compreensão tanto da validade quanto da eficácia da decisão do paciente ter em mente a diferença entre consentimento e termo de consentimento, pois o consentimento é uma das possíveis decisões do paciente após o processo informativo-decisório (é uma decisão permissiva), enquanto o termo de consentimento é o documento que formaliza uma decisão permissiva quanto a um ato médico.
Embora seja possível formalizar eletronicamente o consentimento, pois essa providência permite a obtenção de permissão de forma ágil e segura, facilitando a realização de atos médicos ou de saúde isso não substitui o direito do paciente à informação adequada, a ser exercido antes da emissão da sua decisão.
O médico deve garantir que o paciente compreenda todos os aspectos essenciais do procedimento ou dos atos de saúde envolvidos, incluindo diferentes técnicas e possíveis consequências. Por exemplo, em uma cirurgia plástica abdominal, há abordagens que podem deixar um excedente de pele ou eliminá-lo por completo, que estão vinculados a tipos distintos de abdominoplastia. Se o médico não explicar essa diferença e o paciente ficar insatisfeito com o resultado ou com a técnica utilizada (quando mais de uma puder ser aplicada àquele paciente determinado) pode haver questionamentos e até responsabilização civil, mesmo que a técnica utilizada escolhida pelo médico ou pela IA que o médico utiliza como apoio decisório seja aceitável tecnicamente. A questão central nesse exemplo não é a técnica adotada, mas sim a falta de comunicação e a participação do paciente na decisão.
Aliás, o médico que utiliza a IA como apoio decisório precisa ter alguns cuidados, como resguardar devidamente informações sensíveis do paciente, utilizar modelos treinados e específicos, informar ao paciente sobre o uso de ferramentas de subsídio. Ou seja, o uso da tecnologia na área da saúde é como uma teia de entremeios e de questões éticas, operacionais e legais de entrelaçamento e interferências complexas.
Se na prática médica, é possível que o profissional esqueça de fornecer certas informações - afinal, médicos e pacientes são humanos e estão sujeitos a falhas - no ambiente da inteligência artificial também pode cometer erros, embora com avanços tecnológicos o percentual de erro possa diminuir ao longo do tempo.
Entretanto, os sistemas de IA ainda não são confiáveis para substituir, por si, a decisão médica. Mesmo que um chatbot seja treinado para responder sobre uma cirurgia neurológica, ainda há incerteza sobre a exatidão e precisão das respostas, o que pode comprometer a escolha esclarecida do paciente.
A grande questão é: como garantir a autonomia do paciente em tempos de IA e plataformas digitais? O futuro demonstrará que será impossível deixar de utilizar sistemas específicos e treinados de IA como meios auxiliares no processo de consentimento, mas dificilmente isso ocorrerá, ao menos em curto prazo, como única fonte de informação ou meio para o processo de escolha esclarecida.
Se um sistema de IA for utilizado, ele deve passar por rigorosa supervisão e ser treinado para fornecer respostas seguras. Ainda assim, persistem desafios, que dizem respeito a impossibilidade de garantir que a IA ofereça respostas corretas e completas, a possibilidade prática de ocorrência eventuais vieses ou informações falsas produzidas pela IA e a impossibilidade de certeza quanto a restauração da informação correta quando houver erro do sistema.
Apesar dos riscos, a IA inegavelmente traz agilidade e acesso ampliado à informação, inclusive geograficamente. Muitos pacientes podem utilizar sistemas digitais para formular dúvidas e, posteriormente, saná-las com o médico durante a consulta.
Além disso, a tecnologia pode ser útil para pacientes com baixo letramento em saúde, ajudando-os a entender melhor os termos médicos e o impacto dos procedimentos. No entanto, a qualidade da comunicação ainda é um obstáculo, pois um paciente pode interpretar incorretamente uma informação médica, gerando confusão e decisões equivocadas.
No contexto da saúde pública, onde o tempo para atendimento já é escasso, a falta de acesso à informação se torna um obstáculo ainda maior. A introdução de sistemas de inteligência artificial pode parecer uma solução viável, mas há desafios a serem enfrentados, como a barreira tecnológica - muitos pacientes têm dificuldade em utilizar dispositivos digitais e navegar por plataformas de IA.
O futuro do consentimento informado nesse contexto complexo depende do equilíbrio entre tecnologia, letramento de usuários e supervisão e ações humanas, garantindo que o paciente tenha condições de receber e reflexionar sobre informações claras, acessíveis e confiáveis, para que possa tomar decisões conscientes sobre sua saúde.
Uma alternativa para melhorar a comunicação e a compreensão dos pacientes são vídeos explicativos, animações e recursos interativos gerados por ferramentas de IA, que podem ampliar o arsenal informativo disponível para ajudá-los a tomar decisões mais conscientes, a demonstrar que o investimento em acessibilidade quanto a tais meios é uma medida hábil à redução de desigualdades no acesso à informação.
No que diz respeito a digitalização do consentimento, há questões a ponderar, como a segurança no armazenamento e auditoria das informações. Tecnologias como blockchain podem oferecer um nível mais elevado de segurança, tornando as alterações nos registros rastreáveis, o que fortalece a confiabilidade e evita fraudes.
Além disso, o consentimento remoto com registro audiovisual tem se mostrado uma alternativa eficaz, especialmente na telemedicina. Essa abordagem permite que o paciente autorize procedimentos de maneira mais estruturada, garantindo maior transparência no processo (Conselho Federal de Medicina Resolução n. 2.314/2022).
A inteligência artificial igualmente pode servir como suporte na decisão médica, porquanto modelos podem ser treinados para fornecer explicações personalizadas, ajustadas ao perfil do paciente (levando em consideração fatores como idade, condição clínica e nível educacional). Isso pode ser particularmente útil na identificação da capacidade para consentir, ajudando médicos a avaliar se o paciente está apto para tomar decisões quanto a sua saúde1.
Por exemplo, uma IA pode fazer perguntas estratégicas ao paciente e, com base nas respostas, identificar se ele possui discernimento ou está comprometido em sua capacidade de consentir, inclusive quanto ao seu grau. Com um relatório detalhado, o médico pode avaliar se deve conversar diretamente com o paciente ou com seu representante legal.
Embora a tecnologia possa auxiliar no processo de escolha esclarecida, ela deve ser usada com supervisão humana e critérios bem definidos. A inteligência artificial não substitui a comunicação médico-paciente, mas pode ser uma ferramenta valiosa para melhorar o acesso à informação, desde que aplicada com cautela e seguindo parâmetros éticos e legais. A atividade regulatória é, portanto, urgente e imprescindível, pois o uso crescente da inteligência artificial traz desafios que vão além da tecnologia em si.
Entre os principais riscos estão o excesso de tecnicismo, que pode dificultar a compreensão do paciente, a dependência total de sistemas automatizados, sem a devida supervisão humana, a falta de conhecimento tecnológico por parte da população, além de omissões ou vieses, que podem comprometer a qualidade da informação ou mesmo direcionar decisões em um determinado sentido.
Por mais avançadas que as ferramentas de IA sejam, e por mais utilizadas que venham a ser, a revisão humana continua sendo essencial. Médicos devem validar as informações fornecidas por sistemas digitais, verificando se o paciente realmente compreendeu as nuances do atendimento, que envolvem informações e esclarecimentos.
O CC estabelece critérios para que um consentimento seja considerado válido. Para que uma decisão tenha eficácia jurídica, deve ser resultado de um processo de escolha esclarecido, garantindo voluntariedade na decisão, capacidade civil (e capacidade para consentir), além de forma prevista ou não proibida pelo ordenamento jurídico, o que assim é desde os mais antigos estudos sobre atos jurídicos lato sensu.
Embora em muitos casos o consentimento verbal seja aceito, procedimentos como esterilização exigem consentimento escrito. Na telemedicina, a autenticação digital é fundamental para garantir a autoria e a integridade da decisão.
Na análise dos desafios da inteligência artificial, adiciona-se mais uma camada, que envolve o chamado deep learning, pelo qual tais sistemas operam como uma "caixa-preta", muitas vezes gerando respostas inesperadas ou imprecisas. No campo jurídico, por exemplo, relatam-se casos em que sistemas de IA fabricam ementas de jurisprudência inexistentes, evidenciando a necessidade de cautela no uso dessas tecnologias.
Ana Frazão destaca uma reflexão importante, no sentido de que não é possível "pretender encontrar explicações satisfatórias nos julgamentos algorítmicos, uma vez que eles não permitem a avaliação de causalidades. O próprio objetivo de acurácia pode ocorrer à custa das crescentes deficiências interpretativas."2
A IA não possui inteligência no sentido humano, mas coleta, processa e responde com base em dados. Apesar de sua utilidade, é fundamental reiterar a necessidade de agir no sentido de absorver os benefícios que a IA pode proporcionar, aliando esse agir com a proteção de dados pessoais, principalmente dados de saúde, que são beneficiados por proteção reforçada pela LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados.
Para garantir um processo de consentimento ético, lícito e eficaz, algumas recomendações são essenciais, como a explicação personalizada, ajustada ao perfil do paciente; a interface clara e acessível, com linguagem simples e adequada (como v.g. a tradução para Libras); contraste visual adequado para facilitar a leitura e a compreensão; a validação da compreensão, por meio de perguntas interativas e feedback oral; o registro documental, sempre que possível, para reforçar a transparência do processo.
Carla Carvalho e Thais Tata Giba3 estudaram a integração de tecnologias de visual design no consentimento informado. Segundo elas, termos de consentimento elaborados com essa técnica podem melhorar a experiência do paciente, tornando a informação mais acessível e menos cansativa.
Contudo, não se deve confiar exclusivamente em termos digitais auto conduzidos pelo paciente. O contato humano direto continua essencial, pois permite que o paciente expresse dúvidas e receba avaliação adequada sobre sua capacidade de consentir, inclusive para que os profissionais envolvidos no atendimento consigam perceber a postura do paciente, seu agir e sua compreensão.
O uso ético da tecnologia pode fortalecer o processo de escolha esclarecida e o atendimento em saúde, mas não substitui o profissional de saúde em atividades consideradas chave, como a informação. A interação entre diferentes áreas deve equilibrar inovação e responsabilidade, garantindo que a IA sirva como uma ferramenta complementar, que não pode comprometer a necessária empatia e a qualidade do atendimento médico, pois o acolhimento também faz parte da atenção à saúde.
A inteligência artificial pode auxiliar na comunicação entre médico e paciente, mas não pode substituir qualidades humanas que são importantes e únicas. Sistemas automatizados podem ser amigáveis, amplos no que diz respeito ao conjunto de informações pesquisadas, rápidos e criativos, mas também podem ser imprevisíveis, imprecisos, equivocados ou desvirtuados, e por isso precisam de supervisão cuidadosa.
O avanço da tecnologia no consentimento informado exige equilíbrio entre inovação, qualidade técnica e segurança jurídica, garantindo que a autonomia do paciente seja preservada, sem comprometer a ética médica e a qualidade do atendimento.
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1 Disponível aqui.
2 Ana Frazão - Decisões algorítmicas e direito à explicação. Disponível aqui.
3 A utilidade das ferramentas de legal design para o consentimento efetivamente esclarecido. Carla Carvalho e Thaís Tatagiba p. 361-377