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Responsabilidade civil das escolas e pais: Dimensão multifuncional

terça-feira, 27 de maio de 2025

Atualizado em 26 de maio de 2025 14:54

A ampliação da dimensão multifuncional da responsabilidade civil tem por base que ela deve ser capaz de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social.

Para além da abordagem do estudo da responsabilidade civil das escolas e dos pais pelos atos dos filhos menores, importante realçar o acesso à educação.

Nas excelentes observações do ministro Luis Edson Fachin1, "cabe recordar que, em todo campo do saber, há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não liberta". E se não fosse só por estes ensinamentos, Paulo Freire2 conclui que "a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa".

E não é por outra razão que o Direito contribui em estimular o regime democrático, sobrepujando o que há na teoria para enfrentar a prática. Não há democracia, isonomia e Justiça social sem o acesso pleno à educação para só assim confirmar o quão isso esperado pelo legislador constituinte. Como asseverou Norberto Bobbio3 "uma das maiores virtudes da democracia é permitir-se espaço até mesmo para aqueles que nela não creem".

E nessa apuração do regime democrático e o enfrentamento da prática nos Tribunais verifica-se que o que ocorre no cotidiano dos estudantes, em especial dos menores do ensino fundamental e médio, são as profundas mudanças da relação colégio (professor) e alunos. Há um enorme esforço para impedir prejuízos na formação de personalidade por conta de ilícitos dentro da escola.

É notório que a responsabilidade do estabelecimento privado de ensino, - com o CDC - não se apresenta como responsabilidade indireta do educando, mas sim, como responsabilidade objetiva direta, com base no art. 14 do CDC. O dever do colégio (fornecedor) de prestar serviços seguros a seus alunos (consumidores) funda-se no fato do serviço e não no fato do preposto ou de outrem. Assim, para se aferir a responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor, é necessário a verificação da existência de conduta (comissiva ou omissiva), do nexo causal e do dano alegado, sem se adentrar sobre elemento subjetivo.

É certo que durante o período em que o aluno se encontra sob os cuidados da escola e dos educadores há um intervalo do exercício efetivo da guarda, da autoridade dos pais. Por esta razão os atos danosos praticados por alunos a outros alunos dentro das escolas remetem à responsabilidade indenizatória da escola. Todavia, será que deveria caber somente à escola o pedido indenizatório quando ela não contribuiu para o incidente lesivo diante do que nos pauta a realidade voraz que vivenciamos hoje nos padrões de comportamento de nossas crianças e adolescentes? Passamos a análise.

Não há como não reconhecer o enorme avanço que a sociedade contemporânea experimentou nas últimas décadas, em especial no que tange à realidade tecnológica, a necessidade constante (em especial nos Tribunais) da objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano. Emerge-se a necessidade de se identificar os riscos, a relevância de suas funções e os seus instrumentos de atuação.

Não há dúvida de que há insuficiências - para efetiva tutela de direitos - da função exclusivamente reparatória da responsabilidade civil, principalmente quando os danos atingem direitos fundamentais, cujos interesses jurídicos dificilmente são recompostos ao estado anterior ao dano.

Nesse compasso, o Projeto do Código Civil vem preenchido com as expectativas de ampliação da "tutela efetiva da vítima" com forte aplicação da função preventiva com foco em combater prática de comportamentos considerados intoleráveis na sociedade.

Para Nelson Rosenvald4 tais medidas possuiriam um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica".

 Nesse sentido o STJ5 há tempos tem assinalado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis".

É por isso que a proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com forte inspiração na função preventiva. Sem dúvida esse novo olhar seguramente dará foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela (negativa) do direito. A abordagem trazida pela proposta legislativa é a de que a responsabilidade civil intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva (tutela positiva), sem que isso represente o não acesso ao Judiciário quando há lesão.

Nas palavras de Norberto Bobbio6, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrario sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa".

Sem se olvidar do espaço ocupado pela tradicional função reparatória, a responsabilidade civil preventiva consiste no redimensionamento do instituto, com o desígnio de proteger a integralidade dos direitos, prevenindo tanto a violação desses direitos, quanto a eventual ocorrência de danos.

De início, o caput do art. 927-A do anteprojeto ampara o dever de prevenção ao dispor que "todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los". Vê-se claramente a função preventiva posto impor medidas de evitar danos considerados previsíveis, de mitigação de seu alcance e de não agravamento do dano, na hipótese de já ter se realizado (art. 927-A, parágrafo 1º, do anteprojeto).

E nesse diapasão o efeito didático - como alertado por Rosenvald - a responsabilidade civil das escolas e pais deve-se ver pela ótica preventiva também, pois assim proporcionar-se-á maior segurança jurídica e atenderia aos anseios atuais que orientam o instituto a um sistema multifuncional.

Prescreve o anteprojeto no art. 932 que "responderão independentemente de culpa, ressalvadas as hipóteses previstas em leis especiais: I - os pais, por fatos dos filhos, crianças e adolescentes, que estiverem sob sua autoridade [...] VI - ressalvada a incidência da legislação consumerista, os donos de estabelecimentos educacionais e de hospedagem, pelos danos causados por seus educandos e hóspedes, no período em que se encontrarem sob seus cuidados e vigilância".

Atentem-se que a responsabilidade dos pais continua sendo objetiva e a expressão companhia foi retirada da proposta legislativa por não ser apropriada, afinal, não é a proximidade física que invoca exclusivamente responsabilidade dos pais por danos provocados pelos filhos menores.

De forma pragmática, não há dúvida que mesmo os pais mais cuidadosos não estão presentes em todos os momentos do dia do filho (e nem deveria ser). A tarefa dos deveres educativos é árdua e, mesmo que ajam adequadamente num padrão geral de conduta de educadores/preceptores de pessoas, não estão livres de más condutas dos filhos. Rosenvald7 apontando jurisprudência argentina destaca que "o conceito de vigilância ativa, que não significa vigilância constante, mas educação constante cuja tarefa abrange toda uma vida, e implica entre outras tarefas, reprimir as más inclinações dos filhos, redirecionando-as".

No julgado citado pelo autor, o tribunal argentino menciona que há presunção de defeito na educação à vista do fato cometido.

Em ato contínuo e não menos responsável as escolas também respondem objetivamente por danos causados por alunos no período em que eles estejam aos seus cuidados. De fato, as escolas - como prestadoras de serviços - estão sujeitas ao CDC e responderão independente de culpa (art. 14 CDC). Os estabelecimentos de ensino respondem independente de culpa pelos danos causados por seus funcionários ou dos alunos causem a terceiro, só não aplicável às universidades cujos alunos já possuírem discernimento e são responsáveis pelos seus atos.

De fato, as escolas são responsáveis por coibir práticas lesivas (mesmo no atual Código) podendo ser responsabilizadas pela omissão incluindo no período de intervalos de aulas sendo típico caso de aplicação da tutela preventiva, ou seja, impõe-se evitar lesão e, por isso, respondendo a escola e, subsidiariamente os pais dos menores agressores.

E aqui encontra-se o fundamento deste artigo, se por um lado as escolas assumem o risco da atividade, por outro lado essa responsabilização pode se mostrar excessiva, pois os professores e direção das escolas não podem suprir posturas agressivas e hostis, resultados de educação de pouco zelo dos pais no todo ou em parte, já que traços de personalidade perversa pode haver independente das ações dos pais.

Isentar os pais da responsabilidade diante do dano causado mesmo no ambiente escolar é transferir (muitas das vezes) integralmente a responsabilidade pelos filhos para a escola e é medida extrema sem relação causal. Os danos causados pelos alunos podem (e quase sempre é) advir não de antecedentes imputáveis à escola, mas (também) aos pais.

Assim, veja-se: os conceitos educação e escolarização parecem iguais, mas não são. A educação é um processo contínuo de desenvolvimento do ser humano, possibilitando a formação e integração dele como cidadão na sociedade e isso começa com os pais, pois eles são os principais responsáveis pela formação dos filhos como pessoa.

Por outro lado, a escolarização é um conjunto de conhecimentos obtido por meio da escola, sendo o professor o responsável por ensinar. Educar é mais amplo e que também envolve escolarização. O papel dos pais nesse processo de formação pessoal não pode ser transferido para a escola. A instituição de ensino e os professores não assumirão as responsabilidades que são dos pais, algo que certamente seria inviável.

As crianças observam o comportamento e atitudes dos pais e das mães e, mesmo sendo potencialmente os tidos como "melhores comportamentos" há o viés da personalidade da pessoa e que é (também) formada na infância. A prática fundada dos pais em valores humanos é o alicerce para construção de seres humanos respeitosos. Além de impor limites, ensinar a ter respeito, reconhecer e corrigir erros, os pais também devem marcar presença na vida dos filhos, assumindo o papel de incentivadores da criança ou adolescente.

O que não quer dizer que com isso se afasta a responsabilidade das escolas por danos provocados pelos alunos às vítimas enquanto estão sob seus cuidados, mas retirar o direito à ação regressiva delas contra os pais é deixar à cargo das escolas o dever de educar difere de seu projeto, que é a escolarização.

Em algumas cenas da série da Netflix "Adolescência" mostra o quão é difícil detectar o malefício que sofre o filho ou que ele seja o ofensor ou pior ainda transpor a barreira e labirinto da internet. Em um dos diálogos tocantes da série a mãe do adolescente misógino e que sofria bullying traduz a dor e angústia de não conseguir se infiltrar no impermeável mundo virtual: "Nunca dizia nada, a gente também fez ele".

Sob o ângulo geracional, o diálogo entre pais e filhos é hoje mais assíduo e sincero que no passado, mas a diferença é que antes não havia a internet com seus símbolos, idioma próprio e um pacto silencioso. Parece-nos que para as crianças e adolescentes recebam a melhor educação e escolarização, é necessário que tanto a escola quanto a família atuem em conjunto, mas isso não quer dizer que mesmo com tudo isso, não existe situação em que eles (pais) não sejam mais educadores dos seus filhos. A função educacional dos pais é imperativa, eles sempre serão educadores em razão da sua posição enquanto referência primeira e imediata.

A escola e pais (em conjunto) devem estar atentos e agir com rapidez para que alunos reflitam sobre suas atitudes e questões de gênero, preconceitos, masculinidade. Apoio para identificar a desinformação, romper a inércia e adentrar aos quartos. São passos na direção certa, porém insuficientes da envergadura do desafio difícil de mecanismos para garantir espaço seguro nas redes, talvez a adoção da Austrália de proibir o acesso às redes a menores de 16 anos pode ser uma alternativa8

Parece que não se pode excluir uma responsabilidade dos pais junto com a escola quando o menor mesmo dentro da desta realiza atos ofensivos e ligados aos traços de personalidade. Estudo e análise do caso concreto é que fará a composição da indenização.

O caminho para solução de indenizações em razão de danos causados por menores é um desafio colossal para nossa doutrina e jurisprudência e, por isso só as circunstâncias de cada caso poderão esclarecer a proporcionalidade das responsabilidades jurídicas para pais e escolas mesmo que o menor esteja sob os cuidados da escola.

É por esta razão que o anteprojeto do código civil faz um diálogo com as disposições do CPC (art. 497, parágrafo único CPC) relacionadas à tutela inibitória e de remoção do ilícito.

A responsabilidade civil preventiva, ao atuar por meio dos instrumentos inibitórios, cumpre o dever jurídico de diligência e proteção, com o propósito de que os indivíduos, em suas interações, não infrinjam direitos alheios ou causem danos a eles e isso inclui os pais com ainda que estejam os filhos na escola quando as ações dos filhos ultrapassam a medida de educação que deveriam ter em casa.

Amparado nesse propósito, o relatório do anteprojeto sustenta a introdução das funções preventiva (art. 927-A) e pedagógica (§ 3º, artigo 944-A) com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais.

Por fim, não há outro referencial para prevenção: só agindo de forma, ética, comprometida com o outro e com o mundo, com o cuidar é que se pode imaginar a preservação da própria civilização. O cuidado constitui a categoria central do novo paradigma mundializado e globalizado, assumindo dupla função: de prevenção a danos futuros e regeneração de danos passados.

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1 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, p.3.

2 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 42.

3 BOBBIO, Norberto.In OLIVEIRA JÚNIOR, O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2000.

4 ROSENVALD, Nelson. Curso direito 2022, p. 430

5 Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão.

6 BOBBIO, Norberto. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 24.

7 ROSENVALD, Nelson. Curso direito de direito civil. 2022, p. 552.

8 Disponível aqui. Acesso em 4/5/25.

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Bibliografia

MORAES, Ana Beatriz; LOPES, Carlos Eduardo. A Função Preventiva da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma releitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2017.

ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book.

SILVA, João Carlos. Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.

TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. As penas privadas no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.