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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
terça-feira, 8 de outubro de 2024

Nexo causal e o seu caminho de aferição

Historicamente, a responsabilidade civil esteve ligada à noção de culpa, exigindo que a vítima provasse a falha do causador do dano. Essa prova era difícil, especialmente em casos cuja apuração (prova técnica) dependesse de dados ou registros que geralmente não estavam em poder da vítima ou cujo acesso era difícil ou impossível ("prova diabólica").  Em muitos casos, o nexo entre o fato e o dano dependia de prova a respeito da conduta do responsável ou do ofensor, que não cooperava na produção da prova porque nenhuma consequência lhe era imposta ao deixar de carrear prova aos autos ou de colaborar para a sua realização e durante a sua produção, escudado pela regra geral de que cabe ao autor comprovar as suas alegações e ao réu incumbe a demonstração dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do alegado direito do autor.   Com o tempo, a noção de ilícito na responsabilidade civil subjetiva foi tomando corpo, evoluindo para uma perspectiva objetiva que hoje é presente em grande parcela dos casos de ações indenizatórias sub judice. A constatação do declínio da culpa na responsabilidade civil lança maior protagonismo à causa do evento lesivo, espaço no qual o nexo entre conduta e dano é crucial para atribuir responsabilidade (subjetiva ou objetiva), para definir os contornos da obrigação de indenizar e para estabelecer a imputabilidade. Ao Direito compete traçar os critérios de seleção da causa juridicamente qualificada para determinar a responsabilidade, que também serve para fixar as consequências danosas que devem ser indenizadas (compensadas ou reparadas) e quem deve ser responsabilizado. A tarefa é complexa, especialmente em casos de concurso de causas, causalidade indireta, presunção ou probabilidade, dano por ricochete e perda da chance. Sabe-se que o nexo causal é um vínculo entre um evento e um resultado, a ligar conduta e dano, ambos juridicamente qualificados. Ele responde às perguntas Por quê? e Quem?, estabelecendo a causa e o responsável. A certeza ou suficiência da causa para ser juridicamente qualificada constitui um desafio à responsabilidade civil, e diferentes teorias foram doutrinariamente construídas para tentar solucionar o desafio.  A teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non) considera todas as condições antecedentes ao dano como possíveis causas, mas é criticada por sua amplitude excessiva1. A teoria da causalidade próxima considera o último evento determinante como suficiente para estabelecer o nexo causal (art. 403 do CC). Contudo, nem sempre a última ocorrência é determinante e nem sempre danos indiretos podem ser excluídos do âmbito da responsabilidade civil2.  A teoria da causalidade eficiente identifica condições aptas à produção do dano, estabelecendo a mais determinante como causa3.  A teoria da causalidade adequada, por fim, requer apreciação abstrata das circunstâncias, verificando se há relação de causa e efeito em casos semelhantes ou se decorre de  situações especiais4. A resposta ao questionamento da causa envolve prognose ulterior e diz respeito ao curso previsível dos acontecimentos "com veste jurídica", podendo-se perguntar qual será a consequência esperada do ato ou acontecimento x, em seu curso normal e se o resultado teria ocorrido mesmo sem que adviesse o ato ou o acontecimento x5. Na jurisprudência, não há consenso sobre a teoria do nexo causal que deva incidir. Diversos julgados mencionam as teorias do dano direto e imediato e da causalidade adequada, sem critérios objetivos definidos ou suficiente uniformidade de requisitos aptos à determinação da causa jurídica de um dano. A tendência do STJ é determinar o nexo causal segundo critérios de causalidade adequada, buscando verificar se o evento indicado como vinculado ao dano efetivamente é direto, imediato e eficiente6, não instituindo responsabilidades quando houver causas excludentes do nexo causal, tais como a conduta exclusiva da vítima ou de terceiro, o caso fortuito ou a força maior7.  A causalidade jurídica depende da seleção das consequências indenizáveis, podendo ser utilizado um critério trifásico de aferição. Inicialmente, apura-se de modo abstrato o curso dos acontecimentos até o dano, conforme um padrão médio admissível de conduta, sob a perspectiva de um "observador experiente"8, atentando-se ao desencadear ordinário (razoavelmente esperado) dos fatos, mantendo-se as condições juridicamente qualificadas e extraindo-se aquelas desprovidas de veste jurídica, pois "a repetição, previsibilidade e probabilidade conferem credibilidade ao processo causal"9. O "observador experiente" permite um raciocínio distanciado e sensato, evitando distorções de premissas equivocadas. Conforme a regra do art. 375 do CPC, para esse fim, o julgador deve adotar regras de experiência comum e técnicas na coleta e na análise das provas. Na segunda fase, recapitula-se o evento ou eventos que causaram o dano. Na terceira fase, transpõem-se os elementos das fases anteriores para identificar tanto os componentes causais comuns quanto os distintivos, determinando os que são decisivos e os que podem excluir a responsabilidade. Verificar-se-á igualmente se a responsabilidade é atribuída ao causador direto do dano ou a um terceiro responsável (como o empregador pelo ato do empregado), total ou parcialmente, se o critério de imputação é objetivo ou subjetivo10, se incide sobre alguém por determinação legal ou negocial (como a responsabilidade do financiador por danos ambientais causados durante a execução ou em razão de uma obra financiada11). Ao determinar um fato como causa adequada de um dano, o responsável terá o ônus de provar que o dano está fora do "âmbito de proteção da norma" ou que resultou de um evento "novo e independente", excluindo a relação de causalidade anterior12. Exemplos incluem a conduta de terceiros, da própria vítima ou casos fortuitos (na responsabilidade objetiva, apenas fortuitos externos). Após definir a causa e a imputação, a última etapa é delimitar o dano juridicamente qualificado a ser indenizado.  No entanto, essa "equação" não resolve todos os desafios da causalidade, pois nenhuma fórmula pode fornecer uma solução universal para questões complexas, como concausas ou hipóteses nas quais o nexo causal não seja irrefutável, apesar da probabilidade de que um dano decorra de uma conduta ou evento específico. A conhecida "flexibilização do nexo causal" é um prolongamento da causalidade jurídica, aplicável a danos por ricochete, perda de uma chance, responsabilidade de terceiros ou danos com causa imprecisa, devido à impossibilidade de confirmação absoluta dos elementos envolvidos na verificação precisa da causa.  Outro entrave é que nenhum resultado é satisfatório sem considerar a prova do nexo causal, com as suas referidas e conhecidas vicissitudes. Desafios incluem eventos que rompem a cadeia causal, concorrência de causas ou causas difíceis de identificar, como desastres ambientais, agravamento de danos por exposição prolongada de trabalhador a agentes danosos em diferentes vínculos empregatícios, e dificuldade de identificar fornecedores de produtos de consumo prolongado, como no caso de fumantes diagnosticados com câncer após consumirem cigarros de diferentes fabricantes13. Para romper o nexo causal, a causa prevalente deve suprimir a causa anterior e sustentar o novo liame entre fato e dano. Na concausa concomitante ou posterior, sem modificar o dano, há solidariedade entre os concausadores (art. 942, parágrafo único do CC)14. Se elevar o dano, o concausador responde solidariamente pelo dano, assim como o seu acréscimo. Com conduta concorrente da vítima, a responsabilidade considera a gravidade da conduta comparada à do autor do dano (art. 945 do CC). Se várias causas forem determinantes para o dano (produzido em razão do concurso), cada uma pode ser considerada causa do dano, atraindo solidariedade entre os concausadores. Se cada causa isolada não produziria o mesmo dano, aplica-se a regra do art. 942, parágrafo único do CC, com responsabilidade integral dos concausadores e possibilidade de ação regressiva para dividir o resultado econômico da obrigação, conforme a participação de cada um15. Em situações de causalidade incerta, na qual múltiplos fatores podem ter contribuído para um dano, é adequado que o agente responda proporcionalmente à probabilidade de sua atuação ter sido a causa ou que esteja sob a sua responsabilidade por determinação legal. A doutrina sugere aplicar o critério probabilístico para estabelecer o nexo causal em casos em que não há certeza científica absoluta acerca da causa jurídica do dano. Assim, um evento pode ser atribuído ao agente apenas quando a existência do nexo de condicionamento atinge um elevado grau de confirmação ou de credibilidade. Este requisito é satisfeito se o julgador, com base em evidências e dados estatísticos, considerar improvável que o evento tenha ocorrido devido a outros processos causais16.  Não há uma definição percentual para a probabilidade de um resultado específico. A teoria do "mais provável que não" 17 sugere que, em casos de difícil verificação da causa, deve prevalecer o que for mais provável, desde que normalmente decorra de um ato ou evento específico, exceto se houver um fato relevante que o secundarize (teoria do novus actus interveniens). Essas linhas preliminares têm como objetivo oferecer uma proposta de aferição de nexo causal, que é um tema que segue atual, intrincado e absolutamente relevante, bem como tenciona servir como um convite aos que desejam explorar os seus contornos em suas complexas nuances, implicações e aplicações. A análise detalhada dos casos concretos e a proposta de modelo de aferição exposta podem servir para iniciar um debate necessário e sobre o qual persiste um amplo espaço de contribuição à responsabilidade civil, que demanda premente aperfeiçoamento.  ___________ 1 Há interessante caso julgado pelo STJ, no qual expressamente a teoria da equivalência das causas antecedentes foi rejeitada, conforme demonstra a sua ementa: "Civil e processual. Acórdão estadual. Nulidade não configurada. Ação ordinária de responsabilidade civil. Quebra de sigilo bancário. Informação dada a terceiro sobre saldo de correntista por preposto do banco. Dívida cobrada pelo credor, que culminou em assassinato do devedor. Atribuição de nexo causal, pela instância ordinária, ao banco. Pedido de suspensão do feito cível, para aguardar desfecho da ação penal corretamente indeferido. Inexistência de responsabilidade do réu pelo crime. Reconhecimento, contudo, de dano moral pela revelação de informação financeira reservada. Indenização proporcionalizada. Pensionamento excluído. (...) II. Descabimento do pedido de suspensão do andamento da ação civil para se aguardar o desfecho da penal, porquanto a responsabilidade atribuída à ré na primeira é inteiramente dissociada da tese de ocorrência ou não de legítima defesa na órbita criminal. III. A responsabilidade civil decorre do concreto e efetivo nexo causal entre o ato e o evento danoso, não colhendo procedência o entendimento sufragado pelo Tribunal estadual, com apoio em discutível teoria da equivalência das causas antecedentes, no sentido de que o banco é culpado pela morte do esposo e pai dos autores, assassinado por credor que, obtendo de gerente de agência do réu informação sigilosa sobre existência de saldo em conta corrente pessoal suficiente ao pagamento de dívida, terminou por assassinar o devedor, ante a sua recusa em pagar o valor do cheque por ele emitido contra conta empresarial, sem fundos. IV. Condenação do banco réu que se limita ao ato ilícito de quebra de sigilo por seu preposto, traduzida em dano moral proporcionalmente fixado, afastados os danos materiais, inclusive o pensionamento. V. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido. (REsp 620777/GO. Disponível aqui. 2 A respeito, veja-se: JORGE, Fernando Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1999, p. 388 e ss; PERESTRELO DE OLIVEIRA, Ana. Causalidade e imputação na responsabilidade ambiental. Coimbra: Almedina, 2007. p. 53 e seguintes; SAMPAIO DA CRUZ, Gisela. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 36 e ss.  3 MIRAGEM, Bruno. Direito civil. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 229. 4 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 345. 5 Veja-se, por exemplo, julgado do STJ tratando de dano ambiental decorrente de explosão de embarcação que transportava produtos químicos. Para a referida Corte, a responsabilização de poluidor indireto somente ocorre se houver prova de comportamento omissivo da proprietária da mercadoria transportada ou se o risco de explosão no transporte marítimo de produtos adquiridos fosse relacionado às atividades desempenhadas pela proprietária da mercadoria transportada. Os possíveis responsáveis pela explosão, segundo apurado no inquérito, seriam a transportadora dos produtos e o terminal onde o navio estava ancorado. Segundo a prova pericial, a proibição da pesca na região afetada decorreu do derramamento do óleo da embarcação, e não de contaminação pelo conteúdo da carga de metanol transportada, pois este produto é volátil e provavelmente foi diluído na água do mar após o acidente. A ementa do julgado é a seguinte: "Agravo interno. Agravo em recurso especial. Acidente ambiental. Explosão do navio vicuña. Proibição de pesca. Nexo causal. 1. As empresas adquirentes da carga transportada pelo navio Vicuña no momento de sua explosão, no Porto de Paranaguá/PR, em 15/11/2004, não respondem pela reparação dos danos alegadamente suportados por pescadores da região atingida, haja vista a ausência de nexo causal a ligar tais prejuízos (decorrentes da proibição temporária da pesca) à conduta por elas perpetrada (mera aquisição pretérita do metanol transportado, o qual evaporou logo após o acidente, não sendo a causa da poluição ambiental). (...). REsp n. 1.602.106. 6 Vide: STJ. 4ª Turma. REsp 1.414.803-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 04/5/21. Ementa parcial: Responsabilidade civil. Ação de indenização decorrente de ato ilícito. Acidente aéreo. Colisão de aeronaves durante voo. Diversas mortes. Responsabilidade objetiva do transportador e da arrendadora. Sinistro ocorrido durante as comemorações do 55º aniversário do aeroclube de Lages. Nexo causal não configurado. Ausência de responsabilidade. (...) 6. A Segunda Seção do STJ, no âmbito de recurso repetitivo (REsp 1596081/PR, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva), reconheceu que a ausência de nexo causal é apta a romper a responsabilidade objetiva, inclusive nos danos ambientais (calcada na teoria do risco integral). 7. Ao contrário do que ocorre na teoria da equivalência das condições (teoria da conditio sine qua non), em que qualquer circunstância que haja concorrido para produzir o dano pode ser considerada capaz de gerar o dano, na causalidade adequada, a ideia fundamental é que só há uma relação de causalidade entre fato e dano quando o ato praticado pelo agente é de molde a provocar o dano sofrido pela vítima, segundo o curso normal das coisas e a experiência comum da vida. 8. No caso, a recorrente, proprietária e arrendadora da aeronave, não pode ser responsabilizada civilmente pelos danos causados, haja vista o rompimento do nexo de causalidade, afastando-se o dever de indenizar, já que a colisão da aeronave se deu única e exclusivamente pela conduta do piloto da outra aeronave, que realizou manobra intrinsecamente arriscada, sem guardar os cuidados necessários, além de ter permitido o embarque de passageiros acima do limite previsto para a aeronave. 9. Os fatos atribuídos à recorrente - ser proprietária da aeronave, ter realizado contrato de arrendamento apenas no dia do evento (oralmente e sem registro), ter auferido lucro, bem como ter contratado piloto habilitado para voos comerciais, mas sem habilitação específica para voos com salto de paraquedismo - não podem ser considerados aptos a influenciar imediata e diretamente a ocorrência do evento danoso, não sendo necessários nem adequados à produção do resultado, notadamente porque o avião ainda estava em mero procedimento de decolagem. Portanto, não há efetivamente uma relação de causalidade entre fato e dano, tendo em conta que o ato praticado pelo agente não é minimamente suficiente a provocar o dano sofrido pela vítima, segundo o curso normal das coisas e a experiência comum da vida, conforme a teoria da causalidade adequada. 10. Recurso especial provido. 7 STJ. 3ª Turma. REsp 1615971/DF, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, j. em 27/09/2016, DJe 07/10/2016. 8 A expressão "observador experiente" está em SAMPAIO DA CRUZ, Gisela. Ob. cit. p. 70. 9 MAGADAN, Gabriel de Freitas Melro. Responsabilidade civil extracontratual: causalidade jurídica - seleção das consequências do dano. São Paulo: Editora dos Editores, 2019. p. 73. 10 "O ato de menor gravidade cometido por determinado sujeito, no sentido de causar um dano menor, não pode abarcar os danos maiores, ainda que tenha criado as circunstâncias para que se deflagrem. As situações mais gravosas havidas pelas precondições estabelecidas não configuram o curso normal dos acontecimentos (exceto, como se disse, frente à prova da culpabilidade), e poderiam gerar a responsabilidade pelo improvável, imponderável, admitindo a aleatoriedade como regra para a reparação." MAGADAN, Gabriel. Ob. cit.p. 93. 11 A respeito do tema: RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade civil ambiental do financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, especialmente p. 211 e ss; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 397 e ss.; GRIZZI, Ana Luci Esteves, BERGAMO, Cintya Izilda, HUNGRIA, Cynthia Ferragi; CHEN, Josephine Eugenia. Responsabilidade civil ambiental dos financiadores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 31 e ss. 12 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 639. 13 A respeito do tema, com profunda análise a respeito do nexo causal, veja-se: FACCHINI NETO, Eugênio. Há via do meio na responsabilidade civil pelos danos à saúde do fumante?. Revista IBERC, v. 2, n. 1, p. 1 - 27, 22 maio 2019. 14 Atente-se ao enunciado da Súmula n. 385 do STJ, com o seguinte teor: "Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento". Esse enunciado deva ser revisto, pois anotações sucessivas podem afetar o score de crédito do indivíduo no mercado, conforme o seu perfil, que considera as anotações de débito em cadastros de pagadores. Para esse fim, portanto, haveria causalidade entre a nova anotação e o prejuízo àquele que tenha sido injustamente inscrito em cadastros de devedores.  15 Quanto a conduta da vítima, veja-se o que dispõe o Enunciado n. 630 CJF: "Art. 945: Culpas não se compensam. Para os efeitos do art. 945 do Código Civil, cabe observar os seguintes critérios: (I) há diminuição do quantum da reparação do dano causado quando, ao lado da conduta do lesante, verifica-se ação ou omissão do próprio lesado da qual resulta o dano, ou o seu agravamento, desde que (II) reportadas ambas as condutas a um mesmo fato, ou ao mesmo fundamento de imputação, conquanto possam ser simultâneas ou sucessivas, devendo-se considerar o percentual causal do agir de cada um". 16 MANZON, Riccardo; NEGRO, Antonello; SELLA, Mauro; ZIVIZ, Patrizia (a cura di Paolo Cendon). Trattario di diritto civile. Illeciti. Danni. Risarcimento. Milano: Giuffrè, 2013. p. 115. 17 Exemplifique-se com a condenação da indústria do cigarro por doença pulmonar de fumante: "Apelação cível. Ação de reparação de danos. Tabagismo. Responsabilidade civil da indústria do fumo. Agravo retido da ré. Prescrição. Inocorrência. Agravo retido da autora. Provimento. Cerceamento de defesa. Necessidade de produção das provas requeridas. Nexo de causalidade. Multifatorialidade que não impede o acolhimento, em tese, da demanda. Livre-arbítrio. Limitação. Invocabilidade apenas parcial da ideia. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade da ideia de periculosidade inerente. (...) NEXO DE CAUSALIDADE. O simples fato de a doença que acarretou a morte do marido da autora ser multifatorial (doença pulmonar obstrutiva crônica) não exclui a possibilidade de se evidenciar que a sua causa principal estivesse vinculada ao vício do tabagismo. O acolhimento irrestrito da tese ventilada na sentença e acolhida em muitos julgados leva, com a devida vênia, a um absurdo lógico. Deve-se levar a sério as conclusões da ciência médica que apontam, com dados cientificamente irrefutáveis e atualmente indiscutíveis, pois objeto de consenso médico universal, para o fato que determinadas doenças (especialmente as pulmonares) estão necessariamente vinculadas ao vício do fumo num percentual que por vezes se situa entre 80 e 90% dos casos. (...)  Inequívoco, portanto, o nexo de causalidade científico e irrefutável entre a conduta (tabagismo) e o efeito (desenvolvimento da doença), dentro dos limites estatísticos. Todavia, se todas essas cem pessoas ajuizassem ações individuais, a invocação da tese sentencial faria com que todas as cem pretensões fossem desacolhidas, apesar da certeza científica e irrefutável de que entre 80 a 90% daqueles autores tinham inteira razão. (...) Nosso sistema probatório não exige uma prova uníssona e indiscutível, mas sim uma prova que possa convencer o juiz, dentro do princípio da persuasão racional. É verdade que há que se ter elementos que apontem para a existência dos fatos constitutivos do direito do autor. Mas não há necessidade de que tal prova seja incontroversa. (...)  Lição doutrinária no sentido de que ainda que se aceite a impossibilidade de se aferir, com absoluta certeza, que o cigarro foi o causador ou teve participação preponderante no desenvolvimento da enfermidade ou na morte de um consumidor, é perfeitamente possível chegar-se, mediante a análise de todo o conjunto probatório, a um juízo de presunção (oriundo de provas indiciárias) sobre a relação que o tabagismo teve num determinado acidente de consumo." TJRS. Nona Câmara Cível. Apelação cível n. 70059502898. Rel. Des. Eugênio Facchini Neto. J. em 16 dez. 2015. Disponívelm aqui. 18 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio. 20 anos do Código Civil brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88.
1. INTRODUÇÃO Desde a entrada em vigor do Código Civil atual o debate em torno da interpretação do art. 406 se manteve ativo. Duas correntes disputaram a fixação do significado da expressão "taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". De um lado, havia aqueles que se filiavam à interpretação de que referida taxa é a prevista no art. 161, §1º do CTN, qual seja de 1% ao mês, e de outro a corrente que apontava como taxa aplicável a SELIC, por força do que dispõem as leis 9.250/95, 8.981/95 e 9.430/96. A doutrina majoritariamente se filiou à primeira tese1. Por outro lado, no âmbito do STJ, ainda que não especificamente sobre as dívidas civis, a posição sempre se inclinou pela aplicação da SELIC, em especial a partir de decisões da 1ª seção sob relatoria do falecido ministro Teori Zavascki2 e na decisão do Tema repetitivo 1123, vindo essa posição a ser reiterada no julgamento do Tema repetitivo 9054 e, mais recentemente, na decisão proferida pela corte especial no REsp 1.795.9825. Com a conclusão do julgamento do REsp 1.795.982 e o advento das alterações do Código Civil promovidas pela lei 14.905/24, nasce para a sociedade um problema a ser tratado: a existência, ou não, de impacto sobre os negócios jurídicos firmados fora do âmbito do Sistema Financeiro Nacional e de outras áreas de exclusão do alcance do decreto 22.626/33, durante a vigência da redação original do art. 406 do CC e no período em que não firmado precedente qualificado sobre a taxa de juros aplicável sobre as dívidas civis. Além disso, um outro problema se coloca. É fato notório que, influenciada pela redação do CC/16 que fixava a taxa legal em 6% ao ano e pela redação do art. 192 da CF/88 vigente até a EC 40/03, a sociedade brasileira se acostumou, quanto às dívidas civis, com uma taxa fixa de juros legal de 12% ao ano a partir da vigência do CC/02. Com a recente alteração legislativa - e mesmo com a predominância no STJ da posição doutrinariamente minoritária de aplicação da SELIC às dívidas civis mesmo antes dela - passa-se a ter uma taxa móvel ou variável como fiel para avaliação das disposições contratuais firmadas anteriormente. Desse modo, pensando-se em uma cláusula que fixou juros moratórios à taxa de 1% ao mês, há meses em que esse percentual poderá estar acima da taxa legal, e há meses em que poderá estar abaixo. No que se refere aos impactos para a responsabilidade civil, os juros moratórios, que enfrentavam já a discussão sobre a sua taxa, passam a apresentar outras problemáticas que influenciam diretamente a composição das dívidas decorrentes de decisões judiciais, o efeito da mora para os negócios e a capacidade de as partes prefixarem as consequências do inadimplemento. É o que se buscará, nessas breves linhas, abordar à luz das alterações promovidas pela lei 14.905/24 e das regras de direito intertemporal do CC. 2. EFEITOS DA LEI - DIREITO INTERTEMPORAL A primeira grande questão que se coloca em relação à lei 14.905/24 se relaciona com a produção dos seus efeitos. Publicada em 1/7/24, a sua vigência plena se deu, por força da vacatio legis estabelecida em seu art. 5º, II, no dia 30/9/24. Mas não é essa a polêmica que se vislumbra, e sim um aspecto de direito intertemporal relacionada com a mencionada norma. Não se ignora que a vigência da lei se iniciou apenas a partir do fim do período de vacância, e que não há espaço para discussão sobre uma retroatividade da lei. Discussões judiciais sobre qual a taxa aplicável aos juros legais encerradas antes da lei não sofrem os seus efeitos, em prestígio à proteção da coisa julgada. A dúvida que fica é a seguinte: a nova taxa de juros legais que passou a viger a partir do final de agosto aplica-se aos negócios jurídicos celebrados anteriormente à publicação da lei? E se sim, a partir de quando os efeitos serão sentidos? Em princípio a resposta seria claramente negativa, pois sabe-se que normas de direito material não comportam retroatividade e, em regra, só se aplicam a negócios constituídos após o início de vigência de uma lei6. Ocorre que nesse caso não há que se falar em retroatividade ou produção de efeitos imediatos, mas sim a verificação de efeitos que serão produzidas no âmbito do plano da eficácia de um negócio jurídico. Isso porque, a aplicação dos juros legais não impacta a formação de um negócio jurídico, atuando no momento de produção dos seus efeitos, mais especificamente a partir do momento que o inadimplemento for verificado. Interessante notar que do ponto de vista regulatório, a resposta para as dúvidas acima colocadas se encontra no meio termo. Após a regulamentação das novas regras aplicáveis aos juros legais realizada pelo CMN7, o Banco Central do Brasil passou a disponibilizar na sua aplicação "Calculadora do Cidadão" uma aba destinada exclusivamente ao cálculo dos juros legais8. Porém, a mencionada aplicação não permite que o cidadão calcule a nova taxa de juros legais imputando uma data inicial anterior a 30/9/24. Nesse sentido, a aplicação não se preocupa com a data de constituição da dívida, até porque não é função do BACEN se preocupar com tal questão, mas por outro lado não permite que no cálculo a taxa leve em conta uma data anterior à da vigência da lei 14.905/24. Para dar uma solução para essa questão, busca-se na correta interpretação do art. 2.035 do CC uma resposta. O mencionado artigo, que faz parte do livro complementar das disposições transitórias do CC, estabelece que aos negócios jurídicos celebrados antes da sua vigência aplicam-se, quanto à validade, as regras jurídicas anteriormente vigentes. Por sua vez, quanto a eficácia dos negócios jurídicos, deve-se observar as regras do próprio código. Ao comentar o mencionado dispositivo, Mario Luiz Delgado esclarece que ela estabelece uma espécie de retroatividade mediana, possibilitando que a lei posterior se aplique a negócios jurídicos nos quais os efeitos jurídicos ainda não foram consumados9. Diferente não é a doutrina de Limongi França, para quem a lei nova se aplica aos facta pendentia quanto às suas partes posteriores, bem como aos facta futura10, isto é, tratando-se de mora, a partir da nova lei os juros posteriores passam a obedecer à nova taxa legal. Dessa forma, entendemos que o disposto na lei 14.905/24, e mais especificamente a nova regra sobre a taxa legal de juros, deve ter aplicação imediata, pois é uma lei que afeta o plano da eficácia do negócio jurídico. Assim, a forma de cálculo atualizada dos juros legais deve ser aplicada a todos aqueles negócios jurídicos existentes e válidos anteriormente à vigência da lei, salvo obviamente disposição em contrário ou estabelecimento convencional da taxa de juros, nas hipóteses em que permitido11. Mais que isso, defendemos que a forma de cálculo deve acompanhar a integralidade da evolução da dívida, mesmo que o inadimplemento tenha ocorrido antes da vigência da lei12. Isso porque o momento de fixação da taxa legal se dá quando a decisão judicial ou arbitral for proferida, aplicando-se, portanto, as regras de eficácia vigentes no momento da aplicação.13 1. 3. EFEITOS DA LEI - APLICAÇÃO EM TABELAS E ÍNDICES PRÉ-DEFINIDOS Limongi França em obra clássica sobre o tema do direito intertemporal destaca que o fato de a lei nova ter efeito imediato sobre os negócios jurídicos não é colidente com a regra geral de não retroatividade, porque os efeitos imediatos não afetam, a priori, os fatos anteriores e os efeitos anteriores decorrentes desses fatos14. Assim, continua Limongi França, "as novas leis ainda quando não expressas, se aplicam às partes posteriores dos facta pendentia, ressalvado o Direito Adquirido"15. Ou seja, os efeitos posteriores à nova lei, ainda que decorrentes de fatos anteriores, são por ela regulados. Como exposto, a aplicação dos juros moratórios em uma dada relação jurídica insere-se no plano da eficácia. Ainda que o inadimplemento seja anterior, a situação de mora se renova periodicamente, se protraindo no tempo, de modo que as renovações posteriores à nova lei devem obedecer ao regramento por ela determinado. Nos casos em que as partes se omitiram quanto à taxa de juros moratórios em contratos anteriores à lei 14.905/24 a solução não é diferente, mas não apenas por uma questão de eficácia, senão pela mera supletividade da regra. Ao se omitirem, as partes se sujeitam integralmente à norma vigente ao tempo dos efeitos. Mudando a regra de regência supletiva, muda-se a taxa vigente no negócio. E quando as partes expressamente previram no contrato a aplicação de juros moratórios de 1% ao mês? Ou mesmo previram a aplicação da SELIC? Vale lembrar que a nova taxa legal é calculada de forma simplificada através da fórmula SELIC - IPCA, portanto, nos dois casos a problemática surge. Diferentemente dos juros moratórios, os ditos remuneratórios se encontram no plano da validade, em um momento de formação contratual, integrando, usualmente, a própria contraprestação em razão da disponibilização do capital por uma das partes. Os juros moratórios, ainda que inseridos no contrato desde a sua formação, são previstos apenas para a hipótese de inadimplemento. Isso significa que eles não integram a contraprestação originária, mas somente passam a integrar o patrimônio do contratante quando do inadimplemento da contraparte, a cada mês em que o período de mora se renove. Assim, o momento de avaliação da legalidade da taxa de juros moratórios é quando estes se tornam exigíveis e passam a integrar o patrimônio do credor, e não o da formação do contrato. A leitura isolada do texto do art. 406 do CC poderia levar à interpretação, equivocada, de que as expressões "Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada" permitiriam a prevalência das cláusulas que fixam a taxa de juros moratórios em qualquer hipótese. A norma do art. 406, contudo, não é dispositiva para todos os seus destinatários. Há de ser realizada a devida leitura sistemática, de modo que a prevalência, no caso dos juros moratórios, da taxa contratada sobre a legal se dá em duas hipóteses: i) nos casos em que a taxa convencionada for inferior à taxa legal; ii) nos casos em que o contrato tem como uma das partes pessoa autorizada a pela lei a contratar juros moratórios acima das taxas legais. Caso a taxa de juros moratórios prefixada ou utilizada para o cálculo de tabelas seja nominalmente inferior à taxa legal, deve prevalecer o que convencionado pelas partes. O art. 406 não é norma puramente cogente, há parte dispositiva, contudo, limitada a liberdade contratual das partes à taxa legal. Assim, caso as partes prevejam como índice de juros moratórios ou utilizem tabelas destinadas ao cálculo de prestações no caso de mora que sejam inferiores à taxa legal, prevalecerá o que contratado, privilegiando-se aquilo que as partes livremente convencionaram. Por outro lado, para os efeitos do inadimplemento que ocorrerem após a entrada em vigor da lei 14.905/24, se a taxa de juros moratórios convencionada for superior à taxa legal, ajustes precisarão ser realizados. Isso, a depender se o negócio se insere nas exceções aos limites da lei de Usura ou não, o que será objeto de análise no tópico seguinte. Diferente não era a interpretação na vigência da redação original do art. 406 do CC, que já trazia a referida abertura, ainda que com redação diversa. É assente que somente poderiam convencionar juros além do limite legal as pessoas cuja liberdade não é restringida pela lei de Usura. A nova lei, portanto, não traz nova interpretação quanto aos limites da norma dispositiva contida na redação do art. 406 do CC. Assim, a abertura dispositiva contida na primeira parte do art. 406 do CC não representa autorização para que os índices e taxas de tabelas previamente contratados para a situação de inadimplemento prevaleçam sobre a taxa legal, ficando limitados quanto a seus efeitos posteriores à nova lei, dado que não caracterizados como fatos pretéritos, mas como partes posteriores de fatos pendentes (facta pendentia). 2. 4. REVOGAÇÃO DA APLICAÇÃO DA LEI DE USURA AOS NEGÓCIOS ENTRE PESSOAS JURÍDICAS A lei 14.905/24 trouxe outra importante alteração, o alargamento das exceções aplicáveis às restrições de liberdade contratual presentes na lei de Usura. No período pretérito à nova legislação, poucas eram as exceções à lei de Usura. Basicamente apenas as pessoas jurídicas de direito público e privado integrantes do Sistema Financeiro Nacional estavam autorizadas a contratar juros acima do limite legal, conforme sedimentado na súmula 596 do STF, editada em 197616.  O projeto de lei que originário (PL 6233/23) previa originalmente três novas exceções à lei de Usura, para além da exclusão das entidades do SFN de seu alcance, a saber as operações: contratadas entre pessoas jurídicas; representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários; ou contraídas perante fundos ou clubes de investimento. Após emendas, a redação final foi além, incluindo entre as obrigações não alcançadas pelos limites da vedação legal aquelas contraídas perante, expressamente, as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central; sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; e organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a lei 9.790, de 23 /3/99, que se dedicam à concessão de crédito. Das exceções inseridas, duas previsões merecem destaque. A primeira nas obrigações contraídas entre pessoas jurídicas e a segunda naquelas representadas por títulos de crédito e valores mobiliários. Surgem duas questões: i) nas operações contratadas entre pessoas jurídicas a análise dos limites de liberdade é meramente formal de modo que não há qualquer limitação legal à taxa de juros a ser contratada?; ii) no que diz respeito aos títulos de crédito, qualquer obrigação representada por título de crédito está excluída do alcance da lei de Usura? Dado à limitação de espaço, em linhas preliminares, parece que a resposta a ambas as perguntas é negativa. Sequer para as operações contratadas no âmbito do SFN no período anterior à nova lei havia irrestrita liberdade quanto à taxa de juros contratada. Portanto, a exclusão das obrigações contratadas entre pessoas jurídicas das restrições da lei de Usura não significa ampla e irrestrita liberdade formal, devendo ser realizado um juízo de proporcionalidade a partir dos parâmetros de mercado. Ainda que nos contratos entre pessoas jurídicas os espaços de liberdade negativa sejam ampliados, isso não significa que são irrestritos. Interagem com outros perfis na relação negocial17. A livre fixação de taxas de juros moratórios nos negócios firmados por pessoas jurídicas prestigia a autonomia privada e a alocação de riscos do negócio pelas partes, de modo que a avaliação de razoabilidade das taxas prefixadas não foge dos critérios de interpretação gerais dos negócios jurídicos que se presumem simétricos e paritários, conforme previsto no art. 421-A do CC. Ressalvado que, para os fins da exceção prevista na lei 14.905/24, o contrato assim considerado deve ser o firmado entre partes que sejam pessoas jurídicas, não se admitindo aí relações entre uma pessoa jurídica e outra natural. Também quanto aos títulos de crédito, especialmente, a interpretação da exclusão não deve ser a mais abrangente. O entendimento de que, por exemplo, qualquer nota promissória pudesse prever juros acima da taxa legal, significaria uma abertura para evitar a limitação do art. 591 do CC nos contratos de mútuo, por exemplo. Bastaria às partes que ao invés de formalizarem o contrato via instrumento próprio, emitissem uma promissória com vencimento para a data da devolução do capital e a taxa de juros superior ao limite legal. Seja por interpretação pela visão sistemática ou finalística, a conclusão é a de que os títulos de crédito vinculados a operações excluídas do âmbito das restrições da lei de Usura. Os juros moratórios são uma sanção contra o inadimplemento parcial da obrigação. Assim, a sua definição pelas partes representa alocação de riscos dos negócios, devendo ser privilegiada nos contratos em que autorizada a sua fixação em valores acima da taxa legal, observada a razoabilidade e a condição dos contratantes no caso concreto. Dessa forma, com base nos controles e filtros legais que tutelam o exercício de posições jurídicas pelas partes, uma redução de taxa de juros que seja reputada abusiva pelo julgador será justificável, em especial considerando a vedação do abuso de direito e a função corretiva que emana da boa-fé objetiva. 5. LIMITE LEGAL APLICÁVEL AOS JUROS QUANDO CONVENCIONADOS - INTERPRETAÇÃO DA LEI DE USURA A última controvérsia que cabe analisar no presente texto diz respeito ao limite legal a ser aplicado quando as partes convencionam os juros moratórios aplicáveis ao contrato. Como se viu acima, a lei de Usura continua em vigor para relações jurídicas que tenha pelo menos uma parte que seja pessoa natural. Em razão disso, as disposições contidas nos arts. 1º e 5º da mencionada lei aplicam-se à essas relações jurídicas, o que pode levar à nulidade da cláusula que estabelece os juros em um contrato18. Adicionado a isso, observa-se a prática contratual brasileira que na sua grande maioria adota a taxa de 1% ao mês, calculada pro rata die, como taxa de juros convencionalmente utilizada. Assim, surgem as seguintes dúvidas: como definir o limite legal aplicável aos juros estipulados pelas partes? Como calcular o que seria o dobro da taxa legal? As taxas de 1% ao mês estabelecidas em contratos serão ou poderão ser consideradas nulas? A correta interpretação dos artigos acima mencionados à luz do disposto no atual CC sempre foi bastante controversa. Na vigência da antiga regra, Daniel Bucar e Caio Ribeiro Pires, de forma bastante minuciosa, apontavam que, a partir da análise doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, podemos encontrar argumentos para defender 5 limites legais diversos, quais sejam: 1) a própria SELIC; 2) o dobro da SELIC; 3) a SELIC acrescida de 12% ao ano; 4) a taxa1% ao mês, ou seja 12% ao ano; 5) o dobro de 1% ao mês, ou seja 24% ao ano19. Como a alteração promovida pela lei 14.905/25, algumas dessas hipóteses são afastadas, já que a taxa legal restou definida. Mas essa definição não é capaz de afastar as dúvidas colocadas acima. Isso porque o legislador acabou por acolher uma taxa que é essencialmente móvel, com variação diária de acordo com a regulamentação do CMN20. Dessa forma, calcular qual valor representa uma "taxa(s) de juros superior(es) ao dobro da taxa legal" não é uma tarefa das mais fáceis. Considerando tal variação, a taxa fixada pelas partes pode ser maior ou menor que o dobro da taxa legal a cada dia que se passa. Se as partes estabelecerem, como ocorre usualmente, uma taxa de juros de 1% ao mês para o caso de atraso no pagamento da remuneração de um contrato de prestação de serviços, é possível que em um dia a taxa esteja dentro do limite legal, enquanto no outro ela esteja acima. Nesse caso, a taxa como um todo seria nula, ou apenas deve-se considerá-la nula nos dias nos quais o seu patamar superar o dobro legal? A resposta não se mostra simples. Certo é que as regras que estabelecem a nulidade de um negócio jurídico, em razão do seu interesse coletivo, são normas de ordem pública, não comportando confirmação ou convalescimento.21 Por outro lado, declarar nula uma cláusula que encontra uma enorme adesão social por conta de um excesso mínimo ou pontual, pode se mostrar excessivo. Tendo isso em mente, a solução mais adequada deve ser a intermediária, sendo necessário verificar a taxa média aplicada ao longo da situação de inadimplemento da obrigação. Será nula a estipulação quando as partes estabelecerem juros superiores ao dobro legal22. Mas somente nos casos nos quais a média da taxa convencionada for mais que o dobro da taxa legal. Se as partes estabelecerem um patamar médio que seja inferior ao limite legal (ou seja, o dobro), ela deve ser considerada válida. Por outro lado, caso me média a taxa convencionada seja superior ao dobro da média da taxa legal para o mesmo período, o julgador deve declará-la nula e aplicar a taxa legal. Duas são as ressalvas finais sobre essa questão. Em primeiro lugar, deve-se sempre lembrar que essa limitação se aplica apenas às relações sujeitas à lei de Usura e que não tenham regulamentação específica. Em segundo lugar, por se tratar de um controle que atua no plano da validade do negócio jurídico que estabelece os juros moratórios convencionais, o disposto na lei 14.95/24 só se aplica aos contratos celebrados após o início da sua vigência. 4. 6. CONCLUSÃO Com o advento da lei 14.905/24, uma das grandes dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais sobre a correta interpretação do CC acaba por se encerrar. A mencionada norma, como demonstrado, ao alterar a redação do art. 406 do diploma civil encerra a discussão que durou mais de 20 anos, fixando como taxa de juros legal o resultado líquido da subtração da taxa SELIC pelo IPCA. Com isso, na falta de disposição em contrário, uma relação jurídica de direito privado na qual se verificar uma situação de inadimplemento estará submetida aos juros moratórios calculados considerando essa taxa. Se a lei tem como principal mérito definir de forma definitiva a taxa de juros supletiva vigente na realidade brasileira, infelizmente ela acaba por deixar algumas lacunas e dúvidas adicionais. Em razão disso, não alcança a plena segurança jurídica que se propôs. Nesse breve ensaio sobre a lei, procuramos apontar quatro questionamentos que ainda pairam sobre o regime legal aplicável aos juros moratórios, cogitando soluções para cada um deles. Assim, para concluir o presente texto de forma propositiva, apresentamos as seguintes considerações: 1) Em que pese a vigência plena da lei 14.905/24 tenha se iniciado apenas em 30/8/2024, a nova taxa de juros legal por ela introduzida aplica-se a todas as relações jurídicas em curso, quanto às suas partes posteriores, mesmo aquelas constituídas anteriormente à publicação da lei, atuando, pois, no plano da eficácia. 2) A lei 14.905/24 não criou uma autorização para que as partes não excepcionadas da lei de Usura estabeleçam índices e taxas de tabelas para a situação de inadimplemento que prevaleçam sobre a taxa legal, sendo certo que esses ficarão limitados quanto a seus efeitos posteriores à nova lei. 3) A maior liberdade trazida pela lei 14.905/24 quando à fixação da taxa de juros moratórios, em razão das novas hipóteses de exceção à lei de Usura, ainda que autorize que as partes excepcionadas estabeleçam taxas superiores ao limite legal, não permite que o façam de modo abusivo. 4) No exercício de controle da taxa de juros moratórios, de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 1º e 5º da lei de Usura, deve-se considerar como nula a taxa convencionada pelas partes que supere o dobro da taxa média legal para o período avaliado. __________ 1 É o que se extrai do Enunciado nº 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça: "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês". Essa era também a posição de um dos autores desse texto: Disponível aqui. Cabe apontar que aquilo que se defendeu no mencionado artigo não foi acolhido pela Lei 14.905/2024, que optou por seguir uma direção diversa. O tema também foi objeto de debate com a Professora Renata Steiner (que defendeu a posição adotada pela lei) em webinar organizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil: Disponível aqui. 2 EREsp 727.842/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, 8/9/08 e REsp 1.102.552/CE - 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 6/4/09. 3 Cf. Disponível aqui. 4 STJ. REsp n. 1.495.146/MG, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 22/2/2018, DJe de 2/3/2018: "[...] nos termos do art. 406 do CC/2002, 'quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional'.  Conforme entendimento pacificado pela Corte Especial/STJ, 'atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)' 5 Nesse caso, a Corte Especial do STJ reafirmou o entendimento de que a interpretação a ser conferida ao art. 406 do Código Civil é de que a taxa ali indicada é a SELIC 6 Como leciona Franciso Amaral ao destacar que o direito intertemporal é regido por dois princípios fundamentais, quais sejam, o do efeito imediato e o da irretroatividade. (Direito civil: introdução. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018 p. 188). 7 Por força da introdução do §2º do art. 406 do Código Civil, alterado pela lei 14.905/2024: "§ 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil." 8 Que pode ser acessada por meio desse link: Disponível aqui. 9 DELGADO, Mário Luiz. Comentários ao art. 2.035. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1712-1713. 10 LIMONGI FRANÇA, R. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 258. ' 11 No mesmo sentido é a posição de Carlos E. Elias de Oliveira, o qual adverte que situações como essas não garantem direito adquirido aos credores, em razão da sua natureza de situação jurídica institucional. (Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a Lei dos Juros Legais (Lei nº 14.905/2024): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Disponível aqui. 12 O que, ao nosso ver, se harmoniza com o enunciado 300 da IV Jornada de Direito Civil do CJF: "A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio." 13 Interessante notar que essa solução foi a adotada pela Lei de Usura (Decreto 22.626/1933), que no seu art. 3º estabelece o seguinte "Art. 3º As taxas de juros estabelecidas nesta lei entrarão em vigor com a sua publicação e a partir desta data serão aplicaveis aos contratos existentes ou já ajuizados." 14 LIMONGI FRANÇA, R. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 200. 15 LIMONGI FRANÇA, R. op. cit. p. 202. 16 STF. Súmula nº 596. As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional. (Sessão Plenária de 15/12/1976). 17 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Liberdade(s) e Função. contribuição crítica para uma nova fundamentação da dimensão funcional do Direito Civil brasileiro. 2009. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009, p. 229. 18 Em razão da chamada nulidade virtual prevista no art. 166, VII do Código Civil: "Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção." 19 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil. In: Inexecução das Obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 474. 20 Como se extrai da redação do art. 6º, Parágrafo Único, da Resolução CMN 5.171 de 29 de agosto de 2024. 21 Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. 22 Nesse sentido, concordamos com a posição de OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a Lei dos Juros Legais (Lei nº 14.905/2024): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Disponível aqui.
 No último dia 25 de setembro de 2024, o STF, após longa e injustificável demora, finalmente concluiu o julgamento sobre o direito à recusa à transfusão de sangue, por pessoas maiores e capazes, Testemunhas de Jeová. Por unanimidade os ministros da Corte Superior, confirmaram o direito à recusa terapêutica e definiram que o Estado tem a obrigação de oferecer, quando possível, procedimentos alternativos que estejam incorporados no SUS (o que também está em consonância com o definido no recente julgamento do tema 12341 e na Súmula Vinculante 602). As decisões ocorreram no âmbito dos recursos extraordinários 9797423 e 12122724, de relatoria dos ministros Roberto Barroso e Gilmar Mendes, respectivamente, das quais resultaram as seguintes teses de repercussão geral (temas 952 e 1069): RE 979742 Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no SUS podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio. RE 1212272 É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde por motivos religiosos é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade. É possível a realização de procedimento médico disponibilizado a todos pelo Sistema Único de Saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente. A demora nos dois julgamentos talvez seja reflexo do ranço cultural brasileiro de querer controlar os corpos a partir dos próprios valores pessoais, desconsiderando a autonomia do titular desse corpo para a tomada de decisões. Isso pode ser confirmado com as primeiras manifestações postadas após a divulgação das decisões: "como assim, a pessoa prefere morrer a receber tratamento médico?"; "vou realizar a transfusão mesmo contra a vontade"; "não vou deixar morrer por questões religiosas"; "liberdade religiosa não pode dar direito a morrer"; "mas e se for urgência, não é obrigatória a intervenção?"; "o que acontece com o médico que optar por salvar a vida do paciente, desconsiderando o seu desejo de não receber o tratamento?"... As frases não só foram proferidas por profissionais da saúde, como também por profissionais e acadêmicos de Direito, insistentes na visão paternalista que coloca ênfase na cura ou tratamento a qualquer custo, desconsiderando a visão humanizada que considera a prevalência das escolhas pessoais do paciente. Embora a discussão tenha sido estabelecida a partir de dois casos que versavam sobre escolhas realizadas em razão de valores religiosos, é possível compreender de que se está a tratar de algo muito maior: de autodeterminação sobre escolhas existenciais. O direito ao próprio corpo foi reconhecido expressamente como direito de personalidade no art. 13, do Código Civil, parte da tutela à integridade física. No entanto, ao mesmo tempo em que o legislador declarou o direito ao próprio corpo, ainda prevalecem visões muito conservadoras sobre que se referem a escolhas sobre tratamentos médicos. Isso se dá não só porque ainda se considera o direito ao próprio corpo como referente apenas à saúde física, afastando-se do conceito estabelecido pela OMS, de que saúde é estado de completo bem-estar físico, psíquico e social (o que inclui as escolhas realizadas a partir de valores religiosos), mas também porque se faz uma leitura muito restritiva da autorização contida no art. 15, do Código Civil. Essa obsessão histórica, científica e cultural pelo controle do corpo resulta das tentativas de controle da própria subjetividade humana, fruto do Biopoder que atua constantemente sobre os corpos controlando-os, marcando-os, dirigindo-os, estimulando-os, adestrando-os, limitando-os. No entanto, o corpo físico não pode mais ser pensado dissociado do psicológico ou do meio social em que está inserido, nem tampouco é suficiente para se falar em pessoa, vez que esta emerge daquele. Por isso, pode-se afirmar que "a pessoa humana é um sistema específico que emerge do corpo humano (seu componente) em relação com o meio que o circunda, graças a estruturas e mecanismos específicos [...], portanto, a pessoalidade não está no cérebro, mas fora dele, na interação"5. Daí a necessidade de se compreender a recusa terapêutica como um direito do paciente, do qual médicos não possuem qualquer direito de desconsiderar, ignorar, subverter ou rejeitar6. O corpo humano (como elemento da pessoalidade) deve ser pensado a partir de um conceito pós-metafísico de pessoa, ou seja, como elemento conformador da identidade pessoal e instrumento realizador da própria identidade.  Esta premissa é importante para se compreender a abrangência do direito ao próprio corpo, uma vez que a autodeterminação (como capacidade de fazer escolhas e se responsabilizar por elas) deverá ser pensada a partir dos valores constitutivos da própria pessoalidade e a forma como estes valores interagem com o corpo e com a autonomia visando a autorrealização de seu titular. A indisponibilidade dos direitos de personalidade, disposta no art. 11, do Código Civil, não pode conduzir a autorizações de intervenções médicas não consentidas sobre o corpo do paciente. Portanto, é preciso mudar o falso discurso pró-vida (normalmente fundado em uma intangibilidade da vida justificada por quantidade e não por qualidade) e entender que o paciente que, esclarecido sobre as consequências de sua recusa e os riscos dela decorrentes, mantém sua decisão, não está escolhendo morrer por suas convicções (morais ou religiosas), mas sim, viver de acordo com elas. Significa dizer, assim, que o art. 11, do Código Civil, não deve ser interpretado apenas em sua literalidade, mas sim, sob a luz da dignidade da pessoa humana. Logo, afirmar o direito ao próprio corpo é, sem dúvida, falar em respeito à autonomia. Autonomia tomada não em seu sentido restrito de autorregulação de interesses privados, mas sim, em seu sentido amplo: corolário de liberdades constitucionais e consubstanciada na ideia de autodeterminação, autogoverno, manifestação da subjetividade, exprimindo a ideia de que a cada pessoa se confere liberdade de ditar suas próprias regras, desenvolvendo e realizando a própria personalidade. E, nesse sentido, afirma Godinho7 (2015, p. 99) "a autonomia tem um papel nobre a cumprir: o de facultar a cada pessoa o sentido da sua existência, ancorada nos seus valores, suas crenças, sua cultura e seus anseios", impulsionando, assim a individualidade e sua vida privada. A autonomia aqui defendida não é aquela plena e irrealizável, alheia aos valores sociais; mas sim, uma autonomia razoável, ponto de equilíbrio entre a dominação completa e a liberdade absoluta, capaz de conciliar autorrealização pessoal, dignidade da pessoa humana, desenvolvimento da personalidade e valores decorrentes do princípio da solidariedade social. Uma autonomia concretizadora de liberdades individuais e construída por meio da privacidade. Afastar do alcance da autonomia o direito sobre o próprio corpo com fundamento em modelos éticos e sociais preestabelecidos conduz à degradação do próprio titular do direito que, por escolhas pessoais ou por questões clínicas, não consegue se adequar a esses padrões. É por isso que negar aos pacientes o respeito às suas escolhas existenciais, e portanto, o exercício do direito à recusa terapêutica, contraria a natureza dos direitos de personalidade, limitando-se injustificadamente uma liberdade em nome de molduras biológicas e fisiológicas estabelecidas por padrões sociais, que violam a dignidade humana em seu mais elementar instrumento: o desejo de autorrealização e, por fim, desconsidera o próprio direito à saúde. Neste contexto, surgem inúmeras dúvidas acerca da conduta que o médico deve ter diante de uma recusa terapêutica, dúvidas estas que são resolvidas a partir dos seguintes pressupostos: a decisão do STF refere-se apenas à pacientes capazes, ou seja, maiores de 18 anos em pleno gozo de sua capacidade decisória; o paciente tem direito à recusa terapêutica em casos eletivos e também em casos de urgência ou emergência; se o paciente estiver lúcido, não pode ser coagido a receber o tratamento ao qual está se recusando e deve ser esclarecido das consequências da recusa. Neste caso, é importante que a decisão seja documentada em um termo próprio de recusa terapêutica; se o paciente não estiver lúcido, é preciso verificar a existência de documento de diretiva antecipada (ou equivalente) contendo esta recusa. Caso haja, a manifestação de vontade deve ser respeitada pelos profissionais de saúde e, também, pelos familiares; se o paciente não estiver lúcido e inexistir documento de diretiva antecipada (ou equivalente), não sendo, portanto, possível que o médico saiba da recusa, todos os tratamentos que visam a preservação da vida devem ser realizados. Caso o médico desrespeite a recusa terapêutica estará incorrendo em ato ilícito, punível no âmbito cível (por meio de indenização por danos morais ao paciente ou a seus familiares) e também em âmbito criminal8 (incorrendo no crime de constrangimento ilegal e/ou lesão corporal). No que tange à responsabilidade civil, deve-se ter em mente que o descumprimento da recusa terapêutica é, de per se, causador de dano (de ordem moral ou existencial) uma vez que viola a autodeterminação do paciente e, por consequência, sua dignidade. Importante, ainda, deixar claro que o ato de "salvar a vida do paciente" não exclui a culpa, uma vez que esta existe exatamente em razão de o profissional ter, de forma consciente, praticado um ato à revelia do paciente. Nota-se, inclusive, que há nos EUA a figura de um novo dano, chamado wrongful prolongation of life9, surgido exatamente do descumprimento da vontade do paciente. Nesses casos, é possível enquadrar o desrespeito à recusa terapêutica neste novo dano, quando nessas situações a morte representaria um risco refletidamente assumido pelo paciente que ao recusar o tratamento estaria conscientemente optando por assim resguardar seus valores. Situação mais complicada se dá no âmbito administrativo pois, apesar de há muito sabermos que o médico não pode realizar um tratamento contra a vontade do paciente, a resolução CFM 2.232/201910 permite, em seu (absurdo) art. 11, que o médico desrespeite a recusa terapêutica, ainda que expressa, em caso de situações de urgência e emergência que caracterizem iminente perigo de morte. Assim, nestes tempos tão sombrios para a bioética clínica brasileira, só nos resta esperar que, em breve, o STF julgue a ADPF 64211 e declare a inconstitucionalidade do referido ato normativo. Afinal, é preciso compreender que: (i) o paciente é uma pessoa e que, como tal, deve ser respeitado; (ii) a conduta dos médicos deve ser respaldada pela CF/88, logo, ele só deve salvar a vida de quem quer ser salvo, porque o valor-fonte de todo o sistema é a dignidade da pessoa humana. Então, o dever médico é atuar de acordo com a dignidade do paciente - e isso pode ter diferentes significados que apenas o enfermo poderá dar; (iii) ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei (art. 5o., II, CF) e, não há lei que obrigue a (sobre)viver a qualquer custo (o art. 15, CC, inclusive autoriza a recusa terapêutica), assim como também não há norma que obrigue a tratar quando o paciente expressamente recusa o tratamento; (iv) a realização de tratamento médico não é um direito do médico, mas sim um direito do paciente e um dever do médico que deve ser exercido na exata medida do aquele autorizar. ________ 1 Disponível aqui. 2 Súmula Vinculante n. 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Disponível aqui. 3 Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 952 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a seguinte tese: "1. Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. 2. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde - SUS, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio". Tudo nos termos do voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente). Ausente, por motivo de licença médica, o Ministro Dias Toffoli. Plenário, 25.9.2024. Disponível aqui. 4 Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.069 da repercussão geral, julgou prejudicado o recurso extraordinário e fixou as seguintes teses: "1. É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde, por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade. 2. É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente". Tudo nos termos do voto do Relator. Ausente, por motivo de licença médica, o Ministro Dias Toffoli. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 25.9.2024. Disponível aqui. 5 LARA, Mariana. O direito à liberdade de uso e (auto) manipulação do corpo. Belo Horizonte: D'Plácido, 2014. p. 23-24. 6 Não estamos aqui a nos referir à objeção de consciência. Ao médico é assegurado o direito de não concordar com as escolhas do paciente, mas não é dado o direito de fazer sobrepor suas decisões às do paciente. A objeção de consciência está prevista no inciso VII do Capi´tulo I do Código de Ética Médica, que dispõe que "o me´dico exercera´ sua profissa~o com autonomia, na~o sendo obrigado a prestar servic¸os que contrariem os ditames de sua conscie^ncia ou a quem na~o deseje, excetuadas as situac¸o~es de ausência de outro me´dico, em caso de urge^ncia ou emerge^ncia, ou quando sua recusa possa trazer danos a` sau´de do paciente". 7 GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao próprio corpo. Curitiba: Juruá, 2015. p. 99. A 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o Município de Taubaté a pagar R$35.000,00 a título de indenização por danos morais à filha de uma senhora que recebeu hemotransfusão contra vontade (e morreu mesmo assim). Segundo a Desembargadora Relatora Maria Laura de Assis Moura Tavares, a paciente "era pessoa capaz, que manifestou a sua vontade ao não recebimento da transfusão de sangue de forma livre e informada, em situação que não se caracteriza como de urgência e emergência, para o tratamento de doenças próprias e das quais tinha pleno conhecimento, tendo compreendido e consentido com os riscos da sua escolha, inclusive à sua vida, ao mesmo tempo em que aceitou e recebeu tratamentos alternativos que buscaram a preservação da sua vida" (Fonte: TJSP, Ap. Civ. 1000105-93.2021.8.26.0625. Des. Rel. Maria Laura de Assis Moura Tavares. DJ 13.08.2024). 8 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, Consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo, Márcia Pons, 2019. 9 Dadalto, Luciana; Gonsalves, Natália Recchiutti. (2020). "Wrongful prolongation of life": um novo dano para um novo paradigma de proteção da autonomia. Revista Brasileira De Direito Civil, 25(03), 271. Disponível em Recuperado aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui.
Há alguns anos, a convite da profa. Fernanda Schaefer, ilustre editora desta Coluna, assumi o desafio de escrever capítulo de livro sobre os aspectos internacionais relacionados à telemedicina. Esta convocação, com feições de convite, se dava no contexto da intensificação da regulamentação daquela atividade e na elaboração dos primeiros comentários sobre o tema publicados no Brasil (pela Editora Foco, 1ª edição em 2022 e a 2ª edição, revista e ampliada, em 2024). De forma nada velada, ela me instigava a unir dois temas que vinham sendo objeto de minhas pesquisas há muitos anos: as contratações internacionais e a ampliação de sua realidade prática. Confesso que talvez esta tenha sido uma espécie de gota d'água, verdadeira provocação para "sair à rua como quem foge de casa" e escrever "como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo", como filosofaria Quintana. Propus-me, então, a identificar o tratamento dispensado pelo Direito brasileiro ao tema dos contratos internacionais, sua conceituação, seu tratamento jurídico, a identificação do Direito que lhe é aplicável e, por fim, a percepção que atualmente fazemos dele. Minha premissa era de que, ao contrário dos anos 1990, quando o Brasil reabria sua economia, hoje não poderíamos mais concebê-los como restritos a players profissionais acostumados com a dinâmica do comércio internacional. Isto é, hoje, cada um de nós está potencialmente submetido a regimes contratuais que podem não ser regidos pelo Direito brasileiro. Para identificar os esboços do Direito contratual internacional visto pelo prisma brasileiro tratei de me apropriar de metodologia e linguagem não usuais. Algo que pudesse suavizar o tratamento de matéria que muitas vezes é vista, injustamente, como desinteressante e excessivamente complexa. A linguagem coloquial, exposição explicativa e viés provocativo foram, então, incorporados à redação, não sem deixar exposta um pouco da personalidade daquele que redigiu. Também me apropriei de personagens, alegorias e figuras de linguagem que pudessem contribuir para a fluidez do texto e para acrescentar elementos que pudessem tornar a leitura um pouco mais instigante. É por isso que, no curso da leitura, você é apresentado a uma das mais famosas obras de Albrecht Dürer, ilustrador alemão, e à personagem que o inspirou. O formato proposto serviria, assim, para uma escrita mais livre e acesso a recursos não disponíveis/recomendados aos manuais. Voltando-se, ainda, a um público, potencialmente, muito mais amplo e à valorização e construção do debate. Foi com estas ideias em mente que tentei adaptar a inspiração metodológica aos meus próprios propósitos. Como resultado, gostaria de lhes apresentar o "Guia para o Direito Contratual internacional brasileiro", recém-lançado pela Editora Foco, cujo propósito central é o de apresentação de um recorte atual da discussão sobre a internacionalidade do contrato sob a perspectiva do Direito contratual brasileiro, promovendo, no que fosse possível, debate sobre o tema, fomentar conexões e apontar pontos de destaque que pudessem a receber a atenção do debate legislativo e jurisprudencial ou o interesse profissional e acadêmico do leitor. Minha certeza ao escrever foi a de que este Guia se projetaria à desatualização. Em termos de redação, o Guia foi redigido a partir de algumas perguntas que serviram de balizas e que foram apresentadas no primeiro capítulo. No segundo capítulo, o objetivo foi destacar como - historicamente - é construída a noção de 'contrato' e como ela deve ser - hoje - desconstruída. Na sequência foi apresentado aquilo que torna internacional um contrato e, no quarto capítulo, o objetivo foi entender como se faz a identificação do Direito material aplicável a cada negócio. Como conclusão, em capítulo exploratório, busquei retomar alguns dos questionamentos do primeiro e segundo capítulos, para abordar uma das realidades da contratação internacional pelo viés brasileiro: os contratos com vulneráveis. Gostaria de destacar três pontos deste trabalho. Em primeiro lugar a absoluta preocupação com a atualização da abordagem. Neste sentido, posso mencionar não apenas a menção aos projetos de lei existentes sobre a matéria do Direito aplicável e aos tratados ratificados pelo Brasil em matéria contratual mas, também, a incorporação ao texto das mais recentes alterações legislativas na área (como por exemplo a polêmica regra do art. 63, §1° do CPC).  Em segundo lugar, busquei enriquecer a análise, sempre que julguei apropriado, a partir de casos concretos. Daí porque, sejam eles precedentes judiciais ou cláusulas concretas, julgo que o leitor poderá contextualizar a análise de forma mais completa. E, por fim, no capítulo final, procurei sintetizar as preocupações do Guia utilizando-me, livremente, de um caso concreto. A partir do estudo de um importante precedente do STJ tentei delinear os espaços de abordagem que podem merecer atenção do leitor, do legislador e da jurisprudência de modo a preparar melhor o Direito contratual brasileiro para os desafios internacionalizantes do século XXI.  Dito isso, espero, então, ter-lhe convencido de que este Guia propõe algo distinto do que já lhe foi apresentado antes e, ao final de sua leitura, gostaria de lhe ter retribuído a confiança de que a leitura deste livro permitirá a "estar só e ao mesmo tempo acompanhado", como diria Quintana.
A questão de regulação dos efeitos do tempo nas relações jurídicas suscita, classicamente, especial indagação por se tratar de matéria de relevante interesse teórico e fundamental alcance prático. Trata-se, em linha de princípio, de combinar a tutela da segurança jurídica e da necessidade de estabelecer certa dinâmica no âmbito das relações jurídicas.  No contexto da relevância das figuras da prescrição e da decadência, o direito civil brasileiro é pródigo em estudos, tendo dedicado ao tema um de seus estudos mais famosos: o trabalho do professor Agnelo Amorim Filho sobre a distinção entre a prescrição e a decadência. A preocupação com a análise da matéria persiste na atualidade, como revela a atenção dada por ilustres doutrinadores contemporâneos com o seu desenvolvimento e suas bases teóricas.  A preocupação com as questões relativas ao efeito do tempo no direito não escapou à comissão do nosso atual CC. Na verdade, pode-se dizer que elas constituíram um ponto central de sua atenção. Com efeito, o exame da obra de Miguel Reale sobre o projeto do CC aponta que um de seus objetivos expressos foi o princípio da operabilidade, tendo como exemplo dessa preocupação o delineamento entre prescrição e decadência, a fim de estabelecer os traços distintivos entre as duas figuras, para evitar um fator de confusão e insegurança jurídica.  Ao mesmo tempo, verifica-se que o CC/02 continha um propósito claro nessa matéria: a redução dos prazos prescricionais, tendo sido um dos mais nítidos exemplos dessa tendência a previsão relativa à pretensão indenizatória: 3 anos! O contraste não poderia ser mais marcante quando se recorda o prazo para a mesma situação no direito anterior! Perceptível aqui que o codificador possuía um nítido objetivo: contribuir para uma maior dinâmica social, ditar uma certa aceleração das decisões adotadas pelos particulares, de modo que os eventuais conflitos jurídicos no âmbito da responsabilidade civil fossem suscitados em tempo ágil, relativamente reduzido: 03 anos ! Ao mesmo tempo, estabelecer a paz social após o decorrer desse mesmo período, evitando a inércia por parte dos partícipes das relações jurídicos-sociais.  Cumpre pontuar que a solução preconizada originariamente pelo codificador de 2002 tinha o mérito de harmonizar-se, em princípio, com a solução contida no CDC para as hipóteses de defeito do produto: com efeito, o art. 27, do CDC, prevê o prazo de 05 anos para a ação indenizatória nesse caso.  Ora, sob a premissa de que o CDC regula a relação em que uma das partes é vulnerável, no caso o consumidor, apresenta-se como pertinente a constelação em que o principal prazo prescricional nele previsto é maior que o prazo para as relações hoje qualificadas como paritárias: as civis e empresariais, reguladas pelo CC.  Contudo, numa demonstração cristalina de que a sociedade pode resistir às pretensões do legislador, e consequentemente interferir sobre a eficácia das normas jurídicas , deu-se paulatinamente no direito civil brasileiro uma reação ao projeto de dinamização social formulado a partir do encurtamento dos prazos para as ações indenizatórias. Nesse sentido, a jurisprudência nacional afastou-se da solução de um mesmo prazo para a pretensão de ressarcimento, os citados 3 anos, tendo definido o prazo para a responsabilidade contratual como sendo o decenal, previsto no art. 205, do CC.  Muito embora revestida de fina base doutrinária, que não cabe recordar aqui, esta circunstância demonstra a resistência do meio econômico-social brasileiro a um projeto reformador: considera-se, na verdade, necessária a existência de prazos mais longos para que se possa obter a concretização dos créditos.  Não obstante a presença de relevantes questões constitucionais relativas à necessária tutela do meio ambiente, pode-se vislumbrar a resistência tácita ao prazo de 03 anos como um fator para a decisão do STF de considerar imprescritível a pretensão de reparação cível ambiental. Cabe indagar se a mesma solução seria estabelecida por nossa corte constitucional se o prazo prescricional para a ação de reparação cível atual fosse de vinte anos, como ao tempo do CC/16.  Nesse contexto, a proposta de 05 anos contida no art. 205, do texto de reforma do CC quanto ao prazo de prescrição para a responsabilidade civil possui diversos méritos. Ela retoma, inicialmente, a ideia de um mesmo prazo para as esferas da responsabilidade contratual e extracontratual, a fim de estabelecer segurança jurídica a esse cenário, respeitando o nosso panorama social, na medida em que o estabelecimento do prazo de 03 anos revelou-se exíguo para a realidade brasileira. Em segundo lugar, aprofunda a ideia sistematizante, adotando o mesmo prazo tanto para o sistema geral, regulado pelo CC, como para o sistema especial das relações de consumo, no caso a disposição do art. 27, do CDC, o que se apresenta como uma benesse, ao estabelecer uma harmonização para pretensões que, em essência, decorrem da responsabilidade civil.  Em terceiro lugar, a partir da previsão contida no caput do art. 205, pretende recuperar o projeto de dinamização das relações jurídico-sociais, mediante o estabelecimento de um prazo geral de cinco anos para as pretensões decorrentes de ações condenatórias. Fica a dúvida, porém, se os players do cenário econômico jurídico brasileiro reagirão favoravelmente a essa proposta.  Em quarto lugar, o projeto pauta-se pela moderação, ao manter-se na via binária da responsabilidade civil. É certo que se poderia adotar a tentativa de estabelecer uma terceira via de responsabilidade, no esforço de abranger situações que mereceriam um tratamento especial, como é o caso da hipótese da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares. No entanto, esse caminho poderia conduzir à indeterminação jurídica. A solução de ampliação para o prazo de 05 anos para a responsabilidade civil extracontratual representa uma solução de meio termo para esses casos, o que talvez reconduza a jurisprudência a perseguir os prazos legais estabelecidos, evitando, assim, a justificável invocação da teoria subjetiva da actio nata para preservar a possiblidade de reparação em difíceis questões situadas na zona intermediária entre contrato e delito.  Ao mesmo tempo, estabelece o projeto de reforma o mesmo prazo de 05 anos para a hipótese do ressarcimento por enriquecimento sem causa. Também aqui a solução tem o nítido propósito de racionalização. Atualmente, a previsão existente no art. 206, § 3º, IV institui o prazo de 03 anos para essa situação, que se equipara ao prazo originariamente previsto para a pretensão decorrente da responsabilidade civil.  Ajustando-se o prazo prescricional da responsabilidade civil para 05 anos, opta-se, no projeto, em manter essa simetria. Ao mesmo tempo, a previsão desse prazo iguala-se, conforme já referido acima, ao prazo constante do art. 27, do CDC, o que se constitui em uma tentativa de reduzir a possibilidade de invocação do argumento de que em determinadas hipóteses de ressarcimento, por enriquecimento sem causa, seria invocável o CDC.   Em síntese, pode-se considerar que existem sólidos argumentos a embasar a solução constante do projeto de reforma do CC em um tema tão relevante para essa nevrálgica área do direito privado, que se interliga não somente com a matéria de responsabilidade civil, como também com a efetividade das soluções jurídicas e a sempre perene tentativa de estabelecer a certeza do direito. Mas só o tempo - o fenômeno que se pretende regular -  dirá se a solução proposta pelo projeto de reforma do CC será realmente efetiva...
Nas últimas décadas, já se transformou em truísmo o dizer de Ulrich Beck de que vivemos a sociedade de riscos; ao que ele, no título de seu livro, acrescenta a expressão "em busca da seguridade perdida", a qual não pode ser tomada apenas na perspectiva ambiental, mas considerando-se a conjuntura social como um todo. Pois bem, nessa sociedade de riscos é indubitável que se fazem presentes aqueles que são denominados "de desenvolvimento" (ou estado da arte) que, conforme pacífica doutrina reconhecida no cenário nacional e afirmada por Antonio Herman V. Benjamin é "... aquele risco que não pode ser cientificamente conhecido ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto ou serviço. É defeito que, em face do estado da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço em circulação era desconhecido e imprevisível".  E aos quais, seguindo a mesma linha doutrinária, Ana Paula Atz refere que conglobam "os defeitos que - em face da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço - eram desconhecidos e imprevisíveis".  Trata-se, segundo Benjamin, de espécie do gênero defeito de concepção . Foi principalmente a partir da década de 50 do século passado que esse tipo de problema passou a despertar mais atenção devido a repercussão dos casos ligados aos efeitos da talidomida, medicamento que quando do lançamento no mercado estava sendo considerado seguro (usado para aliviar ansiedade e enjoo), mas posteriormente restou demonstrado que quando consumido por mulheres grávidas, era a causa de malformação congênita nos fetos destas. Desde então, esse tipo de constatação pontuou a detecção de vários outros casos, justificando preocupação com a problemática dos riscos de desenvolvimento. A primeira observação a se fazer é que muito embora essa questão, de modo muito especial envolva a responsabilidade civil em relações de consumo regidas pela lei 8.078/90 (CDC), podem também existirem em situações envolvendo relações regidas pelo CC (exemplo: sob a garantia de tratar-se de um produto seguro, um distribuidor compra um estoque deste, adquire equipamentos ou compra instrumentos relacionados a colocação destes bens no mercado e depois, havendo a descoberta científica de efeito perigoso (por exemplo: radiação), a agência reguladora proíbe a comercialização do mesmo. Então, naturalmente, que os problemas dessa ordem envolvendo consumidores são os mais complexos e delicados, mas não se pode excluir a possibilidade de outros tipos de danos para quem não esteja caracterizado como consumidor. No tocante a responsabilidade civil, os diplomais legais brasileiros mais relacionados com a matéria não trazem referência expressa a riscos de desenvolvimento ou estado da arte. No art. 927 do CC, a expressão "... ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" não pode ser tomada como focada em termos de abarcar riscos de desenvolvimento. Essa interpretação seria generalizar/ampliar excessivamente a concepção, visto que riscos também podem existir em produtos e serviços já suficientemente testados e com resultados comprovados (não contrariados) por novidades surgidas de conhecimentos científicos posteriores ao lançamento. Já o CDC, dentre os motivos excludentes do dever de responsabilização do fornecedor, não elenca expressamente (ope legis) esse tipo de risco como justificativa para isenção. Apenas um detalhe: como argumento para os defendem a isenção, observe-se que o CDC em seu art. 12 diz que o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera levando-se em consideração, dentre outros aspectos, a época em que foi colocado em circulação; e mesmo que outro de melhor qualidade tenha sido colocado no mercado. Entretanto, esse dispositivo não vai além da distinção entre produtos de concepção mais avançada comparando-os com os de projeto mais antigo, sem que isso implique em eliminar o dever de segurança inerente a qualquer deles. Pois bem, em várias legislações estrangeiras, os riscos de desenvolvimento são acolhidos como um excludente do dever de indenizar, opção adotada em nome de incentivo à criação de inovações. Isso está previsto, por exemplo, na diretiva 85/374/CEE e na proposta de sua reformulação (se bem que os estados-membros, tal como fez a França, podem não aderir e não internalizar essa diretriz). Ao mesmo estilo, nos EUA igualmente tem sido aceita essa justificativa que livra o fornecedor do dever de indenizar. O argumento prevalecente reside em que, além de ser necessário criar-se um ambiente favorável ao surgimento de produtos e serviços inovadores, existe a consideração de que responsabilizar um fornecedor por um perigo impossível de ser conhecido segundo o alcançado pela ciência até a época do lançamento, seria torná-lo espécie de segurador virtual do produto . Indubitavelmente, as inovações são muito ressaltadas na contemporaneidade e há notório incentivo ao empreendedorismo, a pesquisa e aos avanços trazidos pelas inovações. Há todo um ambiente social favorável para que ser incentivada a criação de produtos e serviços mais adequados, com melhor qualidade, inclusive até gerados com uso de inteligência artificial. Entretanto, não há como ignorar-se os casos em que alguns deles redundam em efeitos que não são completamente conhecidos quando de seu lançamento no mercado (e mesmo durante fabricação). São produtos ou serviços que, apesar de passarem por pesquisas que o fabricante, a seu critério, julgou suficientes (podendo a regulação, em seu poder-dever, vir a interferir, algo que, na maioria dos casos, não tem sido rotineiramente demonstrado), só posteriormente mostram seus reais efeitos quando da utilização. E isso nas mais diversas áreas, incluindo, por exemplo, algumas muito sensíveis como a da medicina (remédios e terapias), veículos de locomoção autônomos (total ou parcialmente, de automóveis a aviões) e até situações mais sutis como os efeitos causados pelo uso excessivo de eletrônicos (e tecnologias neles acopladas), os quais comprovadamente modificam o cérebro das crianças e adolescentes com adicção. Convém atentar que há muitos fatores a se considerar nesse contexto. Perceba-se que o consumidor não pode acabar sendo parte do experimento que irá demonstrar os efeitos do produto ou serviço (como uma cobaia) e é injustificável deixar esse tipo de risco ser imputado a ele. Não se trata de uma mera externalidade que deve ser suportada por todos, sendo completamente injusto deixar-se para o consumidor-vítima, as consequências danosas que vierem a surgir. Também cabe citar-se peculiaridades como as dificuldades práticas para se precisar o momento exato do lançamento do produto, bem como, a forma de se superar a subjetividade da expressão "efeitos imprevisíveis", em especial ao se tentar dar-lhe contornos precisos quando em análise de caso concreto. Advirta-se a contrário senso, sobre a possibilidade de se indagar se há como serem previsíveis todos e quaisquer efeitos que poderão advir da utilização do produto ou serviço e, diante dos riscos de desenvolvimento, como interpretar-se o art. 10 do CDC que prescreve: "O fornecedor não pode colocar no mercado de consumo produto ou serviços que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança" (grifo nosso). Afinal, a par de não se ter unanimidade quanto ao tipo e número de pesquisas que o fornecedor deve realizar para assegurar inexistência de defeito, há que se considerar o fato de inexistir um banco de dados unificado do conhecimento científico que possa ser consultado no momento do lançamento; afim de identificar-se quais efeitos poderiam ou não serem os efeitos realmente enquadráveis como desconhecidos. Note-se, inclusive as dificuldades de saber-se o que ocorre em todos os laboratórios de pesquisas (e até em quais informações se pode alcançar e considerar científicas, dos costumes indígenas ao que existe postado na internet). E mais, à quem cabe o ônus da prova de que à época do lançamento do produto ou serviço, ainda não existiam conhecimentos científicos para sinalizar os efeitos causadores dos danos que depois se demonstraram reais quando o produto ou serviço foi utilizado. É oportuno lembrar-se, tanto a dificuldade para o fornecedor de fazer prova da não existência do conhecimento (prova negativa), assim como, da vítima em demonstrar que já havia conhecimento científico indicando a possibilidade de efeito danoso, informação que em muitos casos é de difícil acesso para ela trazer aos autos e integrarem o conjunto probatório no processo judicial. Portanto, tem-se um rol complexo de aspectos a serem observados para, desde logo, numa situação prática, afirmar-se a certeza de se estar a tratar de um risco de desenvolvimento. Focando no ponto de vista dos interesses empresariais, há que se considerar que para o fornecedor, as pesquisas normalmente são custosas e/ou demoradas, sendo que inserir celeremente o produto ou serviço no mercado tem potencial de impactar positivamente o resultado econômico-financeiro da organização. Nessa condição, o dito popular de que "tempo é dinheiro" ganha força para que, o quanto possível, sejam acelerados os lançamentos dos produtos ou serviços. E, compondo esse cenário, rememore-se que as agências reguladoras - seja por omissão, seja por genuína impossibilidade (fática ou mesmo de competência/atribuição) - nem sempre realizam o papel de contribuir para assegurar que no mercado não seja lançado produto ou serviço defeituoso. Independente disso, a experiência demonstra que um simples recall, normalmente não é suficiente para reparar todas as situações provocadas por danos causados por produtos ou serviços defeituosos, sendo que com base nas considerações recém-expostas, emerge a necessidade de se repensar o tratamento conferido aos riscos de desenvolvimento como motivo para exoneração do dever de indenizar. Muito embora seja muito difícil para o fornecedor estimar os custos para suportar os riscos que ele ainda desconhece quando do lançamento do produto, mesmo assim deve-se considerar que produtos inovadores contam um sistema de proteção da propriedade industrial que no caso dos medicamentos, por exemplo, assegura para empresa criadora, a possibilidade de exercer longo período de monopólio , sendo que esses produtos costumam ser colocados no mercado por preços consideravelmente mais elevados. Isso, por si só, deve ser suficiente para atrair a responsabilidade civil pelo risco-proveito. Outro detalhe: pelo processo de internalização, a verdade é que, rotineiramente, são os próprios consumidores que pagam as indenizações, posto que, normalmente, a empresa inclui esses gastos nos preços de seus produtos comprados por esses destinatários finais da produção. Ou seja, repassa os prejuízos que teve de arcar. E no que é deveras importante, acrescente-se que as empresas têm condição de suportar os resultados desses riscos, principalmente considerando instrumentos muitos conhecidos e adotados no mercado com vistas a socorrê-las para serem evitadas falências/quebras, tais como, por exemplo, os seguros (e resseguros), os fundos públicos ou privados criados para amparar empresas em dificuldades, etc. Ressalve-se apenas que não se pode ignorar a possibilidade de, na sociedade de risco em que vivemos, surgirem situações excepcionais, tal como ocorreu quando da epidemia do COVID-19 (causada pelo vírus SARS-CoV-2) em que a indústria farmacêutica e laboratórios não tiveram um tempo adequado para testar completamente os efeitos das vacinas que criaram e com rapidez tiveram de colocar no mercado. Como se tratava de momento aflitivo de busca por salvar vidas humanas aos milhares ou milhões, as vacinas tinham de chegar ao mercado e serem aplicadas no tempo mais curto possível, mesmo sem maiores testes que demandariam mais tempo. Não havia como delongar. E tratando-se de uma excepcionalidade, seu tratamento precisava e precisa considerar essa circunstância, ou seja, como uma exceção a comportar também uma solução diferenciada que não penalize as empresas. Todavia, não havendo situação caracterizada por comprovada excepcionalidade, conforme os argumentos já descritos, em todos os demais casos envolvendo riscos de desenvolvimento, não mais existe razão para justificar a manutenção dessa concepção de tratar-se de motivo eximente de responsabilidade; concepção essa que pode ser considerada ultrapassada e desconforme com o capitalismo do século XXI. Apoie-se a livre iniciativa nos termos do art. 170 da CF/88 e não se descuide das proteções para as empresas, mas conforme o já demonstrado, tal não deve lhes conferir um salvo-conduto que, inclusive, as dispense de se utilizarem de outras alternativas já conhecidas para se protegerem. É fundamental entender-se que se as inovações que impelem o progresso capaz de trazer benefícios para os consumidores individualmente e para a sociedade em geral, na realidade acabam sendo benesses para todos, não é justo que o "preço" ou o "custo" disso (na prática: o efeito que resultou em dano) acabe recaindo somente no ser humano vítima de um defeito classificado como risco de desenvolvimento. Portanto, em resumo, reitera-se de forma objetiva: os riscos de desenvolvimento devem estar sob a responsabilidade do fornecedor. Evoluir-se para essa certeza, é o que atende melhor aos direitos humanos, fundamentais e da personalidade inscritos em nossa carta magna, principalmente considerado o ideal de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
O Código Civil de 2002 trata da RHA - reprodução humana assistida de maneira limitada, apenas mencionando o tema nos incisos III, IV e V do art. 1.597, que versam sobre as presunções de filiação. Embora inicialmente vistas como inovadoras, essas disposições demonstraram, ao longo dos anos, mais deficiências do que soluções, gerando incertezas jurídicas que ainda perduram, é o que observam Carlos Henrique Félix Dantas e Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto (2022, p. 146-147) "a contar do desenvolvimento de novas tecnologias e também das transformações sociojurídicas em matéria de direito das famílias, essa sistemática mostrou-se insuficiente para tutelar as relações paterno-materno-filiais na contemporaneidade". Além disso, a falta de uma legislação específica e a grande quantidade de projetos de lei em tramitação destacam a necessidade urgente de uma regulamentação adequada. De acordo com a pesquisa realizada por Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto (2022), com dados coletados até 19 de abril de 2022, foram identificados 24 projetos de lei em tramitação no congresso nacional brasileiro, todos com a intenção de regulamentar, de alguma forma, o uso das RHA no Brasil. No atual contexto jurídico brasileiro, a reprodução assistida é regulamentada por um instrumento que representa um acordo de vontades com proteção jurídica, devendo seguir as diretrizes estabelecidas na resolução 2.320/22 do CFM - Conselho Federal de Medicina. O cumprimento integral das cláusulas pactuadas é imprescindível para evitar a responsabilidade civil por eventual descumprimento. Por isso, essas resoluções deontológicas têm um papel fundamental na definição dos parâmetros para a prática da reprodução assistida. Por outro lado, a resposta a essas lacunas legislativas, foi instituída em 2023 a comissão de juristas para a elaboração de um anteprojeto de revisão do diploma civil de 2002. Essa iniciativa visa alinhar o Código Civil às demandas jurídicas contemporâneas. A proposta de reformulação inclui a atualização do art. 1.597 e a criação de novos dispositivos, como o art. 1.598-A, que trata da presunção de filiação em casos de RHA, além de um capítulo específico dedicado à filiação decorrente da reprodução humana assistida. Esse capítulo incluirá artigos que dispõem sobre disposições gerais, doações de gametas, cessão temporária de útero, reprodução assistida post mortem e consentimento informado. No que tange a responsabilidade contratual em casos de reprodução assistida, Flaviana Rampazzo Soares (2021) destaca a exigência de um vínculo obrigacional prévio e a ocorrência de dano decorrente do descumprimento do contrato. A importância do termo de consentimento, um documento essencial para garantir que o paciente tenha sido devidamente informado e concordado com o procedimento, é igualmente crucial. Nota-se que a relação de confiança nos bionegócios reprodutivos é peculiar, pois envolve não apenas a prestação de um serviço altamente especializado, mas também a realização de sonhos de parentalidade e a busca pela felicidade e plenitude existencial. Como afirmam Carla Froener e Marcos Catalan (2020), o avanço da biotecnologia é impulsionado por esses sonhos, que vão desde tratamentos estéticos até a gestação de filhos que possam trazer esperança a vidas vazias de sentido. Portanto, o material genético criopreservado e os embriões gerados exigem cuidado, zelo e comprometimento ético e jurídico, para que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em um pesadelo irreparável, mesmo com a tutela jurídico-ética. Apesar da possibilidade de buscar reparação na esfera civil e penal, a valoração pecuniária raramente consegue sanar os prejuízos existenciais dos envolvidos, tornando a prevenção de tais incidentes a melhor alternativa. 1. Risco de Violação de Sigilo e Consequências Jurídicas O art. 1.629-I do anteprojeto propõe o tratamento sigiloso e estrito dos dados relativos a doadores, receptores e demais envolvidos nas técnicas de reprodução assistida. A violação desse sigilo não apenas configura uma infração ética, mas também pode resultar em ações judiciais por danos extrapatrimoniais e materiais, comprometendo a privacidade e a dignidade das partes envolvidas. A divulgação indevida dessas informações poderia gerar conflitos familiares e demandas por reconhecimento de paternidade, desencadeando uma série de questões jurídicas complexas. Art. 1.629-I. Todos os dados relativos a doadores, receptores e demais recorrentes das técnicas de reprodução medicamente assistida devem ser tratados no mais estrito sigilo, não podendo ser facilitadas nem divulgadas informações que permitam a identificação do doador e do receptor. O sigilo das informações, especialmente sobre doadores e receptores, é um ponto central no anteprojeto. O art. 1.629-K prevê a manutenção do anonimato, exceto em situações excepcionais, como o direito da pessoa nascida de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial. Art. 1.629-K. É garantido o sigilo ao doador de gametas, salvaguardado o direito da pessoa nascida com a utilização de seu material genético de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, para a preservação de sua vida, a manutenção de sua saúde física, a sua higidez psicológica ou por outros motivos justificados. § 1º O mesmo direito é garantido ao doador em caso de risco para sua vida, saúde ou por outro motivo relevante, a critério do juiz. § 2º Nenhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador. E é nesse ponto que surgem questionamentos, pois as situações em que o sigilo pode ser relativizado dependem exclusivamente do "critério do juiz". Além da discussão sobre a excessiva judicialização desse tema, observa-se que o próprio CFM já flexibilizou a regra do anonimato, em função das decisões judiciais que vinham relativizando esse sigilo nos casos de parentes até o 4º grau, autorizando o tratamento de fertilização in vitro com um doador conhecido pela receptora, afastando a regra de anonimato do doador de gametas, prevista nas normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida, item IV, 2, do anexo da Resolução n. 2.294/21 do CFM (VIEIRA, 2022). Dessa forma, parece que a proposta de atualização do código devolverá ao Judiciário o papel de se debruçar sobre essa questão, sendo novamente chamado a se pronunciar sobre uma prática que já se tornava comum no uso das técnicas de reprodução humana assistida. 2. Manipulação Genética: Limitações e Implicações O art. 1.629-D do anteprojeto estabelece restrições rigorosas quanto ao uso das técnicas de reprodução assistida, com o objetivo de proteger a integridade do patrimônio genético humano e assegurar que as práticas sejam conduzidas de maneira ética e segura. Art. 1.629-D. As técnicas reprodutivas não podem ser utilizadas para: fecundar ócitos humanos com qualquer outra finalidade que não o da procriação humana; criar seres humanos geneticamente modificados; criar embriões para investigação de qualquer natureza; criar embriões com finalidade de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras; intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-natal ou via diagnóstico genético pré-implantacional. As técnicas principais e auxiliares de reprodução assistida não poderão: Inciso I (possuir finalidade diferente da reprodução humana), ou seja, o único propósito de utilização das técnicas deve ser exclusivamente o tratamento da infertilidade humana, visando concretizar o projeto de parentalidade. Qualquer uso diverso desse objetivo está estritamente proibido. Inciso II (intenção de criar seres humanos geneticamente modificados), a norma proíbe qualquer intervenção que vise modificar geneticamente seres humanos. Essa vedação está alinhada ao princípio jurídico da diversidade no patrimônio genético humano, que serve como limitador da autonomia no planejamento familiar, principalmente diante dos avanços na terapia gênica (DANTAS, 2023). Essa proteção garante que o avanço da ciência não comprometa a integridade genética das futuras gerações. Inciso III (fecundar embriões com a finalidade exclusiva de pesquisa científica), fica proibida a fecundação de embriões com o único intuito de pesquisa, salvo em situações específicas previstas no ordenamento. A esse respeito, a lei de biossegurança (n. 11.105/2005) permite o uso de embriões crioconservados há mais de três anos para fins de pesquisa científica, desde que com o consentimento dos beneficiários, e conforme ratificado pelo STF na ADIn n. 3.510/DF, julgada em 2008. Inciso IV (escolher o sexo, realizar eugenia, ou criar híbridos ou quimeras), o anteprojeto traz uma vedação relativa à manipulação genética em várias frentes. A distinção entre práticas terapêuticas e de aprimoramento humano se torna nebulosa na prática, o que justifica a proibição. A eugenia, historicamente controversa, é vista com cautela para evitar intervenções que possam ser interpretadas como tentativa de melhorar a espécie humana com base em valores sociais questionáveis (DANTAS, 2022). A mestiçagem entre espécies, especialmente a coligação do DNA humano com outras espécies, é vedada, preservando a pureza genética humana. A criação de quimeras, que ocorre quando um indivíduo possui dois tipos distintos de DNA, é igualmente proibida. Esta condição, embora raríssima, é vista como altamente controvertida quando artificialmente induzida (RAMOS; CUNHA, 2016). Inciso V (intervir no genoma), a vedação à modificação do patrimônio genético humano em linhagem germinativa é reiterada, em linha com o art. 25 da Lei de biossegurança, que estabelece: "praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa". Por outro lado, a intervenção genética é permitida apenas para tratamentos especializados de "doenças graves". A questão subjetiva dessa norma reside na definição precisa do que constitui uma doença grave, o que pode levar a uma nova análise pelo Judiciário. O uso das técnicas de reprodução assistida deve ser sempre precedido de uma análise clínica detalhada, assegurando que o tratamento seja adequado ao quadro do paciente. Além disso, é essencial que os pacientes sejam plenamente informados sobre todos os possíveis riscos, tanto à saúde física quanto à saúde da descendência. Essas informações devem ser registradas em um termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo uma efetiva compreensão por parte de todos os envolvidos acerca das implicações do procedimento. 3. Falha na informação ao sistema nacional de produção de embriões O art. 1.629-J do anteprojeto impõe uma obrigação às clínicas e centros médicos de informar ao SisEmbrio - sistema nacional de produção de embriões sobre os nascimentos decorrentes de reprodução assistida com material genético doado. Art. 1.629-J. É obrigatório para as clínicas, hospitais e quaisquer centros médicos de reprodução medicamente assistida informar ao SisEmbrio os nascimentos de crianças com material genético doado, seus respectivos dados registrais e os dados do doador, a fim de viabilizar consulta futura pelos ofícios de registro civil de pessoas naturais, em razão de verificação de impedimentos em procedimento pré-nupcial para o casamento. Parágrafo único. O SisEmbrio manterá arquivo atualizado, com informação de todos os nascimentos em consequência de processos de reprodução assistida heteróloga, sendo este arquivo perene. A omissão dessa informação pode gerar problemas legais significativos, especialmente em questões de impedimentos matrimoniais e herança, resultando em insegurança jurídica e potenciais litígios. O registro adequado desses dados é fundamental para preservar a ordem jurídica e garantir os direitos de todos os envolvidos. A obrigação de informar ao SisEmbrio busca evitar casamentos e uniões putativas e garantir a fiscalização das clínicas, assegurando que os dados sobre nascimentos de crianças resultantes de reprodução assistida sejam devidamente registrados. Essa medida visa não apenas proteger os direitos dos envolvidos, mas também assegurar a integridade do processo reprodutivo, prevenindo conflitos futuros. Considerações finais As normas propostas no anteprojeto do código civil sobre reprodução assistida estabelecem parâmetros para a prática segura e ética dessas técnicas. A definição de critérios claros na legislação proporciona segurança na análise de possíveis violações dessas disposições, que podem resultar em graves consequências jurídicas. Muitas vezes essas implicações transcendem a esfera civil, afetando também as dimensões éticas e existenciais das partes envolvidas. É importante destacar que, no caso específico do dano biológico, tais lesões empobrecem a existência humana, reduzindo, sobremaneira, o valor e a dignidade da pessoa (QUEIROZ, 2015, p. 193). Portanto, deve-se buscar, sobretudo, a reparação integral desses danos, conforme estabelecido no sistema de responsabilidade civil vigente (TRIGO, 2012, p. 177). Logo, a positivação de normas claras é essencial para proteger os direitos dos envolvidos e manter a integridade do processo reprodutivo, evitando que o sonho da parentalidade se transforme em um pesadelo irreparável. O anteprojeto é acertado ao estabelecer parâmetros e discutir temas biojurídicos que necessitam de regulamentação, fortalecendo a segurança jurídica e criando diretrizes para futuras responsabilizações civis, ao encontro da prevenção de danos. Ao regulamentar o uso das técnicas de reprodução assistida, o anteprojeto não apenas estabelece direitos e obrigações para os envolvidos e os profissionais de saúde, mas também contribui para a prevenção de graves consequências jurídicas e danos irreparáveis, garantindo uma abordagem ética e responsável na aplicação dessas tecnologias. ________ CORRÊA, Daniel Marinho. Danos extrapatrimoniais: Interfaces entre prevenção, punição e quantificação. Londrina, Thoth: 2021. DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. DANTAS, Carlos Henrique Félix. O princípio jurídico da preservação da diversidade no patrimônio genético humano como um limitador da autonomia no planejamento familiar. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola. (Org.). Constitucionalização das relações privadas: fundamentos de interpretação do direito privado brasileiro. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 169-184. DANTAS, Carlos Henrique Félix; SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. O 'abismo' normativo no trato das famílias ectogenéticas: a insuficiência do art. 1597 (incisos III, IV e V) em matéria de reprodução humana assistida homóloga e heteróloga nos 20 anos do Código Civil. In: BARBOZA, Heloisa Helena; TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo. (Orgs.). Direito Civil: o futuro do direito. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2022. FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020. QUEIROZ, Luísa Monteiro de. Do dano biológico. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano. 75, n. 1, jan.-jun. 2015. RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire; CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. Um outro eu: o caso das quimeras humanas. Revisto Bioética y Derecho, Barcelona, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago.  2024. SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. A reprodução humana assistida e as dificuldades na sua regulamentação jurídica no Brasil: uma análise dos vinte e quatro projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo. (Orgs.). Direito Civil e Tecnologia Tomo II. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022. SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021. TRIGO, Maria da Graça. Adopção do conceito de "dano biológico" pelo direito português. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, vol. I, jan.-mar. 2012. VIEIRA, Cristiane Pinho. Fertilização in vitro com doador conhecido. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
As plataformas digitais têm um papel importante no desenvolvimento de crianças e adolescentes, oferecendo um espaço para interação social, educação, lazer e envolvimento político e cultural. De acordo com estudos da Ofcom1, cerca de 96% das crianças e adolescentes entre 3 a 17 anos estavam conectadas à internet em 2023. Ainda conforme o relatório, 51% das crianças entre 3 a 12 anos fizeram uso de alguma rede social, apesar das restrições de idade para menores de 13 anos. Nos dias atuais, o ambiente digital adquiriu muita importância para as crianças. Considerando isso, algumas plataformas digitais se adaptam ou desenvolvem métodos para mitigar os riscos aos quais as crianças podem ser expostas, como a questão envolvendo a verificação etária. Diante disso, surge a preocupação em garantir que o ambiente online seja seguro e apropriado para a sua faixa etária. Nesse contexto, a verificação etária revela-se como um dos recursos existentes para a promoção da segurança digital. A verificação etária, ou verificação de idade, é um dos vários métodos que fazem parte do conceito amplo da garantia de idade ou "age assurance" em inglês. A garantia de idade (age assurance) é o gênero que abrange várias técnicas usadas para determinar ou confirmar a idade dos usuários.2 De acordo com a Comissão Europeia, as técnicas de garantia de idade são divididas em: Estimativa de idade; Verificação etária; Autodeclaração. A estimativa de idade usa técnicas para determinar com extrema precisão a idade de alguém. Por outro lado, a verificação etária usa técnicas para verificar se o usuário está acima ou abaixo de uma determinada idade, mas não tem a pretensão de descobrir sua idade exata. Já a autodeclaração demanda que o próprio usuário declare sua idade. A Fundação 5Rights reconhece que "a garantia de idade não é uma solução milagrosa para manter as crianças seguras online"3, mas pode ser muito eficiente quando combinada com uma estratégia mais ampla de proteção. A maioria dos países não conta com legislações ou documentos que detalhem aspectos sobre a verificação de idade. Na ausência de padrões, proliferam-se variados métodos de verificação, que podem ser usados de maneira isolada ou combinados entre si.4 O método mais utilizado de garantia de idade é a autodeclaração. Ele consiste na declaração voluntária do usuário, que irá declarar sua idade ou confirmar que possui idade superior à pré-determinada pela plataforma digital. Apesar da popularidade, esta técnica possui segurança e precisão limitadas, pois depende da sinceridade do usuário. Para além da autodeclaração, o método da verificação de idade pode adotar técnicas mais precisas, como por meio de identificadores físicos. Nesse caso, os usuários fornecem documentos de identidade oficiais, como passaporte, RG, CPF e outros emitidos pelo governo. Em alguns casos o identificador físico também pode ser um cartão de crédito para confirmar a maioridade. O fornecimento dos documentos pode ser feito por meio de: a) digitalização dos documentos pelo próprio usuário ou, b) parcerias entre as plataformas digitais e o governo, que as permitam acessar a base de dados eletrônica. De acordo com a UNICEF5, o método de verificação de idade baseado em dados oficiais é altamente preciso, mas tem suas limitações. Depender exclusivamente de documentos oficiais excluiria "cerca de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo que não tem nenhuma forma de identificação oficial". No Brasil, o número de crianças com até 5 anos de idade prejudicadas pela ausência do registro civil ultrapassa 87 mil. O problema afeta desproporcionalmente os povos indígenas: Nesse segmento populacional, mais de 10 mil crianças não contam com identificação oficial. Além disso, o acesso aos bancos de dados oficiais por empresas privadas traz preocupações de impactos pela coleta massiva de dados, em especial com a questão da privacidade. Isso porque os documentos oficiais contêm outros dados pessoais além da idade do usuário, incluindo dados sensíveis como raça e sexo. Devido a tais riscos, a Fundação 5Rights afirma que essa verificação de idade deve ser usada apenas em "serviços restritos a usuários com mais de 18 anos, o que coloca ênfase em provar que são adultos".3 Outro método de verificação de idade trata-se da análise facial. De acordo com a União Europeia6, o usuário compartilha uma imagem estática ou um vídeo ao vivo para que a IA faça uma estimativa de idade. Contudo, é popularmente sabido que a IA pode causar discriminações, havendo um longo histórico de falhas no reconhecimento de características de pessoas com pele muito clara ou escura.7 Além disso, pesquisas do NIST8 descobriram que a IA encontra desafios para analisar as crianças, pois elas podem aparentar ser mais novas ou mais velhas do que realmente são, devido à puberdade. A análise facial para verificação de idade também traz perigos para a privacidade das crianças. De acordo com a UNICEF5, os dados faciais contêm características únicas que podem ser usadas para rastreamento e criação de perfis de crianças. Outra técnica de verificação de idade é a criação e análise do perfil comportamental. De acordo com o roteiro para verificação de idade da eSafety9, a criação do perfil é feita por meio da coleta de dados ou por deduções das interações do usuário. A criação do perfil por inferência coleta uma variedade de dados deixados pela pegada digital ou trilha digital do usuário. Isso pode incluir dados como localização, histórico de navegação, tempo diário de utilização, horários de acesso e até por onde o cursor do mouse passa. Apesar da precisão desse método, a criação de perfis precisa de uma grande quantidade de dados. Por isso, há riscos de coleta massiva de dados e de desvio de finalidade, principalmente para fins publicitários. Por isso, as políticas de privacidade e os termos de uso das plataformas têm um papel importante. O ICO, em seu Código de Design Apropriado para a Idade10, reconhece que "é particularmente importante ser claro sobre os propósitos para os quais seu serviço usa dados pessoais para criar perfis". A maioria das técnicas de verificação de idade que estão surgindo carregam consigo benefícios e incertezas. Logo, é preciso encontrar um equilíbrio entre as vantagens e os riscos dos métodos de garantia de idade. De acordo com a Fundação 5Rights, muitas das técnicas de garantia de idade "têm um grande potencial, mas todas são prejudicadas pela falta de definições comuns". Logo, as ferramentas de verificação de idade devem ser adaptáveis e contextualizadas conforme os riscos de cada serviço e os estágios de desenvolvimento das crianças e adolescentes. Ora, os riscos para uma criança que acesse aplicativos de relacionamento não são os mesmos de acessar sites de comércio eletrônico. Cada serviço oferece um risco que demanda uma técnica contextualizada de verificação de idade. Essas técnicas devem ser flexíveis e reconhecer o que a UNCRC - Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança chama de "capacidades em evolução da criança".11 Nesse sentido, é essencial adaptar as ferramentas de verificação de idade aos graus de desenvolvimento da criança e do adolescente. Logo, enquanto a infância demanda medidas de acompanhamento parental mais robustas, a adolescência exige uma maior liberdade. Ou seja, reconhecer que "à medida que as crianças crescem e se desenvolvem, suas capacidades evoluem, e os pais devem ajustar sua direção e orientação para permitir que seus filhos exerçam cada vez mais agência sobre suas vidas".12 Em suma, mostra-se necessária a adoção de padrões para o desenvolvimento de técnicas de verificação de idade, orientados para o melhor interesse da criança, mas é preciso que haja maior estudo e desenvolvimento de técnicas e mecanismos para a sua efetivação. É salutar que a verificação de idade seja feita de forma contextualizada e adaptável a cada modalidade de tecnologia e iteração. Cada vez mais o tema é discutido e vem gerando soluções e indicações de modo de tratamento de verificação de idade. Um exemplo são os os princípios e diretrizes adotados pela Cúpula Global de Padrões de Garantia de Idade em 2024. A Cúpula estabelece que os sistemas de garantia de idade devem observar os princípios da minimização de dados, da cooperação e da participação, entre outros.13 É do melhor interesse das crianças aproveitar os benefícios do mundo online com segurança. Portanto, as técnicas de verificação de idade podem ser grandes aliadas, desde que desenvolvidas e aplicadas de acordo com padrões de privacidade e segurança. A garantia de um ambiente digital seguro e apropriado para crianças e adolescentes exige a implementação de diretrizes padronizadas e claras para a verificação de idade. A parametrização deve ser fundamentada em princípios basilares, como o direito fundamental à proteção e à privacidade definidos na Convenção sobre os Direitos da Criança. A implementação de padrões permitirá que o cenário evolua para métodos de verificação de idade confiáveis e eficazes, alinhados com as melhores práticas internacionais. A colaboração contínua rumo a este cenário mostra um futuro promissor. A padronização garantirá a segurança jurídica necessária para que os agentes reguladores promovam um ambiente digital seguro sem abdicar da competitividade e inovação inerentes ao setor da tecnologia. Os esforços rumo à construção de técnicas de verificação de idade estão avançando rapidamente. Os debates e pesquisas sobre o tema são um passo fundamental para garantir que as crianças tenham uma experiência digital efetiva e segura. No entanto, a implementação desses mecanismos demanda tempo e esforços contínuos da sociedade. É essencial a colaboração e a participação das partes interessadas, incluindo desenvolvedores de tecnologia, legisladores, pais ou responsáveis, academia, sociedade civil e outros, para que seja possível criar soluções conjuntas robustas que equilibrem o acesso com a segurança no ambiente digital. _____________ 1 OFCOM. Children and Parents: Media Use and Attitudes Report. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2024. 2 RAIZ SHAFFIQUE, Mohammed et al. Mapping age assurance typologies and requirements: Research report: executive summary. 2024. 3 5RIGHTS FOUNDATION. But how do they know it is a child? Age Assurance in the Digital World. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2024. 4 DIGITAL TRUST & SAFETY PARTNERSHIP. Age Assurance: Guiding Principles and Best Practices. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2024. 5 UNITED NATIONS CHILDREN'S FUND (UNICEF). Digital Age Assurance Tools and Children's Rights Online across the Globe: A Discussion Paper. 2021. 6 euCONSENT. Electronic Identification and Trust Services for Children in Europe: D2.2 EU Methods for AVMSD and GDPR Compliance Report. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 09 ago. 2024. 7 BBC. Passport facial recognition checks fail to work with dark skin. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 09 ago. 2024. 8 HARWELL, Drew. A booming industry of AI age scanners, aimed at children's faces. THE WASHINGTON POST. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 09 ago. 2024. 9 ESAFETY COMMISSIONER. Roadmap for age verification and complementary measures to prevent and mitigate harms to children from online pornography. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2024. 10 INFORMATION COMMISSIONER'S OFFICE (ICO). Age appropriate design: a code of practice for online services. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2024. 11 UNICEF. UN Convention on the Rights of the Child (UNCRC). 1989. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2024. 12 VARADAN, Sheila. The Principle of Evolving Capacities under the UN Convention on the Rights of the Child. The International Journal of Children's Rights, v. 27, n. 2, p. 306-338, 2019. 13 AGE CHECK CERTIFICATION SCHEME. Global Age Assurance Standards Summit 2024. Manchester/UK, 2024. SafeOnline. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2024.
Digital Twins (ou "Gêmeos Digitais" em português) são representações virtuais de objetos, sistemas, ou processos físicos do mundo real, criadas para simular, monitorar e prever o comportamento desses elementos em diversas condições. Essas representações digitais são alimentadas por dados em tempo real coletados de sensores e outros dispositivos conectados ao objeto físico, permitindo uma interação dinâmica entre o mundo físico e o digital. A ideia por trás dos Digital Twins é criar uma cópia exata de um objeto ou sistema no ambiente virtual, no qual é possível realizar testes, simulações e análises sem interferir diretamente no objeto ou sistema real. Seu uso é geralmente baseado em tecnologias de RV - realidade virtual, que proporcionam uma experiência imersiva, permitindo que os usuários interajam com um ambiente digital tridimensional como se estivessem fisicamente presentes, o que permite a visualização detalhada e interativa de modelos digitais de objetos ou sistemas reais.1 Indubitavelmente, a relação entre Digital Twins e realidade virtual é simbiótica, uma vez que o poder de simulação e análise de dados é amplificado pela imersão e interatividade proporcionadas pela virtualização imersiva. Juntas, essas tecnologias estão moldando o futuro de como interagimos, planejamos e tomamos decisões em ambientes complexos, desde a indústria até a medicina e além. No Japão, onde o tema emergiu com pioneirismo, os Digital Twins são fundamentais para o desenvolvimento de cidades inteligentes (smart cities). Por exemplo, em cidades como Tóquio e Yokohama, são usados para criar modelos virtuais de infraestruturas urbanas, incluindo sistemas de transporte, redes de energia e edifícios.2 Esses modelos permitem monitorar e otimizar a eficiência energética, o fluxo de tráfego e a resposta a desastres naturais, como terremotos e inundações. Empresas de engenharia no Japão utilizam Digital Twins para planejar e gerenciar grandes projetos de infraestrutura, como a construção de pontes, rodovias e ferrovias. Ainda, a indústria automotiva japonesa, que inclui gigantes como Toyota e Nissan, utiliza tais tecnologias para simular o ciclo de vida completo de veículos. Desde a fase de design e desenvolvimento até a produção em massa, os Digital Twins ajudam a otimizar o desempenho, a eficiência dos processos de fabricação e a manutenção dos veículos.3 Mas, para os propósitos desse breve ensaio, chama a atenção o fato de que, dado o risco elevado de desastres naturais no Japão, como terremotos e tsunamis, os Digital Twins são usados para modelar cenários de desastres e testar estratégias de resposta. Isso inclui simulações de evacuação e otimização de recursos de emergência, melhorando a resiliência das cidades e comunidades e permitindo ao Estado a efetiva mitigação de riscos. Tais riscos, na leitura de Romualdo Baptista dos Santos, "estão relacionados ao processo de modernização da vida em sociedade, seja em razão da interferência do homem na natureza, seja em razão do desempenho de atividades necessárias ao modo de vida, seja ainda em consequência da exclusão das grandes massas populacionais em relação ao processo civilizatório".4 Sem dúvidas, o exemplo nipônico dos Digital Twins permite repensar a usabilidade de tecnologias de realidade virtual para a mitigação de riscos em grandes cidades e conglomerados urbanos, inclusive para a prevenção de grandes desastres ambientais. E, como é de conhecimento público, em 2024, no Brasil, o Estado do Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores catástrofes climáticas de sua história devido a grandes enchentes que ocorreram entre abril e maio.5 Essas enchentes foram causadas por uma combinação de fatores climáticos extremos, incluindo chuvas intensas e prolongadas, agravadas pelo fenômeno El Niño e pela falta de infraestrutura adequada para lidar com grandes volumes de água em várias cidades do estado.6 As enchentes causaram danos extensivos em todo o território gaúcho, afetando mais de 2 milhões de pessoas em 446 municípios. Porto Alegre foi uma das cidades mais afetadas, com bairros inteiros submersos, enquanto outras cidades como Caxias do Sul e Santa Maria também sofreram grandes prejuízos.7 As chuvas resultaram no deslocamento de centenas de milhares de pessoas, destruição de infraestrutura crítica8, e perdas econômicas significativas, especialmente no setor agrícola, além de diversas indagações sobre seguros e seus efeitos em relação aos limites dos sinistros cobertos ou não para tais casos.9 Além disso, houve um impacto grave na saúde pública, com o aumento de casos de doenças transmitidas pela água, como leptospirose e dengue. A resposta às enchentes envolveu esforços de emergência por parte do governo, de organizações não governamentais e da sociedade civil, mas a recuperação completa é vista como um processo que demandará tempo e recursos consideráveis. Essas enchentes de 2024 foram comparadas a outros eventos históricos no estado, como as enchentes de 1941 e 2023, mas foram notáveis pela sua intensidade e pelos desafios que apresentaram à infraestrutura e à gestão de desastres na região.10 Sem dúvidas, a utilização de Digital Twins para mapear riscos e prevenir desastres naturais, como as enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul em 2024, pode ser uma estratégia altamente eficaz, considerando a capacidade desses modelos virtuais de simular e prever cenários complexos. Algumas formas específicas de como essa tecnologia pode ser aplicada envolveriam a criação de modelos virtuais das regiões propensas a enchentes, integrando dados meteorológicos em tempo real e o histórico de enchentes já registradas. Esses modelos podem simular diferentes cenários de chuva intensa e prever como os sistemas de drenagem, rios e outras infraestruturas urbanas responderiam a tais eventos, o que permitiria às autoridades identificar áreas de risco elevado e tomar medidas preventivas, como reforço de barragens ou construção de canais de escoamento. No mais, ao integrar sensores em áreas críticas, os Digital Twins podem fornecer um monitoramento contínuo das condições locais, como o nível dos rios, a saturação do solo e o desempenho das infraestruturas de drenagem. Isso possibilita a detecção precoce de anomalias que possam indicar o risco de enchentes, permitindo uma resposta rápida e coordenada, como a evacuação preventiva de áreas vulneráveis. Tais estruturas de realidade virtual ainda podem ser utilizados para avaliar os impactos de novas construções ou mudanças na infraestrutura urbana sobre a capacidade de uma região de lidar com eventos extremos. Por exemplo, antes de aprovar um novo projeto de construção no âmbito municipal, os modelos podem simular como esse desenvolvimento afetaria o escoamento da água e se aumentaria o risco de enchentes, contribuindo para melhor planejar cidades mais resilientes e a evitar erros que possam agravar desastres naturais. Além disso, após um desastre, os Digital Twins podem ser usados para coordenar as operações de recuperação, ajudando a identificar quais áreas precisam de atenção imediata, simular o impacto de diferentes estratégias de recuperação, e otimizar a alocação de recursos humanos e materiais. Também podem ser utilizados para planejar e simular exercícios de resposta a desastres, melhorando a prontidão das equipes de emergência. Noutro contexto, podem ser usados para criar representações visuais que ajudem a comunicar riscos e estratégias de mitigação para a população. Isso inclui a criação de mapas interativos que mostram áreas de risco em tempo real ou simulações que demonstram o impacto potencial de diferentes tipos de desastres, ajudando a conscientizar e preparar as comunidades para interagir melhor - com o suporte tecnológico - às matrizes de risco previamente aferidas e analisadas em um contexto específico. Quanto a isso, vale lembrar o mérito que tal estratégia teria, no Brasil, no sentido de cumprir o Quarto Eixo da Política Nacional de Educação Digital (lei 14.533/23), definido em seu art. 1º, § 2º, IV, qual seja, o da P&D - Pesquisa e Desenvolvimento em TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação. Ademais, a integração de Digital Twins na teoria do risco administrativo pode fortalecer significativamente o debate sobre a responsabilidade civil do Estado no século XXI, alinhando o instituto à multifuncionalidade da responsabilidade civil.11 Essas tecnologias, por permitirem a simulação detalhada de cenários em tempo real, contribuem para otimizar a atuação do Estado ao identificar, monitorar e mitigar riscos de forma proativa. Essa capacidade de prever e prevenir danos através da simulação de diferentes cenários pode reforçar a qualidade do serviço público, incrementando sua eficiência ao impedir ou mitigar eventos de elevada gradação de risco. Ato contínuo, ainda se pode contar com registros que, em processos judiciais, servem como evidências aptas a melhor elucidar se o Estado agiu com a devida diligência ou se houve ato ilícito, especialmente por omissão. Em suma, os Digital Twins permitem a avaliação contínua das políticas públicas em caráter prospectivo, incrementando sua eficácia, sua acurácia e sua confiabilidade na gestão de riscos. Tudo isso se alinha a uma leitura da responsabilidade civil do Estado que não se limita à singela reparação de danos, pois também abrange as funções preventiva e precaucional, como bem definem Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto: "Para enfrentar riscos e ameaças iminentes, de forma a antecipar certa carga de segurança social, o direito se acautela lançando mão dos princípios da prevenção e da precaução. Ambos se manifestam na atitude ou na conduta de antecipação de riscos graves e irreversíveis. O princípio da prevenção será aplicado quando o risco de dano for atual, concreto e real. Trata-se do perigo, que é o risco conhecido, como por exemplo, o limite de velocidade nas estradas ou os exames médicos que antecedem uma intervenção cirúrgica. Já o princípio da precaução deve ser aplicado no caso de riscos potenciais ou hipotéticos, abstratos e que possam levar aos chamados danos graves e irreversíveis. É o 'risco do risco'".12 Em conclusão, a utilização de Digital Twins, especialmente em regiões propensas a desastres naturais, ilustrativamente indicadas no texto a partir da catástrofe ocorrida no Rio Grande do Sul, destaca-se como uma ferramenta crucial para a modernização da gestão de riscos e a prevenção de danos catastróficos. Ao integrar dados em tempo real e permitir simulações detalhadas, essas tecnologias não apenas aprimoram a capacidade do Estado de responder de maneira proativa e eficiente, mas também fortalecem o debate sobre a responsabilidade civil em sua multifuncionalidade, ampliando seu alcance para incluir aspectos preventivos e precaucionais. Assim, os Digital Twins representam um avanço significativo na aliança entre tecnologia e governança, promovendo uma gestão pública mais ágil, precisa e orientada à mitigação de riscos em um cenário de crescente complexidade urbana e ambiental. ____________ 1 IHDE, Don. Technics and praxis. Boston: D. Reidel Publishing Co., 1979. p. 22. Comenta: "'Physical reality' may implicitly be taken to be that reality which is both instrument mediated and micro-macro structured. It is that which apparently 'lies beyond' our ordinary senses; it is that which is probed through instruments (even at the minimal level of applying simple measurements); and it is often constituted by what I shall call adding mono-dimensions together". 2 Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 3 OBI, Toshio; IWASAKI, Naoko. Smart Government using Digital Twin in Japan. In: 2021 International Conference on ICT for Smart Society (ICISS), Bandung Indonesia, 2-4 ago. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 4 SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba/Porto: Juruá, 2018, p. 166. 5 WIKIPÉDIA. Cronologia das enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 6 ECOA BRASIL. Enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul: Causas, Impactos e Resposta. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 7 MEU RIO GRANDE DO SUL. Enchente no Rio Grande do Sul em 2024: Impactos, Cidades Afetadas e Comparações Históricas. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 8 WIKIPÉDIA. Enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 9 PIZA, Paulo. Reflexões sobre o contrato de seguro e o desastre climático no RS. Migalhas de Responsabilidade Civil, 22 ago. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 10 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Fronteiras da Ciência: Enchentes catastróficas no RS: causas e mitigação. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024. 11 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Responsabilidade civil do Estado e tecnologia: uma releitura da teoria do risco administrativo. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 249-255. 12 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 164.
Muitos advogados serão, em 2024, pela primeira vez, eleitores no processo eleitoral do Quinto Constitucional. No Estado da Paraíba, por exemplo, houve um aumento de 19 para 26 vagas de desembargador no Tribunal de Justiça, razão pela qual uma das vagas novas será destinada para advogado. Naquele Estado, no curso do processo eleitoral, 22 advogados/advogadas se inscreveram almejando integrar a lista sêxtupla paritária para futura submissão ao Governador do Estado para escolha do futuro desembargador. Um dos desafios deste pleito é o fato de que diversas mensagens, incluindo texto, vídeo e fotos, estarem sendo enviadas por diversos candidatos sem que houvesse autorização prévia para o recebimento dessas comunicações. Mas como os candidatos obtiveram os dados dos advogados/eleitores para envio das mensagens? A própria OAB disponibilizou estes dados pessoais para os candidatos com base no art. 22 do provimento 222/23 do CFOAB: Art. 22. Após o protocolo do requerimento de registro, a chapa tem direito ao acesso à listagem atualizada contendo nome, nome social, se houver (conforme o disposto no parágrafo único do art. 33 do Regulamento Geral), telefone e endereços postal profissional e eletrônico dos(as) advogados(as) inscritos(as) no Conselho Seccional ou, se for o caso, na Subseção, mediante: I - protocolização de requerimento escrito, formulado pelo(a) candidato(a) a presidente, dirigido ao(à) Presidente da Comissão Eleitoral Seccional; II - comprovação do pagamento da taxa fixada pela Diretoria para seu fornecimento, a qual não pode exceder o valor correspondente a 10 anuidades vigentes no respectivo Conselho Seccional.§ 1º No prazo de 03 dias, a contar do protocolo do requerimento, a Comissão Eleitoral Seccional faz a entrega da listagem ao(à) requerente. § 2º Cada chapa tem direito a 01 listagem, impressa ou em meio eletrônico, a seu critério, não se admitindo mais de um requerimento por chapa concorrente. § 3º A relação de advogados(as) não pode ser utilizada para fins diversos dos concernentes ao processo eleitoral em curso, e o(a) candidato(a) a presidente da chapa requisitante deve assinar termo de compromisso no sentido de não fornecer a terceiros quaisquer dados recebidos, individuais ou coletivos, sob as penas disciplinares e responsabilidade civil e criminal. § 4º O fornecimento da listagem tratada neste artigo deverá ser precedido da identificação do membro da Comissão Eleitoral Seccional a repassar os dados pessoais dos(as) advogados(as) eleitores(as), bem como do(a) candidato(a) a presidente da chapa a recebê-los, na qualidade de operador(a), com as precauções e advertências contidas no art. 47 da lei 13.709, de 2018 (LGPD), devendo ficar cientes de que, no caso de desvio de finalidade ou vazamento, responderão nos termos da legislação vigente. O grande ponto de debate é que, a despeito de a OAB possuir banco de dados informações pessoais e profissionais dos seus inscritos, aparentemente inexiste autorização legal para a OAB disponibilizar o acesso a terceiros. No contexto da LGPD, o compartilhamento de dados pessoais deve ser guiado por princípios fundamentais que assegurem a proteção dos direitos dos titulares. Entre esses princípios, destaca-se o da necessidade, conforme disposto no art. 6º, inciso III da lei, que determina que o tratamento de dados pessoais deve ser limitado ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, abrangendo apenas os dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades pretendidas. Essa diretriz é particularmente relevante ao considerar a disponibilização de dados pessoais dos advogados para candidatos eleitorais, questionando a adequação e proporcionalidade dessa prática em relação aos direitos dos titulares. A suposta autorização criada por intermédio de um mero provimento, não fundamentada em qualquer das hipóteses do art. 7º da LGPD representa uma grave violação aos direitos de todos os advogados. A existência de um processo eleitoral não seria elemento autorizativo para disponibilização de tais dados. É incontroverso que os candidatos têm o direito de se comunicar com os seus eleitores e os eleitores têm o direito de saber quem são os candidatos, porém esses direitos não podem ser exercidos mediante violação dos dados pessoais. Em sentido contrário ao estabelecido pela OAB, o Conselho Federal de Medicina regulamentou o recente processo eleitoral e estabeleceu que as mensagens de candidatos seriam intermediadas pelo próprio CFM, conforme a resolução 2.335/23: Art. 56. A propaganda eleitoral poderá ser feita por mensagem, devendo ser remetida pelo CRM aos médicos nele inscritos que disponibilizaram endereço de e-mail, assegurando às chapas o envio de até 2 correios eletrônicos de interesse eleitoral e com dimensão razoável. § 1º A mensagem de que trata o caput deste artigo deverá ser entregue na secretaria do CRM, em mídia apropriada ou enviada por correio eletrônico, em até 48 horas da data prevista para a remessa, a ser acertada entre a(s) chapa(s), não sendo permitido o envio de correspondência no dia da votação. § 2º A mensagem deverá atender aos seguintes critérios técnicos: uma página, com margens (superior, inferior, direita e esquerda) de 2 cm, fonte Arial, tamanho 12 e entrelinhas com espaçamento simples. § 3º O teor da mensagem será analisado pela CRE quanto a sua compatibilidade com o Código de Ética Médica e com o art. 47 desta resolução. Havendo incompatibilidade ou infração de quaisquer das normas citadas neste parágrafo, a(s) chapa(s) será(ão) intimada(s) em até 48 horas para correção. § 4º O CRM não disponibilizará às chapas eleitorais e/ou aos candidatos a lista de e-mails dos médicos nele inscritos. Ou seja, enquanto a OAB entrega os dados pessoais dos advogados inscritos aos candidatos sob o pretenso direito de garantir maior amplitude na comunicação entre candidatos-eleitores, o CFM protege o direito dos médicos ao fixar que as mensagens poderão ser enviadas, porém os dados pessoais não serão compartilhados pelo CFM com nenhum candidato. Dois elementos se destacam e diferenciam as normativas sobre o tema do CFM e da OAB: a) fixação de limite de mensagens enviadas e b) não disponibilização de dados pessoais aos candidatos. Enquanto no regramento da OAB não há regra de quantas mensagens poderão ser enviadas diretamente pelos candidatos sem consentimento dos advogados/eleitores, o que se traduz em uma possibilidade de assédio informacional, o CFM restringe a duas mensagens a serem enviadas por intermédio do próprio Conselho de Classe.  O ponto central é que não se trata de um acidente e consequente vazamento de dados, mas de entrega voluntária pela OAB, sob pretenso ar de legalidade, de dados pessoais e consequente bombardeio por candidatos em prejuízo dos eleitores/advogados. A partir de uma releitura do direito ao sossego para tratar de relações não apenas consumeristas, mas também pautadas pelo Direito Administrativo, o envio de mensagens por determinados candidatos, com o respaldo da Ordem dos Advogados, pode ser visto como violação aos direitos da personalidade, como a intimidade, e passível de responsabilização. Se a lista com os candidatos já é publicizada pela própria OAB, torna-se questionável, especialmente no contexto de vida de redes sociais/mundo digital, a necessidade de uma abordagem direta e individualizada dos advogados pelos próprios candidatos, a partir de dados pessoais tratados sem autorização legal. A violação de dados pessoais em contextos eleitorais levanta questões sobre a responsabilidade das entidades que gerenciam esses dados. A OAB, ao disponibilizar informações pessoais de advogados para candidatos, parece estar atuando em desacordo com os princípios estabelecidos pela LGPD. Embora o provimento 222/23 da OAB preveja o compartilhamento de dados com candidatos, esta autorização não se alinha com as exigências da LGPD, que preveem um tratamento restrito e necessário dos dados pessoais. O compartilhamento, sem consentimento explícito dos titulares e sem uma base legal adequada, pode configurar violação aos direitos de privacidade dos advogados, trazendo à tona a discussão acerca da das responsabilidades envolvidas. O art. 42 da LGPD prevê que controlador ou operador do tratamento de dados pessoais devem reparar os dados causados, sejam eles patrimoniais ou morais, individuais ou coletivos. A par das discussões jurídicas em torno da natureza jurídica da OAB, parece tranquila a posição de que, quanto ao serviço prestado, caracteriza-se como um serviço público. Daí a possibilidade de aplicação também do art. 31 da LGPD, com a atuação da autoridade nacional no sentido de adotar medidas cabíveis para fazer cessar a violação. Daí também decorre que, se o compartilhamento de dados pela iniciativa privada é possível com base nas autorizações legais e consentimento, o compartilhamento de dados pela Administração Pública só é possível de ser realizado com a própria Administração, nos termos do art. 26 ou em hipóteses restritas previstas no art. 27 da LGPD. Por outro lado, a abordagem adotada pelo CFM demonstra um modelo mais adequado de tratamento de dados. Ao intermediar o envio de mensagens eleitorais sem compartilhar os dados pessoais dos médicos, o CFM preserva a privacidade dos profissionais e limita o risco de assédio informacional. Essa prática reflete um compromisso com a proteção dos dados pessoais e destaca a importância de adotar mecanismos que garantam a segurança e a privacidade dos eleitores. Paralelamente, candidatos que enviam mensagens quase como mecanismo de spam, em flagrante violação ao sossego, também poderão ser responsabilizados civilmente. Não pela violação de dados, mas pela abusividade com que acionam eleitores. Além do acesso aos dados ter sido baseado em norma flagrantemente ilegal, não é possível que, sob o pretexto da eleição, um advogado tenha seu celular e e-mail inundados com pedidos de voto, material de campanha e convites para ingressar em grupos de apoiadores. A comparação entre as abordagens da OAB e do CFM evidencia a necessidade de revisão do provimento 222/23 da OAB, para não autorizar a divulgação de dados pessoais para candidatos, de modo a proteger as informações de mais de 1,4 milhão de advogados em futuras eleições da OAB ou processos de formação de listas para o Quinto Constitucional.
O agronegócio desempenha um papel crucial na economia do Brasil, impactando significativamente o PIB - Produto Interno Bruto e a geração de empregos. Em 2023, o setor agropecuário, impulsionado pelo comércio de commodities, registrou um superávit de US$ 148,58 bilhões com exportações, alcançando US$ 165,05 bilhões e importações de US$ 16,47 bilhões.1 Commodities, por sua vez, são produtos essenciais de alta liquidez comercializados globalmente, incluindo alimentos como feijão, arroz, milho e trigo, além de recursos ambientais e minerais como água, ouro e ferro. O preço desses produtos é determinado no mercado internacional e varia conforme a oferta e demanda. Diante das instabilidades biológicas e econômicas, os contratos de commodities a termo surgem como proteção para o agronegócio. Esses contratos permitem que produtores negociem suas produções futuras fixando preços desde o início, servindo, igualmente, como alternativa ao financiamento bancário tradicional.2 Contudo, eventos externos, tais como a pandemia de COVID-19, conflitos geopolíticos e desastres naturais, têm alterado a base contratual e causado impacto significativo na execução desses contratos nos últimos quatro anos. Isto porque a pandemia trouxe um impacto socioeconômico global, enquanto o conflito no leste europeu dobrou o custo de produção de grãos temporariamente, aumentando a carga para as partes envolvidas. Adicionalmente, a maior enchente da história do Rio Grande do Sul causou prejuízos bilionários e perdas significativas na produção agrícola, afetando não só o Estado, mas o Brasil como um todo. Tal cenário reforça a necessidade de analisar a responsabilidade civil e seus limites na ruptura de contratos de commodities a termo provocada por tais eventos. Com efeito, torna-se necessária a análise dos institutos adequados à manutenção do equilíbrio contratual quando se trata de contratos de execução diferida, alterados em sua base por fatores externos, embora passageiros. Assim, antes de analisar os efeitos da responsabilidade civil sobre um negócio, é importante explorar sua classificação. Entende-se que os contratos em comento são classificados como onerosos, bilaterais, sinalagmáticos, comutativos e de execução diferida, pois, caso assim não fosse, deveriam ser classificados como aleatórios, conforme disposto no art. 483, do Código Civil (2002): "a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório". É importante distinguir os contratos a termo dos contratos futuros. Os últimos são, de fato, sinalagmáticos3, pois envolvem maior risco relacionado ao ativo subjacente escolhido para a precificação do objeto contratual. Em tais contratos, a autonomia das partes na sua celebração é limitada, a não ser a atividade volitiva de operar no mercado, isto é, opera quem quer e sujeito às formas pré-estabelecidas. O mercado futuro também é caracterizado pela intermediação de agentes econômicos, como corretoras e, em alguns casos, operado no mercado organizado, a saber, a bolsa de valores. Convém apontar que há contratos a termo realizados diretamente entre pequenos produtores e grandes empresas, sem nenhuma intervenção de agente econômico, com a condição de a atividade volitiva das partes, a legislação e os termos contratuais devem ser respeitados. E tal situação não é incomum de ocorrer, não deixando, em razão disso, de serem conceituados como contratos a termo. Ocorre que, como todo contrato, os contratos a termo estão igualmente sujeitos às consequências do inadimplemento em caso de descumprimento, consequências que podem estar previstas em contrato ou sujeitas à responsabilidade civil stricto sensu. A distinção entre a responsabilidade contratual e a extracontratual é relevante devido à facilidade de atribuir a responsabilidade no primeiro caso: Se houver descumprimento de cláusula contratual, é presumida a culpa pelo inadimplemento, esta, em regra, necessária à reparação do dano causado. Contudo é inquestionável que o inadimplemento corresponderá a uma indesejada etapa final, na qual será alterado o conteúdo do vínculo. Substitui-se a prestação originária por uma obrigação sucessiva de indenizar, em geral, cumulada com alguns dos institutos acessórios previstos nos arts. 389 a 420 do Código Civil (Título IV, do Livro I, da Parte Especial). Ainda, para os casos de inadimplemento de contratos de commodities a termo, utiliza-se a denominada cláusula de wash out, cuja função é ratificar a obrigação do produtor rural a pagar um valor extra ao credor. O valor pago será obtido pela diferença entre o valor negociado e aquele cotado no mercado de commodities no momento da entrega retardatária. Em razão disso, entendemos que a wash out, tem natureza de cláusula penal. De qualquer forma, o inadimplente somente se livrará da obrigação caso prove a existência de excludentes de responsabilidade: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, ou excludente contratual. Em alguns casos, as excludentes de caso fortuito ou força maior são consideradas sinônimos por parte da doutrina. No entanto, ambas são eventos externos, completamente independentes da vontade do agente e do seu controle, podendo ser distinguidas pela imprevisibilidade e irresistibilidade do evento. Assim, entende-se que, para o caso em questão, a distinção de caso fortuito e força maior tem pouca relevância, já que o art. 393 do Código Civil aplica o mesmo tratamento legal a ambos os conceitos. Contudo, para todos os efeitos, a força maior e o caso fortuito têm como efeito a excludente de responsabilidade civil e a extinção do contrato, o que não se espera quando se realiza contratos a termo alterados em sua base em razão de eventos externos passageiros.4 A manutenção do vínculo contratual, com sua adaptação por meio da renegociação ou revisão e o restabelecimento do equilíbrio, especialmente em contratos de execução diferida, deve ser priorizada antes de se optar pela extinção do vínculo, dado que esses contratos costumam estar interligados a outros contratos, como os contratos em rede. Isto é, o que se busca é a mitigação do pacta sunt servanda, com a possibilidade de revisão dos termos contratuais, a fim de dar lugar aos deveres preconizados pela cláusula rebus sic stantibus5, visando manter o equilíbrio e o sinalagma contratual e, consequentemente, evitar a onerosidade excessiva para uma das partes. Assim, a fim de se manter a sobrevivência do contrato, mantendo-se o devido equilíbrio contratual, é necessário afastar-se dos efeitos da responsabilidade civil e utilizar-se dos institutos específicos. No caso de a prestação ser exequível, porém de maneira mais custosa ao devedor, não se está diante da força maior, pois esta tem como efeito a excludente de responsabilidade civil, art. 393, CC e a extinção do contrato. Deve-se, então, utilizar a figura específica para resolver exatamente a situação, a qual induz ao reconhecimento da necessidade e possibilidade de renegociar cláusulas anteriormente celebradas6, alicerçadas na Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico, em razão da quebra da base negocial entre as partes. Isso acontece porque a Teoria da Quebra da Base Objetiva apenas exige que a base da vontade tenha sido quebrada, pois nenhuma das partes teria assumido o risco do fato que ensejou a quebra.7 Tal teoria supera as lacunas deixadas pela Teoria da Imprevisão e Onerosidade Excessiva, abrangidas pelos arts. 317 e 478 do Código Civil que, em regra, exigem que se comprove que o evento fosse ou não imprevisível para o negócio celebrado, o que em última análise, traz problemas maiores do que aqueles mesmos que o direito pretende resolver.8 O caso tratado no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial (AgInt no AREsp 698136 SP 2015/0097370-2) foi um dos que foi positivo à mitigação do pacta sunt servanda, em detrimento da manutenção do equilíbrio contratual sob fundamento da Teoria da Quebra da Base Objetiva. Nesse caso, a controvérsia girou em torno da análise da estiagem como possível causa excludente de responsabilidade contratual, na qual foi debatido se tal situação justificaria a isenção de multa pelo inadimplemento. Após examinar o contrato de compra e venda, constatou-se que os riscos decorrentes do contrato até a entrega do produto eram atribuídos ao vendedor, porém, diante da situação peculiar de longa estiagem, o Poder Judiciário não hesitou em julgar para equilibrar os ônus contratuais, evitando desequilíbrio entre as partes. Como fundamentado pelo então relator Paulo de Tarso Sanseverino, embora a jurisprudência do STJ indique a inaplicabilidade da Teoria da Imprevisão aos contratos de compra e venda de safra futura de soja, o caso em questão evidenciou que o longo período de estiagem comprometeu significativamente a produção agrícola na região, oficialmente declarada uma situação anormal. Após a análise das provas apresentadas, verificou-se que a perda na produção de soja mostrou-se substancialmente maior do que o indicado pela parte contrária, demonstrando a gravidade da situação. Ademais, houve, em razão dos mesmos fatos, renegociação por parte do autor com outras empresas, razão pela qual aqueles contratos não precisaram de intervenção estatal, o que evidenciou a boa-fé do autor. Como demonstrado, existem institutos jurídicos bem estabelecidos que fundamentam a renegociação dos contratos discutidos. Tais institutos não se limitam a aplicar excludentes de responsabilidade civil, mas também permitem a continuidade dos contratos quando eventos externos temporários modificam suas bases. Assim, cumprem o objetivo de preservar o equilíbrio contratual e sustentar a parceria comercial. __________ 1 FERREIRA, D. Comércio exterior do agronegócio: primeiro trimestre de 2024. Carta de Conjuntura, Brasília, v. 63, p. 1-9, abr. 2024. Nota 3. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2024 2 REIS, M. Crédito rural. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 371-373. 3 MARTINS-COSTA, J. Contratos de derivativos cambiais: contratos aleatórios: abuso de direito e abusividade contratual: boa-fé objetiva: dever de informar e ônus de se informar: teoria da imprevisão: excessiva onerosidade superveniente. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 15, n. 55, jan./mar. 2012. p. 321. 4 SIMÃO, J. F. O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, 3 abr. 2020. p. 13-14. 5 AZEVEDO, Á. V. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Doutrina: Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 20 anos. Brasília: STJ, 2009. p. 333-351. 6 AGUIAR JÚNIOR, R. R. Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018. v. IV, tomo II. p. 903-904. 7 FRITZ, K. N. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Direito UNIFACS, Salvador, n. 247, fev. 202. p. 11-18. 8 CORDEIRO, A. M. R. E. Da boa fé no direito civil. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2013. p. 955-963. __________ AGUIAR JÚNIOR, R. R. Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. IV, tomo II. AZEVEDO, Á. V. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Doutrina: Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 20 anos. Brasília: STJ, 2009. p. 333-351. Disponível aqui. Acesso em: 21 mar. 2024. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma) AgInt no AREsp 698136 SP 2015/0097370-2. Agravo interno no agravo em recurso especial. civil, processual civil (CPC/1973). Rescisão contratual. compra e venda de safra futura de soa. negativa de prestação jurisdicional [...]. Agravante: ADM do Brasil LTDA. Agravado: Renato Somavilla. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 16 de fevereiro de 2017. CORDEIRO, A. M. R. E. Da boa fé no direito civil. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2013. FERREIRA, D. Comércio exterior do agronegócio: primeiro trimestre de 2024. Carta de Conjuntura, Brasília, v. 63, p. 1-9, abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2024. FRITZ, K. N. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Direito UNIFACS, Salvador, n. 247, fev. 2021. REIS, M. Crédito rural. Rio de Janeiro: Forense, 2019. MARTINS-COSTA, J. Contratos de derivativos cambiais: contratos aleatórios: abuso de direito e abusividade contratual: boa-fé objetiva: dever de informar e ônus de se informar: teoria da imprevisão: excessiva onerosidade superveniente. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 15, n. 55, p. 321-381, jan./mar. 2012. SIMÃO, J. F. O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, abr. 2020.
Em seu perfil liberal, o Direito Civil, historicamente, sempre foi palco das situações patrimoniais, proeminentes no tráfego jurídico conduzido pelas leis civis. No entanto, a partir da Constituição da República de 1988, a centralidade da pessoa humana em sua intrínseca dignidade desafia uma constante renovação do Direito Civil, agora voltado à tutela concreta da pessoa humana, em especial dos vulneráveis, apto a coibir os atos de discriminação que oprimem e subalternizam ainda mais grupos minoritários. A afirmação abstrata da proeminência das situações existenciais, diretriz nuclear a guiar a interpretação das normas civilistas, desconsidera a complexidade do mosaico social, nichado por múltiplas discriminações, diretas e indiretas, e perpassadas pela interseccionalidade, que num país de profunda desigualdade social agrava a exclusão social e não concretiza o direito à vida digna. Gênero e sexualidade sempre foram assuntos até pouco tempo atrás pouco debatidos no universo do Direito, que habitualmente reproduzia o paradigma dominante binarista e biológico. Contemporaneamente, é indispensável as lentes de gênero para a releitura do direito posto, sob pena de perpetuação das violências e discriminações em nome da abstrata igualdade legal. Vale dizer que a perspectiva de gênero deve considerar seu viés dinâmico e fluído, sob o ângulo da performance social, de modo a evitar a naturalização dos arquétipos biológicos. Por sua vez, a sexualidade sempre foi aprisionada pelo Direito, que contemplava apenas a matriz heterossexual, seja nas relações afetivo-familiares, seja no próprio desenvolvimento da identidade no meio social. Em sua dimensão plural, indispensável proteger as dissidências sexuais, reconhecendo as diferentes formas de exercício da sexualidade e disposição do afeto. O florescer do fenômeno de reconhecimento da emergência das pautas ligadas ao gênero e às sexualidades inicialmente se restringiu aos impulsos do movimento feminista na seara jurídica. Interessante notar, no entanto, que a igualdade de gênero e a promoção da diversidade sexual não é uma pauta exclusivamente feminista ou que apenas deve ser discutido de forma segmentada. Tal temática se impõe e desafia como central a toda comunidade jurídica, que deve reler e reinterpretar o ordenamento como um todo, de forma unitária, na busca incessante por uma igualdade real e concreta entre os gêneros, que não mais se curva ao modelo binário e determinista. Diante desse cenário, a responsabilidade civil é convocada a atuar de forma a repensar a qualificação e quantificação de danos decorrentes de atos de discriminação com base no gênero e nas dissidências sexuais. Em sua feição inicial de viés reparatória e desatenta aos impactos de uma sociedade patriarcal, sexista, machista e heteronormativa, a responsabilidade civil é desafiada a efetivamente ser um instrumento de inibição, prevenção e compensação dos danos injustos sofridos por grupos vulnerabilizados. Ao contrário, apesar do seu potencial e de sua função vital para a harmonia da coexistência humana, a responsabilidade civil ainda parece distante de desempenhar sua vocação de remédio paliativo, mormente emergencial, para os casos de injustos danos por atos de violência e de desigualdade de gênero, de discriminação por homotransfobia e assimetria de poder estruturalmente absorvidas pelo Direito. Infelizmente, a compreensão da responsabilidade civil ainda está distante das diretrizes constitucionais de redução das desigualdades e não-discriminação. Os tradicionais filtros reparatórios, infelizmente, vêm sendo utilizados como obstáculos à efetiva reparação/compensação dos danos discriminatórios injustos, o que reflete na própria quantificação que igualmente desconsidera as especificidades de tais danos. Nesse cenário, como visto, não resta inalterada a seara da responsabilidade civil, de feição residual e instrumento de reparação/compensação, que cada vez mais é acionada diante de um ordenamento que ainda não tem respostas enérgicas e eficazes aos atos de discriminação. Diante dessa conjuntura, foi gestada a obra coletiva "Responsabilidade civil, gênero e sexualidades", sob o selo do IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil e os tipos da Editora Foco, que contou com a adesão de profissionais e pesquisadores(as) de diferentes regiões do país, com a presença de estudiosos de formações acadêmicas e trajetórias de vida diferentes, o que permite uma visão plural do tema sob diferentes ângulos. A presente coletânea é estruturada em 5 eixos temáticos, o que permite uma análise dos temas a partir de uma visão unitária. Na primeira parte, são enfrentadas as funções da responsabilidade civil, não discriminação e comunidade LGBTQIAPN+. Nelson Rosenvald e Wagner Inácio Freitas Dias enfrentam o tema do "Direito dos danos e indenização: A diferença que pesa onde não deveria importar na quantificação dos lucros cessantes". Vitor Almeida aborda a temática da responsabilidade civil e discriminação por orientação sexual diante dos atos de homofobia. Por sua vez, Thiago G. Viana trata do caso Olivera Fuentes versus Peru julgado pela Corte Interamericana de Direito Humanos (Corte IDH). Sérgio Lorentino examina o tema da responsabilidade civil das agremiações religiosas pela prática de culto de teor discriminatório em razão das questões de gênero e de orientação sexual. O último artigo do primeiro eixo é de Silmara D. Araújo Amarilla sobre a responsabilidade paterna em razão dos danos causados à prole dissidente da heteronormatividade. Em seguida, no eixo sobre responsabilidade civil, transgêneros e intersexo, Carla Watanabe nos brinda com artigo sobre "O apagamento, o lawfare e o cyberbullying como estratégias de discriminação contra pessoas trans". Vanessa de Castro Dória Melo e Leandro Reinaldo da Cunha enfrentam o tema da responsabilidade civil do Estado pela insuficiência de unidades hospitalares credenciadas para a realização do processo transexualizador. Em parceria com Teila Rocha Lins D'Albuquerque, Leandro Reinaldo da Cunha incursiona pela temática da responsabilidade civil em decorrência da violação póstuma da identidade de gênero. O eixo temático é encerrado com a contribuição de Natan Galves Santana e Tereza Rodrigues Vieira que investigam a luta das pessoas trans pelo direito fundamental à igualdade. Em terceiro lugar, a obra se dedica ao emergente problema da responsabilidade civil e violência de gênero. Inicia-se com o texto de Ana Carla Harmatiuk Matos e Jacqueline Lopes Pereira que investigam o contemporâneo tema da "Responsabilidade civil, gênero e violência obstétrica". Fernanda Nunes Barbosa e Renata Peruzzo enfrentam as repercussões nos domínios da responsabilidade civil do dano direto e reflexo nos casos de violências de gênero no contexto da violência doméstica. Por fim, Gilberto Fachetti Silvestre analisa a extensão do dano à mulher na violência doméstica ou familiar. No penúltimo eixo temático, emerge as discussões atinentes à responsabilidade civil, planejamento familiar e cuidado sob a ótica do gênero. Cíntia Muniz de Souza Konder enfrenta o polêmico tema da "Responsabilidade civil por concepção indesejada". Em perspectiva inovadora, Fernanda Paes Leme e Pedro Gueiros propõe análise sobre os úteros artificiais e as novas fronteiras ao planejamento familiar. Andressa Regina Bissolotti dos Santos nos apresenta relevante reflexão sobre a responsabilidade civil pelo tempo dedicado ao cuidado como forma de promover a igualdade material. Finaliza o eixo, o texto de Lígia Ziggiotti de Oliveira e Francielle Elisabet Nogueira de Lima sobre a possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance em hipótese de ausência de divisão de cuidados parentais. Por fim, analisa-se o cruzamento entre discriminação, dados pessoais e gênero. Tal eixo temático inicia com artigo de Ana Frazão e Maria Cristine Lindoso sobre responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados em perspectiva de gênero. Fabíola Albuquerque Lôbo e Camila Sampaio Galvão discorrem sobre o atual tema da responsabilidade civil dos pais pela hipersexualização das filhas influenciadoras mirins. No âmbito da proteção dos dados pessoais, Fernanda Pantaleão Dirscherl e José Luiz de Moura Faleiros Júnior enfrentam a temática da "Responsabilidade civil e dados pessoais sensíveis sobre gênero". Por fim, encerra a obra o texto de Dóris Ghilardi e Ariani Folharini Bortolatto que trata da responsabilidade civil em razão da exposição não consensual de imagens íntimas a partir da perspectiva da violência de gênero. A coletânea representa movimento de todo indispensável na conformação do ordenamento jurídico aos desígnios constitucionais voltados à promoção de uma sociedade sem discriminações, igualitária e livre. Cuida-se, a rigor, de uma contribuição ao repensar as estruturas da responsabilidade civil, mas sobretudo suas funções, em especial para fins de proteção das dimensões do gênero e da sexualidade a partir do espectro emancipatório e solidarista desenhado pelo constituinte de 1988. Um percurso indispensável de humanização e emancipação da responsabilidade civil voltada à concreta tutela da pessoa humana.
Em 2022 ganhou notoriedade vídeo, compartilhado pelo humorista Eddy Jr, no qual a sua vizinha o ofendia reiteradamente de maneira racista. Para além da discussão acerca da responsabilidade civil pelos danos morais causados, tal atitude colou em voga o debate sobre a possibilidade de exclusão de condôminos antissociais. Apesar de ser uma possibilidade aceita em diversos ordenamentos estrangeiros, esse tipo de sanção ainda encontra alguma resistência no Direito pátrio, devido à falta de previsão expressa no CC.1 Não obstante a falta de unanimidade sobre o tema no país, vem crescendo o número de decisões que entendem pela aplicação da penalidade2, tendo como exemplo mais recente a sentença da 29ª Vara Cível de São Paulo3, na qual a juíza determinou, após dois anos das agressões e ameaças sofridas por Eddy Jr, que sua vizinha seja removida do condomínio devido ao seu comportamento antissocial. O caso em tela serve como excelente expoente para desmistificar algumas concepções equivocadas sobre assunto, bem como ilustrar alguns problemas de aplicação prática da medida pelos tribunais pátrios. A começar, deve-se apontar que a referida sentença acertadamente reconheceu que o comportamento da condômina expulsa era, de fato, antissocial. Tal termo, apesar de previsto no art. 1.337 do CC, não tem sua definição bem elucidada pela lei. Nessa senda, a doutrina define como sendo antissocial o condômino que, de forma reiterada, desrespeite os deveres condominiais, tornando sua convivência incompatível com a dos demais moradores.4 Além disso o caso concreto também apresenta observância do escalonamento das sanções aplicadas à condômina antissocial, de modo que lhe foram impostas sanções pecuniárias iniciais no valor de uma quota condominial, com a última alcançando o valor máximo legal de dez quotas devido ao comportamento reiterado e gravoso. É justamente após este ponto que a doutrina brasileira se divide. Parte acredita que esta deve ser a punição máxima imposta ao condômino antissocial, uma vez que a sua exclusão, por não ter previsão legal expressa, violaria o ordenamento jurídica por representar forma de extinção do direito real de propriedade não previsto em lei.5 Tal corrente, porém, só mereceria ter razão caso a exclusão se traduzisse, de fato, na venda forçada da unidade autônoma, como previsto em alguns ordenamento alienígenas. Ocorre que, o defendido pela melhor doutrina, é a mera restrição do uso do imóvel, de modo que o proprietário reteria os direitos de fruir e dispor, como bem mencionado na sentença em tela.6 Tal construção se dá pela leitura conjunta da parte final do parágrafo único do art. 1.337 com o art. 1.277 do CC. Ou seja, a expressão "até ulterior decisão da assembleia", constante naquele, daria permissão aos condôminos para que, uma vez insuficientes as sanções previstas no capítulo de condômino do CC, possam se socorrer da regra geral de direito de vizinhança, prevista neste.7 Assim, afastam-se as principais críticas à aplicação da sanção no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que: i) não há a extinção do direito de propriedade; e ii) o direito de vizinhança permite restrições do uso da propriedade para coibir abuso do direito, inexistindo, então, falta de base legal para a exclusão do condômino antissocial. Se é verdade que o caso ora analisado representa a crescente aceitação da possibilidade de exclusão do condômino antissocial, como também pode se verificar pela existência de enunciado do 508 do CJF nesse sentido, bem como sua previsão expressa no anteprojeto de atualização do CC, também é inegável que ele ilustra um dos principais problemas de sua aplicação prática: A falta de unicidade nos critérios de aplicação pelos tribunais pátrios. Tendo em mente a proteção conferida pelo direito constitucional à moradia, é imprescindível que seja conferido um prazo para que o condômino antissocial se mude. Ocorre que, ante a falta de norma expressa sobre o tema, a jurisprudência varia no seu arbitramento.8 A situação se torna ainda mais complexa quando percebe-se que os casos que chegam ao STJ não são apreciados pelo tribunal, que invoca o verbete de sua Súmula 7. Reconhece-se a louvável intenção dos julgadores em buscar manter a axiologia constitucional ao determinarem tais prazos, porém, os números arbitrados com base em uma noção discricionária de razoabilidade acabam por causar inconsistências com a sistemática civilista. Entende-se que o prazo concedido para o condômino expulso deve ser o mesmo de trinta dias, dado ao locatário para se retirar do imóvel locado após publicação de sentença de despejo (art. 63, lei 8.245/91). Tal analogia se justifica pelo fato do prazo contido na ação de despejo e o que é disponibilizado ao condômino que foi removido da convivência condominial exercem a mesma função no ordenamento jurídico: São corolários concreção da tutela da moradia prevista na Constituição Federal. Ademais, diante do giro repersonalizante promovido pela Constituição Federal de 19889, não se é possível conceder maior proteção ao interesse patrimonial do locador - que teria que esperar apenas trinta dias para reaver o imóvel - do que à dignidade da pessoa humana dos vizinhos ordeiros, que vão se submeter ao martírio de continuar convivendo com o morador antissocial por meses. Por fim, reafirma-se a necessidade da aplicação da exclusão como forma de garantir a sistemática do ordenamento jurídico, sob pena do seu não reconhecimento transformar a tolerabilidade do abuso do direito de propriedade em uma questão de preço, com os condôminos que possuem condições financeiros de arcar as sucessivas multas recebendo verdadeiro passe livre para desrespeitarem as normas de vizinhança. Nesta senda, a exclusão representa ponto de intercessão entre a responsabilidade civil e o direito de vizinhança. Tomando como exemplo as lições de San Tiago Dantas10, assim como o proprietário de uma pedreira pode ser obrigado, além de restituir vizinhos pelos danos causados pelo uso de sua propriedade, a restringir determinado uso do seu imóvel, o condômino antissocial, como visto no caso em tela, também pode se ver afastado do seu lar, independentemente de ter que arcar com eventual indenização aos seus vizinhos. __________ 1 VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 566. v. 16.  2 Cf.: TJSP, 36 ª CDP, AC 1001406-13.2020.8.26.0366. Rel. Des. Milton Carvalho. Julg. em: 22/04/2021;  TJSP, 36 ª CDP, AC 1009323-33.2019.8.26.0006. Rel. Des. Lidia Conceição. Julg. em: 12/12/2022.  3 TJ/SP. 29ª Vara Cível de São Paulo. Processo no 1007991-98.2023.8.26.0100. Juíza Laura de Mattos Almeida. Julg. em: 30/04/2024. 4 Cf: ABELHA, André. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013. p. 131-132; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 726-727. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 247. v. 4  5 LOPES, João Batista. Condomínio. 7 ed. São Paulo: RT, 2000. p 149.  6 Cf: TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 261. v. 5;  MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 176. v. 5.; LOUREIRO, Francisco Eduardo. Coisas. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021. p. 1.338; ANGÉLICO, Américo Izidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento antissocial à luz do novo Código Civil - Atualidades. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024; VIEIRA, Fernando Borges. A exclusão do condômino antissocial. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024; GARCIA, Thyyago. Exclusão de condômino antissocial: é possível? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024. 7 ABELHA, André. op cit. p. 156.  8 A sentença analisada concedeu prazo de 90 dias para que a moradora e seu filho deixassem o apartamento. Tomando como exemplo o próprio TJSP, é possível também encontrar decisões cujo prazo foi de 60 dias, como, por exemplo: TJSP, 36 ª CDP, AC 1001406-13.2020.8.26.0366. Rel. Des. Milton Carvalho. Julg. em: 22/04/2021;  TJSP, 36 ª CDP, AC 1009323-33.2019.8.26.0006. Rel. Des. Lidia Conceição. Julg. em: 12/12/2022.  9 FACHIN, Luiz Edson. O Giro repersonalizante: singrar, a viagem do redescobrimento, In: Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 231-281.  10 DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 22. __________ ABELHA, André. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013. ANGÉLICO, Américo Izidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento antissocial à luz do novo Código Civil - Atualidades. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024. DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 22. FACHIN, Luiz Edson. O Giro repersonalizante: singrar, a viagem do redescobrimento, In: Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. GARCIA, Thyyago. Exclusão de condômino antissocial: é possível? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024. LOPES, João Batista. Condomínio. 7 ed. São Paulo: RT, 2000. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Coisas. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021. MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. v. 5. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. 4. TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 5. VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. 16.  VIEIRA, Fernando Borges. A exclusão do condômino antissocial. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024.
O desastre climático que recentemente se abateu sobre o Rio Grande do Sul compreendeu a ocorrência de chuvas excepcionais, alagamento, cheias de córregos e riachos e mesmo de lagoas, como a Lagoa dos Patos, que veio a transbordar com o escoamento da água acumulada das chuvas. Além de prejudicar a produção rural, as cheias atingiram a região metropolitana de Porto Alegre e inundaram cidades mais ao sul, como Rio Grande e Pelotas, num processo que foi avançando com o passar dos dias. Essa triste situação ilustra a importância de bem compreender o conceito de sinistro com que trabalham os contratos de seguro. Há, com efeito, sinistros que correspondem a uma ocorrência imediata, instantânea ou de curta duração. Mas há também sinistros contínuos ou cujos efeitos danosos se prolongam no tempo. Nestes casos, podem surgir dúvidas sobre as apólices que respondem pelas perdas decorrentes desses sinistros, quando o evento coberto ou suas consequências se estendem por tempo superior ao da vigência dessas apólices. Ou ainda sobre a possibilidade de a seguradora que as emitiu, nessas situações, recusar a renovação do seguro, para novo período. Com relação à primeira questão, é preciso ter em conta que os sinistros não são, necessariamente, ocorrências localizadas no tempo. Um sinistro pode ocorrer por tempo longo, ou resultar de causas que já há algum tempo despontavam, mas que só se revelam posteriormente, demorando a serem conhecidas. Muitas vezes, apenas quando sua manifestação danosa se explicita e pode ser conhecida pelo segurado, é que o sinistro se revelará, como sói acontecer no tocante a riscos de construção, ou riscos de produtos e contaminação. Como sinistro, por definição, é a realização do risco coberto, haverá sinistro uma vez que ocorrido o evento descrito como risco. Risco não se confunde com dano. O risco de falha de montagem ou de fabricação, por exemplo, coberto pelo seguro de riscos de engenharia, pode se manifestar, em sua potencialidade danosa, tempo depois de o equipamento ser colocado em operação, quando já se encontrar vigente o seguro operacional. Há sinistros, por outro lado, que geram danos que irão se protrair no tempo. O exemplo mais evidente é o de lucros cessantes, à medida que a perda de receita venha a repercutir por período de tempo que ultrapasse o da vigência da apólice em que ocorrido o risco. No seguro de responsabilidade civil, as perdas indenizáveis sofridas por terceiros, como os aluguéis a cargo do segurado até que seja reconstruída sua residência arrastada pela lama de uma barragem que rompeu, ou derrubada num evento de subsidência, podem perdurar por meses ou anos, sendo em regra indenizáveis por força das apólices vigentes à época do rompimento ou da subsidência. Nesse sentido, vale ressaltar que, com enorme ganho de precisão em relação ao direito vigente, o PLC 29/17, na versão recentemente aprovada pelo Senado Federal, que pouco alterou a versão anteriormente aprovada pela Câmara dos Deputados, estabelece, no art. 70, que "a seguradora responde pelos efeitos do sinistro caracterizado na vigência do contrato, ainda que se manifestem ou perdurem após o término desta". Importante, também, ressaltar o disposto no parágrafo 5º do art. 66 do mesmo texto, que estabelece a inexigibilidade pela seguradora, em caso de sinistro, de providências que possam "colocar em perigo interesses relevantes do segurado, do beneficiário ou de terceiros ou se implicarem sacrifício acima do razoável". Quanto à possibilidade de a seguradora recusar a renovação da apólice, tendo em vista a ocorrência de sinistro de longa duração, ou da possibilidade de sucessivos sinistros de mesma natureza, o primeiro ponto a considerar é que a nova apólice, em regra, não responde por sinistros cuja ocorrência se verificou ou se iniciou antes da renovação. Entende-se, por outro lado, que a seguradora não pode recusar a renovação se continua a operar no ramo ou modalidade do seguro e não há óbice técnico à renovação. Assim por exemplo, se não ocorreu uma alteração objetiva no estado de risco, como uma mudança geológica impeditiva, a recolocação do seguro não haveria de ser recusada, ainda que cobrando a seguradora um prêmio superior ao do período anterior, fundado numa taxa justificadamente agravada. Esta compreensão, que não tem amparo expresso no direito atual, também encontra guarida no referido PLC 29/17. Assim, por exemplo, o art. 51 estipula que a recusa da seguradora a uma proposta de seguro - e tanto mais uma de renovação do seguro - tem de ser justificada operacional e tecnicamente, sendo que "os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico e social, sendo vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial". Muitas vezes, no entanto, surgem conflitos sobre o tema em torno de cláusulas inseridas nas condições de determinados seguros pelas seguradoras. É o que se verifica, por vezes, em relação às coberturas de falta de suprimento de energia e de alagamento. Há apólices que estabelecem que se danos múltiplos e sucessivos ocorrerem no período de 72h, todo o conjunto será entendido como uma só ocorrência. Se a ocorrência ultrapassar 72 horas, será considerado um outro sinistro, diverso do anterior.1 Isto significa que a seguradora irá considerar incidentes duas ou mais franquias (a participação obrigatória do segurado em parte das perdas verificadas) em vez de computar o desconto, da indenização a ser paga por ela, de apenas uma franquia. As apólices que trazem essa previsão, aliás, não costumam estabelecer a reintegração automática da importância segurada ou do limite máximo de indenização, nessas situações. Assim, o valor do seguro poderá esgotar-se mais rapidamente. Sem adentrar na discussão da validade de cláusulas como essa, ou seja, no que tange ao tema da renovação do seguro, ora em pauta, poderão surgir conflitos entre segurado e seguradora quando a vigência da apólice em que se iniciou o sinistro terminar logo depois ao primeiro período de 72 horas. Persistindo as mesmas condições que deram causa aos prejuízos reclamados, a exemplo das chuvas excepcionais - ainda que elas parem e voltem -, a seguradora terá de responder por um sinistro, no âmbito da nova apólice, isto é, da apólice renovada, cuja ocorrência pode ser tida como certa. Presumindo-se que o segurado tenha, em tempo hábil, antes do término da vigência da apólice, proposto à seguradora sua renovação, não parece fazer sentido sua recusa, simplesmente em razão disto. Primeiro, porque o sinistro teve início na apólice a ser renovada - e a continuidade do sinistro ou o prolongamento das perdas dele resultantes, seriam por ela indenizáveis, até o limite ou importância máxima prevista, não fossem disposições como a citada. Segundo, porque a qualificação da ocorrência que perdurou por mais de 72 horas como um novo sinistro, ou daquela cujos efeitos continuam se manifestando para além dele, é meramente artificial, criada pela própria seguradora. Não tem o condão de implicar óbice técnico, à medida que, pela apólice original, o risco foi garantido normalmente. Nessas condições, frente ao artifício de dividir um mesmo sinistro em dois ou mais, sem que ele tenha de fato ocorrido mais de uma vez, não caberá a alegação de óbice técnico. Espera-se que a experiência haurida com eventos como o ora discutido, que infelizmente tendem a se reproduzir no futuro, possa impulsionar a realização de estudos técnicos voltados à garantia de interesses presentemente não cobertos pelo mercado segurador, o aperfeiçoamento das coberturas, com melhor redação de clausulados, e interpretações contratuais consentâneas com a função social do contrato, particularmente diante de um sinistro e, especialmente, de sinistro no seguro de responsabilidade civil, modalidade de seguro cuja importância, nas sociedades contemporâneas, se faz cada vez mais notória. ________ 1 A título de exemplo, trata-se de uma cláusula com redação semelhante a: "Todas as perdas seguradas que ocorram durante um período de 72 horas consecutivas, causadas por: a) terremoto, tremor de terra, maremoto, ou qualquer outro risco decorrente de atividade sísmica segurado sob esta apólice; b) erupção vulcânica; c) furacão, tufão, tornado, vendaval, água direcionada por vento ('wind driven water') ou qualquer outro risco de vento sob esta apólice; d) alagamento. Serão consideradas como única ocorrência de sinistro, para fins deste seguro. Qualquer um dos eventos acima relacionados que perdurem por mais do que 72 horas consecutivas, será considerado como duas ou mais ocorrências de sinistro. O segurado poderá eleger a data e hora do início de cada período de 72 horas, condicionado a que: I. essa data e hora não seja anterior à primeira perda registrada sofrida pelo segurado; II. a data de início esteja dentro do prazo de vigência deste seguro; III. não haja sobreposição de dois ou mais períodos de 72 horas."
O livro "Suporte Fático da Norma na Responsabilidade Civil" trata-se de uma obra dedicada aos estudiosos, profissionais do Direito, em especial da responsabilidade civil com atenção também ao processo civil. A existência de danos e sua discussão quanto à necessidade de reparação civil se conecta com vários ramos do direito privado. A reparação também está ligada umbilicalmente com o direito processual civil à luz da causa de pedir, pedido e ônus da prova, além da exigência da comprovação de que o dano que se busca ver reparado ou compensado se trata de um dano indenizável. Diante de uma série de fatos no cotidiano da sociedade aqueles podem ter conexão com a responsabilidade civil e os seus reflexos no direito processual civil, de sorte que após uma abordagem teórica sobre o suporte fático da norma e o direito processual civil selecionamos alguns temas que refletem um estudo das normas e sua aplicação prática no contexto da responsabilidade civil. Buscamos apresentar uma análise detalhada do suporte fático da norma, explorando as várias espécies de danos e suas implicações no direito brasileiro com a análise de casos concretos. O livro discute de forma criteriosa a causa de pedir e o pedido no processo civil, proporcionando uma visão mais abrangente e esclarecedora sobre a matéria. Este aspecto é especialmente relevante, pois oferece ao leitor uma compreensão mais ampla da fundamentação jurídica necessária para a elaboração de peças processuais eficazes. A obra se projeta pela análise do dano à luz da Constituição Federal, especificamente o art. 5º, inciso X, e dos arts. 186 e 927 do CC, dentre outros. Essa abordagem constitucional e civilista permite uma interpretação harmoniosa e integrada das normas, contribuindo para um melhor entendimento e aplicação das leis vigentes. Além disso, a linguagem acessível e a organização lógica do conteúdo busca facilitar a compreensão dos conceitos complexos envolvidos. A combinação de teoria e prática apresentada no livro tem como objetivo aprofundar os conhecimentos sobre a responsabilidade civil no âmbito do processo civil.
Instrumentos jurídicos de perícia constituem soft law? Um estudo precedido pelo Conseil d'État francês propôs uma definição droit souple (soft law), também conhecida como droit mou, ao mesmo tempo, três critérios cumulativos que permitem identificar os instrumentos jurídicos que se enquadram nesta categoria de Direito. A soft law é apresentada como todos os instrumentos que cumpram as três condições cumulativas seguintes1: 1ª condição: Estes instrumentos devem ter o propósito de modificar ou direcionar o comportamento de seus destinatários, incentivando, na medida do possível, sua adesão. Este é sem dúvida o caso dos instrumentos utilizados na perícia que conhecemos e da Association pour l'étude de la réparation du dommage corporel - AREDOC, cuja ideia é orientar os atores da compensação para uma melhor aplicação do princípio da reparação integral. A questão da adesão a esta base será examinada mais detalhadamente quando uma análise da natureza desejável ou indesejável do uso destes instrumentos. 2ª condição: Estas ferramentas não devem criar por si mesmas direitos ou obrigações dos seus destinatários. No que diz respeito à indenização por danos corporais, este assume, por exemplo, que a vítima não pode reivindicar com o juiz a utilização deste ou daquele barema de avaliação dos danos, assim como não pode exigir que lhe seja aplicada a base da AREDOC. 3ª condição: Para serem soft law, os instrumentos jurídicos devem finalmente apresentar, através do seu conteúdo e do seu método de desenvolvimento, um grau de formalização e estruturação que os relacione com as regras do direito. Encontramos esses aspectos perfeitamente estruturados nos diferentes instrumentos utilizados diariamente na perícia por especialistas em avaliação do dano corporal. No que diz respeito a estes três critérios cumulativos estabelecidos no do referido estudo do Conseil d'État, é possível concluir que a grande maioria dos instrumentos utilizados no âmbito da perícia se enquadra bem na categoria de soft law. Feita esta observação, e na sequência do estudo do Conseil d'État, é agora interessante perguntar se o recurso a estes instrumentos jurídicos se revela útil ou não. É desejável a utilização de instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais? Para orientar as partes interessadas na utilização de instrumentos de soft law, o Conseil d'État esforçou-se por identificar critérios para avaliar se é ou não prudente utilizar os instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais. Aqui são propostos três critérios cumulativos2: O instrumento jurídico deve, antes de mais, ser útil. Este é, sem dúvida, o caso dos diferentes instrumentos utilizados na avaliação dos danos corporais, necessitando de orientação dos peritos e dos assistentes técnicos para garantir uma maior equidade na indenização das vítimas. Assim, tendo obviamente em conta as especificidades das situações individuais, garantir um mínimo de harmonização na avaliação dos parâmetros de dano corporal. Este critério de utilidade encontra-se na base da AREDOC na medida em que tende a uma aplicação mais respeitosa do princípio da reparação integral. Além disso, deve permitir às vítimas obter uma indenização mais justa porque é mais adequada à realidade das suas necessidades de remuneração. Para que a utilização do instrumento de soft law seja considerada desejável, os instrumentos analisados também devem atender ao critério da efetividade. Para avaliar esta condição, o estudo do Conseil d'État fornece detalhes valiosos cuja aplicação pode ser verificada no que diz respeito à AREDOC. Segundo os autores deste estudo, um instrumento seria "eficaz" se "se constatar a probabilidade de uma dinâmica de adesão dos atores envolvidos e a capacidade dos instrumentos se tornarem um padrão de referência". Enfim, para que o recurso ao instrumento de soft law (direito/regra flexível) possa ser recomendado, deve finalmente poder ser considerado como "legítimo". A presença massiva do público nos painéis de avaliação do dano corporal na perícia médica, nos Congressos Brasileiros da Sociedade Brasileira de Medicina Legal e Perícias Médicas, parece um primeiro indicador desta dinâmica de adesão e ao longo da última década tornando-se uma "referência padrão". Para que o uso da ferramenta de soft law seja recomendado, ele deve finalmente ser considerado "legítimo". Essa legitimidade provavelmente dependerá principalmente avaliada através da legitimidade da própria instituição quem produziu o instrumento jurídico analisado. O instrumento proposto pela Association pour l'étude de la réparation du dommage corporel (AREDOC), cuja legitimidade é incontestável, emana do mundo dos seguros. Portanto, dos atores cuja imparcialidade também pode ser discutida sem que isso possa pôr em causa a legitimidade da utilização do instrumento jurídico que propõem. Esta rápida análise leva-nos a concluir que a base de dados AREDOC deverá ser capaz de cumprir os três critérios acima mencionados, uma vez que a sua eficácia seja estabelecida pela generalização do seu uso.3 O valor jurídico das normas técnicas utilizadas em perícia médica A perícia só adquire o seu sentido pleno através da sua ligação com a decisão, porque é esta que traz à tona a sua função. Mas é a complexidade de conhecer a "factualité" que a torna uma função "technique" inevitável cada vez que se trata de compensar danos corporais. Com efeito, esta complexidade exige o "know-how" de peritos especializados que são obrigados, em particular, a aplicar dados científicos e a utilizar ferramentas técnicas. Isso em um contexto distinto da ciência e da abstração induzindo a ideia de domínio pragmático dedicado a um propósito específico, que em última análise, fornecer informações úteis ao juiz. Com isso é possível observar que as normas técnicas têm diversas formas.4 Mais particularmente, no que diz respeito às normas técnicas avaliação de danos corporais, existem, em particular, escalas, guias e escalas de valores. Assim é possível citar: "le barème invalidité (dans la sphère professionnelle), le barème médico-légal des incapacités, les barèmes « droit commun » (en l'absence d'un barème « officiel »), les différents barèmes établis dans le cadre des assurances individuelles, le barème d'évaluation des taux d'incapacité des victimes d'accidents médicaux, d'affections iatrogènes ou d'infections nosocomiales, le guide barème européen d'évaluation des atteintes à l'intégrité physique et psychique".5 Algumas escalas possuem uma análise mais anatômica do sequelas, como a do Concours médical, e outros, mais funcionais, como le barème d'évaluation médico-légale ou le barème d'évaluation médicale des accidents médicaux. Sobre a variedade de denominações, não parece incomodar o Cour de Cassation, uma vez que tenta não retificar ou unificar as diversas formas pelas quais os promotores destes padrões indicativos os qualificaram. Assim, vários acórdãos utilizam os nomes de "barème", "référentiel", « nomenclature » e documentos técnicos podem ser designados como normas, coleção de práticas ou usos.6 Os demais baremas de valores médico-legais e de direito consuetudinário são essencialmente derivados da prática. Como tal, eles certamente podem ser qualificados como "normas", uma vez que servem referência na avaliação de danos corporais, mas sua legalidade é questionável. O que, no entanto, pode argumentar pelo caráter jurídico destas normas técnicas é sua finalidade: Os baremas médico-legais visam permitir a avaliação do dano corporal que se enquadre no âmbito da ordem jurídica. Além disso, estas normas técnicas são utilizadas e validadas pelos avaliadores (peritos) e juiz, na determinação da indenização, tendo assim em conta essas normas técnicas na esfera do direito. Mas, embora adquiram valor legal devido a sua contribuição para a decisão de compensar os danos corporais, eles não podem ser qualificados como "normas jurídicas" por causa de sua multiplicidade, sua falta de coerência e de sua origem.4 Esta reflexão sobre a qualificação jurídica das normas técnicas permaneceria incompletas se a questão do seu alcance não foi considerada. Com efeito, qual é a influência das normas técnicas sobre avaliação dos danos corporais?4 O papel das normas técnicas na avaliação dos danos corporais Segundo o epidemiologista M. Thuriaux "para agir é preciso compreender, para compreender é preciso saber; para saber, você tem que nomear e às vezes mensurar".4 Medir significa avaliar e determinar o valor ou estabelecer um número fixando a intensidade ou estado do objeto.7 Alguns autores acreditam que medir não é uma necessidade, como na Inglaterra que não existe um sistema de baremação.4 O legislador inglês optou por uma metodologia descritiva, cabendo ao perito descrever os efeitos posteriores e o seu impacto na vida da vítima do dano. Na França, por outro lado, os danos corporais são medidos pelo perito usando ferramentas periciais que se apresentam na forma de edital ou ficha técnica. Certamente, o advogado não é competente para realizar tal avaliação, mas ele não deve, no entanto, desviar sua atenção dessas ferramentas porque a perícia médica é uma fase crucial dentro do processo de indenização por danos corporais.4 O papel das normas técnicas pode, assim, ser entendido através das três perguntas a seguir4: 1) Em primeiro lugar, por que medir danos corporais com ajuda de ferramentas médico-legais? A avaliação médica dos danos corporais é uma pré-requisito essencial para avaliação jurídica (financeira) de dano corporal pelo julgador. Contudo, em princípio, para ser capaz de conceder à vítima uma indenização justa no respeito pelo princípio da reparação integral dos danos, o perito deve ser capaz de saber: Se isso for obviamente possível, o momento em que as lesões estabilizaram ou irão se estabilizar definitivamente, o que isso é chamado de "data de consolidação". Esta data é importante não só porque faz com que o prazo se esgote de prescrição, mas também e sobretudo porque permite distinguir itens de perdas extrapatrimoniais temporário e permanente. A extensão dos danos físicos e psicológicos à vítima, observe que este trabalho técnico acaba levando o perito a realizar uma "pré-qualificação" dos fatos que permitam reconhecer a existência de uma "contribuição normativa" perícia médica no procedimento de indenização do dano corporal. 2) Em seguida, como são mensurados os danos corporais? Esta questão diz respeito aos meios disponibilizados especialistas médicos para cumprir sua missão: tabelas/baremas médicos (avaliação em porcentagem/pontos do déficit funcional permanente - DFP), escalas em graus (de 1 a 7). 3) O que é medido exatamente usando as ferramentas médico-legais existentes? Por um lado, as escalas médicas visam avaliar as consequências da pessoa lesada e mais precisamente quantificar a seu "déficit" através de uma taxa. No entanto, a determinação do DFP - Déficit Funcional Permanente é mais complexo e não pode ser limitado a uma simples fixação de uma taxa em porcentagem ou pontos. Além disso, na prática há discussões acaloradas sobre estes parâmetros de dano extrapatrimonial (pós consolidação) devido à sua avaliação particularmente delicada. Na verdade, o DFP inclui aspectos que não estão incluídos no escalas (sofrimento permanente, distúrbios sentido nas condições de existência pessoal, familiar e social). Por outro lado, as escalas de 7 graus foram estabelecidas para permitir apreciação do sofrimento suportado (antes da consolidação) e danos estéticos temporários e permanentes. Mas novamente, na prática não há consenso sobre a metodologia por grau. Esta é a razão pela qual ele é fundamental que o grau escolhido seja complementado por uma descrição precisa das queixas da pessoa lesada tendo em conta não só o ambiente em torno do acidente, mas também o tempo de inatividade e qualquer outra informação útil para compreensão da parcela detida pelo médico perito. Conclusão A coluna de hoje ilustra perfeitamente a necessidade de organizar um verdadeiro debate contraditório - incluindo todas as partes interessadas - e multidisciplinar sobre a questão das normas técnicas de medição dos danos corporais, a fim de harmonizar a metodologia da perícia médica. Ademais, a variedade de fontes e alcance das normas técnicas em perícia médica não permite reconhecer uniformemente o seu valor jurídico. Na verdade, isto difere essencialmente dependendo do modo de produção destas normas e do quadro em que são solicitadas. _________ 1 Etude annuelle 2013 du Conseil d'État, Le droit souple. p. 61. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 2 Etude annuelle 2013 du Conseil d'État, Le droit souple. p. 136-9. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 3 MORLET-HAÏDARA Lydia. Réflexions sur la Valeur juridique des outils d'expertise et de la base ANADOC. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 4 GHOZIA Amel, La valeur juridique et le rôle des normes techniques en expertise, Journal du Droit de la Santé et de l'Assurance - Maladie (JDSAM), 2020/2 (N° 26), p. 16-23. DOI : 10.3917/jdsam.202.0016. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 5 Ce barème a vu le jour en 2003 et a été réalisé sous l'égide de la Conférence Européenne d'Experts en Évaluation et en Réparation du Dommage Corporel - CEREDOC. Il s'agissait d'harmoniser au sein de l'Union européenne les systèmes nationaux d'indemnisation du dommage corporel. 6 Cour de cassation. Le rôle normatif de la Cour de cassation. p. 197. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 7 Le Robert. Petit Robert: dicionário da língua francesa. Montreal: Le Robert; 1990. p.1582.
terça-feira, 13 de agosto de 2024

A reforma do Código Civil e o art. 931

Um dos dispositivos do Código Civil de 2002 que sempre gerou controvérsia doutrinária é o art. 931, que afirma: "Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação". Em verdade, por força da própria ressalva à existência de um regime especial, - a saber, a "responsabilidade pelo fato do produto" contida no CDC -, o dispositivo teve questionada a sua própria pertinência, sendo afirmado que "qualquer tentativa de salvar o dispositivo estaria fadada ao fracasso".1 Talvez por essa razão tenha, de fato, sido proposta a sua revogação pela primeira versão do anteprojeto de reforma do Código Civil submetida à votação dos membros da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal. Contudo, no "Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil", efetivamente entregue ao Senado Federal, o dispositivo constante do anteprojeto, anexo ao citado "Relatório"2, apresenta a seguinte redação: "Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, o fabricante responde independentemente de culpa pelos danos causados por defeitos nos produtos postos em circulação. Parágrafo único. O produto é considerado defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera no momento em que é posto em circulação."   O presente artigo, portanto, tem por escopo analisar as alterações propostas na redação do dispositivo acreditando, por certo, que o mesmo possa ser, ao final do longo processo legislativo, convertido em norma vigente. Nesse sentido, a primeira observação que deve ser feita é a substituição da referência aos "empresários individuais e as empresas" pela previsão da responsabilidade do "fabricante". A alteração não é meramente terminológica, mas acarreta importante repercussão prática. De fato, representa o reconhecimento de que o "verdadeiro introdutor da coisa perigosa no mercado é o fabricante e não o distribuidor".3 Ao mesmo tempo, afasta a possibilidade de responsabilização do "comerciante", o qual, por não ter nenhum controle sobre o produto, é igualmente surpreendido pela existência de um defeito no mesmo. Esta realidade já justificava o tratamento dado pelo CDC ao comerciante - o qual somente pode ser responsabilizado pelo "fato do produto" nos casos do art. 13 - e serve de fundamento para a alteração do Código Civil. Em consequência, passa a ser necessária uma leitura mais cuidadosa do enunciado 42 da "I Jornada de Direito Civil" na parte que se refere "à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos" (grifou-se). Esta "vinculação à circulação", com a nova redação proposta, não deve, de fato, ser capaz de gerar, pelas razões já apontadas, a responsabilidade do comerciante. Outra importante alteração é a referência expressa à existência de um "defeito" no produto como elemento deflagrador do dano, sendo o defeito entendido, na forma do parágrafo único da norma projetada, como violação da legítima expectativa de segurança existente ao tempo da entrada em circulação do produto. É inegável que a nova redação proposta para o dispositivo buscou inspiração no art. 12, § 1º, do CDC, mas não com o intuito de, simplesmente, repetir um sistema já consagrado em nosso ordenamento jurídico, - levando a uma duplicidade talvez inútil -, mas sim com o nobre intuito de evitar a "ruptura do sistema", afastando a possibilidade de se reconhecer uma responsabilidade sem excludentes do fabricante.4 De fato, a previsão, ainda em vigor, do Código Civil, imputando uma responsabilidade objetiva aos "empresários individuais e às empresas" sem qualquer excludente expressa, sempre foi motivo de grande apreensão doutrinária. Não foi por outra razão que, na VI Jornada de Direito Civil, foi aprovado o enunciado 5625, o qual é corroborado pelo enunciado 661, da IX Jornada de Direito Civil.6 O claro objetivo dos dois enunciados é evitar a possível interpretação de que o art. 931, indo além do sistema protetivo inaugurado pelo CDC, teria consagrado uma responsabilidade civil objetiva fundada no chamado "risco integral", isto é, sem excludentes. Assim, caminhou bem o reformador ao incluir o "defeito" como um pressuposto para a responsabilidade objetiva do fabricante.7 Claro que, além deste requisito, também é indispensável a existência de um vínculo de necessariedade entre o defeito e o dano verificado, de forma que as demais excludentes do nexo causal também poderão ser validamente invocadas pelo fabricante.8  Oportuno observar, porém, que, dentre estas excludentes, não se inclui aquela conhecida como "riscos do desenvolvimento". Ao contrário, a referência expressa ao "defeito" como requisito para a responsabilidade também no regime do Código Civil serve para confirmar que os riscos presentes no produto, desde o momento de sua entrada em "circulação", devem ser imputados ao fabricante, ainda que desconhecidos pelo mais avançado estado da ciência e da técnica então em vigor.9 Observa-se, assim, mais uma vez, uma aproximação entre o regime inaugurado pelo CDC e aquele constante do Código Civil.10    Considerando a (reforçada) proximidade entre os regimes da responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista pelo CDC, e o que se pretende estabelecer com a reforma do art. 931 do Código Civil, deve ser respondida uma pergunta final: Qual a utilidade da manutenção deste último dispositivo? Certo é que não são conhecidos precedentes, na jurisprudência do STJ, que tenham sido fundamentados exclusivamente no disposto no Código Civil.11 A resposta parece residir no fato de que o regime do CDC é caracterizado por sua capacidade expansiva, em especial se for recordado que, para fins do "fato do produto", consumidor não deve ser entendido somente como "destinatário final" (art. 2º, caput), e sim como qualquer "vítima do evento danoso" (art. 17), o chamado bystander (expectador).12 Assim, o espaço reservado à incidência do art. 931 apresenta-se, de fato, restrito, ficando reservado às hipóteses em que não se mostra possível a aplicação do regime especial.13 Mas parece inquestionável que a aplicação do Código Civil poderá ocorrer em situações em que não se consegue reconhecer a figura do "destinatário final", e tampouco a figura do bystander, uma vez que se considere inexistente prévia relação de consumo.14 Exemplo pode ser encontrado na venda de elevada quantidade de determinado produto (como, por exemplo, combustível) de um fabricante (pessoa jurídica) para ser utilizado como insumo pela pessoa jurídica adquirente, a qual é dotada de grande porte econômico. No ato da entrega do produto ocorre uma explosão destruindo os caminhões da empresa transportadora, sendo tal explosão decorrente de um defeito presente no produto transportado, o que foi confirmado por prova pericial.15 Para estas situações, ainda que, aparentemente, pouco numerosas, é sim recomendável a existência de norma específica consagradora de uma responsabilidade civil objetiva fundamentada na existência de um defeito no produto causador do dano. ________ 1 CARNAÚBA, Daniel Amaral. "Para que serve o art. 931 do Código Civil? Considerações críticas sobre um dispositivo inútil", in Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 7, n. 22, pp. 203-239, jan./mar. 2020. 2 As questões relativas à atuação da Comissão de Juristas, até a apresentação do "Relatório Final", podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: "CJCODCIVIL - Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil - Atividade Legislativa - Senado Federal", acesso em 28.06.2024. 3 Esta conhecida afirmação é de Fábio Konder COMPARATO, "A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico", in Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 491. No mesmo sentido pode ser recordada a doutrina de João Calvão da SILVA (Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, p. 24), segundo o qual é inegável que houve uma "desfuncionalização do comércio", a traduzir uma "alteração da função ou do papel do comerciante: de especialista e conselheiro do adquirente passa a simples distribuidor, a entreposto ou "estação intermédia", mero elo de ligação entre o produtor e o consumidor e cuja função principal, quase exclusiva, está na armazenagem e distribuição dos produtos". 4 O perigo da "ruptura do sistema" foi corretamente apontado por Gustavo TEPEDINO em "Editorial" intitulado "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto" publicado na Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, Forum, v. 22, pp. 11-13, out./dez. 2019. 5 Afirma o Enunciado 562: "Aos casos do art. 931 do Código Civil aplicam-se as excludentes da responsabilidade objetiva".   6 Eis o teor do Enunciado 661: "A aplicação do art. 931 do Código Civil para a responsabilização dos empresários individuais e das empresas pelos danos causados pelos produtos postos em circulação não prescinde da verificação da antijuridicidade do ato". Para um aprofundamento da "antijuridicidade" como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual pode ser vista a doutrina de PETTEFI DA SILVA, Rafael. "Antijuridicidade como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição", in Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, pp. 169-214. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2019.  7 Para uma defesa do "defeito" como requisito da responsabilidade objetiva também no regime do Código Civil seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, "O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento", in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA, v. 21, pp. 53-93, jan./mar. de 2005.      8 Esta afirmação foi precisamente sintetizada por Gustavo TEPEDINO, "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto", cit., p. 13, ao afirmar: "Por esse motivo, também em homenagem à coerência do sistema, as excludentes do dever de reparar previstas no Código de Defesa do Consumidor devem incidir na busca de causalidade necessária entre o dano e o defeito que o produziu". 9 Sobre o tema dos "riscos do desenvolvimento" seja consentido remeter a obra específica: CALIXTO, Marcelo Junqueira. A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004. Quanto ao tema, é oportuno recordar que, já na I Jornada de Direito Civil, foi elaborado o Enunciado 43 que afirma: "A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento".   10 Nesse sentido, deve ser recordado que a afirmação de que o CDC não reconhece os "riscos do desenvolvimento" como uma possível excludente da responsabilidade do fornecedor deixou de ser uma questão meramente doutrinária, mas ganhou a adesão judicial. De fato, ao julgar, em 05 de maio de 2020, o Recurso Especial 1.774.372/RS, a Min. Relatora (Nancy Andrighi), acompanhada pelos demais integrantes da Terceira Turma, asseverou, em seu voto, o seguinte: "Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno" (grifou-se). 11 De fato, o precedente "mais próximo' que se encontra na jurisprudência do STJ é relativo à contrafação de produtos em ação movida pelos titulares das marcas em face de "administradora de centro comercial" situado em área de comércio popular de São Paulo. No caso, a administradora foi solidariamente condenada por ser a locadora de "stands" e "boxes" nos quais eram comercializados os produtos considerados "violadores do direito de propriedade industrial" dos titulares das marcas (Recurso Especial 1.125.739/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 03 de março de 2011). A solução da controvérsia, em verdade, não parece encontrar fundamento no art. 931 do Código Civil, mas o dispositivo havia sido citado pelo TJSP, juntamente com o art. 927 do mesmo diploma, e não houve provimento do Recurso Especial, quanto ao ponto, por força do óbice da Súmula 7 do STJ.    12 Oportuno recordar os dispositivos do CDC: "Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final; Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". 13 Dessa forma, não se mostra correto o Enunciado 378 da IV Jornada de Direito Civil, que afirma: "Aplica-se o art. 931 do Código Civil, haja ou não relação de consumo". Como visto, o pressuposto para a aplicação do regime do Código Civil é que, efetivamente, inexista relação de consumo, pois, presente esta, o tratamento da controvérsia deve encontrar fundamento no previsto na lei especial. 14 O STJ, de fato, tem precedentes reconhecendo que a aplicação do art. 17 do CDC, reconhecendo o bystander como "vítima do evento danoso", exige a demonstração de "prévia relação de consumo". Assim, por exemplo, o taxista não é responsável, como fornecedor de serviços, se, no momento da colisão de seu carro com o de terceiro, não estivesse transportando nenhum passageiro. Este terceiro não será considerado "vítima" de um serviço defeituoso pelo fato de "inexistir prévia relação de consumo" (veja-se, nesse sentido, o julgamento do Recurso Especial 1.125.276/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28 de fevereiro de 2012).     15 Outro interessante exemplo é dado por Gustavo TEPEDINO, "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto", cit., p. 12, ao afirmar: "Em outras palavras, incide o art. 931, fora das relações de consumo, mas respondendo à mesma dinâmica objetiva de incidência, subordinada à presença de antijuridicidade estabelecida por vício de segurança que o legislador pretendeu coibir como um desvalor. Significa dizer que, em certa atividade lícita, há fato incidental que, independentemente de culpa ou de má utilização pelo destinatário, altera os efeitos legitimamente esperados do produto (imagine-se, a título ilustrativo, o vazamento de certo produto químico no ato de entrega à empresa destinatária)".  
No ano de 2012 tivemos a oportunidade de defender tese de doutoramento junto ao programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, intitulada "Responsabilidade Civil Preventiva". Na ocasião, afirmamos: "Aludir-se à responsabilidade civil preventiva pode parecer estranho, incomum, subversivo ou até mesmo equivocado, ao menos quando contrastada a referida designação com os fundamentos e objetivos tradicionalmente imputados ao instituto." Naquele momento, aludir-se à prevenção dentro da responsabilidade civil soava subversivo. Todavia, passados doze anos, é possível hoje sustentar com menor dificuldade que a prevenção está efetivamente inserida no cerne da responsabilidade civil contemporânea. Seguindo a tendência mundial de se repensar a própria razão de ser da responsabilidade civil, é indispensável revisar o sentido do que significa ser "responsável civilmente" no século XXI. O redimensionamento da responsabilidade civil como instrumento de tutela dos direitos inerentes à pessoa - e não apenas voltado à recomposição do patrimônio ou ao seu equivalente por meio da indenização -, constitui um dos grandes desafios que a realidade das relações sociais contemporâneas faz emergir. Nesse sentido, o anteprojeto de reforma ao Código Civil, visando acompanhar as grandes modificações sofridas pela responsabilidade civil ao longo do século XX, buscou reestruturá-la por via da implementação de um modelo aberto, e axiologicamente orientado pelo respeito à pessoa, 'valor-fonte' do Ordenamento, e por princípios dotados de elevada densidade ética, que visam tutelar aspectos atinentes a esse valor-fonte. De acordo com o relatório final da comissão redatora do anteprojeto, "Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, consideramos a necessidade de adequar a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido."1 Anote-se a pretensão de reforma inscrita no art. 927-A do anteprojeto do CC, que inaugura a refundamentação da responsabilidade civil sob o viés preventivo: Art. 927-A. Todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los. § 1º Toda pessoa tem o dever de adotar, de boa-fé e de acordo com as circunstâncias, medidas ao seu alcance para evitar a ocorrência de danos previsíveis que lhe seriam imputáveis, mitigar a sua extensão e não agravar o dano, caso este já tenha ocorrido. Como se percebe, a proposta de reforma refundamenta a responsabilidade civil sob perspectivas sensivelmente distintas daquelas até então observadas, abrindo caminho para a sua funcionalização preventiva. Trata-se de uma renovação teórica imprescindível, na medida em que não parece mais aceitável, diante de uma sociedade globalizada e hiperexposta a danos graves e irreversíveis, que a incidência do Direito da responsabilidade civil continue a se restringir exclusivamente à pretensão de reparação de danos. A proposta de reforma atende à inexorável lógica segundo a qual a prevenção deve, a um só tempo, fundamentar e funcionalizar a responsabilidade civil na atualidade, em todos os cenários possíveis. Como sustenta Nelson ROSENVALD, "a prevenção é o cerne da responsabilidade civil contemporânea"2, não sendo lógico nem razoável relegar um tal papel dissuasório da ilicitude e da lesividade individual e social exclusivamente ao Direito Público. O Direito Privado igualmente possui tal encargo. O Direito da responsabilidade civil não pode mais ser relegado a mero mecanismo a funcionar apenas ex post (após a ocorrência do evento danoso). Ele deve atuar, preferencialmente, ex ante (tendo como objetivo a inviolabilidade dos direitos e a prevenção de danos). A consagração da função preventiva da responsabilidade civil se deve, sobretudo, às necessidades impostas pela realidade social do século XXI. As novas características qualitativas e quantitativas dos danos suportados pelas pessoas - não só a título individual, mas também sob o prisma coletivo -, despertam a invocação dos princípios da solidariedade e da justiça social no intuito de amenizar a crise de efetividade do Direito da responsabilidade civil. A aprovação da proposta em análise, para muito além de instrumentalizar a responsabilidade civil em atenção às necessidades de tutela efetiva dos direitos no Estado Constitucional, acarretará profunda e bem-vinda alteração paradigmática neste que é, seguramente, um dos mais importantes temas de regulação das relações sociais.     Despesas preventivas Reassentando a lógica da prevenção na codificação civilista brasileira, o anteprojeto de reforma consagra a compensação das chamadas "despesas preventivas", instrumentalizando autêntica tutela inibitória material. Eis a proposta: § 2º Aquele que, em potencial estado de necessidade e sem dar causa à situação de risco, evita ou atenua suas consequências, tem direito a ser reembolsado das despesas que efetuou, desde que se revelem absolutamente urgentes e necessárias, e seu desembolso tenha sido providenciado pela forma menos gravosa para o patrimônio do responsável. Trata-se de importante autorização legislativa para que o próprio titular de um direito, seriamente ameaçado de lesão (daí a ideia de "potencial estado de necessidade"), possa agir pessoal e materialmente, objetivando sua preservação integral, creditando-se no direito de reparação dos custos arcados para a prevenção contra o responsável pela causação do risco de dano. A aprovação dessa proposta inauguraria hipótese bastante aberta do emprego de autotutela no ordenamento jurídico brasileiro. Perceba-se que, nessa hipótese, o emprego da tutela jurisdicional ficaria relegada a posteriori, não para garantir a tutela inibitória, mas sim para garantir eventuais pretensões de ressarcimento não apenas pelas perdas e danos suportados como também pelos custos gerados com a proteção preventiva. Vale dizer, preserva-se a incolumidade do Direito em essência, repassando-se ao agressor responsável pela injusta ameaça a responsabilidade de ressarcimento pelos custos da prevenção suportados pelo titular do direito - ou mesmo por terceiro - em sua defesa. Precisamente nesse sentido, o European Group on Tort Law3, ao enunciar quais seriam, sob a perspectiva de suas pesquisas, os princípios do Direito europeu de responsabilidade civil, já houvera propugnado pela adoção de uma nova categoria de danos indenizáveis, correspondentes justamente àqueles derivados das despesas havidas com a prevenção dos danos. Destaca-se a seguir o pertinente enunciado do princípio e sua correspondente justificação: Art. 2.104. Despesas preventivas: As despesas realizadas com vistas a prevenir uma ameaça de dano são consideradas dano ressarcível, desde que a realização dessas despesas se revele razoável (...).4 As chamadas "despesas preventivas" já estão incorporadas no Direito comunitário europeu, sendo especificamente previstas em matéria de proteção ambiental. A Diretiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de 21/4/04, definiu regras relativas à responsabilidade ambiental objetivando "estabelecer um quadro comum de prevenção e reparação de danos ambientais a custos razoáveis para a sociedade" que, se não podem ser suficientemente realizados pelos próprios Estados-membros, podem ser também alcançados em nível comunitário pela intervenção direta (ainda que subsidiária) dos órgãos executivos da União Europeia. A mesma tendência seguiu a importante reforma do Código Civil francês, vigente desde agosto de 2016, que estabeleceu (art. 1251) que, no campo dos danos ambientais, "As despesas realizadas para prevenir a realização iminente de um dano, para evitar seu agravamento ou para reduzir suas consequências constituem um dano reparável."5 Tutela inibitória processual x Tutela inibitória material Um dos grandes desafios que se abre na atualidade é não apenas (re)descobrir as possibilidades de se empreender uma eficiente prevenção da violação dos direitos a partir do próprio direito material (tutela inibitória material) mas, sobretudo, encontrar os meios adequados para que tal objetivo seja concretizável, dentro de um sistema jurídico conformado constitucionalmente tanto pelo princípio da máxima proteção dos direitos fundamentais como pela razoabilidade e proporcionalidade de sua concreta atuação. Nesse sentido, em consonância com o tratamento já dispensado ao tema pela legislação processual nacional, o anteprojeto consagra a tutela inibitória, a partir dos parágrafos 3° e 4°: § 3º Sem prejuízo do previsto na legislação especial, a tutela preventiva do ilícito é destinada a inibir a prática, a reiteração, a continuação ou o agravamento de uma ação ou omissão contrária ao direito, independentemente da concorrência do dano, ou da existência de culpa ou dolo. Verificado o ilícito, pode ainda o interessado pleitear a remoção de suas consequências e a indenização pelos danos causados. § 4º Para a tutela preventiva dos direitos são admissíveis todas as espécies de ações e de medidas processuais capazes de propiciar a sua adequada e efetiva proteção, observando-se os critérios da menor restrição possível e os meios mais adequados para garantir a sua eficácia. A proposta em análise pode ser considerada ainda tímida, na medida em que apenas enuncia e conceitua a já consagrada tutela inibitória a ser requerida ao Poder Judiciário por via do direito de ação. Contudo, em se agregando aos mencionados dispositivos a previsão das despesas preventivas, é possível afirmar a existência de autorização também para o emprego de tutela inibitória material nas hipóteses em que, havendo estado de necessidade, o titular do direito aja pessoal e materialmente para afastar o risco de dano a direito próprio.    A tutela inibitória - capaz de gerar uma autêntica proteção preventiva contra a violação dos direitos -, já vem sendo aplicada pela via jurisdicional em cumulação com as demais espécies de tutelas (tais como a de remoção do ilícito e a ressarcitória na forma específica), sempre no intuito de prestar a melhor forma de proteção aos jurisdicionados. A funcionalidade da tutela inibitória no Brasil, aliás, tem sido reconhecida crescente e amplamente em âmbito jurisprudencial, empregando-se-a atipicamente nas mais variadas pretensões de tutela de direitos individuais e transindividuais, sempre que demonstrados a plausibilidade da tese invocada e o perigo de ocorrência, reiteração ou continuidade da ilicitude. A tutela inibitória deve ser compreendida como forma preventiva de proteção dos direitos. Todavia, diante da ausência ou da insatisfatoriedade dos mecanismos inibitórios materiais, a tutela inibitória acaba sendo instrumentalizada quase exclusivamente por via de técnicas processuais atuadas pela função jurisdicional estatal. Isso não quer dizer, contudo, que a proteção inibitória dos direitos nasça somente a partir da invocação da intervenção estatal por via do direito constitucional da ação processual.   Muito ao contrário, a pretensão à tutela inibitória deve ser compreendida como inerente ao próprio direito subjetivo. A partir do momento em que o ordenamento passa a tutelar determinados direitos ou interesses, a prevenção contra sua violação nasce, à toda evidência, natural e conjuntamente.6 Daí a enorme relevância da previsão da compensabilidade das chamadas despesas preventivas, prevista no §2º do art. 927-A do anteprojeto. Para que se consiga compreender a natural correlação existente entre a tutela inibitória e o direito material é imprescindível que se diferencie claramente a "tutela dos direitos" da "tutela jurisdicional dos direitos", quase sempre confundidas ou tratadas indistintamente.7 Tal percepção revela-se extremamente importante, até mesmo para que seja possível afirmar o comprometimento do direito material com a tutela inibitória e, com isso, fundamentar a própria ideia de responsabilidade civil preventiva. Como se percebe, a ideia da prevenção inserida no campo do direito da responsabilidade civil demanda uma verificação prospectiva (futura) e não retrospectiva (passada). Essa perspectiva é levada em consideração pela responsabilidade civil preventiva no momento em que, quando da prática de um ilícito ou quando da iminência de sua prática (mas antes ainda de qualquer alusão à causação de um dano concreto), pretende-se tutelar a violação ou a continuidade da violação dos direitos. Não se pretende retirar de foco a possível e eventual vítima, mas, ao contrário, priorizar-se a sua tutela, viabilizada de forma a evitar que os titulares dos direitos passem à condição de "vítimas".8 Assim sendo, a responsabilidade civil, embora não seja obviamente reduzível a mero instrumento, deve implementar mecanismos predispostos a regular as condutas humanas, sobretudo comportamentos potencialmente causadores de danos graves e irreversíveis, tendo em vista a premissa fundamental de que "não há como reparar o irreparável".9 Como muito bem retratou a subcomissão de responsabilidade civil: "na sociedade contemporânea - plural e complexa -, danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e, por vezes, anônimos e irreparáveis (...).  A reforma do Código Civil é um momento apropriado para consolidar de forma madura e criteriosa as transformações da responsabilidade civil e preservar a sua centralidade no direito privado. (...) ".10 _________ 1 Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, p. 292. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 2 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3.ed. Saraiva. São Paulo. 2018, p. 96. 3 EGTL - European Group on Tort Law. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 4 Objetivo desse artigo: O artigo aborda uma subcategoria de dano ressarcível. Trata-se de despesas expendidas antes que um dano ocorra. O artigo também se aplica a despesas de prevenção se nenhum dano ocorreu, seja porque as precauções impediram a ocorrência do dano ou ameaça, seja porque o risco não se concretizou. Para todos estes casos o art. 2:104 dispõe que se as medidas financiadas pelos gastos eram razoavelmente aptas a impedir a ameaça de dano tais despesas são reembolsáveis. Se as precauções e as despesas respectivas foram razoavelmente idôneas, isso deve ser avaliado a partir de um ponto de vista objetivo de uma pessoa sensata e cuidadosa, que tem de pesar os riscos com antecedência. Portanto, as despesas de prevenção podem ser ressarcidas mesmo se o risco de danos não se materializou e uma retrospectiva revele que as precauções tomadas eram desnecessárias. E também quando a ameaça de dano finalmente se concretiza apesar de razoáveis precauções as despesas preventivas ainda remanescerão ressarcíveis. Todavia, nesses dois casos, deve ser particularmente julgado - por via de um ponto de vista ex ante - se as precauções tomadas e as despesas conformam-se ao standart de razoabilidade. European Group on Tort Law. Principles of european tort law. Austria: Springer Wien New York, 2005, p. 37-38. 5 "Article 1251 (version en vigueur depuis le 01 octobre 2016 - Création LOI n°2016-1087 du 8 août 2016) - Les dépenses exposées pour prévenir la réalisation imminente d'un dommage, pour éviter son aggravation ou pour en réduire les conséquences constituent un préjudice réparable. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 6 VINEY, Geneviéve. Traité de droit civil: Introduction à la responsabilité. 3 ed., Paris, L.G.D.J., 2008, p. 125.      7 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 82-83. 8 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros editores, 2014, p. 246 e seguintes. 9 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 134. THIBIERGE, Catherine. Libres propos sur l'évolution du droit de la responsabilité. Revue Trimestrielle de Droit Civil, n.º 3. julho/setembro. Paris, 1999, p. 561-584. 10 Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, p. 291-292. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024.
Existem vários níveis de automação dos veículos automotores, a tabela internacionalmente aceita é a elaborada pela Sociedade Internacional de Engenheiros Automotivos1, que elenca até seis níveis. Sendo que somente os níveis 4 e 5 dispensam a supervisão humana. Nos níveis de zero a 3, que são os carros atualmente disponibilizados no mercado, a supervisão humana é imprescindível para reassumir a condução do veículo automotor quando necessário a fim de evitar acidentes.2 Todavia, ignorando tais especificidades, os trágicos acidentes que envolveram carros com algum nível de automação acabaram por acentuar um temor que desencadeou no tratamento exacerbado da responsabilidade civil. No Brasil, cabe ao CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito, nos termos do art. 12 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, lei 9.503, de 23/9/97), regular e reconhecer os níveis de automação de veículos, o ideal é seguir um padrão universal, e.g. a classificação da Sociedade Internacional de Engenheiros Automotivos supra descrita, pois estas tecnologias são divulgadas em diversos países. Diante destes distintos níveis de automação, deve-se constatar suas diferentes aplicações. Portanto, carros automatizados ("driver assist cars" ou "automated cars") são aqueles que tem algum tipo de tecnologia para determinadas funções, tais como, o controle de velocidade (cruise control), sistema de freios automáticos de emergência, avisos de monitoramento ao estacionar com sensores e/ou câmeras. Em outras palavras, seriam os carros com nível zero, 1 e 2 de automação conforme à classificação da SAE.3 Outra categoria são os carros autônomos ("self-driving cars", "driverless cars", ou ainda, "fully driverless cars"), são aqueles identificados sendo do nível 3, 4 ou 5 conforme a classificação da SAE, isto é, o sistema pode assumir o controle da direção em situações pontuais (nível 3), o sistema permite a direção sem motorista em determinadas circunstâncias, ou seja, quando as vias estiverem preparadas para a direção autônoma do carro (nível 4), ou, ainda, quando os carros se dirigirem sem necessidade de supervisão humana (nível 5). Levando em consideração tais distinções, o que não foram consideradas no PL 2.338, de 2023, que discute a regulação da inteligência artificial no Brasil4, pois elencou indistintamente os carros autônomos na classificação de alto risco nos termos do inciso VIII do art. 17: "VIII - veículos autônomos, quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas". Todavia, há alguns problemas deste tipo de regulação sobre a qual precisa uma reflexão para evitar o ativismo judicial após a aprovação de uma lei que não leve em consideração essas nuances das tecnologias que usam inteligência artificial como o caso dos carros autônomos. Um dos problemas é o que foi destacado acima, há diversos níveis de automação que não foram levados em consideração, claro pois são questões específicas que justificam uma regulamentação setorial. Em consequência desta falta de acuidade ao tratar de um tema tão complexo, o próprio PL 02.338/23 traz dentre as excludentes do nexo de imputação previstas no art. 28, inc. II, a culpa exclusiva de terceiro ou do usuário. Ora nas hipóteses de automação de nível zero, 1, 2, 3, em até mesmo 4, quando o motorista (usuário) ou até mesmo uma pessoa que esteja sendo transportada (passageiro) que não retome a direção do veículo quando o sistema exigir tal conduta mediante um alarme para tanto, seria esta uma excludente nos termos da legislação proposta? Vale ressaltar que o próprio PL 2.338/23 menciona a correta aplicação do CDC quando os danos envolvendo inteligência artificial ocorrerem no contexto das relações de consumo (art. 29). Todavia, o próprio art. 12, § 3º, inc. III do CDC prevê igual excludente (culpa exclusiva do consumidor e de terceiro). Assim, se o consumidor não assumir a condução do veículo quando o sistema exigir tal conduta ou mesmo um passageiro que der algum comando inadequado, podem, em última análise excluir a responsabilidade civil do fornecedor dos carros autônomos, seja por aplicação do disposto no PL 2.338/23, seja pela aplicação da legislação consumerista. Neste contexto, importante destacar os danos não indenizáveis, o que demanda uma análise mais aprofundada sobre possíveis alternativas como sistemas de seguro ou a criação de um fundo para custear os danos não indenizáveis no contexto dos acidentes que envolvam o uso de inteligência artificial.5 Uma sugestão interessante feita por Matthew U. Scherer6,estabelece um sistema facultativo de registro ou certificação da tecnologia que empregue algum sistema de inteligência artificial que deve ser regulado e realizado pela "Agência para o Desenvolvimento de Inteligência Artificial" (órgão competente), mediante o pagamento de uma taxa. Os valores recebidos por esta agência constituiriam um fundo que seria utilizado para os casos de reparação civil em que o responsável legal seja insolvente ou quando não seja possível definir quem seja o responsável legal. Outrossim, a certificação, ressalvados os segredos industriais e comerciais, revelariam todas as funcionalidades do sistema efetivando o princípio da transparência e explicabilidade. Outro problema da falta de regulação setorial mais verticalizada para se definir a responsabilidade civil no contexto dos carros autônomos diz respeito à ressalva feita no próprio inciso VIII do art. 17 do PL 2.338, ou seja, "quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas". No cenário brasileiro, o relatório apresentado pelo Observatório Nacional de Segurança Viária7 indica que morreram, só em 2014, 43.790 pessoas em acidentes de trânsito, o que representa um prejuízo de 56 bilhões de reais, com indenizações, previdência, impacto na produção e etc., sendo que 90% destes acidentes podem ser atribuídos à falha humana (embriaguez ao volante, desatenção, excesso de velocidade, dentre outras); apenas 5% destes acidentes são decorrentes de falhas mecânicas e 5%, devido a problemas estruturais na pista (como buracos, sinalização deficiente e mal conservação). Portanto, os carros autônomos não estão suscetíveis à embriaguez, desatenção, excesso de velocidade, dentre outras, pois obedece rigorosamente aos inputs realizados no treinamento. E, se associado à infraestrutura viária no contexto da Internet das Coisas (os denominados "carros conectados"), será um meio de transporte muito mais seguro; porém não infalível. Assim, a redação do inciso VIII do art. 17 não é clara e até mesmo inócua se pensarmos que os carros autônomos tendem a aprimorar a segurança no trânsito. Aliás, qualquer desenvolvimento e aplicação de IA somente se justifica para a melhoria da qualidade da vida humana. Outro problema é a classificação e a possível reclassificação do risco que deve ser feita pelo órgão competente em cooperação com o órgão regulador do setor (parágrafo único do art. 17 do PL 2.338)8, no caso o CONTRAN. A Resolução 717, de 30/11/17 do CONTRAN, determinou a realização de estudos técnicos para o aprimoramento de alguns temas, no item 37 deste anexo, estão os veículos autônomos, com 48 meses para apresentar o relatório após a entrada em vigor da lei, que se deu em 30 dias de sua publicação, ou seja, o comitê técnico tem até dia 30/12/21 para apresentar o relatório.9 Por fim um derradeiro problema revela o efeito relacionado ao mito de Pigmalião10, ou seja, espera-se que os sistemas de IA sejam mais perfeitos que os seres humanos, daí a responsabilidade por acidentes de trânsito que é subjetiva, passa a ser objetiva nos termos do art. 27, inc. I do PL 2.338, que determina que os sistemas de IA classificados como risco elevado ensejam a responsabilidade objetiva. Assim, a melhor forma de regulação da IA no Brasil quanto à responsabilidade civil seria a lei estabelecer alguns princípios e diretrizes gerais, porém as regras específicas, seja na área da saúde, do agronegócio, de transporte, segurança pública e etc..., devem ser reguladas de maneira específica em colaboração pelo órgão competente, que deve ser criado no contexto específico da inteligência artificial, e respectivos órgãos reguladores de cada área específica. Em suma, o desenvolvimento tecnológico é veloz e o instrumento legislativo precisa acompanhar tais mudanças, o que não se coaduna com a necessidade de mudança na lei toda vez que houver necessidade de classificar novos riscos ou reclassificar os mencionados na lei. _________ 1 SHUTTLEWORTH, Jennifer. In: International Society of Automobilist Engineers - SAE Standards News: J3016 automated-driving graphic update (de 7 de janeiro de 2019). Disponível aqui. Acessado em 20 de março de 2020. 2 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de Lima. Sistema de Responsabilidade Civil para Carros Autônomos. Indaiatuba: Foco, 2023. 3 CRANE, Daniel A.; LOGUE, Kyle D.; PILZ, Bryce C. A Survey of Legal Issues Arising From The Deployment of Autonomous and Connected Vehicles. In: Michigan Telecommunications and Technology Law Review, vol. 23, pp.  191 - 320 (2017). Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. p. 202. 4 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2.338 de 2023. Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. 5 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Sistema de Responsabilidade Civil para Carros Autônomos. Indaiatuba: Foco, 2023. 6 Regulating Artificial Intelligence Systems: Risks, Challenges, Competencies and Strategies. In: Harvard Journal of Law & Technology. Cambridge: Harvard Law School. v. 29, n. 02, p. 353-400, Primavera, 2016. p. 393 e ss. 7 Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. 8 Parágrafo único. A atualização da lista mencionada no caput pela autoridade competente será precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e de audiência públicas e de análise de impacto regulatório 9 Este prazo pode ser suspenso em função de todas as restrições em virtude da pandemia pelo COVID-19. 10 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; QUINTILIANO, Leonardo David. O mito de Pigmalião e as tendências da responsabilidade civil por danos decorrentes do uso de Inteligência Artificial. In: Migalhas de IA e Proteção de Dados. Disponível aqui, publicado em 28 de junho de 2024.
Recentemente o mundo viveu um colapso dos serviços digitais1, impactando os serviços prestados em todos os segmentos, mas com especial atenção para o transporte aéreo2. Nos aeroportos do mundo todo, o apagão cibernético ficou ainda mais complicado: cancelamentos em massa de voos, atendentes desesperados, clientes que, sem saber o que fazer, estavam ainda mais desesperados tentando chegar ao seu destino, sem informações e com suas bagagens extraviadas. Em suma, caos. Como é de costume então, não tardará para que as ações indenizatórias comecem a aparecer nos Tribunais, que terão que enfrentar mais uma tormentosa dúvida: cabe às transportadoras aéreas a responsabilidade pelos danos decorrentes de atrasos e cancelamentos? Um operador do direito mais incauto poderia, imediatamente, reconhecer tal responsabilidade ao argumento de que é obrigação do transportador levar a pessoa e sua bagagem ao destino com segurança e presteza, ficando sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos (arts. 734, 735 e 737, todos do CC). Contudo, como os próprios dispositivos citados informam, "salvo motivo de força maior" e é aqui que a questão complica. Afinal, esse caos aéreo decorre de um motivo de força maior? O tema não é simples, pois envolve o debate acerca (i) do nexo de causalidade, (ii) do risco da atividade e (iii) da diferenciação entre fortuito interno e externo. Essa coluna já enfrentou todos esses temas diversas vezes3 e, ainda assim, permanecem inúmeras dúvidas, não havendo consenso. Tentar-se-á buscar esclarecer alguns aspectos metodológicos desse caso, para que se possa entender melhor os desdobramentos no juízo de reparação. O primeiro ponto a ser enfrentado é o desenvolvimento causal e como ele afeta os contratos desses prestadores de serviços. Poder-se-ia argumentar que o inadimplemento contratual por parte do transportador decorre do atraso e, consequentemente, o inadimplemento restaria caracterizado. Contudo, um olhar mais apurado nos faria considerar que o evento com relevância causal não é o atraso em si, mas, antes, um defeito em uma atualização de sistema da empresa Crowdstrike, que gerou um efeito dominó em todos os clientes que se valem de servidores Windows4. O atraso, portanto, teve como antecedente causal um software problemático da CrowdStrike, que impossibilitou que as companhias áreas pudessem acionar seus computadores. A se considerar esse evento como a causa, então, ela poderia ser suficiente para afastar a responsabilidade por fato de terceiro? Antes de responder, é preciso reconhecer que o nexo de causalidade, no campo do Direito, encontra um importante aspecto: ele deve ser analisado a partir de cada sistema e, nesse ponto, pode ser compreendido de acordo com o sistema sociojurídico em que emerge, desenvolve-se e interage. Embora a noção do liame naturalístico auxilie na análise jurídica, na medida em que é assente que todo efeito decorre de uma causa antecedente, não haverá necessariamente uma coincidência de conclusões no processo investigativo da causa entre uma investigação meramente naturalística e uma jurídica. O que se está a dizer é que no processo causal se impõe uma valoração das condições para que se possa saber qual delas é a causa em cada caso e, parece intuitivo, que tal valoração é exercida atendendo aos critérios propriamente jurídicos5. Assim, apesar da análise da causa envolver uma questão de fato, não se pode deixar de reconhecer que ela não é puramente factual, pois determinar ou refutar a atribuição de responsabilidade pressupõe a produção de um conhecimento detalhado: a noção de causa no campo do Direito é sempre uma noção normativa, embora haja, subjacente uma questão fática. Não há, portanto, uma separação absoluta entre causalidade de fato e causalidade jurídica como se fossem duas entidades independentes e autônomas, mas, antes, são categorias que "mutuamente se condicionam, pressupõem e remetem"6-7. Ou seja, o simples compreendimento de que o antecedente causal decorre de um terceiro não significa, por si só, a exoneração do transportador aéreo se houver algum critério normativo de imputação de responsabilidade - essa escolha, inclusive, foi feita expressamente pelo legislador no contrato de transporte, como se extrai do art. 735, do CC. Dito isto, considerado esse "fato de terceiro", no âmbito de uma atividade perigosa, como é o caso do transporte aéreo, há de se identificar se este evento se situa no risco da atividade, critério normativo de imputação de responsabilidade estabelecido em nosso ordenamento no art. 927, do CC. Sobre esse ponto, já se teve a oportunidade de discutir a necessidade de renovação do debate sobre risco nesta coluna8.Naquela ocasião, defendeu-se que as teorias sobre risco, embora louváveis, não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Ali afirmou-se que o risco no campo da responsabilidade civil deve ser tratado não apenas nas perspectivas tecnocientíficas, pautadas pelo aspecto objetivo das probabilidades, mas, especialmente, nas perspectivas socioculturais, que se valem do contexto social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado. O risco, portanto, não é um fato puro, desprovido de uma análise social; ele é reconhecido e discutido no meio social. Dito diversamente, os riscos são reais, embora permaneçam construções sociais9. Nesse sentido, pode-se afirmar que a assunção do risco com a consequente tomada de decisão decorre, também, de uma relação de confiança. Aquele que assume um determinado risco o faz baseado na sua percepção dos riscos quanto à tomada de decisão e na confiança despertada a partir do conhecimento científico construído na sociedade Assim a construção de um conceito de risco deve levar em consideração que: (i) existem determinados fatos no mundo que são objetivos, ainda que a relação de causa e efeito seja dotada de incerteza, mas cuja (ii) identificação, reconhecimento, entendimento, mensuração e tratamento são limitados pelas restrições sociais e cognitivas, isto é, o conhecimento (técnico e leigo), bem como a percepção existente ao tempo da tomada da decisão10 e a confiança tanto daquele que produz o risco como daqueles que o suportam, e (iii) o reconhecimento de que a partir dessa tomada de decisão vigora uma incerteza relativa e perene a alguma característica do mundo que afeta a realidade humana existente. Nesse sentido, propõe-se que o risco da atividade seja compreendido como uma situação ou um evento legitimamente esperado, atribuível a uma decisão humana, comissiva ou omissiva, em que um interesse juridicamente protegido se encontra sujeito a uma lesão potencial, mas cujo resultado concreto é incerto.11 A partir deste conceito, então, é possível propor um entendimento mais claro sobre o que seria o fortuito interno, inerente às atividades potencialmente lesivas desenvolvidas. Apesar de não haver consenso, costuma-se identificar até 6 (seis) requisitos para caracterização do caso fortuito e força maior, o que ajudará a diferenciar o fortuito interno do externo. São eles: (1) a não imputabilidade, (2) a inevitabilidade ou impossibilidade, (3) a atualidade, (4) a exterioridade. Parte da doutrina costuma acrescentar até mais dois, quais sejam (5) a imprevisibilidade e (6) a irresistibilidade. De todos, parece que os dois últimos requisitos não deveriam ser considerados, conforme se exporá. A não imputabilidade, também denominada não causalidade, é essencial à configuração do fortuito. Para que se opere essa excludente, torna-se necessário que a atuação do ofensor não tenha sido a causa da situação de caso fortuito. A inevitabilidade ou impossibilidade normalmente vem acompanhada da ideia de irresistibilidade. Note-se que se optou por não fazer alusão à ideia de irresistibilidade, pois esta não se apresenta como um requisito indispensável. Ela pode ou não estar presente. Explica-se. A noção de irresistibilidade prontamente leva à ideia de impossibilidade. Se um fato é irresistível, isso significaria que seria impossível qualquer atuação distinta. Mas não é verdade. Pode ocorrer que um evento seja irresistível e, mesmo assim, não torne impossível a atuação do suposto ofensor ou, também, pode ocorrer da atuação se tornar impossível, ainda que não fosse irresistível. Ademais, a expressão irresistibilidade, quando tomada num sentido absoluto, praticamente nega a força maior - nenhum fato é absolutamente irresistível - e, quando tomada em sentido relativo, leva à discussão de culpa: o fortuito se transformaria em investigar se o suposto ofensor foi diligente, isto é, se fez o que devia ter feito, o que significa investigar se agiu culposamente. O que caracteriza efetivamente o fortuito, no entanto, é a total impossibilidade de atuação distinta por parte do suposto ofensor. Deve-se compreender por inevitabilidade, portanto, a total impossibilidade de "evitar o próprio acontecimento, ou seus efeitos"12, o que afastaria essa noção de irresistibilidade, pois já estaria absorvida pela ideia de inevitabilidade. O terceiro requisito é a atualidade. Este requisito deve ser encarado no sentido de que o evento fortuito tem incidência atual e não meramente temporária. A exterioridade, por fim, consiste na concepção de que o evento, para ser considerado fortuito, deve estar situado fora da esfera em que o ofensor responde. Dito diversamente, o fato não pode ser atribuído à esfera jurídica de atuação do ofensor, não pode guardar qualquer grau de conexão com sua atuação ou atividade - tema que voltaremos. Mas e a imprevisibilidade? Ela deve ser encarada como sinônimo da exterioridade? Em caso negativo, deve ser um requisito autônomo? É comum encontrar autores que defendem que somente o fortuito imprevisível teria o condão de liberar o ofensor. Entende-se que a imprevisibilidade não deveria figurar como requisito - ela há de ser criticada, por ser um critério de extrema fragilidade, pois insere um elemento subjetivo numa discussão objetiva acerca de acontecimentos estranhos à atuação do suposto ofensor. O ponto mais sensível, em realidade, é que a imprevisibilidade é dispensável e pode estar presente ou não, pois, ainda que o evento seja previsível, ele pode se dar com uma força inelutável, de tal maneira que se torna inevitável13. Nesse sentido, a inevitabilidade acaba por absorver, por completo, a imprevisibilidade. Ora, se o evento é inevitável a ponto de afastar a responsabilidade, quer seja previsível ou não, então a imprevisibilidade não se apresenta como um requisito essencial. De fato, se o evento, ainda que previsível, for absolutamente inevitável, não parece haver razão para não se admitir a excludente14. Se esta conclusão se apresenta válida, então, a imprevisibilidade não é requisito essencial. Parece, portanto, que ela é inadequada para fins de atribuição da responsabilidade civil15. Nada obstante, a lei 14.034/2020, acabou por incluir o § 3º ao art. 256, da Lei 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), que enumerou as hipóteses de fortuito ou força maior, desde que "supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis". É de se indagar novamente: se é inevitável, de que importa a imprevisibilidade? Este fator já seria suficiente a afastar a responsabilidade. Em verdade, ao que tudo indica, a questão não é de previsibilidade ou não do fato, mas, antes, se o evento está de alguma forma inserido na esfera jurídica do suposto ofensor. O recurso à ideia de previsibilidade acaba por reconduzir à culpa e a uma responsabilização moral do agente, o que, de certa maneira, ainda que equivocada e por caminhos alheios às finalidades contemporâneas da reparação dos danos, pode atender, em alguma medida, aos anseios de reparação da vítima e "punição" do ofensor. Ocorre que a melhor solução que se apresenta é, na realidade, identificar o fato não como previsível, mas como interno, permanecendo na esfera jurídica daquele que cria um risco em razão de sua atuação. É justamente o critério da exterioridade que desempenhará o papel fundamental na adequada distribuição de riscos dentro da sociedade por intermédio da responsabilidade civil, identificando se o fato se insere no âmbito dos riscos criados pelo agente que explora a atividade perigosa. Trata-se, a toda evidência, de um critério extremamente difícil. Assim, propõe-se o abandono da ideia de imprevisibilidade com a consagração do critério da exterioridade, formulado dentro de parâmetros que permitam a identificação dos riscos criados. Propõe-se, também, que a análise da exterioridade deva ser tratada do ponto de vista da confiança. Esta é tida como elemento decisivo nas sociedades contemporâneas e em todas as formas de interações humanas. A aceitação de qualquer risco é mais dependente da confiança no gerenciamento do risco do que nas estimativas quantitativas das consequências e probabilidades. A confiança, portanto, desempenha um importante papel na redução de danos e perigos aos quais estão sujeitos determinados tipos de atividade, pois certos padrões de perigos são institucionalizados no interior da atividade, que passam a se colocar em estruturas abrangentes de confiança. A busca pela segurança, então, passará, necessariamente pelo equilíbrio entre risco e confiança, de tal maneira que seja legítimo esperar determinadas situações ou eventos danosos no desempenho de atividades específicas e, consequentemente, exigir comportamentos tendentes a minimizá-los. A questão da exterioridade, portanto, deve levar em conta a conjugação entre fatores técnicos, decorrente das ciências probabilísticas, e a confiança despertada a partir dos riscos legitimamente esperados para a atividade perigosa em si. A identificação do requisito da exterioridade dependerá, assim, da conjugação de três importantes elementos, a que se denomina critérios positivos do fortuito interno. São eles: (i) que o evento seja possível, (ii) que haja uma razoável probabilidade de sua ocorrência, (iii) que seja legitimamente esperado, o que nos leva a considerar que o fortuito interno deve ser compreendido "como a situação ou evento legitimamente esperado da atividade abstratamente considerada"16. Repare-se que não se deve confundir aquilo que é legitimamente esperado com os fatos que são previsíveis. A imprevisibilidade não se confunde com a confiança, muito embora, em alguns casos seja difícil diferenciá-los. É possível que um fato imprevisível não seja legitimamente esperado. Mas a recíproca não é verdadeira. O fato, mesmo previsível, poderá não ser legitimamente esperado. Um dos principais exemplos de distinção entre o que é legitimamente esperado e a sua imprevisibilidade pode ser extraída de um fato relativamente rotineiro no Brasil. Não é incomum em grandes metrópoles brasileiras a ocorrência de assaltos à mão armada em ônibus. O debate relativo a se esses assaltos consistiriam em um fortuito interno ou externo é, até hoje, objeto de controvérsias. Os defensores da imprevisibilidade argumentam que na medida em que ocorrem diversos assaltos, esse fato já se tornou previsível e, portanto, consistiria em um fortuito interno. Se, contudo, indagarmos se o assalto é um fato legitimamente esperado da atividade de transporte abstratamente considerada, parece que a resposta será negativa. Não é dado a ninguém acreditar que está inserido dentro da atividade de transporte a segurança do passageiro contra quadrilhas de assaltantes. Sem dúvida que a cláusula de incolumidade exige que o transportador garanta a incolumidade física dos passageiros, mas ela se limita aqueles eventos pertinentes à atividade em si, tais como, acidentes rodoviários, colisões com terceiros, mal funcionamento do veículo, etc. Mas certamente foge ao escopo do contrato de transporte a proteção contra quadrilhas armadas. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça Brasileiro fixou a tese de que se trata de um fortuito externo17, reconhecendo, a princípio, que a atividade, abstratamente considerada, não cria a legítima expectativa de que o assalto à mão armada está inserido no círculo de atividade do transportador rodoviário. Caminhando para uma conclusão, é possível argumentar que é a confiança objetivamente apreciada que caracteriza o fortuito interno. Dito diversamente, é a situação ou evento legitimamente esperado da atividade de risco que caracterizaria o fortuito interno. No caso em análise, o evento não é o atraso. O atraso é um desdobramento da cadeia de acontecimentos, ou seja, ele é a consequência decorrente da falha do sistema, que gerou o apagão cibernético. A pergunta, então, seria: essa falha do sistema é um evento legitimamente esperado na atividade de transporte aéreo? Essa resposta é o que nos indicaria se tratar de fortuito interno ou externo. Evidentemente que isso não afastaria uma possível ruptura do contrato de transporte pela inexecução involuntária, caso se entenda ser fortuito externo. Espera-se que esse exercício ajude a entender como metodologicamente se desenvolve a análise causal no âmbito da responsabilidade civil que, não obstante tenha uma questão de fato subjacente, atende a critérios normativos de imputação, em especial o debate do risco, que, muito longe de ser um dado objetivo, em verdade, decorre da percepção social, o que afeta decisivamente aquilo que a sociedade entende como risco da atividade. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 A título exemplificativo dos debates no Migalhas, confira as publicações: 1 acesse, 2 acesse, 3 acesse, 4 acesse, 5 acesse, 6 acesse, 7 acesse, 8 acesse, 9 acesse e 10 acesse. 4 Disponível aqui. 5 VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 89. 6 PEREIRA, Rui Soares. O nexo de causalidade na responsabilidade delitual - fundamento e limites do juízo de condicionalidade. Almedina, 2017, p. 522. 7 VIOLA, Rafael. Op. Cit., 2023, p 95. 8 Disponível aqui. 9 ROSA, Eugene A., et al. The risk society revisited. Social theory and governance. Philadelphia: Temple University Press, 2014, p. 2. 10 LUHMAN, Niklas. Risk: a sociological theory. New Jersey: Transaction Publishers, 2008, p. 22. 11 VIOLA, Rafael. Op. Cit., p 67. 12 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 141. 13 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Op. cit., 1943, p. 146. No mesmo sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., 2012, p. 399. 14 ROSENVALD, Nelson, et al. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015, p. 474. 15 ALPA, Guido. Op. cit., 2017, p. 215. 16 VIOLA, Rafael. Op. cit., 2023, p. 245. 17 REsp 726.371/RJ, j. 07.12.2006.
quinta-feira, 4 de julho de 2024

Direitos humanos digitais: O futuro é agora

Nascimento da Internet e do Ciberespaço A expansão rápida das tecnologias tem apresentado diversos dilemas desafiadores para a proteção dos Direitos Humanos no ambiente digital. Desde o início do desenvolvimento da Internet, no final dos anos 1960 com a ARPANET, e o surgimento das TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação, o mundo tem sido palco de uma inédita revolução tecnológica. A Internet e as TICs foram concebidas a partir de diversos propósitos interligados, que se complementam e moldam a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos nesse espaço virtual, ou seja, como uma ferramenta para comunicação e troca de informações. Com o passar do tempo, sua evolução e o seu impacto social, tornaram-se ferramentas de comunicação, participação política e mesmo defesa de direitos numa espécie de espaço de autogestão. No então denominado "ciberespaço" 1, de propagação de informações e conhecimento - que se vinculava à ideia de um ambiente inatural, com pleno controle de entrada e saída, para interconexão entre usuários e informações - não havia interferência governamental, na medida em que se formava "um conjunto de nós interconectados".2 Da Declaração de Dependência à Interdependência no Ciberespaço Essa noção de liberdade de regulação estatal exsurge na Declaração de Independência do Ciberespaço3 (1996), que fez com que John Perry Barlow, incorporando o espírito de muitos ciber-libertários, afirmasse aos governos que: "o ciberespaço não está dentro das suas fronteiras; não pense que você pode construí-lo, como se fosse uma obra pública". Pode-se dizer que um dos primeiros documentos que teve como objetivo estabelecer um quadro para uma visão comum acerca da Sociedade da Informação foi a Declaração de Princípios da World Summit on the Information Society4 (2003). Alguns anos mais tarde, a Declaração de Liberdade na Internet5 (2012) afirma categoricamente que os governantes não devem se intrometer, pois "a melhor resposta do governo é não fazer nada". Porém, no decorrer das seguintes décadas, e o surgimento de novas tecnologias, com o fortalecimento da inovação, houve um verdadeiro giro no discurso sobre qual deveria ser o papel do Estado diante desse ecossistema digital. Essa mudança de rumo é manifestada na Declaração da Interdependência do Ciberespaço6 (2013), que parte da concepção de que a intenção não seria uma Internet governada pelas nações do mundo, mas, de outro lado, também não se queria uma Internet totalmente divorciada do governo, devendo haver um certo equilíbrio. Essa Declaração reconhece que os Direitos Humanos são perfeitamente aplicáveis no mundo virtual e defende que "a Internet é regida, tal como todas as tecnologias, não apenas pelas normas e crenças dos seus utilizadores, mas também pelas leis e valores das sociedades". Emergiram algumas cartas/declarações de direitos humanos no contexto da internet, como a: Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet7 (2013) que interpreta e explica os direitos humanos sob a perspectiva da Internet, identificando os princípios que devem ser observados para o cumprimento desses direitos; Declaração Africana sobre Direitos e Liberdades na Internet8 (2014), que foi uma iniciativa pan-africana que visa a enfrentar o desafio urgente de proteger os direitos e liberdades humanos na era digital, especialmente no contexto africano; Declaração Italiana dos Direitos Digitais9 (2015) enfatiza a proteção dos direitos individuais na era digital, promovendo a liberdade, privacidade, accountability e transparência online para os italianos. Tim Berners-Lee - conhecido por ter inventado a World Wide Web - e diversos especialistas propõem, em 2019, o "Contrato para a Web" 10 para o fim de garantir um mundo digital seguro, capacitador e genuíno. Com uma compreensão acerca da necessidade da participação estatal e também de um posicionamento dos organismos internacionais em matéria de direitos humanos neste espaço digital, num mundo já hiperconectado, novamente percebe-se a eclosão de Cartas de Direitos Humanos na era digital. Mudança de perspectiva da ONU para a tutela dos Direitos Humanos na Era Digital No contexto de aplicabilidade dos Direitos Humanos, ganha força, inicialmente, para a tutela dos direitos humanos no ambiente digital, a defesa da aplicabilidade da DUDH -Declaração Universal dos Direitos Humanos11 (1948) - como marco fundamental histórico na defesa dos direitos humanos. A ONU realizou alguns debates com foco nos desafios impostos pelas novas tecnologias para os Direitos Humanos, durante a Conferência de Teerã (1968), e passou a adotar o paradigma da equivalência normativa de direitos, que se baseia na suposição dogmática de que as normas tradicionais de direitos humanos são suficientes para fornecer proteção aos indivíduos no domínio online.12 Os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos13 (2011), alguns anos depois, estabeleceram padrões para abordar os impactos das atividades comerciais sobre os direitos humanos. Eles se baseiam em três pilares: O dever do Estado de proteger os direitos humanos, a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos e a necessidade de acesso a recursos para as vítimas. Esses princípios orientam os Estados e as empresas na prevenção e no tratamento de abusos de direitos humanos. Essa teoria da equivalência normativa de direitos aparece no relatório sobre promoção e proteção do direito à liberdade de expressão (A/HRC/17/27)14, no qual o relator especial reconhece que o direito internacional dos Direitos Humanos é "igualmente aplicável às novas tecnologias de comunicação". Outro documento relevante, nesse sentido, é a Resolução 20/8 sobre promoção e proteção dos Direitos Humanos na Internet (A/HRC/RES/20/8)15, que alude que "os mesmos direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos online". A estratégia da ONU em matéria de Direitos Humanos no ambiente virtual concentrou-se principalmente na emissão de resoluções e relatórios sem força vinculante (soft law). Ao contrário da força obrigatória (hard law) dos tratados internacionais, os Estados signatários não ficam obrigados a adotarem estas recomendações. De modo que o cenário atual da tutela pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos frente às novas tecnologias depende exclusivamente da intencionalidade dos países signatários da Organização. Apesar disso, conforme diz Yilma: "o fato de o discurso em curso na ONU sobre os direitos humanos digitais se basear em resoluções não deve ser motivo para menosprezar o seu potencial de evoluir para uma resposta internacional de direitos humanos às tecnologias novas e emergentes". 16 Contudo, observa-se uma reconfiguração da perspectiva da ONU. No Relatório sobre o direito à privacidade (A/HRC/37/62)17, o relator especial refere que apesar de o direito internacional proteger o direito humano à privacidade, a legislação internacional carece de "um maior nível de detalhe, clareza, abrangência, salvaguardas e soluções" para os desafios que existem no ciberespaço. Bem mais recentemente, a ONU, em 21/3, aprovou a 1ª Resolução global sobre inteligência artificial18 com o objetivo de estimular as nações a preservar os direitos humanos, proteger informações pessoais e supervisionar a IA para possíveis riscos. Um ano após o lançamento de seu Informe sobre Integridade da Informação em Plataformas Digitais19, no dia 24/6/24 foi lançado os Princípios Globais das Nações Unidas para a Integridade da Informação20, com recomendações para Ações de Múltiplas Partes Interessadas. Assim, a ONU reconhece a insuficiência da DUDH para a proteção de direitos humanos no ambiente digital, visão que justifica o avanço de novos Direitos Humanos: Os Direitos Humanos Digitais. Esse movimento de expansão de novos Direitos Humanos voltados para o ambiente digital surgiu como resposta ao avanço das tecnologias, como: A IA - Inteligência Artificial, a RE -Realidade Estendida e, mais recentemente, as neurotecnologias e a IoT - Internet das Coisas. Tais tecnologias contribuem para a criação de um ambiente digital totalmente inovador como amplificação de Direitos Humanos, como a liberdade de opinião e expressão e, via por consequência, a emergência de novos direitos. As características dessas novas tecnologias são tão peculiares que sequer existiam na época da proclamação da DUDH, já que estes foram pensados num contexto social claramente dividido, no qual as principais tecnologias eram o rádio e a televisão. A demanda por novos direitos segue duas linhas de justificativas21: Diante da insuficiência das normas tradicionais de Direitos Humanos para proteção do ambiente virtual; Devido à extrema diferença entre o ambiente digital e o ambiente físico, que evidenciam o surgimento de novos valores e novas necessidades humanas essenciais. Nesse último caso, surgem situações nas quais não há nenhuma correspondência no mundo físico. Essa interseção entre Direitos Humanos e Tecnologias já lida há algum tempo com dilemas jurídicos de: Violações de direitos resultantes do uso de novas tecnologias; e Utilização de novas tecnologias para as quais ainda não existem previsão de direitos. A divisão entre esses mundos é cada vez mais invisível, pois os limites físicos (interfaces) que separam a vida real da vida virtual estão desaparecendo. Luciano Floridi refere que as nossas experiências já não são mais nem online, nem offline, mas Onlife.22 Uma simultaneidade entre o analógico e o digital, flutuando constantemente nos dois habitats que se imbricam num ambiente que ele denomina de Infosfera.23 Para Eduardo Celeste, "já não somos apenas carne e sangue, ou corpo e alma - como alguém pode pensar: Somos também o nosso eu digital". 24 Essa fusão impacta os Direitos Humanos de uma forma até então impensável e exige novas abordagens e reflexões para sua proteção. Os Direitos Humanos normalmente decorrem de movimentos responsivos ao passado, servindo como uma espécie de reação às experiências anteriores, como no caso dos direitos tradicionais da DUDH, que representaram uma resposta ao fim da Segunda Guerra Mundial.25 Porém, na contemporaneidade há necessidade de medidas de natureza preventiva26, servindo como atenção em face de potenciais ameaças e desafios que vão surgindo ao longo dos próximos anos. A criação de "novos" Direitos Humanos Digitais decorre da natureza flexível e expansiva do direito internacional, que deve responder às mudanças sociais. Mas os tempos mudaram. Recorrer constantemente à interpretação e ao alargamento dos Direitos Humanos "pode gerar distorções insustentáveis, afastando-se dos objetivos originais das estruturas jurídicas" 27 e gerar mesmo um contexto de insegurança jurídica. Esse ciclo de equivalência normativa que se mostra insustentável diante das aceleradas transformações sociais decorrentes da tecnologia necessita de uma reflexão, sobretudo a partir da adoção da Declaração de Direitos Digitais.28 Emergência das Cartas de Direitos Humanos na Era Digital Pensando nisso, novos direitos são propostos em observância aos avanços internacionais e alguns países elaboraram suas próprias cartas de direitos humanos da era digital. A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital29 (2021) é uma iniciativa inovadora no fomento e proteção dos usuários no ambiente digital que reconhece a equivalência normativa ao afirmar que "as normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço" (art. 2°, item 2). Reforçam elencando uma série de direitos já existentes que devem ser aplicados ao ambiente digital, como o direito à liberdade de expressão (art. 4°) e à privacidade (art. 8°). A Carta aplica a equivalência normativa de maneira não excludente, uma vez que também reconhece a necessidade de adoção de uma série de novos direitos digitais, como o direito de acesso ao ambiente digital (art. 3°), à neutralidade da Internet (art. 10°), ao desenvolvimento de competências digitais (art. 11°), à cibersegurança (art. 15°), à proteção contra geolocalização abusiva (art. 17°), ao testamento digital (art. 18°), etc. A Carta Espanhola de Direitos Digitais30 (2022) afirma expressamente que não pretende criar ou descobrir novos Direitos Humanos, mas apenas garantir a efetividade da aplicação dos direitos já existentes ou sua atualização/adaptação para o ambiente digital. Reconhece, apesar disso, a importância da flexibilidade do ordenamento jurídico internacional face aos novos desafios trazidos pelas tecnologias e elenca alguns direitos como: À cibersegurança (VI), à neutralidade da Internet (XIII), direito de acesso à Internet (IX), direito no uso de neurotecnologias (XXVI), etc. Merece destaque por ser inovador a Declaração sobre Direitos e Princípios para a Década Digital da Europa31 (2023), que tem por objetivo promover uma "transformação digital que dê prioridade às pessoas e aos seus direitos humanos universais em todo o mundo". O texto foi aprovado em conjunto pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão Europeia, tem natureza meramente declaratória e descritiva, visando servir como incentivo para reflexão crítica e como material de referência para as autoridades públicas e privadas em matéria de Direitos Humanos. A Declaração europeia também adota expressamente a equivalência normativa em seu preâmbulo quando reconhece que o que é ilegal offline, também é ilegal online, reforçando a aplicação dos direitos humanos no ambiente virtual ao prever como obrigação da União Europeia "definir a forma como os seus valores e direitos fundamentais que vigoram fora de linha devem ser aplicados no ambiente digital". Apesar da adoção expressa da equivalência normativa no texto da Declaração Europeia, o documento vai além e promove extensivamente os Direitos Humanos tradicionais elencando uma série de novos direitos aplicáveis ao ciberespaço, como o direito à inclusão digital (item 2), o direito à identidade digital (item 7), o direito à desconexão digital (item 6), etc. A Declaração Europeia tem um caráter transformador e progressivo. Estabelece um quadro com direitos e princípios não reconhecidos internacionalmente. Logo, "a Declaração se enquadra muito bem na nova agenda dos proponentes dos direitos digitais". 32 O modelo de equivalência normativa também pode ser inferido do preâmbulo da Declaração Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital, que declara no item 3 que a transformação digital não deve resultar na diminuição dos direitos "o que é ilegal fora de linha é também ilegal em linha". Mais recentemente, Susi propõe a teoria da não-coerência, que sugere que o significado e o escopo dos direitos humanos podem de fato mudar quando aplicados ao ambiente online. Refere que os direitos humanos digitais não formam um conjunto coeso e uniforme de direitos, mas são caracterizados pela falta de coesão e consistência. São frequentemente fragmentados, variando de acordo com contextos específicos, como culturais, políticos e tecnológicos, ocorrendo porque o mundo digital tem características exclusivas que podem limitar ou aprimorar determinados direitos em comparação com o mundo físico.33 Portanto, essas iniciativas demonstram uma mudança crescente no cenário internacional em direção ao reconhecimento dos Direitos Humanos Digitais. Diversos temas precisam de uma reflexão profunda, como o conceito de dignidade digital34, um conceito que precisa ser construído. Conclusão É preciso admitir que os Direitos Humanos tradicionais já não são mais suficientes para a tutela dos novos desafios que emergem das novas tecnologias no ambiente digital. O surgimento dessas discussões é o primeiro grande passo rumo à amplificação dos Direitos Humanos, como resposta à urgência e importância dessas novas necessidades humanas da sociedade da informação. É essencial uma perspectiva inovadora que reconheça a natureza transformadora do ambiente online em substituição do paradigma da equivalência normativa por um novo, o Paradigma de Interconexão Normativa. É fundamental a adoção de uma estratégia que avance para além da equivalência normativa dos Direitos Humanos tradicionais e permita uma ampliação dos novos Direitos Humanos Digitais, construídos a partir da participação e diálogo de todas as partes interessadas, para possibilitar a tutela dos direitos humanos no contexto da inovação, sem descuidar dos valores fundamentais.  ____________ 1 LEVÝ, Pierre. Cibercultura. Editora 34, tradução de Carlos Irineu da Costa: São Paulo, 1999, p. 32. 2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: do conhecimento à política. In: (org.) CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo. A sociedade em rede do conhecimento à acção política. Imprensa nacional - casa da moeda, p. 17-31: Centro Cultural de Belém, 2005, p. 566 3 BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Eletronic Frontier Foundation. 1996. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 4 BERRY, John W. The World Summit on the Information Society (WSIS): A global challenge in the new Millennium. 2006. 5 DECLARATION of Internet Freedom. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 6 CASTRO, Daniel. A Declaration of the Interdependence of Cyberspace. COMPUTERWORLD. 2013. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 7 INTERNET RIGHTS & PRINCIPLES COALITION. Charter of Human Rights and Principles for the Internet. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 8 AFRICAN Declaration on Internet Rights and Freedoms. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 9 COMMISSIONE PER I DIRITTI E I DOVERI IN INTERNET. Dichiarazione dei diritti in Internet. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 10 CONTRACT for the Web. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 11 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. 12 DROR-SHPOLIANSKY, D.; SHANY, Y. 'It's the End of the (Offline) World as We Know It: From Human Rights to Digital Human Rights - A Proposed Typology' (2021) 32 European Journal of International Law 1249-82. 13 UNITED NATIONS (UN). Guiding Principles on Business and Human Rights. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 14 UNITED NATIONS (UN). Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression (A/HRC/17/27). Human Rights Council. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 15 UNITED NATIONS (UN).  The promotion, protection and enjoyment of human rights of the Internet (A/HRC/RES/20/8). Human Rights Council. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 16 YILMA, Kinfe. Emerging Technologies and Human Rights at the United Nations. IEEE Technology and Society Magazine, v. 42, n. 1, p. 54-64, 2023. 17 UNITED NATIONS (UN). Report of the Special Rapporteur on the right to privacy (A/HRC/37/62). Human Rights Council. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 18 UNITED NATIONS (UN). Seizinf the opportunities of safe, secure and trustworthy artificil intelligence systems for sustainable development (A/78/L.49). Human Rights Council. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 19 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Informe de Política para a Nossa Agenda Comum: Integridade da Informação nas Plataformas Digitais. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 20 UNITED NATIONS (UN). United Nations Global Principles For Information Integrity: Recommendations for Multi-stakeholder Action. 2024. Disponível aqui. Aceso em: 08 jul. 2024. 21 COCITO, Cristina; DE HERT, Paul. The transformative nature of the EU Declaration on Digital Rights and Principles: Replacing the old paradigm (normative equivalency of rights). Computer Law & Security Review, v. 50, p. 105846, 2023. 22 FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford University Press, 2014, p. 1-3. 23 FLORIDI, Luciano. The online manifesto: being human in hyperconnected Era. Spring Open, 2009. 24 FLORIDI, Luciano. Pensare l'infosfera: la filosofia come desing concettuale. Raffaello Cortina Editore, 2020 25 CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019. 26 CUSTERS, Bart. New digital rights: Imagining additional fundamental rights for the digital era. Computer Law & Security Review, v. 44, p. 105636, 2022. 27 SHANY, Yuval. The Case for a New Right to a Human Decision Under International Human Rights Law (October 4, 2023). Available at SSRN. Disponível aqui. 28 CUSTERS, Bart. New digital rights: Imagining additional fundamental rights for the digital era. Computer Law & Security Review, v. 44, p. 105636, 2022. 29 PORTUGAL. Lei n° 27/2021, de 17 de maio de 2021. Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Diário da República, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 30 GOBIERNO DE ESPAÑA. Carta de Derechos Digitales. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 31 EUROPEAN COMMISSION. European Declaration on Digital Rights and Principles for the Digital Decade. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 32 COCITO, Cristina; DE HERT, Paul. The transformative nature of the EU Declaration on Digital Rights and Principles: Replacing the old paradigm (normative equivalency of rights). Computer Law & Security Review, v. 50, p. 105846, 2023. 33 SUSI, Mart. The Non-coherence Theory of Digital Human Rights. Cambridge University Press, 2024. 34 KHANNA, Ro. Dignity in a digital age: Making tech work for all of us. Simon and Schuster, 2022; MCCOURT, F. H. Our Biggest Fight: Reclaiming Liberty, Humanity, and Dignity in the Digital Age. 2024.
No recente acórdão proferido no Processo C-590/221, o TJUE - Tribunal de Justiça da União Europeia abordou importantes questões relacionadas à interpretação do art. 82.°, 1, do regulamento (UE) 2016/679, conhecido como Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD)2, ou GDPR - General Data Protection Regulation, em inglês. Esta decisão tem implicações significativas para a proteção dos dados pessoais e o direito à indenização decorrente de violações de dados pessoais a partir das definições do regulamento. Antes de comentar o precedente, convém lembrar que, no RGPD, a expressão "violação de dados pessoais" é definida no art. 4.º, 123, como qualquer incidente de segurança que resulte, acidentalmente ou de maneira ilícita, na destruição, perda, alteração, divulgação ou acesso não autorizados a dados pessoais que estão sendo transmitidos, armazenados ou sujeitos a qualquer outra forma de processamento. Esta definição abrange uma ampla gama de possíveis incidentes, desde falhas técnicas que levam à perda de informações até ataques cibernéticos que expõem dados pessoais. A amplitude da definição assegura que todas as formas de comprometimento da segurança dos dados pessoais sejam consideradas, independentemente de terem ocorrido por acidente ou por ação deliberada. A importância de uma definição tão abrangente reside na necessidade de garantir a integridade e a confidencialidade dos dados pessoais em todas as etapas do seu ciclo de vida. Uma violação de dados pode ter consequências significativas para os indivíduos afetados, incluindo riscos à sua privacidade e à sua segurança. Portanto, o RGPD impõe obrigações rigorosas aos responsáveis pelo tratamento de dados para prevenir tais violações e, em caso de ocorrência, exige a adoção de medidas imediatas para mitigar os danos, notificar as autoridades competentes e, se necessário, informar os titulares dos dados. Em publicação da coluna Migalhas de Proteção de Dados de setembro de 20214, tive a oportunidade de comparar o conceito europeu de violação de dados pessoais, conforme definido no art. 4.º, inciso 12, do RGPD, com a figura do incidente de segurança, prevista de forma tímida no art. 48 da LGPD brasileira, que define o dever de comunicação de tais incidentes, embora não o conceitue.5 Comparações à parte, entender claramente o conceito europeu de violação de dados pessoais é fundamental em matéria de responsabilidade civil, pois é preciso estabelecer os parâmetros pelos quais os danos sofridos pelos titulares dos dados pessoais são reconhecidos e compensados, especialmente para suplantar dúvidas interpretativas em relação ao tormentoso debate da natureza presumida ou "in re ipsa" do dano extrapatrimonial decorrente desses eventos. O entendimento firmado na União Europeia é crucial para determinar quando e como os responsáveis pelo tratamento de dados devem responder por falhas na segurança que causem prejuízos, sejam esses danos materiais ou imateriais. O precedente do TJUE no Processo C-590/22 é especialmente relevante, pois clarifica que a mera violação do RGPD não é suficiente para garantir uma indenização, exigindo-se a demonstração do dano e seu nexo causal com a violação. Esta decisão orienta tanto os titulares dos dados quanto os responsáveis pelo tratamento na correta aplicação do RGPD, promovendo maior segurança jurídica e assegurando que os direitos individuais sejam efetivamente protegidos, enquanto se evitam pretensões infundadas. Como dito, o TJUE firmou o entendimento de que a mera violação do RGPD não é suficiente, por si só, para fundamentar um direito de indenização. Para que tal direito seja reconhecido, o titular dos dados deve demonstrar a existência de um dano causado pela violação. Essa interpretação reforça a necessidade de que haja nexo de causalidade entre a violação de preceitos do regulamento ou da legislação doméstica que o internalizou em cada país-membro da União Europeia e o dano sofrido, embora não seja necessário que o dano atinja um grau de reprovabilidade específico. Adicionalmente, o TJUE esclareceu que o receio de que dados pessoais tenham sido divulgados a terceiros, devido a uma violação do RGPD, pode ser suficiente para fundamentar um direito de indenização. No entanto, é imprescindível que esse receio, juntamente com suas consequências negativas, seja devidamente comprovado. Esse aspecto da decisão destaca a importância de considerar os efeitos psicológicos das violações de dados, que são de difícil mensuração. No que diz respeito à determinação do montante da indenização, o TJUE decidiu que não se deve aplicar, "mutatis mutandis", os critérios de fixação do montante das multas previstos no art. 83.° do RGPD. Isso significa que os critérios utilizados para calcular sanções administrativas de natureza pecuniária, por violações do regulamento, não devem ser automaticamente aplicados para determinar o valor das indenizações por danos, sendo mister do juiz a adequada fixação do valor da indenização. Além disso, o TJUE rejeitou a ideia de que o direito à indenização deva ter uma função dissuasora. Segundo a Corte, o foco principal da indenização é a reparação dos danos sofridos pelo titular dos dados, e não a punição ou a dissuasão de futuras violações por parte dos responsáveis pelo tratamento dos dados. Outro ponto relevante é que, para determinar o montante da indenização, não se deve levar em consideração violações concomitantes de disposições nacionais que não especificam regras do RGPD. Esta interpretação evita a complexidade adicional que poderia surgir da aplicação de múltiplas normativas nacionais ao mesmo caso de violação de dados. A decisão do TJUE também sublinha a importância da prova adequada do dano e das consequências negativas alegadas pelo titular dos dados. Sem essa prova, o direito à indenização pode não ser reconhecido, mesmo que haja uma violação clara do RGPD. Isso enfatiza a necessidade de uma abordagem rigorosa na avaliação dos pedidos de natureza indenizatória. A meu sentir, o entendimento do TJUE reflete uma abordagem equilibrada, que protege os direitos dos titulares de dados sem impor uma carga excessiva sobre os responsáveis pelo tratamento de dados. A exigência de prova do dano garante que apenas os casos nos quais haja impacto real sobre os titulares de dados resultem em indenizações, evitando, assim, abusos do sistema de proteção de dados. Esta decisão também pode influenciar futuras interpretações do RGPD por parte dos tribunais nacionais dos países-membros da União Europeia, que deverão alinhar suas decisões com os princípios estabelecidos pelo TJUE. Isso contribuirá para uma aplicação mais uniforme do regulamento em toda a União Europeia, promovendo maior segurança jurídica. Em resumo, o acórdão do TJUE no Processo C-590/22 clarifica vários aspectos críticos do direito à indenização sob o RGPD, reforçando a necessidade de prova do dano e estabelecendo critérios claros para a determinação do montante das indenizações. Além disso, não se pode negar que tal decisão norteará novas e profícuas reflexões para a aplicação das regras de responsabilização civil a partir da LGPD brasileira. Apenas para fins de elucidação dos problemas interpretativos que ainda pairam no Brasil, em março de 2023, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do AREsp 2.130.6196, de relatoria do Excelentíssimo ministro Francisco Falcão, adotou um posicionamento peculiar ao negar indenização por danos extrapatrimoniais pelo vazamento de dados comuns (não sensíveis) de uma cliente idosa, argumentando que o simples fato de vazamento desses dados não gera, por si só, um dano moral indenizável. O Tribunal enfatizou a necessidade de prova concreta do dano decorrente da exposição das informações, destacando que o risco de potencial fraude ou importunações não é suficiente para configurar dano moral "in re ipsa". A decisão envolveu uma concessionária de serviço público (e, por isso, o precedente adveio da Terceira Turma), o que ensejou a aplicação da regra de responsabilização civil do Estado prevista no art. 37, § 6°, da Constituição da República. De todo modo, é importante frisar que não há, na LGPD, qualquer previsão que indique que, se dados pessoais sensíveis forem objeto de um "vazamento" se abrirá margem à admissão de dano moral "in re ipsa". 7 A exigência de prova de dano como requisito para indenização contribui para evitar abusos e garante que apenas casos com reflexos realmente danosos resultem em condenações. A decisão do TJUE no Processo C-590/22 não apenas harmoniza a aplicação do RGPD entre os Estados-membros da União Europeia, promovendo segurança jurídica, mas também serve de referência para futuras interpretações e aplicações da LGPD no Brasil. Inegavelmente, a convergência entre essas legislações poderá fortalecer a proteção de dados pessoais, oferecendo um caminho claro para a responsabilidade civil e estimulando novas reflexões sobre a aplicação das regras de responsabilização em contextos diversos. __________ 1 UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-590/22. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 2 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados - RGPD). Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 3 Eis o conceito: "Artigo 4.° (...) 12) «Violação de dados pessoais», uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação ou o acesso, não autorizados, a dados pessoais transmitidos, conservados ou sujeitos a qualquer outro tipo de tratamento". 4 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O que é, afinal, um vazamento de dados? Migalhas de Proteção de Dados, 17 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 5 Aliás, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) brasileira publicou, em abril de 2024, ato normativo que descreve os procedimentos a serem observados na comunicação de incidentes de segurança, cf. BRASIL. Agência Nacional de Proteção de Dados. Resolução CD/ANPD nº 15, de 24 de abril de 2024. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 2.130.619 - SP (2022/0152262-2). Relator: Ministro Francisco Falcão. Brasília, DF, 07 mar. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 7 Sobre o caso, valiosa a reflexão de Flaviana Rampazzo Soares: "No julgamento do AREsp n. 2.130.6195, referiu que uma concessionária de energia elétrica que vazou dados de uma cliente idosa (nome completo, RG, gênero, data de nascimento, idade, números de telefone  fixo  e  de  celular,  endereço  e  dados  do  contrato  de  fornecimento firmado) não  deveria indenizá-la, sob o argumento de que o vazamento dedados de natureza comum (aqueles pessoais mas  não  íntimos,  passíveis  apenas  de  identificação  da  pessoa  natural  não  classificados  como sensíveis), "a despeito de se tratar de falha indesejável no tratamento de dados de pessoa natural por pessoa jurídica, não tem o condão, por si só, de gerar dano moral indenizável" e, nesse sentido, "o dano moral não é presumido, sendo necessário que o titular dos dados comprove eventual dano decorrente da exposição dessas informações". SOARES, Flaviana Rampazzo. Dano presumido e dano 'in re ipsa' - distinções necessárias. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. IV-X, 2023, p. V.
A questão atinente ao sistema de responsabilidade civil decorrente da LGPD ainda não está clara no ordenamento jurídico brasileiro, motivo de grande divergência doutrinária. A incerteza sobre o sistema de responsabilização, por sua vez, não pode ensejar prejuízos aos titulares de dados, como também não pode ensejar a inviabilidade do exercício profissional de quem exerce suas atividades de forma autônoma. Neste cenário, a proposta de adoção de um sistema escalonado de responsabilidades, coerente com a realidade brasileira e sustentável frente a disciplina jurídica da responsabilidade civil parece um caminho adequado. A LGPD ao estabelecer que a proteção de dados pessoais se aplica tanto às pessoas físicas, quanto às jurídicas, não faz distinção em relação à responsabilidade de cada uma delas. Seja na redação do caput do art. 42, no qual "o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo." Seja no segundo critério de imputação trazido pela LGPD, no parágrafo único do art. 44, quando estabelece que "responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta lei, der causa ao dano". Em nenhum dos dispositivos há referência à modalidade de responsabilidade adotada, muitas interpretações são sustentáveis por esta razão. De forma objetiva, entende-se que há um novo regime de responsabilidade civil trazido pela LGPD. Isso porque, a noção de responsabilidade não deve se limitar à reparação dos danos, uma vez que a referência legislativa diz respeito a boas práticas e a um dever geral de segurança. Observa-se, assim, a opção legislativa de fomentar a prevenção dos danos a partir de determinados tipos de comportamentos, o que pode ser observado pelos diversos dispositivos que estabelecem condutas para os agentes de tratamento, balizando de forma ética comportamentos e níveis de segurança. No entanto, o entendimento aqui proposto traz, de forma específica, novas balizas para esta compreensão da responsabilidade civil e delimita sua incidência, distinguindo agentes de grande e pequeno porte.1 Nesta breve e importante consideração sobre o mote legislativo e os rumos pretendidos, de não engessar a responsabilidade civil em sua função reparatória/compensatória, cumpre, ainda assim, enfrentar a polêmica relacionada à natureza jurídica da responsabilidade civil com mais detalhes. Tal enfrentamento, revela-se imprescindível, haja vista que, quando há violação da norma, exsurge o dever de reparar e, nesse momento, será necessário definir se a responsabilização se fundamentará na culpa ou se ela poderá ser desconsiderada, nos casos em que ocorrer danos aos titulares de dados, em virtude do tratamento. Em uma hipótese ou outra, o desafio persiste, uma vez que a construção dos pressupostos também não se afigura pacífica. Propõe-se, assim, um sistema escalonado de responsabilidades, que leva em consideração a natureza do agente de tratamento de dados, bem como os diferentes critérios de imputação trazidos pela LGPD, capazes de deflagrar a responsabilidade civil. Dessa forma, parece desarrazoado defender que a responsabilização de um profissional liberal, por exemplo, ocorra nos mesmos moldes de responsabilização de um grande grupo econômico, ou que as exigências de governança, investimento em tecnologia e segurança da informação para proteção de dados possam ser pensadas nos mesmos parâmetros. Ao menos não é essa a lógica que se extrai do sistema de responsabilidades previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Para apresentar os contornos dessa responsabilidade especial aqui defendida, foram adotados os seguintes critérios de escalonamento: Se a hipótese for de violação de norma, nos termos dos arts. 422 e 443 da LGDP, será necessário verificar a natureza jurídica do agente de tratamento de dados, se de grande ou de pequeno porte, para determinar o sistema de responsabilidade civil aplicado a cada um. Se, no entanto, o nexo de imputação for a violação do dever geral de segurança, arts. 444e 465 da LGPD, será outro o sistema de responsabilidade. Para alcançar a racionalização dos critérios pretendidos, passa-se à análise de cada um dos sistemas de responsabilidade a partir do escalonamento sugerido. 1.1 Responsabilidade Civil do Agente de Tratamento por Violação da Norma 1.1.1 Quando o Agente de Tratamento é de Grande Porte A ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, ao estabelecer diretrizes para os agentes de tratamento, define que, quando se trata de uma pessoa jurídica, a organização é o controlador para os fins da LGPD. De modo que esta assume a responsabilidade pelos atos praticados em seu nome, por ser quem estabelece as regras para o tratamento de dados pessoais a serem executadas por seus representantes ou prepostos.6 Indo além, a ANPD publicou a resolução CD/ANPD 02, aprovando o regulamento de aplicação da LGPD para agentes de tratamento de pequeno porte.7 Tal regulamento, de forma bastante objetiva, estabelece critérios para diferenciar agentes de pequeno e grande porte e, consequentemente, a aplicação diferenciada da lei nestas hipóteses. Muito embora a regulamentação não tenha feito referência expressa à responsabilização civil, entende-se que o tratamento diferenciado proposto pela ANPD para o cumprimento das normas afeta a compreensão e imputação de responsabilidade. De tal sorte que a responsabilidade escalonada, a partir desses critérios, condiz com o escopo normativo trazido pela ANPD e é condizente com as várias funções que a responsabilidade pode e deve assumir. Assim, para atingir este escopo, entende-se que quando o agente de tratamento de dados é de grande porte8 e comete um dano ao titular dos dados, sua responsabilidade se encontra no âmbito da teoria objetiva, fundada no risco da atividade e, portanto, prescinde de culpa. A atividade de tratamento de dados é, por excelência, uma atividade que traz riscos de danos para seus titulares, seja em razão de incidente de segurança ou "situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito". 9 A imputação da obrigação objetiva, portanto, decorrerá do risco no tratamento de dados pessoais e servirá como substrato de densidade normativa a ser alcançado pela LGPD, especialmente o art. 42. Assim, poderá justificar a obrigação de indenizar do agente de tratamento, independentemente de culpa. Essa perspectiva de imputação objetiva com lastro no risco deve considerar, portanto, não apenas a natureza ou o volume das operações, mas o grau de risco10 e a própria qualificação do agente de tratamento.  1.1.2 Quando o Agente de Tratamento é de Pequeno Porte Noutro giro, há que se verificar a tormentosa situação do profissional liberal quando atua como agente de tratamento. Assim, quando há violação da norma por parte de um profissional liberal que atua como controlador, causando dano ao seu cliente, a responsabilização deve ser lastreada na culpa e, portanto, em sua configuração subjetiva. O raciocínio aqui empregado se pauta no fundamento de que, se até quando incide o CDC (que tem como regra a teoria objetiva) os danos causados por profissionais liberais enquadram-se no sistema de responsabilidade subjetiva, com mais razão de ser, demanda-se culpa quando se está fora do CDC. Assim, os profissionais liberais, ainda que não estejam em uma relação de consumo respondem subjetivamente. Ademais, ainda que o intérprete não se convença da necessidade de demonstrar culpa para responsabilizar o profissional liberal, utilizando a lógica do CDC, a interpretação dada em recente regulamento sobre a flexibilização das normas de proteção de dados para agentes de tratamento de pequeno porte, indica a necessidade de aplicação de um sistema diferenciado de responsabilidade civil. A insistência pela manutenção do elemento culpa visa a minimizar uma desproporcional medida de responsabilização para o agente de tratamento de pequeno porte, que faz o tratamento de dados de forma artesanal, que não manipula muitos dados, que não tem capacidade econômica para fazer todos os investimentos de segurança trazidos pela legislação e que também não teria condições de arcar com indenização oriunda de imputação objetiva, na maior parte dos casos. A conformação da responsabilidade civil subjetiva, nos termos apresentados, revela-se condizente com a proteção dos dados pessoais de titulares e, ao mesmo tempo, não inviabiliza a atuação dos profissionais liberais.           1.2 Responsabilidade Civil do Agente de Tratamento por Descumprimento do Dever Geral de Segurança O último espectro do escalonamento de responsabilidade civil advém da política adotada pela LGPD, que, de forma bastante incisiva, elenca inúmeras medidas a serem seguidas pelos agentes de tratamento na tentativa de inibir práticas que tragam riscos aos titulares de dados.11 Assim, verifica-se que a inobservância de tais práticas acarreta responsabilidade. De tal forma que responderá pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o agente de tratamento que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 da LGPD, der causa ao dano.12 Dessa forma, entende-se que a tentativa de coibir condutas que comprometam a segurança dos dados denota uma preocupação do legislador com os riscos potenciais do tratamento de dados, elucidando a função precaucional há muito defendida por Nelson Rosenvald13, que na LGPD pode ser identificada pelo fomento às boas práticas. Dentro da seara da responsabilidade escalonada proposta, a imputação de responsabilidade, por este último critério, não faz distinção entre agente de tratamento enquanto de grande ou de pequeno porte em relação ao nexo de imputação, que será vinculado ao dever de segurança. Há, todavia, diferença em relação ao nível de segurança a ser perseguido. Isso porque, os requisitos e exigências de segurança serão mais brandos para os agentes de tratamento de pequeno porte, que poderão estabelecer uma política simplificada de segurança da informação. Tal política deve levar em consideração os custos de implementação, bem como a estrutura, a escala e o volume das operações do agente de tratamento de pequeno porte.14 Portanto, o que se observa é que o regulamento estabelece uma nítida diferença de tratamento e exigências quando se trata de agentes de pequeno porte, até porque não seria razoável tratar de forma igual realidades tão distintas.15 Assim, desapegando do sistema clássico de responsabilidades e acatando a perspectiva de um novo regime trazido por relevante doutrina16, a proposta de responsabilidade escalonada, racionalizada na presente investigação, sugere a imputação objetiva para agentes de tratamento de grande porte, com fundamento na teoria do risco; defende a responsabilidade subjetiva para os agentes de tratamento de pequeno porte, com o aproveitamento das definições trazidas pelo regulamento publicado pela ANPD e, por fim, reforça o entendimento de uma imputação objetiva oriunda da quebra do dever geral de segurança, com as especificações e ressalvas trazidas ao longo do texto. _________ 1 Art. 2º Para efeitos deste regulamento são adotadas as seguintes definições: I - agentes de tratamento de pequeno porte: microempresas, empresas de pequeno porte, startups, pessoas jurídicas de direito privado, inclusive sem fins lucrativos, nos termos da legislação vigente, bem como pessoas naturais e entes privados despersonalizados que realizam tratamento de dados pessoais, assumindo obrigações típicas de controlador ou de operador. BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cd/anpd-n-2-de-27-de-janeiro-de-2022-376562019.. 2 Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. 3 Art. 44. O tratamento de dados pessoais será irregular quando deixar de observar a legislação (...) 4 Art. 44. O tratamento de dados pessoais será irregular quando (...) não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar, consideradas as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo pelo qual é realizado; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - as técnicas de tratamento de dados pessoais disponíveis à época em que foi realizado. Parágrafo único. Responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta Lei, der causa ao dano. 5 Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. 6 AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Guia Orientativo para Definições dos Agentes de Tratamento de Dados Pessoais e do Encarregado. Brasil, 2022.  Versão 2.0. Disponível aqui. 7 BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. Disponível aqui. Acesso em: 20 jul. 2022. 8 A definição de agentes de grande porte não é feita pelo regulamento, motivo pelo qual sua definição é elaborada por exclusão, a partir da definição do que são agentes de pequeno porte. 9 Artigo 46, LGPD. 10 Art. 4º Para fins deste regulamento, e sem prejuízo do disposto no art. 16, será considerado de alto risco o tratamento de dados pessoais que atender cumulativamente a pelo menos um critério geral e um critério específico, dentre os a seguir indicados: I - critérios gerais: a) tratamento de dados pessoais em larga escala; ou b) tratamento de dados pessoais que possa afetar significativamente interesses e direitos fundamentais dos titulares; II - critérios específicos: a) uso de tecnologias emergentes ou inovadoras; b) vigilância ou controle de zonas acessíveis ao público; c) decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais, inclusive aquelas destinadas a definir o perfil pessoal, profissional, de saúde, de consumo e de crédito ou os aspectos da personalidade do titular; ou d) utilização de dados pessoais sensíveis ou de dados pessoais de crianças, de adolescentes e de idosos. § 1º O tratamento de dados pessoais em larga escala será caracterizado quando abranger número significativo de titulares, considerando-se, ainda, o volume de dados envolvidos, bem como a duração, a frequência e a extensão geográfica do tratamento realizado. § 2º O tratamento de dados pessoais que possa afetar significativamente interesses e direitos fundamentais será caracterizado, dentre outras situações, naquelas em que a atividade de tratamento puder impedir o exercício de direitos ou a utilização de um serviço, assim como ocasionar danos materiais ou morais aos titulares, tais como discriminação, violação à integridade física, ao direito à imagem e à reputação, fraudes financeiras ou roubo de identidade. BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cd/anpd-n-2-de-27-de-janeiro-de-2022-376562019. Acesso em: 20 jul. 2022. 11 "Os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem ser estruturados de forma a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança e aos princípios gerais previstos nesta Lei e às demais normas regulamentares." Artigo 49 da LGPD. 12 Artigo 44, parágrafo único, da LGPD. 13 ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 14 Art. 13. Os agentes de tratamento de pequeno porte podem estabelecer política simplificada de segurança da informação, que contemple requisitos essenciais e necessários para o tratamento de dados pessoais, com o objetivo de protegê-los de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. § 1º A política simplificada de segurança da informação deve levar em consideração os custos de implementação, bem como a estrutura, a escala e o volume das operações do agente de tratamento de pequeno porte. 15 Art. 12. Os agentes de tratamento de pequeno porte devem adotar medidas administrativas e técnicas essenciais e necessárias, com base em requisitos mínimos de segurança da informação para proteção dos dados pessoais, considerando, ainda, o nível de risco à privacidade dos titulares de dados e a realidade do agente de tratamento. BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. 16 DRESCH, Rafael de Freitas Valle; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Reflexões sobre a responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). In: ROSENVALD, Nelson; DRESCH, Rafael de Freitas Valle; WESENDONCK, Tula. (Org.). Responsabilidade civil: novos riscos. 1ed.Indaiatuba: Foco, 2019.
Uma das diversas inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do Código Civil1 diz respeito ao conceito de dano para a responsabilidade civil. "A indenização será concedida", explicita o art. 944-C do texto, "se os danos forem certos, ainda que diretos, indiretos, atuais ou futuros". Como fica evidente, a proposta eleva a certeza ao patamar de elemento central da noção de dano reparável. Afinal, se são reparáveis os danos diretos ou indiretos; atuais ou futuros, isso significa que esses valores não são relevantes para a delimitação do que é dano. Trata-se apenas de critérios de classificação desse conceito. O único elemento trazido pelo art. 944-C e que efetivamente compõe a estrutura conceitual do dano é a certeza. Nesse aspecto, o anteprojeto acompanha o entendimento da literatura jurídica, que com frequência afirma que a certeza é ao elemento mais importante do dano2. E as razões desta proeminência são facilmente compreensíveis. A responsabilidade é um instrumento para a reparação de danos sofridos. Ora, a reparação de um dano incerto poderia levar ao enriquecimento da vítima, em detrimento do indivíduo condenado a indenizá-la. A exigência da certeza do dano é uma garantia contra a reparação excessiva, evitando que a função reparatória da responsabilidade civil seja corrompida. Elemento consensual, a certeza do dano nem por isso é uma ideia menos misteriosa. Pelo contrário; sem recorrer a tautologias, é extremamente difícil desmembrar ou explicar um conceito tão elementar quanto a certeza. Certeza, interesse e reparação integral Uma pista para se construir um conceito de "certeza" pode ser encontrada na ideia de interesse. Tradicionalmente, o dano é definido como uma lesão a um interesse da vítima3. Por se reportar diretamente a esta noção, a certeza de dano pode ser analisada como um elemento da lesão a um interesse. A lesão a um interesse é certa quando o fato imputado ao responsável provoca a redução de uma utilidade que favorecia a vítima. Este é o caso quando a vítima perdeu de valores monetários, ou teve um de seus bens deteriorado. Há igualmente uma lesão certa nos casos de violação imaterial aos seus sentimentos ou aos seus direitos da personalidade. Nestas hipóteses, a perda basta para que esteja configurada a lesão a um interesse da vítima: ela possuía um bem, material ou imaterial, e este desapareceu ou foi deteriorado após o incidente. Aqui, a certeza da lesão foi constatada a partir da depreciação do status quo ante. Há um dano certo, pois a situação anterior da vítima foi degradada pela conduta. Definir a certeza como uma decadência em relação ao status quo ante seria, contudo, uma conclusão prematura. Em primeiro lugar, nem toda deterioração implica uma lesão a um interesse de um indivíduo. Le Tourneau nos fornece um exemplo interessante: um caminhão em alta velocidade derrapa na pista, atingindo um edifício... em vias de demolição4. Temos aí uma perda, mas nem por isso uma lesão a um interesse do proprietário do prédio. Outro exemplo: o para-choque de um carro foi amassado após uma pequena colisão em um semáforo, a qual não trouxe maiores consequências. Algumas horas depois, e sem que houvesse tempo para o retoque na lataria, o veículo se incendeia, em razão de um problema elétrico que não guarda qualquer relação com o incidente anterior. Ora, nenhum proprietário honesto poderia sustentar ter interesse na integridade do veículo doravante inexistente. Tal como o carro, a lesão ao interesse foi consumida pelas chamas. O que se nota nestes dois casos é que a perda provocada pela conduta do demandado foi neutralizada por outra perda, pela qual ele não é responsável. Não há lesão ao interesse do proprietário do veículo ou do imóvel visto que, para eles, a situação resultante do fato danoso não é diferente da situação que seria produzida na ausência deste fato. No mais, é possível que a vítima seja atingida em um de seus interesses, sem que haja uma depreciação equivalente de seu status quo ante. É assim quando a vítima se queixa de que a conduta do responsável o teria impedido de auferir lucros, ou de obter outra vantagem qualquer - os chamados lucros cessantes. Nesse sentido, a Corte de Cassação francesa5 em diversas ocasiões reconheceu que as perdas de rendimentos sofridas pelos dependentes da vítima de um acidente fatal são reparáveis ainda que, depois do acidente (e, muitas vezes, em razão dele), estes dependentes tenham iniciado uma profissão, evitando que sua situação econômica fosse rebaixada. Por certo, agora assalariada, a viúva não teve seu sustento reduzido, mas com a ajuda de seu marido ela se encontraria em uma situação ainda mais confortável. Nestas hipóteses, não há degradação em relação ao status quo ante. A lesão torna-se abstrata, desvencilhando-se das amarras primitivas do dano físico, para se aproximar de uma concepção econômica de perda. É o chamado de custo de oportunidade: a não obtenção de uma vantagem também é uma lesão certa. A partir destas observações é possível concluir que a lesão a um interesse é certa todas as vezes que a vítima se encontraria em uma situação mais vantajosa, sem o evento imputável ao responsável6. Pouco importa se há ou não uma depreciação em relação ao passado da vítima, bastando simplesmente que a situação decorrente do evento danoso lhe seja desfavorável, se comparada à situação hipotética na qual essa vítima se encontraria. Esta diferença entre a situação hipotética e a realidade é uma condição necessária, mas também suficiente, à constatação de uma lesão certa a um interesse da vítima. O elemento certeza existe se e somente se este desvio é constatado. A certeza do dano decorre, assim, do desnível entre estes dois parâmetros: o primeiro, a situação real, na qual se encontra a vítima após o dano. O segundo, a situação hipotética, na qual se encontraria a vítima sem este dano. Em outras palavras, a certeza é obtida a partir do confronte das situações, fatual e contrafatual. É por essa razão que acreditamos que a redação do art. 947 do anteprojeto, que trata da reparação integral do dano, deveria ser revista. Segundo esse dispositivo, "a reparação dos danos deve ser integral com a finalidade de restituir o lesado ao estado anterior ao fato danoso". Na verdade, reparação só será verdadeiramente integral se seu objetivo for recolocar a vítima na situação em que ela se encontraria sem o fato danoso, e não na situação em que ela se encontrava antes deste. Reduzida ao reequilíbrio da situação anterior ao acidente, a reparação não incluiria diversas espécies de danos que não implicam a depreciação do status quo ante, como, por exemplo, os lucros cessantes ou a privação do uso de um bem. Certeza e perda de uma chance Questão correlata ao tema da certeza do dano é a reparação da perda de uma chance. Não por acaso, o anteprojeto aborda a perda de uma chance nos dois primeiros parágrafos do art. 944-C: "§ 1º A perda de uma chance, desde que séria e real, constitui dano reparável; §2º A indenização relativa à perda de uma chance deve ser calculada levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada, de acordo com as probabilidades envolvidas". Esse texto nos é bastante familiar. Por intermédio do professor Nelson Rosenvald, tivemos a honra de encaminhar o esboço de sua redação à subcomissão de Responsabilidade Civil7. O que há de peculiar aos casos de perda de uma chance é que eles dizem respeito a situações em que o interesse vítima versava sobre um evento aleatório. A vítima tinha uma expectativa, incerta, de obter uma determinada vantagem ou de evitar um mal maior. E essa expectativa foi frustrada ou dificultada em razão fato imputável ao responsável. Os exemplos já analisados pelos nossos tribunais são bastante conhecidos: o advogado que perdeu um prazo processual é acionado judicialmente por seu antigo cliente, que requer a reparação dos prejuízos decorrentes de sua falha8. Em razão do erro médico, o paciente foi privado de um tratamento adequado, que poderia eventualmente ter evitado sua morte. Por este motivo, a família da vítima ajuíza demanda reparatória em face do profissional negligente ou do hospital9. Impedido de participar de um concurso ou competição, o candidato volta-se contra o responsável pela exclusão injusta10. Nesses casos, o critério da certeza do dano se revela particularmente problemático, pois é impossível determinar qual é a situação em que vítima estaria sem o ato imputado ao responsável. Como o interesse em questão é aleatório, o litígio comporta uma dúvida irredutível sobre a sorte da vítima. Não fosse pelo incidente, teria ela alcançado o resultado desejado? O paciente estaria curado? O jurisdicionado ou o candidato saíram vitoriosos? Não se sabe e nunca se saberá. Essa dúvida impede que se estabeleça um parâmetro contrafatual e, consequentemente, afasta a certeza do dano. Recusar a reparação à vítima seria, todavia, uma solução injusta. A despeito de seu caráter aleatório, esses interesses podem se revestir de grande relevância para a vítima. Quem seria capaz de negar, por exemplo, que o tratamento que ofereceria 30% de chances de sobrevida a um paciente com câncer representava o seu bem mais valioso em meio a um prognóstico sombrio? Que, a apesar da incerteza do resultado, realizar o exame vestibular era algo de extrema importância para a estudante que vinha se preparando ele ao longo do ano? Para resolver esse empasse, forjou-se uma solução tanto mais engenhosa quanto evidente, a saber, a reparação das chances perdidas. Nesse tipo de situação, não é o resultado aleatório que deve ser reparado pelo responsável, mas sim a chance de obtê-lo. Existe uma certeza em todos esses conflitos; a certeza de que a vítima tinha uma chance de alcançar o resultado que desejava, e que essa oportunidade desapareceu, em razão do fato imputável ao responsável. O montante da reparação não corresponderá ao valor da vantagem desejada, mas a uma porcentagem desta, de acordo com as probabilidades efetivamente perdidas pela vítima. Essa técnica para resolver os conflitos que envolvem a lesão a interesses aleatórios é hoje amplamente aceita no Direito brasileiro, principalmente após a célebre decisão do caso Show do Milhão, proferida pelo STJ em 200511. A proposta encampada pelo anteprojeto de reforma visa consolidar esse conceito, assentando três questões relevantes sobre ele. Em primeiro lugar, o texto ressalta que a chance, para ser reparável, deve ostentar um mínimo de importância. Recorrendo a uma expressão já consagrada na literatura, a chance passível de indenização precisa ser "real e séria". O requisito é de grande relevância para barrar o abuso do conceito de perda de uma chance. A chance é um objeto abstrato; ela não tem uma dimensão material. Por essa razão, sua reparação constitui uma porta aberta aos pedidos oportunistas, pois a vítima pode, sempre, inventar supostas chances perdidas em razão de um acidente. Ao condicionar a reparação das chances ao seu caráter "real e sério", a proposta evidencia que a reparação de chances não pode ser vulgarizada. Nesse aspecto, o texto conscientemente não impõe um parâmetro rígido para a determinação do que constitui uma chance real e séria, recusando, em especial, o critério matemático segundo o qual a chance seria relevante apenas se atingisse um patamar mínimo de probabilidades12. Delimitar o que constitui uma chance real e séria é uma questão que há de ser resolvida pela jurisprudência e pela doutrina13. Em segundo lugar, a redação proposta consolida a forma de calcular da indenização das chances perdidas, a qual leva em conta dois elementos: as probabilidades representadas pela chance e o valor do interesse que essa chance proporcionaria, caso concretizada. O valor da chance perdida nada mais é do que a expectativa matemática representada por essa chance; que grosso modo envolve a multiplicação desses dois fatores. Esse método de cálculo tem uma implicação importante, a saber, o fato de que o montante da indenização concedida à vítima em razão da chance perdida será sempre menor do que o valor vantagem aleatória que ela desejava. Trata-se de uma exigência lógica: a chance de obter uma vantagem jamais poderia ter o mesmo valor que a própria vantagem. É exatamente o que ocorreu no já mencionado precedente do Show do Milhão, no qual o STJ concedeu à vítima uma indenização de R$ 125.000,00, por ter sido injustamente impedida de responder à pergunta final em uma competição de um programa televisivo. Esse montante inferior ao valor do prêmio almejado por ela, equivalente a R$ 500.00,00, pois o tribunal considerou que a concorrente tinha apenas ¼ de se sagrar vitoriosa. Existe, com relação a esse ponto, um problema de redação do texto do anteprojeto, mais precisamente no trecho em que afirma que a indenização da chance deve ser calculada "levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada". Na verdade, se a chance fosse concretizada, ela não proporcionaria fração alguma: a vítima teria então obtido a própria vantagem aleatória que pretendia14. O esboço do texto, encaminhado à subcomissão, previa que a "chance deve ser calculada 'como' fração dos interesses", enfatizando que o valor da indenização representará apenas uma parcela da vantagem aleatória pretendida pela vítima. Um terceiro aspecto do texto projetado diz respeito à natureza, patrimonial ou extrapatrimonial, do dano representado pela chance perdida. Ao mencionar que a chance deve ser entendida como uma "fração" da vantagem aleatória que a vítima pretendia obter, o texto ressalta a ligação estreita existente entre esses dois interesses. É por essa razão que a chance se reveste da mesma natureza dessa vantagem aleatória. Assim, por exemplo, se a vítima foi privada da chance de obter um prêmio em dinheiro, essa chance a ser reparada terá natureza de dano patrimonial. Por outro lado, se o concurso em questão tinha caráter puramente honorífico, o dano terá natureza extrapatrimonial. E há hipóteses em que a chance ostentará natureza dúplice. Basta analisar os casos de perda de uma chance médica, em que o paciente foi impedido de receber um tratamento adequado para a sua doença. O interesse do paciente na eventual cura envolve tanto questões patrimoniais quanto extrapatrimoniais, o que se reflete também na chance a ser reparada. Esse elemento do texto é grande importância para uniformizar o entendimento sobre a perda da chance. Evita-se uma confusão encontrada na jurisprudência, que por vezes trata a perda da chance simplesmente como uma nova espécie de dano moral. __________ 1 Faz-se referência ao relatório final da Comissão de Reforma, entregue ao Senado. 2 Cf.  SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 164. 3 Por todos: SILVA, Rafael Peteffi da. Conceito normativo de dano: em busca de um conteúdo eficacial próprio. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 38, 2024, p. 33-107. 4 LE TOURNEAU, Philippe ; Droit de la Responsabilité et des Contrats. 6. ed. Paris: Dalloz, 2006, n° 1305, p. 364. 5 Crim., 3 março 1993, RTD civ. 1995, p. 128, nota P. Jourdain; Civ. 2a, 2 nov. 1994, RTD civ. 1995, p. 128, nota P. Jourdain; Crim., 13 dez. 1995, Bull. crim. 1995, n° 377, p. 1101. 6 "Ao exigir que o prejuízo seja certo, quer-se afirmar simplesmente que ele não deve ser hipotético, eventual. É necessário que o juiz tenha a convicção de que o demandante estaria em uma situação melhor se o réu não tivesse praticado o fato que lhe é imputado", MAZEAUD, Henry; MAZEAUD, Léon; e TUNC, André, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile. 6. ed. t. I. Paris: Montchéstien, 1965, n° 216, p. 268. 7 Cf. também nossa monografia sobre o tema: CARNAÚBA, Daniel. Responsabilidade civil pela perda de uma chance: a álea e a técnica. Rio de Janeiro: GenMétodo, 2013. 8 STJ, AgInt no AREsp 1.737.042/RJ, 3ª Turma, 09/05/2022. 9 STJ, AgInt no AREsp 2.397.705/SP, 2ª Turma, 27/05/2024. 10 STJ, AgRg no REsp. 1.220.911/RS, 2ª Turma, 17/03/2011. 11 STJ, REsp 788.459/BA, 4ª Turma, 08/11/2005. 12 Cf. Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil: A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos. 13 Para uma análise aprofundada do conceito de chance "real e séria": HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 82-103. 14 O problema já havia sido apontado por Rafael Peteffi: Responsabilidade civil por fato da coisa na alteração do Código Civil.
Um dos males na aprendizagem e na reflexão jurídica é saber sobre a fotografia que se vê, mas não saber em que condições ela foi tirada e em que momento estava o contexto em que ocorreu o fato fotografado. Isso prejudica tanto o acadêmico quanto o profissional jurídico, pois passamos a lidar com algo como se fosse uma verdade dada e não construída historicamente na formação de instituições. Isso ocorre com o princípio da territorialidade e seus influxos nas dimensões da responsabilidade civil, segundo o qual as normas brasileiras e jurisdição nacional devem ser aplicadas no Brasil ou em espaço de soberania brasileira, podendo variar em cada contorno de ramo jurídico. O ponto aqui levantado para reflexão é a dimensão histórica de danos e responsabilidade contratual e extracontratual no Brasil, mas que por envolver cidadão ou interesse ingleses ficavam excluídos da jurisdição ordinária brasileira. Sim, uma época em que a responsabilidade civil no Brasil possuía uma jurisdição específica (dita conservadora inglesa) em virtude do lesante ou lesado, assim como em virtude do objeto ou interesse envolvido. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é um ponto inicial. Há uma série de regras relativas à aplicação ou não das normas brasileiras, independentemente da nacionalidade dos envolvidos. O artigo 12 da Lei afirma que é competente a autoridade judiciária brasileira quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação. Igualmente, determina que só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil. Lembremos aqui que a redação original é de 1942. Já o Código Penal, que é originalmente de 1940, afirma que se aplica a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. Mas por que há tanta preocupação nacional com a territorialidade? Por que o Brasil se envolveu tanto em proclamar algo que para os viventes do século XXI é tão óbvio? Talvez porque o óbvio nada mais é do que uma construção cultural e histórica que precedeu à formação de nossa compreensão de realidade jurídica atual. Não faltaram conflitos no passado quanto ao tema, inclusive relativos ao mito de que teria sido o pós-independência do Brasil um momento pacífico. Nessa linha é preciso descortinar. Nem sempre a análise da responsabilidade civil por danos ocorridos no Brasil esteve sujeita à jurisdição ordinária brasileira. As primeiras décadas do século XIX são marcadas por conflitos entre brasileiros e ingleses no âmbito privado, embora fundados em acordos e fixações forjados entre os dois países. Esses conflitos envolviam interesses e situações de responsabilização contratual e extracontratual. Aqui se destaca o Tratado entre Brasil e Inglaterra de 1810, firmado logo após a vinda da família real. Seguiram-se a ele outros Tratados, como o de 1826, relativo à independência e seu reconhecimento. Interligada a esses tratados, advém a Constituição do Império. A Constituição de 1824, em seu artigo 179, possuía dois incisos diretamente afetos ao tema da competência de julgamento. O inciso XVII designava que à exceção das causas que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá foro privilegiado, nem Comissões especiais nas causas cíveis ou criminais. Já o inciso XXV determinou a abolição das Corporações de Ofícios, seus Juízes, Escrivães e Mestres. Havia assim, Juízes próprios das Corporações ou Juízes privados. Entretanto, em relação à Inglaterra, a situação não se procedeu integralmente, ou seja, não houve uma plena assunção de jurisdição relativa a conflitos envolvendo interesses ou cidadãos ingleses. Após a independência, Brasil e Inglaterra firmaram o "Treaty of Amity and Commerce between Great Britain and Brazil", ratificado em Londres em 1827. O Tratado, em razão da extinção das jurisdições particulares, manteve por vias transversas uma jurisdição privativa inglesa, nominada para ser ocupada pelos denominados Juízes Conservadores da Nação Inglesa. O artigo VI do Tratado assim dispunha:  VI. Tendo a Constituição do Império abolido todas as jurisdições particulares, convém-se em que o lugar de Juiz Conservador da Nação Inglesa subsistirá só até que se estabeleça algum substituto satisfatório em lugar d'aquela jurisdição, que possa assegurar igualmente proteção às pessoas e à propriedade dos súditos de Sua Majestade Britânica. (British and Foreing: State Papers. 1826-1827. Great Britain and Brazil. London, Harrison and son, Lancaster Court, Strand, 1828, p. 1013. Access in: 23 fev. 2022)  Estabeleceu-se, em fato, jurisdição inglesa em território brasileiro, sob o verniz de se tratar de jurisdição sob acordo do Império brasileiro. O Tratado excepcionou a Constituição da República até que, um dia, viesse a ser dito que haveria um "substituto satisfatório" para a jurisdição inglesa. Se de um lado há o ditado popular "para inglês ver", de outro deveria haver o ditado popular "para brasileiro esperar". A sociedade brasileira passou a conviver com situações esdrúxulas. O Juiz Conservador inglês arrogava-se a decidir inclusive conflitos entre bêbados ingleses e cidadãos brasileiros. Celeumas e conflitos de responsabilidade civil afetos a interesses ingleses ou cidadão inglês possuíam jurisdição própria, provocando verdadeiro paralelismo normativo. Não se tratou bem de uma invenção nacional. Em verdade, o Brasil herdou o instituto já existente em Portugal e, também, na Espanha. As causas e sentenças relativas aos ingleses eram firmadas a partir de estrutura paralela à jurisdição e às normas brasileiras. Portanto, se um dano ou violação de contrato ocorresse, o juízo competente variaria segundo os envolvidos. Os conflitos no Brasil foram intensos, com uma aversão nacional aos ingleses no século XIX. Há obra belíssima do Ministro Athos Gusmão Carneiro sobre o tema, nomeada "O Juiz conservador da Nação Britânica". Vale aqui a referência:  Anota Dias da Mota, entretanto, que em 1839 o governo inglês teria conseguido que seus súditos, residentes no Brasil, 'que até então iam responder ao júri, tivessem um privilégio para não serem julgados senão pelo seu tribunal especial e não pelo júri' (Atitudes Inglesas na História do Brasil, 1941, ed. Labor, p. 53) (Carneiro, Athos Gusmão. O juiz conservador da Nação Britânica. In: Revista Inf. Legisl., Brasília, vol. 14, n. 56, out/dez. 1977, p. 245)  O Brasil manteve os Juízes Conservadores até 1844. Os efeitos e traumas sociais e culturais perseveraram durante décadas. O estabelecimento da prevalência das normas e jurisdição do Brasil não é, portanto, um evento fortuito no cenário jurídico, a desaguar no princípio da territorialidade. Talvez, inconscientemente, ainda tenhamos presente o cenário contextual no qual Tratados e interesses paralelos excepcionavam a própria Constituição Brasileira. A jurisdição brasileira somente galgou ser efetivamente competente para julgar matérias de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, dentre outras, após vinte anos da primeira Constituição pátria.
No mercado financeiro, há um número crescente de investidores/aplicadores pessoas físicas. Existem hoje mais de 5 milhões de pessoas físicas investindo na bolsa de valores. Em 2018 apenas 700.000 pessoas físicas investiam na bolsa de valores. Em busca de maiores ganhos esses investidores apostam em um mercado de renda variável, onde não é garantido o capital investido e muito menos as rendas subjetivamente esperadas por ele. Este mercado envolve diversos instrumentos financeiros complexos, como derivativos, opções, swaps, onde o risco de perdas está sempre presente; ao contrário do mercado conservador de renda fixa, onde, embora os ganhos esperados sejam menores; tanto capital como a remuneração são assegurados; e contam também, diferentemente do mercado de renda variável de produtos financeiros complexos, com a cobertura do fundo garantidor de natureza privada para cada indivíduo e instituição financeira até R$250.000,00 em caso de eventual liquidação da instituição financeira. Assim, o investidor pode contratar produtos financeiros complexos, entendidos como aqueles em que há alto risco de perdas, sem garantia de qualquer rendimento ou retorno do capital aplicado, que associam sua performance, em um único instrumento contratual, a dois ou mais ativos de natureza financeira. Considerados estes riscos, a lei portuguesa chega inclusive a obrigar que tais produtos sejam identificados expressamente junto aos investidores como produtos financeiros complexos.1 Como se tratam de produtos financeiros complexos emerge naturalmente o problema de como informar adequadamente este investidor, independentemente de ser o mesmo qualificado ou não como consumidor para que possa tomar uma decisão esclarecida quanto a contratá-los ou não. O importante, nessa seara, é a informação quanto aos riscos de perda financeira inerentes a produtos dessa natureza, pois como a doutrina tenho defendido  defendido exaustivamente, o que é tutelado nesses casos é a liberdade de escolha.2 Dai que para o exercício dessa liberdade a informação adequada, inclusive, na forma de recomendações e advertências passa a ser fundamental. A questão que se coloca aqui é saber se existe para esses investidores pessoas físicas que 'consomem' esses produtos financeiros complexos a proteção do CDC e responsabilidade civil das instituições financeiras ante a perdas econômicas nesses investimentos. A jurisprudência do STJ tem caminhado na direção de não socorrer esse investidor no caso de perdas de produtos financeiros complexos, sustentando que 'no caso de aplicação em fundo de investimentos de alto risco, por investidores qualificados, experientes em aplicações financeiras, não há que se reconhecer direito a serem imunes a rendimentos significativamente menores em período de perdas gerais no setor, à invocação do dever de informar . sob a alegação de contradição entre os prospectos (...) e os regulamentos do fundo de investimentos'.3 Em outro julgado, o STJ entendeu que "o consumidor buscou aplicar recursos em fundo agressivo, objetivando ganhos muito maiores do que os de investimentos conservadores, sendo razoável entender-se que conhecia plenamente os altos riscos envolvidos em tais negócios especulativos, mormente quando se sabe que o perfil médio do consumidor brasileiro é o de aplicação em caderneta de poupança, de menor rentabilidade e maior segurança".4 Suitability e direito à informação dos investidores: Não obstante, esses investidores não merecerem a tutela do CDC, o mercado financeiro, sobretudo, a partir da crise econômica mundial de 2008 tem evoluído em direção a maior disponibilidade de informações em prol da proteção dos interesses dos investidores. Essa evolução tem como marca a busca constante por maior transparência nas operações entre as instituições financeiras, corretoras de valores mobiliários e os investidores em geral, independente das suas qualificações, diferenciando-os do investidor qualificado e profissional.   Atualmente a CVM, através da instrução normativa 30/21, é clara ao determinar uma avaliação pormenorizada do perfil do cliente, inclusive, se este "dispõe de conhecimento necessário para compreender os riscos da operação". Tais determinações, se violadas, podem resultar claramente na responsabilização civil do agente/corretora em caso de perdas financeiras ocasionadas ao cliente em face da desídia no cumprimento do dever de transparência. Nessas situações de descumprimento do dever de transparência, a própria Bolsa de Valores tem "condenado" esses agentes que acabam por induzir em erro os investidores, que tomam decisões equivocadas, tendo como consequência graves perdas. Foi o que ocorreu no julgamento de uma representação em face de um banco e de uma DTVM - Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários que, não obstante tenham informado, que o investidor poderia sair do investimento a qualquer tempo, enquanto no instrumento de subscrição, esse resgaste a qualquer tempo era vedado; o que importou em graves perdas financeiras para os investidores.5 A instrução normativa 30/21 da CVM veda expressamente que seja recomendado qualquer produto financeiro ao cliente que seja inadequado ao seu perfil. Neste sentido passa a ser fundamental que o perfil de investidor, que também é chamado pelas instituições financeiras de Suitability, seja identificado  a partir de um questionário, que capta informações sobre grau de tolerância ao risco do cliente. Neste sentido, são 3 os perfis de investidor: Conservador, aquele que não quer correr risco de perder o dinheiro aplicado, prefere menor rentabilidade a ganhos maiores; Moderado, não abre mão da segurança; aplica maior parte dos seus recursos em aplicações de baixo risco; e coloca uma pequena parte em investimentos de risco em  busca de maior rentabilidade; Agressivo, está sempre em busca de maior rentabilidade, por isso aceita correr maiores riscos. O art. 2º da resolução CVM 30/21 determina claramente que as Instituições financeiras devem se abster de recomendar investimentos em desacordo com o perfil do cliente.6 O art. 3º da mesma resolução impõe expressamente que os agentes do mercado mobiliário verifiquem:  O produto, serviço ou operação é adequado aos objetivos de investimento do cliente; A situação financeira do cliente é compatível com o produto, serviço ou operação;  O cliente possui conhecimento necessário para compreender os riscos relacionados ao produto, serviço ou operação.7 Existe, nos termos desta instrução normativa, não apenas um dever simples  de informação, mas um dever de aconselhamento8 ao cliente com emissão de um juízo de valor, no sentido de protegê-lo contra assumir  riscos totalmente  em desacordo com o seu perfil. Verificada uma perda do cliente com um produto financeiro complexo, a primeira questão que deverá ser observada é se o investimento oferecido ao cliente está em sintonia com o seu perfil, com o questionário que e próprio respondeu. Se se trata de um cliente de perfil conservador e suas perdas ocorreram em um produto de grandes riscos, fica evidente o descumprimento das regras de suitability e a instituição financeira pode sim ser responsabilizada a recompor as perdas. A questão do perfil do cliente torna-se fundamental para os chamados investidores do varejo, nos termos da instrução normativa 30 da CVM; já que para os investidores qualificados (aqueles com investimentos acima de R$1 milhão) e profissional (com investimentos acima de R$10 milhões) as instituições financeiras são dispensadas de colher o perfil dos mesmos ante a presunção que tem são experientes e tem informações suficientes dos riscos das operações. Com relação aos investidores qualificado pessoa física ou jurídica, no próprio texto das minutas contratuais, que tem por objeto produtos financeiros complexos, já é deixado claro cláusulas  que atestam que "o cliente é experiente e tem pleno conhecimento do risco da operação"; ou que, "tem conhecimento do grau alto de complexidade da operação contratada"; ou ainda "que está familiarizada com as operações que são objeto deste contrato e possuem conhecimento amplo e específico sobre as regras vigentes no mercado." A própria Anbima reconhece essa maior assimetria de informações e, portanto, vulnerabilidade,  em relação ao investidor de varejo e recomenda maior cautela dos agentes financeiros na operação com os mesmos: "é notável que o grau de assimetria informacional incorrido pelos participantes de mercado não é uniforme. Por exemplo, investidores institucionais, que operam regularmente nos mercados e cuja capacidade técnica é avaliada por autoridades de regulação e supervisão, tem, via de regra, maior capacidade de avaliar eventuais assimetrias e conflitos de interesses que investidores individuais de varejo." 9 Na perspectiva dos tribunais, pode-se dizer, a partir dos próprios julgados do STJ, tem se feito uma separação entre investidores do varejo, e investidores qualificados e profissionais. Quando se trata destes últimos, tem-se entendido que "são experientes em aplicações"; ou que é "razoável entender se conhece plenamente os altos riscos envolvidos nos negócios especulativos." Os casos de perdas que podem envolver a aplicação do CDC e responsabilização civil das instituições financeiras estão mais relacionados ao investidor de varejo. Neste particular, o STJ tem levado muito em consideração o cumprimento do dever de informação da instituição financeira: "A gestão fraudulenta e a omissão do dever de informação por parte da recorrente, considerando como fator determinante para a causação do prejuízo o descumprimento do dever da correta informação na hipótese em exame, ultrapassa a razoabilidade prevista no art. 14, §1º, inciso II, do CDC, a justificar a excludente do nexo de causalidade, ainda que se trate de aplicação de risco." 10 Em outro caso, o STJ responsabilizou civilmente a instituição financeira a indenizar todos as perdas sofridas pelo  consumidor, que, confiando no banco, com o qual mantinha longa relação, aplicou recursos em fundo de renda variável, ao invés de renda fixa, conforme seu perfil conservador sugeria: "A manutenção da relação bancária entre a data da aplicação e a manifestação da insurgência do correntista não supre seu déficit informacional sobre os riscos da operação financeira realizada a sua revelia. Ainda que indignado com a utilização indevida do seu patrimônio, o consumidor (mal informado) poderia confiar, durante anos, na expertise dos prepostos responsáveis pela administração de seus recursos, crendo que, assim como ocorria com o CDB, não teria nada a perder ou, até mesmo, que só teria a ganhar. A aparente resignação do correntista com o investimento financeiro realizado a sua revelia não pode, assim, ser interpretada como ciência em relação aos riscos da operação. Tal informação ostenta relevância fundamental, cuja incumbência cabia ao banco, que, no caso concreto, não demonstrou ter agido com a devida." 11 Quanto a gestão dos recursos do investidor por parte das instituições financeiras, o entendimento jurisprudencial aponta no sentido que a obrigação do gestor é de meio e não de resultado. Entretanto, em caso de manifesta e comprovada má gestão dos recursos do investidor, por parte da instituição financeira, esta pode ser obrigada a indenizar as perdas experimentadas por aquele: "O administrador de fundo de investimento não se compromete a entregar ao investidor uma rentabilidade contratada, mas de apenas de empregar os melhores esforços - portanto, uma obrigação de meio - no sentido de obter os melhores ganhos possíveis frente a outras possibilidades de investimento existentes no mercado. No entanto, o STJ afirma que a má-gestão, consubstanciada pelas arriscadas e temerárias operações com o capital do investidor, ou a existência de fraudes torna o administrador responsável por eventuais prejuízos." 12 Já em relação ao investidor qualificado13 e o profissional14 assim o são exatamente por aplicarem maiores somas no mercado; e, sobretudo, por deterem mais conhecimento para avaliarem por si próprios os riscos envolvidos. Mesmo assim não basta ser investidor de varejo para se qualificar como consumidor; se ele investe abaixo de R$1 milhão, mas o faz com habitualidade ele "perde" a condição de "consumidor" exatamente por buscar de forma continua lucros nessas operações, motivo pelo qual presume que  ele conheça razoavelmente os riscos de perdas envolvidos nessas operações. Diferente é o investidor de varejo eventual, não habitual; que não tem o costume de realizar esses investimentos e o faz muito raramente. Neste caso, poderá ser qualificado perfeitamente como o consumidor destinatário final do art. 2º do CDC, exatamente por conta da falta da habitualidade na busca desses ganhos financeiros. Neste caso, esse investidor eventual é consumidor e deve merecer, portanto, maior atenção tanto do gerente do banco quanto das corretor de valores mobiliários, sobretudo, no tocante ao direito à informação, nos termos do art. 6º, III, do CDC que determina deixá-lo bem informado em linguagem clara e adequada sobre os riscos envolvidos na operação. Conclusão: A partir da crise econômica de 2008 e posteriores regulamentações da CVM, sobretudo, a consolidada através da instrução normativa 30/21, pode-se dizer que as instituições financeiras devem agir sempre com máxima cautela em relação aos investidores do varejo, ainda na hipótese que estes possam não ser qualificados como consumidores, nos termos do art. 2º da lei 8078/90. A regra de ouro da suitability  vem  exatamente nesta direção, determinando-se não só um maior grau de transparência e informações nas operações envolvendo o investidor do varejo, como também com um dever claro de aconselhamento a não contratar operações que estejam em desacordo com o perfil do investidor. Ao aceitar a contratação de produtos financeiros complexos, sem se atentar para o perfil desse investidor, a instituição financeira pode sim responder por todas as perdas financeiras do cliente. Entretanto, se o investidor pessoa física opera com valores acima de R$1 milhão, poderá ser tratado como investidor qualificado ou profissional, onde se presume o seu conhecimento e experiência para contratar produtos financeiros complexos, isentando-se, nestes casos, a instituição financeira de responsabilização por perdas em face da natureza das operações, que são sempre de alto risco. __________ 1 Portugal, Decreto-Lei 211/A/2008 de 3 de novembro, 1 - Os instrumentos financeiros que, embora assumindo a forma jurídica de um instrumento financeiro já existente, têm características que não são directamente identificáveis com as desse instrumento, em virtude de terem associados outros instrumentos de cuja evolução depende, total ou parcialmente, a sua rendibilidade, têm que ser identificados na informação prestada aos aforradores e investidores e nas mensagens publicitárias como produtos financeiros complexos 2 KHOURI, Paulo R. R A. O Direito do Consumidor na Sociedade da Informação, Almedina, Coimbra, 2022, p. 132. 3 STJ, REsp 1.214.318/RJ, rel. min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 12/6/2012, DJe de 18/9/2012. 4 REsp 799.241/RJ , relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/8/2012, DJe de 26/2/2013. 5 "os cotistas teriam sido induzidos a acreditar que seria possível o resgate das cotas dos fundos [mas] a informação sobre a impossibilidade de resgate teria sido devidamente introduzida no instrumento de subscrição de cotas assinado por eles. Sobre esse ponto, o boletim de subscrição de fato vedava o resgate de cotas, mas é incontroverso nos autos e admitido pela própria defesa dos [controladores da DTVM e do Banco], o uso da palavra "resgate" em seu sentido comum no processo de distribuição das cotas, tendo como objetivo informar aos potenciais subscritores a possibilidade de "sair do investimento" por meio do mecanismo de liquidez oferecido. Este procedimento, de induzir o investidor a acreditar que teria garantido o direito de saída de um investimento em um fundo fechado a qualquer momento, é justamente o que configura o ardil utilizado pelos acusados para induzir o investidor ao erro e não o fato das cotas terem sido ou não resgatadas" CVM, Processo Administrativo Sancionador n. RJ 2014/12081, voto do Relator em 18.06.2019. 6 Art. 2º As pessoas habilitadas a atuar como integrantes do sistema de distribuição e os consultores de valores mobiliários não podem recomendar produtos, realizar operações ou prestar serviços sem que verifiquem sua adequação ao perfil do cliente. 7 Artigo 3º. Resolução CVM 30/2021 8 Neste sentido, KHOURI, Paulo R. R A. O Direito do Consumidor na Sociedade da Informação, Almedina, Coimbra, 2022, p. 124 9 Disponível aqui. 10 STJ, AgRg no Ag n. 1.140.811/RJ, rel. min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 23/2/2016, DJe de 26/2/2016. 11 STJ,  REsp n. 1.326.592/GO, rel. min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 7/5/2019, DJe de 6/8/2019. 12 REsp n. 1.724.722/RJ 13 Ssão os agentes autônomos de investimentos, administradores de carteira, analistas e consultores de valores imobiliários, com certificados aprovados e pela CVM ou investidores com mais de R$1milhão em aplicações financeiras, que assim se declarem.  14 Bancos, corretoras, seguradoras, fundos de pensão, fundos patrimoniais, fundos de Investimentos de acordo com a classificação da CVM, são investidores institucionais/profissionais, assim como pessoas com mais de R$10milhões em aplicações financeiras que assim se declarem. 
Os avanços científicos nas áreas da Oncologia e da Genética culminaram na consolidação do aconselhamento oncogenético como importante estratégia personalizada de rastreamento e prevenção diante da possibilidade de surgimento da doença oncológica. Como premissa dessa consolidação, recomenda-se que tal aconselhamento deva ser realizado por um especialista, tendo em vista que ele é o mais capaz tecnicamente de solicitar o teste genético mais adequado e interpretar os resultados advindos da leitura do conteúdo de natureza genética. O aconselhamento genético em Oncologia é, antes de tudo, uma revisão criteriosa do histórico familiar e pessoal de câncer de cada paciente. O primeiro passo do aconselhamento consiste na construção do heredograma (representação gráfica capaz de detalhar o histórico familiar), que, através da descoberta de padrões de acometimento de câncer, permite identificar aqueles indivíduos que necessitam de testagem genética1. Esses padrões, como o diagnóstico de câncer em idade mais precoce que a habitual e a identificação de diversos casos da mesma neoplasia em parentes próximos, sugerem predisposição hereditária a esta doença.3 Caso seja recomendado seguir com a testagem, o seu resultado pode identificar variantes genéticas, também conhecidas como mutações, que colocam o aconselhado em um patamar de risco mais elevado para desenvolver determinadas neoplasias, o que afetaria sobremaneira a sua saúde.2 Assim, algumas pessoas com mutações podem ter benefícios significativos com o aconselhamento e a testagem genética, uma vez que se tornam candidatas a protocolos personalizados de rastreamento e prevenção de câncer que, em última análise, podem reduzir drasticamente (90% em alguns cenários) o desenvolvimento de determinadas neoplasias ao longo da vida.4 É importante salientar que os testes permitem a identificação de mutações genéticas relacionadas a um aumento da probabilidade do aparecimento da doença neoplásica e motivam a elaboração de estratégias adequadas a cada caso. É justamente essa característica hereditária do câncer, alcançada pela avaliação feita pelo especialista, que pode justificar a opção por estratégicas profiláticas ou de prevenção, como cirurgias para retirada de órgãos ou uso de medicamentos redutores de risco, além de exames apropriados mais precoces e mais frequentes para fins de rastreamento.3 A popularização dos testes genéticos (voltados para Oncologia e para outras finalidades) é cada vez mais identificada como um fenômeno global, de modo que, em alguns países, pessoas buscam sua realização sem qualquer tipo de orientação especializada. Esse cenário conduz à uma reflexão sobre as consequências (pessoais e sociais) que o acesso desorientado à informação genética pode trazer. No Brasil, não contamos com lei específica disciplinando criteriosamente o acesso, o uso e o manejo desse tipo de informação, em especial, com foco no problema da discriminação genética. A lei 13.709/18 (LGPD) estipulou regras sobre uso, proteção e transferência de dados pessoais, o que abrange, também, os dados genéticos, categorizados como sensíveis. A norma estabeleceu que o uso de dados dessa natureza está condicionado à chamada autodeterminação informativa, ou seja, à autorização expressa do seu titular, mas não trouxe disposições específicas sobre a informação genética. As motivações para o aumento do interesse social pelos testes genéticos parecem ser a incessante busca do ser humano por desvendar o que não conhece; o medo de ser surpreendido pelo que possa não ter controle e, ainda, a possibilidade real de ter acesso a mecanismos que possam prever/conter o desenvolvimento de doenças no futuro. Não há, de fato, nenhum problema nessas motivações. Compete mesmo à ciência propiciar alternativas para o alargamento e a qualidade de vida, buscando promover a saúde e o bem-estar de todas as pessoas.   As questões que ascendem a esse contexto estão, na verdade, na forma com que essa possibilidade pode ser manejada, já que o acesso e o uso não cuidadosos desse tipo de conhecimento podem criar leituras equivocadas, sentimentos de medo, desespero e vulnerabilidade quanto à proteção sobre as informações sensíveis do ser humano. O aconselhamento genético também está submetido a regras éticas e jurídicas, ainda que no país não exista legislação especializada, mas previsões normativas pertinentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a não discriminação genética é disciplinada por lei, que definiu as diversas situações em que a informação genética pode ser solicitada, acessada ou integrada a determinadas relações contratuais, como as de seguro, trabalho, prestação de serviços de saúde e outras.5 O direito à não discriminação genética no Brasil é advindo do sistema de proteção a garantias e direitos fundamentais, alicerçado pela dignidade da pessoa humana. Disso resulta que o processo de aconselhamento oncogenético (como em todas áreas do aconselhamento) é conduta especializada que deve ser guiada pela ética e pela responsabilidade, já que, se feito inadequadamente, pode causar dano ao paciente aconselhado. Alguns desafios nesse cenário merecem destaque. São poucos profissionais habilitados a fazer aconselhamento genético no Brasil (e também em outras partes do mundo), de modo que a maioria trabalha em clínicas de Oncologia ou hospitais que tenham a especialidade e consultórios privados. Há alguns centros no SUS, normalmente, conectados a serviços prestados por universidades públicas. Recentemente, a permissão do uso da telemedicina possibilitou relevante mudança na forma de se poder realizar o aconselhamento genético. Isso tem propiciado o aumento do acesso ao aconselhamento por muitos pacientes, tendo em vista que a maioria dos especialistas está concentrada nos grandes centros urbanos. Se houver opção pela teleconsulta, será possível encaminhar o teste genético pelo correio para que o paciente possa fazer a coleta da saliva. A coleta é feita em casa pelo próprio paciente, que vai encaminhar de volta o recipiente com a saliva coletada para que o teste seja realizado.6 O uso da telemedicina é orientado pela perspectiva da ética e da responsabilidade do profissional, o que faz com que a teleconsulta para aconselhamento genético também deva ser guiada pelos mesmos cuidados que toda relação médico-paciente demanda. A consulta de aconselhamento deve contar com o máximo possível de informações relacionadas ao histórico oncológico, tais como: Se já houve diagnóstico de câncer, o resultado da biópsia, o laudo anatomopatológico, o laudo da imuno-histoquímica e, se realizados, os exames genéticos, além das informações sobre os parentes. As informações mais importantes dos familiares se referem ao órgão acometido pela doença oncológica incialmente e, ainda que a doença tenha se espalhado, é importante informar onde ela começou, além de apontar, também, aproximadamente, a idade com que esse parente teve o diagnóstico.1 A obtenção do consentimento informado, assim como em toda relação médico-paciente, é parte integrante do aconselhamento genético. Compete ao aconselhador preservar as informações genéticas do aconselhado, resguardando sua privacidade, e conduzindo a consulta cuidadosamente, em especial, para acolher o indivíduo que possua diagnóstico de predisposição hereditária a câncer. O manejo da informação obtida por meio do aconselhamento está diretamente relacionado à necessária garantia do cuidado, apregoado pelas conhecidas diretrizes da matriz bioética principialista.7 Lidar com o acesso ao conteúdo do DNA no processo de aconselhamento oncogenético é também não esquecer que a identidade de cada pessoa não pode ser, exclusivamente, contingenciada pelo conteúdo do seu código genético. No âmbito da responsabilidade, cabe a observação sobre a natureza da obrigação envolvida. Estamos diante de uma obrigação de meio e não de resultado, já que a genética dialoga com o espectro das probabilidades, não se podendo, na maioria das situações, estabelecer um cálculo exato ou uma garantia inequívoca de que a doença vai se manifestar no futuro. Essa premissa deve ser expressamente esclarecida, pelo profissional aconselhador, durante a obtenção do consentimento. Em casos de violação (não justificada por previsão legal ou decisão judicial) da confidencialidade e da privacidade da informação acessada, é possível falar em responsabilidade do profissional. Dados genéticos são dados pessoais sensíveis e não podem ser cedidos a terceiros, mantendo-se, conforme a LGPD, a regra da autodeterminação informativa. Atualmente, indivíduos podem ter acesso aos testes genéticos desenvolvidos para investigar predisposição hereditária a câncer em 2 contextos distintos: contexto clínico  - durante uma consulta médica na qual se deseja realizar o diagnóstico de alguma síndrome genética de predisposição a neoplasias, demandando, portanto, um pedido médico; contexto recreativo - através da realização de um teste desenvolvido diretamente ao consumidor, que dispensa a solicitação por um profissional médico, já que está disponível para compra em farmácias e supermercados. Os testes utilizados dentro do contexto clínico são, em sua maioria, realizados dentro de laboratórios de análises clínicas com certificações nacionais e internacionais de qualidade. Neles, os testes são desenvolvidos seguindo protocolos rigorosos de validação clínico-laboratoriais, avaliando genes que sabidamente estão associados ao risco de desenvolvimento de câncer e os resultados são reportados com base em diretrizes internacionais de classificação de variantes genéticas. Portanto, os laudos são padronizados e permite a reprodutibilidade e compreensão dos achados genéticos em qualquer parte do mundo, trazendo informações valiosas para a cuidado dos pacientes e seus familiares.   Por outro lado, a maioria dos testes diretos ao consumidor tem objetivo recreativo, analisando de forma superficial diversas características do indivíduo, como ancestralidade, metabolismo e predisposição a determinadas doenças, incluindo o câncer. Em geral, não realizam o sequenciamento completo de todos os genes envolvidos na predisposição hereditária ao câncer e, portanto, não podem ser utilizados como substitutos dos testes realizados dentro do contexto clínico. Por fim, reitera-se que o aconselhamento genético em Oncologia é estratégia essencial para o contexto familiar e pessoal de determinados pacientes, cabendo sempre ao profissional aconselhador agir com ética, atentando-se aos cuidados que devem ser direcionados a cada caso concreto; alteridade, guiando-se pelo sentimento de empatia; e responsabilidade, mantendo-se alinhado à construção adequada da relação médico-paciente. __________ 1 Guindalini, R. Como é a consulta de aconselhamento genético? Vídeo. Youtube. 2 Meirelles, AT; Guindalini R. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: a relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: Freire de Sá MF; Meirelles AT; Souza IA; Nogueira RHP; Naves BTO, editores. Direito e medicina: interseções científicas. Belo Horizonte: Conhecimento; 2021. p.155-178. 3 Meirelles, AT; Guindalini R. Oncogenética e Estatuto da Pessoa com Câncer: fundamentos bioético-jurídicos. Revista Bioética, v.30 n.4 Brasília Out./Dez. 2022. 4 Dancey JE; Bedard PL; Onetto N; Hudson TJ. The genetic basis for cancer treatment decisions. Cell. 2012 148(3):409-20. DOI: 10.1016/j.cell.2012.01.014. 5 United States. The genetic information nondiscrimination act of 2008. U.S. Equal Employment Opportunity Commission. 2008 Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2024. 6 Guindalini, R. Onde encontro um profissional para realizar aconselhamento genético? Vídeo. Youtube. 7 Beauchamp TL; Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 1979.
terça-feira, 11 de junho de 2024

Da erosão do elemento nexo causal

O esforço feito quando se inicia a análise do "entremado mundo del nexo causal" 1 decorre não apenas da complexidade do tema mas igualmente pelo fato de a doutrina não ter encontrado, no Judiciário, ouvintes atentos, pois o que está havendo é uma oscilação entre as diversas concepções da relação causal, ao sabor do que parece mais adequado ao caso concreto, o que compõe um cenário de fluidez na aferição do nexo causal - é o que Andrea Violante2 denomina de "causalidade flexível". O nexo causal é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão, e o dano; em outras palavras, é o vínculo entre dois eventos, apresentando-se um como consequência do outro. Dupla função tem o nexo causal: Permite determinar a quem se deve atribuir um resultado danoso; também, é indispensável para verificar a extensão do dano, pois serve como medida da indenização. Como já foi asseverado, a prova da culpa, em outros tempos, freava o impulso das demandas de reparação; uma vez demonstrada a culpa, as Cortes consideravam presentes os elementos necessários à responsabilização, sendo a prova do nexo, portanto, mera formalização, por vezes solucionada de forma empírica no próprio caso concreto. A responsabilidade objetiva, contudo, veio alterar o posicionamento do Judiciário, exigindo atenção especial no que concerne ao nexo causal, porquanto a interrupção deste consiste em um dos únicos caminhos para o réu não precisar indenizar. Desta forma, não apenas a culpa teve a erosão de seu filtro como ainda, nas ações que envolvem a responsabilidade objetiva, os olhares voltaram-se para o nexo causal. Tanto é verdade, que a responsabilização, nos casos de responsabilidade objetiva, "acaba por traduzir-se no juízo sobre a existência de nexo de causalidade entre fato e dano", decidindo o Judiciário, com certa ampliação, que "o nexo causal é a primeira questão a ser enfrentada na solução de demandas envolvendo responsabilidade civil e sua comprovação exige absoluta segurança quanto ao vínculo entre determinado comportamento e o evento danoso". 3 Embora se reconheça a erosão do nexo causal, à semelhança do que ocorreu com o exame da culpa, não se pode tratar daquele sem mencionar as teorias que o revelam ou que assim o deveriam fazer. A primeira a se tratar é a da equivalência das condições; é, pois, a mais antiga e a mais elementar. Segundo essa teoria, o dano não teria existido se cada uma das condições não se tivesse verificado; dito de outro modo, a equivalência das condições "aceita qualquer das causas como eficiente. A sua equivalência resulta que, suprimida uma delas, o dano não se verifica" 4; também é chamada de conditio sine qua non. Aplicada no Direito Penal (art. 13 do Código Penal brasileiro), em que não se verificam os efeitos expansionistas dessa teoria, uma vez que, se faltar tipicidade da conduta, não haverá crime; no entanto, é inaplicável na esfera da responsabilidade civil, porque, como já foi ponderado, conduziria a uma linha infindável de responsáveis já que é inexistente, na órbita civil, o princípio da tipicidade. A segunda teoria é a da causalidade adequada, criada por Von Bar, mas desenvolvida por Von Kries, na qual a causa5 de evento é aquela que teve uma interferência decisiva na produção do dano. Preocupa-se, neste sentido, com a causa mais apta a produzir o resultado. A causalidade adequada parte "da observação daquilo que comumente acontece na vida e afirma que uma condição deve ser considerada causa de um dano quando, segundo o curso normal das coisas, poderia produzi-lo. Esta condição seria a causa adequada do dano, as demais condições seriam circunstâncias não-causais".6 Em outras palavras, é preciso que o fato violador da personalidade alheia tenha atuado como condição concreta do dano e que em abstrato o fato seja uma causa adequada desse dano; isto é, o autor do dano só resta obrigado a reparar danos que não teriam ocorrido sem essa violação e que, se se abstraísse a referida violação, seria de se prever que não se teria produzido o dano.7 A causalidade adequada leva em conta uma situação abstrata e pautada em um princípio de normalidade; dito de outro modo, só serão imputadas ao agente as consequências que, em um determinado momento histórico, e segundo o estado da ciência e da técnica, são identificadas como consequências normais do comportamento do réu.8 A fim de constatar se a causa é efeito normal do dano, deve-se questionar se a relação de causa e efeito sempre existiu em casos daquela espécie ou se foi a resposta apenas naquele caso, por força de circunstâncias específicas. Apenas na primeira hipótese é que se entende a causa como adequada para produzir o dano.9 Por certo não faltaram críticas a essa teoria, pelo fato de existir uma incerteza inerente para as avaliações de normalidade e de probabilidade, uma vez que "probabilidade não é certeza".10 Em outras palavras, não basta, então, que um fato seja condição de um evento: é preciso que se trate de uma condição tal que, normal ou regularmente, provoque o mesmo resultado - isso é chamado de juízo de probabilidade. Para Mário Júlio de Almeida Costa11, o critério preferível neste prognóstico de adequação abstrata é o que atende às circunstâncias conhecidas à data da produção do fato, por uma pessoa normal, como àquelas conhecidas do agente. Por exemplo, João agride Pedro com um pequeno encontrão, e Pedro acaba morrendo, pois teve uma grave lesão craniana. A agressão de João não é, em princípio, adequada para colocar em perigo a vida de Pedro; no entanto, se a deficiência de Pedro era conhecida de João ou se João tinha a obrigação de conhecê-la, já existirá um nexo de causalidade adequada entre a agressão e o óbito. Tal teoria afirma que somente poderão ser levadas em consideração aquelas consequências, não completamente estranhas, que, segundo a experiência, podem ser consideradas como possíveis de semelhante feito. Não interessa o conhecimento ou a previsão pessoal do responsável do dano, mas sim, a apreciação feita segundo a experiência média de um julgador ou de um observador perspicaz, para que, no momento de ocorrer o fato gerador da responsabilidade, sejam conhecidas todas as circunstâncias, e não apenas as notórias (prognóstico objetivo ulterior).12 Paulo de Tarso Sanseverino13 comenta que, na prática, o conceito de causa adequada gera dificuldades, ainda mais quando o fato apresenta uma multiplicidade de causas, restando difícil afirmar qual destas seria a causa mais adequada; opta a doutrina pelo conceito negativo, ao estabelecer a causa inadequada. A terceira teoria é a da causalidade eficiente para a qual as condições que concorrem para um resultado não são equivalentes, existindo sempre um antecedente que, em virtude de um intrínseco poder qualitativo ou quantitativo, é eleito como a causa do evento. Para essa teoria, o juízo da causalidade não se daria em abstrato, mas em concreto, reconhecendo-se qual, dentre as causas, foi a mais eficiente na produção do dano. Defendiam essa teoria Birkmeyer, Stoppato e Köhler, porém nunca chegaram a um acordo acerca do que representava, com uma margem de certeza, critérios mais ou menos objetivos que permitissem selecionar, entre as diversas causas do dano, aquela que teve o poder intrínseco de produzi-lo no caso concreto.14 Em meio às críticas, alcançou papel de destaque a quarta teoria que é a da causalidade direta ou imediata, a qual considera como causa jurídica apenas o evento que se vincula diretamente ao dano, sem a interferência de outra condição sucessiva. Todavia, ela suscita ainda mais discussões intrínsecas, pois há quem defenda que é esta a adotada pelo Código Civil brasileiro, mas há quem a refute. Anderson Schreiber15 identifica no art. 403 do Código Civil brasileiro a expressa previsão da teoria da causa direta e imediata, uma vez que esse artigo refere que: "Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual". (Grifou-se). O autor ainda comenta que, a despeito do termo inexecução vir expresso no artigo, esta teoria também se estende à responsabilidade extracontratual.16 Da mesma forma pensa Agostinho Alvim17, para quem a escola que melhor explica o dano direto e imediato é a que julga importante a necessariedade da causa. Ocorre que o legislador, no art. 403 do CC, recusou-se a sujeitar o autor do dano a todas as consequências do seu ato, principalmente quando já não ligadas diretamente àquele. Para Agostinho Alvim18, o legislador está certo, pois não é justo que o autor do primeiro dano responda de forma ilimitada. Em contrapartida, Paulo de Tarso Sanseverino19 afirma que: "ao contrário do Código Penal, que, expressamente, adotou a teoria da equivalência dos antecedentes, o Código Civil brasileiro de 1916, seja no art. 159 (CC/2002, art. 186), seja no art. 1.060 (CC/02, art. 403), não se inclinou por nenhuma das teorias. Aliás, a maioria das legislações opta por não se filiar a nenhuma teoria especial". Sanseverino, de encontro com o pensamento de Schreiber, pontifica que "na doutrina brasileira, predomina o entendimento de que, no plano da responsabilidade civil, a teoria da causalidade adequada é a que melhor se aplica. (...) O STJ20 já teve oportunidade de apreciar, em diferentes julgamentos, casos envolvendo a relação de causalidade, tendo manifestado sua preferência pela teoria da causalidade adequada". Raimundo Gomes de Barros21 igualmente entende que a teoria da causalidade adequada, seja a responsabilidade subjetiva ou objetiva, é a que melhor soluciona os problemas em matéria de responsabilidade civil. Sérgio Cavalieri Filho22 também defende tal posicionamento quando aduz que "em sede de responsabilidade civil, nem todas as condições que concorrem para o resultado são equivalentes (como no caso da responsabilidade penal), mas somente aquela que foi a mais adequada a produzir concretamente o resultado". E, sobre o atual art. 403 do CC de 2002, antigo art. 1.060 do CC de 1916, o referido autor destaca: "com base no art. 1.060 do Código de 1916, nossos melhores autores - a começar por Aguiar Dias - sustentam que a teoria da causalidade adequada prevalece na esfera civil". Comenta que: A expressão 'efeito direto e imediato' não indica a causa cronologicamente mais ligada ao evento, temporalmente mais próxima, mas sim aquela que foi a mais direta, a mais determinante segundo o curso natural e ordinário das coisas. Com frequência a causa temporalmente mais próxima do evento não é a mais determinante, caso em que deverá ser desconsiderada. O problema da causalidade, então, não restou resolvido, porquanto a teoria da causa direta e imediata se apresentou excessivamente restritiva - não se pode negar que há uma responsabilidade também por danos causados de forma indireta e mediata. Pense-se no caso de uma pessoa atropelada que tem os seus pertences furtados: Por certo que o lesante deverá ressarcir o valor dos pertences, ainda que causa indireta do ato ilícito. Da mesma forma assegura Fernando Noronha23 para quem a causalidade necessária (causa direta e imediata) restringe demais a obrigação de indenizar, porque significa muito rigor exigir que uma condição seja não só necessária, mas também suficiente para juridicamente ser considerada causa. A causa direta e imediata era um potente filtro de ressarcibilidade, mas ocasionava injustiças, sendo necessário desenvolver, portanto, no âmbito da própria teoria, a subteoria da necessariedade causal, demonstrando que o dano direto e imediato quer, a bem da verdade, revelar um liame de necessariedade, e não de simples proximidade entre a causa e o efeito. O dever de indenizar vai surgir, assim, quando o evento danoso for o efeito necessário de determinada causa. Deste modo, danos indiretos passam a ser indenizados, desde que sejam consequência necessária da conduta tomada como causa. De acordo com o pensamento de Gustavo Tepedino24, a melhor doutrina é aquela que defende que a necessariedade consiste no verdadeiro núcleo da teoria da causa direta e imediata, não se excluindo a ressarcibilidade de danos indiretos, quando derivados necessariamente da causa posta em julgamento. Cabe também salientar que "em que pese a inegável importância do debate acadêmico em torno das diversas teorias da causalidade, em nenhuma parte alcançou-se um consenso significativo em torno da matéria". 25 Como já constatado, a indefinição quanto à adoção desta ou daquela teoria tem servido, é verdade, para garantir e para justificar reparação às vítimas.26 O que ocorre é que as Cortes não têm dado à prova do nexo causal igual tratamento rigoroso que, em outras épocas, alcançavam à culpa, preferindo, outrossim, amplas opções teóricas diante de uma legislação lacunosa acerca do tema, dando importância, apenas, para a motivação que inspira as decisões. A importância do nexo causal também se deve ao fato de este servir como um sistema de distribuição do prejuízo. Em outras palavras, cada um dos agentes deverá suportar o dano à medida que o tenha produzido, à proporção que a sua conduta interferiu no evento danoso, porque o agente que atuou com maior grau de culpa nem sempre é o que teve maior participação no dano. De fato, a extensão do dano deve ser aferida a partir do nexo causal, e não da culpa.27 Semelhante é a ideia de Pontes de Miranda28: "para se pensar em extensão do dano tem-se de partir do nexo causal. (...) Tem-se de considerar o prejuízo que o ofendido sofreu, ou sofreu e ainda vai sofrer, e o que pode haver lucrado, bem como sua participação nas causas do dano ou no aumento desse". Este sistema de distribuição do prejuízo ainda traz como vantagem o fato de poder ser utilizado tanto diante da responsabilidade subjetiva como da objetiva. O que se pretende demonstrar é que, com a erosão do filtro nexo causal, a liberdade que o Judiciário tem para tratar da questão acaba por estimular pedidos de reparação, fundados mais na desgraça da vítima do que em uma justa possibilidade jurídica de imputação dos danos ao pretenso lesante, chegando-se à vitimização social ou blame culture29 - uma via, portanto, totalmente inconsistente.30 E enquanto não se efetiva a necessária revisão dessa dogmática, vive-se um momento de perplexidade com a corrosão de uma das bases da responsabilidade civil, trazendo como consequência uma expansão do dano ressarcível. _________ ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 2001. ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1980. ATIYAH, Patrick. The damages lottery. Oxford: Hart, 1997. BARROS, Raimundo Gomes de. Relação de causalidade e o dever de indenizar. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 27, jul./set. 1998. 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Sergio Cavalieri Filho, j. 4.8.2004. 4 ALVIM, 1980, op. cit., p. 345. 5 Paulo de Tarso Sanseverino explica: "A causa é aquela condição que demonstrar melhor aptidão ou idoneidade para causação de um resultado lesivo. Nessa perspectiva, causa adequada é aquela que apresenta como consequência normal e efeito provável a ocorrência de outro fato". SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira.  Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 240. 6 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 600. 7 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 461. 8 PERLINGIERI, Pietro. Manuale di Diritto Civile. Nápoles: Edizione Scientifiche Italiane, 2003. p. 614-615. 9 ALVIM, 1980, op. cit., p. 345. 10 SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 79. 11 ALMEIDA COSTA, 2001, op. cit., p. 675. 12 LARENZ, Karln Derecho de Obligaciones. Trae. de Jaime Santos Briz. t. 1. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959. p. 201. 13 SANSEVERINO, 2002, op. cit., p.240. 14 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 55. 15 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 56. 16 Deve-se ressaltar que o art. 403 do CC está mal localizado, pois, se ele é aplicado tanto para responsabilidade contratual como para a extracontratual, não deveria, portanto, constar no título referente ao inadimplemento das obrigações (título IV), mas sim, na parte dos capítulos relativos à responsabilidade civil (título IX). 17 ALVIM, 1980, op. cit., p. 371-372. 18 ALVIM, 1980, op. cit., p. 398. 19 SANSEVERINO, 2002, op. cit., p. 242-243. 20 Recurso Especial 197677/MG, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 25.10.1999, DJ 17.12.1999, p. 356. Também STJ, 4ª T, REsp 326971/AL, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 11.06.2002, v.m., DJ 30.09.2002, p. 264; TJRJ, 8ª Câm. Cív., AC 2000.001.01843, Rel. Des. Letícia Sardas, j. 08.08.2000, data de registro: 25.09.2000. 21 BARROS, Raimundo Gomes de. Relação de causalidade e o dever de indenizar. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 27, p. 38, jul./set. 1998. 22 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 50-52. 23 NORONHA, 2003, op. cit., p. 597-598. 24 TEPEDINO, 2001, op. cit., p. 111. 25 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 59. 26 É o chamado imperativo social da reparação, o que não é sinônimo de Justiça. FLOUR, Yvonne. Faute et responsabilité civile: déclin ou renaissance? Droits - Revue Française de Théorie Juridique, Paris n. 5, p. 39, 1987. 27 CRUZ, 2005, op. cit., p. 333. 28 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. 22. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, p. 206. 29 ATIYAH, Patrick. The damages lottery. Oxford: Hart, 1997, p. 138. 30 O conceito de nexo causal é flexibilizado a fim de se permitir a efetivação do princípio da reparação integral. CRUZ, 2005, op. cit., p. 17.
O sentimento da insuficiência do Direito Civil para regular os danos oriundos da violação dos direitos de personalidade é o argumento para quem defende que os institutos de que dispõe até o momento o Direito Civil não conseguiram coibir nem reduzir a prática de novos ilícitos. Muito se resolve quando se aceita que a questão radica no fato de que a Constituição Federal tem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado. O decisivo é saber qual é o modo mais seguro de garantir a aplicação e a efetividade da ação de reparação de danos, em especial dos imateriais, e se um olhar verdadeiramente constitucional sobre o tema não muda a problemática. À medida que a sociedade fica mais complexa e só fazem aumentar as violações às pessoas, novas situações passam a exigir proteção jurídica adequada, pertinente, eficaz e condizente com os direitos tutelados. Outrossim, o reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais e a consagração da tutela de interesses existenciais, conquistas da ciência contemporânea, ampliaram o objeto protegido pelo Direito em face da atuação lesiva, o que conduz ao pensamento de que a violação de direitos constitucionalmente protegidos merece uma verdadeira proteção constitucional. Os direitos de personalidade, que têm origem no Direito Civil, foram elevados à dimensão constitucional, porém a tarefa do Código Civil de 2002 era a de codificá-los, proporcionando uma adequada regulação da matéria, mas este objetivo ainda segue sem implementação plena no âmbito do Direito Civil brasileiro codificado. Em outras palavras: A matéria dos Direitos da personalidade ainda recebe uma disciplina tópica e pontual. A realidade é que se surgem novos direitos de personalidade, igualmente aparecem novos danos imateriais e, com estes, a urgência da respectiva reparação. O instrumento do ressarcimento dos danos e da responsabilidade civil, embora adaptado às exigências da vida moderna, demostra-se, frequentemente, inidôneo, impõe-se, portanto, uma revisão nos próprios fundamentos da responsabilidade civil tradicional, que não oferece solução adequada aos inúmeros problemas trazidos pela sociedade moderna. O que se denota, portanto, é que resta expressa a insatisfação da responsabilidade civil como posta hoje, de forma a tutelar os direitos de personalidade, razão mais do que suficiente para se apostar em uma mudança, nem que seja a começar pela mudança de pensamento. O sentimento da insuficiência do Direito Civil para regular os danos oriundos da violação dos direitos de personalidade é o argumento de muitos, para quem os institutos de que dispõe até o momento o Direito Civil não conseguiram coibir nem reduzir a prática de novos ilícitos; assim, o Direito, que deve servir à vida e ter uma utilidade prática, já que feito por pessoas e para pessoas, deve amoldar-se às novas necessidades, para solver os conflitos oriundos de uma nova ordem social. Muito se resolve quando se aceita que a questão radica no fato de os direitos fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo. Verifica-se uma inadequação das técnicas de proteção da pessoa humana elaboradas pelo Direito Privado, consubstanciadas na doutrina dos chamados direitos da personalidade, pois os mecanismos de proteção apresentam-se aquém das inúmeras e crescentes demandas da pessoa humana, inseridas em situações que se multiplicam e se diversificam ao sabor dos avanços tecnológicos, sendo insuscetíveis de se ajustarem à rígida previsão normativa, muito embora merecedoras de tutela pelo ordenamento jurídico. Percebe-se, portanto, que na seara do Direito Civil-Constitucional é notável a insuficiência de seus institutos, mormente da responsabilidade civil, no seu âmbito de atuação, para um verdadeiro apaziguamento social por suas tradicionais funções. A inserção dos direitos de personalidade no Direito Civil resta ainda justificada, pelo fato de que tal Direito é o depositário dos princípios gerais do Direito, e toda a matéria comum às várias disciplinas é deixada para o Direito Civil, mas, principalmente, por ser atribuição dessa disciplina jurídica o estudo da pessoa e da personalidade, e pelo fato de a responsabilidade civil do ofensor aos direitos da personalidade do ofendido ser, também, tutelada pelo Direito Civil. A pergunta que urge nesse momento é: Precisa continuar sendo assim para sempre, sendo que a própria Constituição prevê a reparação dos danos por lesões a esses direitos? Não seria bastante razoável que juntamente com os direitos que são tutelados aparecessem as normas que permitem e, mais do que isso, que exigem a sua reparação? Por que deixar parte para o Direito Civil e parte para a lei maior, se tudo pode estar engrenado, tratado unido e de forma sistemática? Se os direitos de personalidade, ausentes no Código Civil de 1916, e parcialmente presentes no Código Civil de 2002, foram assim admitidos no Brasil por força de construções doutrinárias embasadas em leis especiais e na Constituição, então porque não admitir que são aqueles previstos na lei maior e que isso basta, da mesma forma que a previsão da reparação na Lex Mater, igualmente é o que faz sentido? O que o texto busca é apresentar respostas a esses questionamentos. A lei fundamental de um país expressa as relações de poder nele dominantes, como é o caso do poder militar, representado pelas Forças Armadas, do poder econômico, representado pela grande indústria e pelo capital, e do poder intelectual, representado pela consciência e pela cultura gerais. Assim, "as relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem, tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de Poder. Esses fatores reais de Poder formam a Constituição real do país". 1 Deve-se levar em conta que "o Direito mudou": Se, antes, o Direito servia apenas de mecanismo de contenção, de controle e de conservação, hoje, ele também exerce uma "função promocional". 2 Os primeiros direitos de personalidade surgiram da oposição entre indivíduo e Estado, que são os direitos à vida, à liberdade e à integridade física. No entanto, com o aumento populacional das cidades, com o crescimento dos meios de comunicação, com o avanço tecnológico, outras expressões do direito de personalidade emergiram, mas, agora, para proteger o indivíduo da intervenção lesiva de outros particulares. Não se pode negar que a evolução do Direito Positivo e da doutrina conduzem ao reconhecimento, a cada dia, de novos direitos de personalidade. Cediço concluir, portanto, que, se surgem novos direitos de personalidade, igualmente aparecem novos danos imateriais - com estes, a urgência da respectiva reparação. Para Paulo de Tarso Sanseverino3, "a reparação do dano injustamente causado constitui uma exigência de Justiça comutativa, como já fora vislumbrado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, devendo ser a mais completa possível, o que se chama, modernamente, de princípio da reparação integral do dano". À medida que a sociedade fica mais complexa e só fazem aumentar as violações às pessoas, novas situações passam a exigir proteção jurídica adequada, pertinente, eficaz e condizente com os direitos tutelados. Outrossim, o reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais e a consagração da tutela de interesses existenciais, conquistas da ciência contemporânea, ampliaram o objeto protegido pelo Direito em face da atuação lesiva, o que mais uma vez conduz ao pensamento de que a tutela aquiliana necessita ter a mesma natureza do direito violado - isto é, a violação de direitos constitucionalmente protegidos merece uma proteção constitucional. André Tunc4 alerta que a responsabilidade civil está em um "estado de crise", expressão que denota desequilíbrio da responsabilidade civil que vive, atualmente, patologias inesperadas, imprevisíveis, cujos remédios são ainda desconhecidos e talvez inexistentes. Humberto Ávila5 assevera que "o importante não é saber qual a denominação mais correta desse ou daquele princípio. O decisivo, mesmo, é saber qual é o modo mais seguro de garantir a sua aplicação e sua efetividade", que é o objetivo do presente estudo com o princípio do direito à reparação de danos imateriais, admitido como verdadeiro corolário constitucional. Fundamentos jurídicos e legais A lei maior é a grande expressão de força de um ordenamento, razão pela qual se entende que é o lugar para constar, formal ou materialmente, a reparação de danos imateriais, uma vez que é instrumento de tutela de bens de valor precípuo na vida das pessoas. De acordo com Konrad Hesse6: "A Constituição não configura, portanto, apenas a expressão de um ser, mas também de um dever-ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sociopolíticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas. Para que exista uma estabilidade entre o Direito, a Justiça e as Pessoas, faz-se necessário dar a estas um direito seguro e estável de reparação, visto que são eles que alcançam a esfera subjetiva de todos". Já durante o século XX o objetivo da lei maior deixou de ser, exclusivamente, o de estabelecer o estado de direito e o de limitar o poder político: Tomou contornos de uma moldura dos direitos dos particulares, fenômeno que se chamou de publicização do privado e que conduziu a uma tensão dialética entre o Direito Público e o Privado. No entanto, a Constituição não tinha o escopo de exaurir a matéria acerca dos direitos fundamentais, cabendo, então, a pergunta se o Código Civil "atendeu à necessidade de o Direito brasileiro ser dotado com uma disciplina específica da matéria". Há quem defenda, como Fábio S. Andrade, que "o Código Civil de 2002 não atende a estes objetivos", não alcançando, minimamente ao juiz, elementos de ponderação, objetivos e seguros, no sentido de propiciar a tutela dos direitos de personalidade, nem coordenando os temas ligados a tais direitos, porque ainda estão espalhados em leis especiais, sem nenhuma ampla norma centralizadora por parte do Código Civil.7 Os direitos de personalidade, que têm origem no Direito Civil, foram elevados à dimensão constitucional, porém a tarefa do Código Civil de 2002 era a de codificá-los, proporcionando "uma adequada regulação da matéria, que tivesse a ratio e o telos da Constituição"; a despeito disso, "este objetivo ainda segue sem implementação plena no âmbito do Direito Civil brasileiro codificado". Em outras palavras: "A matéria dos Direitos da Personalidade ainda recebe uma disciplina tópica e pontual". 8 Aos poucos o Direito Positivo foi sendo moldado pela consideração de que a pessoa é o bem superlativo; dito de outro modo, o sistema jurídico tem saído do patrimonialismo e retomado a máxima romana que dizia "hominun causa omne jus constitum est" - todo o Direito é constituído para as causas do homem. Assim, considerar a pessoa eixo do Direito pode até parecer truísmo; contudo, o legislador constituinte, de forma exaustiva, tornou a proteção à pessoa um princípio fundamental, querendo sepultar a época da ditadura. Ao dispor, logo no início da lei maior, sobre os Direitos e sobre as garantias fundamentais, quis o legislador deixar fora de dúvida a importância da pessoa para o Direito. Reforçando esta ideia, Carlos Alberto Bittar9 afirma que a natureza do dano imaterial "reveste-se de caráter atentatório à personalidade, de vez que se configura através de lesões a elementos essenciais da individualidade", o que demonstra a necessidade de proteção desses direitos por meio de uma ação igualmente constitucionalmente protegida. É certo que mecanismos como o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data, a ação popular e a ação civil pública10 resguardam direitos das pessoas, mas apenas contra atos de autoridades, com exceção da lei da ação civil pública; em outras palavras, sobra um resquício que não satisfaz a sociedade como um todo, pois nem sempre o dano injusto é praticado por uma autoridade, uma vez que o particular igualmente vai de encontro à Constituição. Devem ser compensadas lesões a direitos fundamentais, à dignidade humana, que acabam por abalar, verdadeiramente, o aspecto psicológico das pessoas. A reparação é, portanto, indefectível, já que o sujeito não pode ficar à mercê de outrem que insulta a dignidade e a igualdade jurídica que deve estar sempre presente. Trazer a reparação de danos para dentro da lei maior é tutelar o remédio da mesma forma que protege os direitos em questão, ou seja, é colocar em igual patamar a doença e a droga que permite a cura. Não é nada animadora a anárquica variedade de entendimentos e de interpretações que permeiam a responsabilidade civil, gerando, não raras vezes, soluções díspares para hipóteses idênticas, pois, ao contrário das regras seguras e estáveis que viriam sugeridas pela utilidade da responsabilidade civil, "o que se tem é um terreno movediço, caracterizado pela incerteza e pela mutabilidade", sendo que "neste solo instável, proliferam pedidos de indenização". 11 Sem dúvida, isso está longe de ser o ideal almejado quando se trata da reparação de danos tão relevantes. Acaba sendo imprescindível, portanto, que o intérprete una axiologicamente o corpo codificado e a lei maior para conseguir alcançar um valor uniforme às cláusulas gerais, sempre à luz dos princípios constitucionais que têm por escopo reunificar o Direito Privado diante das inúmeras fontes normativas e da constante e progressiva perda de centralidade interpretativa do Código Civil.12 O que se pode constatar é "uma profunda intromissão da Constituição em setores anteriormente regidos pelo Código Civil. De modo que tudo levaria a crer que a Constituição - e, por via de consequência, o Direito Público - passaram a ter total predominância", mas, ao mesmo tempo, comenta Fábio S. de Andrade, fazendo um contraponto, "aponta-se uma decadência da importância constitucional". Dito de outro modo, apesar de todo o poderio aparente das normas constitucionais, a lei maior, segundo o autor, não é capaz de substituir o primado do Código Civil, e a razão está no fato de "a realização de uma Constituição democrática exigir o consenso". O que Fábio S. de Andrade pontua com firmeza, no entanto, é que "a Constituição assume um papel de centralidade para instituir princípios ao sistema do Direito Privado".13 Assim, se há a necessidade da consolidação dos direitos de personalidade na lei maior, necessidade também há da consolidação da reparação dos danos causados a tais direitos, ainda que isso se dê pela inclusão material desses direitos na Constituição. A reparação de danos reconhecida como um direito fundamental se aproxima das noções de respeito à essência da pessoa humana, às características e aos sentimentos da pessoa humana, à distinção da pessoa humana em relação aos demais seres. Em outras palavras, o conteúdo da reparação de danos não tem como vir total e cabalmente delimitado pelo Direito, porque dependerá muito, e também, das circunstâncias sociais e do sentimento de dignidade que cada pessoa tem a respeito de si mesma. Se com os direitos à personalidade se protege o que é próprio da pessoa, como a vida, a integridade física e psíquica, o direito ao corpo, à intimidade, da mesma forma a reparação desses direitos merece especial atenção, significado e colocação jurídica adequada, ou seja, a sua inserção na lei maior; afinal, "não há negócio jurídico ou espaço de liberdade privada que não tenha seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional". 14 Antonio Baldassare15 defende que os direitos fundamentais não precisam de uma previsão específica, porque considera que os direitos de personalidade são paradigmas gerais que englobam várias possibilidades. Há, no entanto, quem sustente uma concepção fechada e taxativa16 (previsão legal específica) do rol dos direitos de personalidade, como Pietro Perlingieri.17 A personalidade humana é, antes de tudo, um valor jurídico, ou seja, é insuscetível de redução a uma situação jurídica-tipo ou a um elenco de direitos subjetivos típicos; assim, o modelo tipificado será sempre insuficiente para atender às situações em que a personalidade humana exige proteção.18 Em um primeiro momento, a inserção dos direitos de personalidade no Direito Civil resta justificada pelo fato de que tal Direito é o depositário dos princípios gerais do Direito e, no dizer de Oliveira Ascensão19, "toda a matéria comum às várias disciplinas, tendencialmente a todas, é deixada para o Direito Civil, mas, principalmente, por ser atribuição dessa disciplina jurídica o estudo da pessoa e da personalidade e pelo fato de a responsabilidade civil do ofensor aos direitos da personalidade do ofendido ser, também, tutelada pelo Direito Civil". A pergunta que urge nesse momento é: precisa continuar sendo assim para sempre, sendo possível que a própria Constituição preveja a reparação dos danos por lesões a esses direitos? Não seria bastante razoável que juntamente com os direitos que são tutelados aparecessem as normas que permitem e, mais do que isso, que exigem a sua reparação? Por que deixar parte para o Direito Civil e parte para a lei maior, se tudo pode estar engrenado, tratado unido e de forma sistemática? Se os direitos de personalidade, ausentes no Código Civil de 1916, e parcialmente presentes no Código Civil de 2002, foram assim admitidos no Brasil por força de construções doutrinárias embasadas em leis especiais e na Constituição, então porque não admitir que são aqueles previstos na lei maior e que isso basta, da mesma forma que a previsão da reparação na Lex Mater, igualmente faria sentido? Todas estas respostas foram e continuam sendo dadas ao longo deste texto. Na seara do Direito Civil-Constitucional, é notável a insuficiência de seus institutos, "mormente da responsabilidade civil, no seu âmbito de atuação, para um verdadeiro apaziguamento social por suas tradicionais funções". 20 É, igualmente, da Constituição que se pode inferir a afirmação da validade das disciplinas do Direito que devem se subordinar aos princípios do Direito Constitucional, não podendo, de forma alguma, ser incompatíveis com os mesmos. Nesse sentido afirma Kelsen ser a lei maior a norma fundamental de um país, por ser a fonte de validade das demais normas e que, contrariadas ou conflitantes, são inconstitucionais. Para o autor austríaco, a inserção de um rol de garantias fundamentais do indivíduo nas Constituições tem por objetivo não permitir que o legislador crie leis que causem danos aos direitos da pessoa humana, podendo ser essas leis violadoras de natureza civil ou penal.21 O que não se pode olvidar, todavia, é que "law is tied to life", ou seja, "o direito está ligado à vida", como declara Stephen Breyer.22 Já Judith Martins-Costa23, ao contrário, defende que "o novo Código Civil constitui uma estrutura receptora do sistema geral de proteção à pessoa humana, com lugar especial à rede de bens da personalidade"; para a autora, não há a necessidade de a Constituição Federal prever a reparação de danos, porque isso já está estabelecido, e, segundo Martins-Costa, suficientemente, no Código Civil. Para Judith, "a relação entre a dignidade humana, a tutela à pessoa e os direitos de personalidade não é visualizada como uma pirâmide - descendendo da Constituição - mas como uma rede, harmoniosa e articulada" (Grifo do autor). A autora afirma que o Código Civil atual não tem mais o caráter constitucional que tinha o Código de 1916, mas que cumpre a função de garantia, assumindo a responsabilidade de unificar e de harmonizar o caos irracional dos microssistemas, promovendo, no campo dos direitos de personalidade, a comunicação, racionalmente ordenada, entre os direitos fundamentais e as normas infraconstitucionais; de acordo com a referida autora, basta o Código Civil para garantir um efetivo direito de reparação de danos imateriais.24 Fábio S. de Andrade aduz que: "A codificação, hoje colocada numa situação de crise, dificilmente poderá ser substituída ou superada. Isto porque ela representa uma categoria altamente representativa que, por estar associada ao princípio da continuidade, sempre estará a (co)ordenar o Direito Privado". 25 Igualmente Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo P. Ruzyk26 sustentam que "os direitos fundamentais não são tutelados apenas por conta de sua positivação constitucional (...). O direito é instrumento para uma racionalidade que o antecede: A que enfatiza a necessidade de servir à produção e à reprodução da vida e a dignidade. Antecede o jurídico uma dimensão ética, a ele indissociável, que lhe dá fundamento" (Grifo do autor). Nesse ponto concorda-se com a ideia do autor, porquanto se acredita que a ética vem antes de tudo e que ela sempre deverá estar presente como baliza mestra, não sendo, no entanto, suficiente. Bruno Miragem27, por seu turno, comenta que "atualmente, entretanto, um eventual paralelismo entre as tutelas civil e penal da personalidade cede espaço para o influxo de um segundo fenômeno de aproximação e relação entre o Direito Privado e o Direito Constitucional. Em outros termos, à expressão que já referimos, a publicização ou constitucionalização do Direito Privado". 28 (Grifo do autor) No mesmo caminho, Yussef Said Cahali29 comenta que: "Sob o pálio agora das normas constitucionais, a tutela no plano civil do direito de personalidade, por via da reparação do dano moral, traz latente o interesse público na preservação dos valores tutelados, de resto também protegidos na esfera do Direito Penal". (Grifou-se) André Andrade30 traz à baila a preocupação explicitada ao longo deste estudo quando assevera que: "A dimensão do princípio da dignidade humana e a forma mais adequada de protegê-lo são questões ainda em aberto, as quais, pela sua importância, devem ser objeto de reflexão dos juristas e dos operadores do Direito em geral", ponderando, ainda, que cabe aos primeiros determinar o alcance da proteção que a Constituição dá à dignidade humana, o que "não é tarefa fácil ou isenta de controvérsias. Todavia, algumas premissas fundamentais podem e devem ser estabelecidas" (Grifou-se). Levanta o autor, como primeira premissa, o fato de toda a pessoa, em virtude da sua condição de ser humano, ter direito à indenização por danos imateriais, não se devendo levar em conta se é uma criança, um doente mental, uma pessoa em estado de inconsciência, pois a falta de consciência não exclui a humanidade que é inerente a cada um. Outrossim, a lesão à dignidade humana abrange tanto as ofensas à pessoa individual como social, sendo mais do que aquilo que afeta o mínimo existencial, pois a dignidade pode ser violada em diversos níveis. Pietro Perlingieri31 traz, textualmente, que: "O instrumento do ressarcimento dos danos e da responsabilidade civil, embora adaptado às exigências da vida moderna, demostra-se, frequentemente, inidôneo". André Andrade32 complementa: "Impõe-se, portanto, uma revisão nos próprios fundamentos da responsabilidade civil tradicional, que não oferece solução adequada aos inúmeros problemas trazidos pela sociedade moderna". O que se denota, portanto, é que resta expressa a insatisfação da responsabilidade civil como forma de tutelar, principalmente, os direitos de personalidade, razão mais do que suficiente para se apostar em uma mudança. O sentimento da insuficiência do Direito Civil para regular os danos oriundos da violação dos direitos de personalidade também é o argumento de Caroline Vaz33, para quem "os institutos de que dispõe até o momento o Direito Civil não conseguiram coibir nem reduzir a prática de novos ilícitos, o Direito, que deve servir à vida e ter uma utilidade prática, já que feito por homens para homens, deve amoldar-se às novas necessidades, para solver os conflitos oriundos de uma nova ordem social". Outrossim, muito se resolve quando se aceita que a questão "radica no fato de os direitos fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo". 34 Igual é o sentimento de Gustavo Tepedino35 quando afirma que: "Verifica-se a inadequação das técnicas de proteção da pessoa humana elaboradas pelo Direito Privado, consubstanciadas na doutrina dos chamados direitos da personalidade". De acordo com o autor, os mecanismos de proteção apresentam-se "aquém das inúmeras e crescentes demandas da pessoa humana, inseridas em situações que se multiplicam e se diversificam ao sabor dos avanços tecnológicos, sendo insuscetíveis de se ajustarem à rígida previsão normativa, muito embora merecedoras de tutela pelo ordenamento jurídico". Markesinis, Deakin e Johnston36 trazem, ao longo de sua obra, Tort Law, alguns avisos gerais para os novos advogados que trabalham com a responsabilidade civil, pontuando que eles devem estar atentos aos seguintes pontos: "1. O que interessa aos advogados acadêmicos nem sempre tem importância semelhante para os profissionais e litigantes; 2. O Direito Civil está usando velhas ferramentas para atender às necessidades sociais de uma nova e diferente era". Tal conselho é um bom argumento para chamar a atenção para as ferramentas que se têm para trabalhar com os danos causados aos direitos de personalidade até o presente momento, porque, se a responsabilidade civil, por si só, não está solucionando satisfatoriamente os casos concretos, talvez seja pelo fato de, atualmente, os danos terem um alcance nunca antes imaginado, tanto que os autores ponderam que: "A longevidade de alguns conceitos e leis civis é tão admirável quanto notável. Assim, neste país, em vários casos, muito do que fazemos e da forma como pensamos hoje pode remontar à Idade Média. (.) Em grande parte, essa sobrevivência deve-se ao conteúdo flexível, senão amorfo, de alguns desses conceitos; 3. O Direito Civil precisa de uma reforma, mas esta não parece estar próxima; 4. O Direito Civil é, na prática, frequentemente inacessível à vítima comum.5. Doutrina Desordenada". São, enfim, ideias que não podem ser desprezadas.  _______ ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação - crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre a tutela dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e Teoria Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. BALDASSARE, Antonio. Diritti della Persona e valori costituzionalli. Torino: G. Giappichelli. s.d. BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. BREYER, Stephen. Active Liberty - interpreting our Democratic Constitution. New York: Vintage Books, 2005. CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. CANARIS, Claus-Wilhelm. 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Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. _______ 1 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. De Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 9. 2 FACCHINI NETO, Eugênio. Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efetivação dos Direitos da Criança e do Adolescente. Juizado da Infância e Juventude. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Coordenadoria-Geral da Justiça, Porto Alegre, n.2, 2004, p. 25. 3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral - Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 34. 4 TUNC, André. La responsabilité civile. Paris: Economica, 1989, p. 6. "Le droit de la responsabilité civile est donc dans un état de crise". Tradução: "O direito da responsabilidade civil está, pois, em um estado de crise". 5 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 22. 6 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. De Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 15. 7 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre a tutela dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 103, 118. 8 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre a tutela dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 118. 9 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 53. 10 Eugênio Facchini Neto disserta: "No caso brasileiro, a ação popular constitui exemplo emblemático de exercício de uma democracia participativa. Por meio dela se confere legitimidade a qualquer cidadão para pleitear 'a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista', além de outros órgãos onde haja participação pública, sendo que a noção de patrimônio público abrange, para tal efeito, 'os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico' (art. 1º e §1º, da Lei n. 4.7171/65). Igualmente a ação civil pública e, em certos casos, o mandado de segurança coletivo poderão representar canais adequados para que membros da sociedade civil possam controlar ações ou omissões estatais". FACCHINI NETO, Eugênio. O judiciário no mundo contemporâneo. Juris Plenun, ano V, n.26, 2009, p. 49. 11 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. Da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 3. 12 TEPEDINO, Gustavo. Crise nas fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 364, nov. /dez. 2002, p. 115. 13 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação - crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 126-127, 135. 14 TEPEDINO, Gustavo. Crise nas fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 364, nov. /dez. 2002, p. 119. 15 BALDASSARE, Antonio. Diritti della Persona e valori costituzionalli. Torino: G. Giappichelli. s.d. p. 57. 16 Os que optam pela taxatividade aduzem que apenas os direitos de personalidade previstos no Código Civil, na Constituição ou em leis especiais devem ser admitidos como tais, a menos que surja lei dispondo a respeito de um novo direito de personalidade. Essa concepção, no entanto, não é consentânea com a realidade, pois a previsão será sempre insuficiente para proteger a dignidade da pessoa humana na sociedade atual. 17 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 154. 18 TEPEDINO, Gustavo. Crise nas fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 364, nov. /dez. 2002, p. 117. 19 ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e Teoria Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. p. 291. 20 VAZ, Caroline. Funções da responsabilidade civil - da reparação à punição e dissuasão - os punitive damages no Direito Comparado e brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 95. 21 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do Direito. Trad. de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 310. 22 BREYER, Stephen. Active Liberty - interpreting our Democratic Constitution. New York: Vintage Books, 2005, p. 100. 23 MARTINS-COSTA, Judith H. Pessoa, Personalidade, Dignidade - ensaio de uma qualificação. Tese de Livre Docência em Direito Civil apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003, p. 103. 24 MARTINS-COSTA, Judith H. Pessoa, Personalidade, Dignidade - ensaio de uma qualificação. Tese de Livre Docência em Direito Civil apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003, p. 255. 25 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação - crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 173. 26 FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo P. Direitos Fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 103. 27 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil da imprensa por dano à honra: o novo Código Civil e a Lei de Imprensa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 90. 28 A constitucionalização do Direito Civil refletiu-se também na responsabilidade civil - e de forma notável. Acerca disso, referência fundamental é TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In: ___. (Coord.). Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1-22. 29 CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 60. 30 CORRÊA DE ANDRADE, André Gustavo. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência da Common Law e na perspectiva do Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 28-29. 31 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. De Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro, 1999, p. 32. 32 CORRÊA DE ANDRADE, André Gustavo. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência da Common Law e na perspectiva do Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 229. 33 VAZ, Caroline. Funções da responsabilidade civil - da reparação à punição e dissuasão - os punitive damages no Direito Comparado e brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 138. 34 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 225. 35 TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos Direitos Fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas. Revista Jurídica, n. 341, ano 54, mar. 2006, p. 13. 36 MARKESINIS B. S.; DEAKIN, Simon; JOHNSTON, Angus. Tort Law. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 54-64.
Como consequência da erosão da culpa e do nexo causal, houve um aumento significativo do número de indenizações, o que acarretou provimentos mais favoráveis em virtude de uma manipulação mais flexível destes pressupostos tradicionais da responsabilidade civil. Referida flexibilização traz à baila a valorização da função compensatória pelo desejo de garantir à vítima algum tipo de ressarcimento. Culpa e nexo causal ficam em segundo plano, para que, no primeiro, esteja o dano - objeto e razão de ser das indenizações -, elemento capaz de atrair a atuação do Judiciário em prol das vítimas das mais variadas lesões. Carlos Alberto Bittar1 ressalta que o dano é "qualquer lesão injusta a componentes do complexo de valores protegidos pelo Direito, incluído, pois, o de caráter moral". O aumento do número de reparação de danos propostas também se deve pelo acesso facilitado à Justiça, seja em razão da criação dos juizados especiais, seja pela gratuidade de acesso ao Judiciário, seja pelo trabalho da Defensoria Pública, seja pelo crescente recurso às ações coletivas. Igualmente, além do crescimento quantitativo, houve um crescimento qualitativo do número de ações, porque novos interesses, atinentes aos interesses existenciais da pessoa humana, também passam a ser examinados. O dano tem uma dupla acepção: Em um sentido amplo, identifica-se como sendo uma lesão de um direito ou de um bem jurídico qualquer. Em uma segunda acepção, apresenta um significado mais preciso e limitado, sendo considerado como um menoscabo de valores econômicos ou patrimoniais, em certas condições, ou "la lesión al honor o a las afecciones legítimas". 2 Os danos imateriais são aqueles que atingem os sentimentos, a dignidade, a estima social ou a saúde física ou psíquica, ou seja, alcançam o que se pode denominar de direitos de personalidade ou extrapatrimoniais. A reparação dos danos extrapatrimoniais experimentou um grande progresso, pois em outros tempos eram muitos os juristas que o rechaçavam por entender que os bens morais não admitiam uma valoração pecuniária ou que esta seria sempre insuficiente ou arbitrária. Outros consideravam que os bens de personalidade são tão dignos que repugna a simples ideia de traduzi-los em termos materiais. Algumas legislações seguem uma via intermediária entre a negação e o pleno reconhecimento desses danos, como é o caso do Código Civil alemão, que admite a indenização do dano não-patrimonial, porém apenas nos casos taxativamente previstos na lei, como a lesão corporal, o dano à saúde, à privação da liberdade e o delito contra a moral da mulher. Afora isso, ter havido dano moral não exclui a possibilidade de, embora de modo indireto, também ter ocorrido dano material, e ambos podem ser perfeitamente delimitados, ainda que possam ser objeto de uma valoração unitária. É o caso, por exemplo, de um comerciante, vítima de ofensa à honra, o que afeta tanto a sua estima social como o desenvolvimento do seu negócio.3 Cabe agora destacar o fato de o dano imaterial ser impropriamente chamado de dano moral, espécie do gênero imaterial ou extrapatrimonial. A referida denominação é a que parece ter sido imposta pela doutrina e pela legislação, mas é oportuno assinalar a sua impropriedade, pois não se trata, a rigor, de um prejuízo que afete o menoscabo moral de uma pessoa, muito menos que trate de uma lesão aos princípios morais ou de consciência. Acaso assim fosse, estar-se-ia tratando de um dano estranho ao Direito, metajurídico. A resistência em se admitir o dano imaterial existe, segundo Viney e Jourdain, tanto pelo fato de se aceitar uma compensação econômica para um dano não-patrimonial como pela dificuldade na valoração de tal dano; entretanto, afirmam que isso não pode mais ser obstáculo à reparação de danos extrapatrimoniais, acabando por se render à jurisprudência e à doutrina francesa que largamente aceitam essa possibilidade. No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, que, em seu art. 5º, incisos V e X, trouxe previsão expressa para a reparação desses danos, infrutífera resta a discussão, a despeito de, antes mesmo de a lei maior tratar do assunto, já existirem leis esparsas que o continham, como, por exemplo, o Código Brasileiro de Telecomunicações e a extinta lei de imprensa. Cumpre ainda indagar se, no século XIX, quando o paradigma dominante era o homem e as suas riquezas materiais, fazia sentido falar em danos não-patrimoniais? Antes de se aceitar a relevância da saúde psíquica, da vida sexual e afetiva, cogitar-se-ia a estruturação, a efetivação e a reparação de dano psíquico, o dano à vida efetiva, o dano à realização sexual? Antes da Internet, como imaginar determinados danos à vida privada, à intimidade? No Brasil, vale frisar que "seja pelo significativo desenvolvimento dos direitos da personalidade, seja pelas vicissitudes inerentes a um instituto que só recentemente tem recebido aplicação mais intensa, a doutrina vem apontando uma extensa ampliação do rol de hipóteses de dano moral, reconhecidas jurisprudencialmente".4 Sobre isso, Giovanni Comande5 acentua que "a prescindir de qualquer ênfase descritiva, o efetivo alargamento da área do dano ressarcível é um dado fático presente nas últimas décadas em todas as experiências ocidentais". A caracterização dos danos à pessoa e a forma como se revelam denotam a necessidade de um modelo aberto cujo conteúdo será preenchido jurisprudencialmente, de acordo com a evolução da sociedade, o que conduz ao pensamento de que é a ideia de pessoa humana, no tempo histórico e na sua comunidade, que perfazem a configuração dos referidos danos. O dano será, a partir de agora, o centro das atenções. Liga-se, como já foi referido, historicamente, ao valor que é dado à pessoa e às suas relações com os bens da vida. O axioma, presente no Direito francês, que inspirou a Codificação brasileira de 1916, não tem, ainda hoje, o seu conceito previsto em lei. Do mesmo modo, não há dúvida de que o dano imaterial transcende o ilícito, uma vez que a responsabilidade objetiva eliminou o peso atribuído à ilicitude, tendo de se cogitar, nesses casos, apenas, do dano propriamente dito. O dano pode ser considerado como a lesão a um interesse juridicamente tutelado; por esse conceito, o foco das atenções é o objeto atingido, ou seja, o interesse lesado, e não as consequências econômicas ou emocionais desse dano sobre um sujeito.6 Outros argumentam que a diferença entre um dano imaterial e um dano patrimonial "diz respeito ao plano das consequências da lesão, não ao plano do tipo de objeto do ilícito".7(grifo nosso) Esse é também o raciocínio de Carlos Alberto Bittar8 quando destaca: "realçam-se, desse modo, os efeitos ou reflexos sentidos na esfera lesada, tomando-se, por conseguinte, os danos em si e em suas consequências, e, não, em razão da natureza dos direitos violados". De outra banda, alguns sustentam que depender o dano imaterial de um momento consequencial, como dor, sofrimento, "equivale a lançá-lo em um limbo inacessível de sensações pessoais, íntimas e eventuais". E declarar que ele é todo o prejuízo economicamente incalculável faz desse dano "figura receptora de todos os anseios, dotada de uma vastidão tecnicamente insustentável". 9 O que se pode então observar é que, para fins de distinção entre danos materiais e imateriais, existe: Um conceito de dano imaterial por exclusão; Uma noção que atenta ao interesse comprometido; Uma noção que atende à natureza dos direitos lesados. Para a primeira destas correntes - conceito por exclusão -, o dano imaterial é o menoscabo ou a perda de um bem, em sentido amplo, que causa uma lesão a um interesse amparado pelo Direito de natureza extrapatrimonial; em outras palavras, o dano moral é uma lesão de caráter não-patrimonial, consequência de um ato contrário ao Direito. Essa corrente encontra um bom número de adeptos e se inspirou nos ensinamentos de Josserand e Mazeud, da doutrina francesa, bastante influente entre nós. É, a bem da verdade, uma contraposição bastante simplista, que, todavia, não resiste a um exame mais atento, pois uma definição negativa, além de ser pouco segura, pode ser admitida apenas quando entre fenômenos homogêneos - como se sabe, os danos patrimoniais e imateriais são fenômenos distintos. E, para a terceira corrente - conceito que atende à natureza dos direitos lesados -, o dano imaterial é aquele que se infere da lesão a direitos personalíssimos e que protegem como bens jurídicos os atributos ou os pressupostos da personalidade da pessoa, como a paz, a vida íntima, a liberdade individual, a integridade física - ou seja, tudo o que se pode resumir no conceito de segurança pessoal. Aqueles que defendem esta orientação falam de dano em sentido amplo e atentam, portanto, mais à lesão do direito do que às consequências ou aos efeitos desta lesão.10 Por este viés denota-se que nem todo o dano imaterial causa mal-estar, dor, sofrimento ou sentimento negativo, porquanto a necessidade de associar um dano imaterial a referidos sentimentos deixaria várias lesões a direitos de personalidade sem reparação. Deve-se levar em consideração, em especial, os doentes mentais e as pessoas em estado vegetativo ou comatoso; as crianças; o nascituro; as pessoas jurídicas; as situações de dano moral difuso ou coletivo; o chamado direito à paternidade de obras literárias, artísticas ou científicas, previsto no art. 24, incisos I e II, da lei de direito autoral (lei 9.610/98), sendo suficiente a violação do referido direito autoral; o direito ao inédito, previsto no art. 24, inciso III, da lei de direito autoral, que prevê ser direito moral do autor "o de conservar a obra inédita" e que, se violado, caracterizado estará o dano moral independentemente de sofrimento ao autor; o fato de a Constituição Federal trazer, no art. 5º, inciso X, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada que, se consumada, independentemente de sofrimento, acarretará a configuração de dano imaterial.11 Constata-se, desta forma, que as reações íntimas ou internas não se confundem necessariamente com o dano imaterial, porque "a circunstância de que o dano moral não seja identificado com o 'sentir dor' permite que seja reclamado por incapazes, que antes não tinham essa possibilidade, ou a alternativa de que as pessoas jurídicas possam ter essa legitimação".12 Anderson Schreiber13 comenta que o dano não pode se identificar com uma lesão abstrata a um determinado interesse, pois, neste caso, estar-se-á diante de um conceito muito amplo, que era respaldado quando o dever de indenizar dependia da severa análise da culpa e do nexo causal - estes hoje bastante fragilizados -, como já se comentou aqui. Por isso, sugere-se conceituar dano como uma lesão concreta, isto é, como a violação de uma regra que, indo além da regulação abstrata de um interesse, estabeleça relações com outros interesses também tutelados. Maria Celina Bodin de Moraes14 ainda salienta que não é todo e qualquer sofrimento que dá ensejo a danos imateriais, porém somente situações tão graves que terminem por afetar a dignidade. É imprescindível mencionar, ainda que não seja objeto deste estudo, que, se o destaque for a relação da pessoa com os seus bens da vida materiais, estar-se-á diante de danos patrimoniais, apreciáveis, quase que imediatamente, economicamente. Assim, todo aquele que sofre um dano no seu patrimônio tem direito à reparação. Por outro lado, se, no primeiro plano, está a pessoa humana, valorada por si só - pelo fato de ser uma pessoa, dotada de subjetividade e de dignidade -, e titular de bens e de interesses não-mensuráveis - de pronto, economicamente -, está-se diante dos danos imateriais. O critério predominante na distinção entre danos patrimoniais e imateriais é o da avaliabilidade ou não em dinheiro, sendo que os regimes jurídicos também são distintos, como distintas são as subespécies. Os direitos sobre coisas corpóreas são patrimoniais; já os direitos sobre coisas incorpóreas como "direitos que têm por objecto a obra na sua forma ideal, na sua concepção intelectual", que são o direito do autor e o direito de propriedade industrial, têm uma estrutura mais complexa. Devem-se distinguir, nesses casos, os direitos morais de autoria das obras artísticas, literárias, científicas, intelectuais, invenções, modelos, desenhos e marcas industriais, que são direitos de personalidade, dos direitos patrimoniais de autor ou dos direitos patrimoniais de propriedade industrial, que apresentam um valor patrimonial autônomo e que são direitos reais, embora sujeitos a regime especial.15 De fato, o dano imaterial pode atingir a dignidade da pessoa. Salienta-se, como fez Bernard Edelman16, que, a despeito de o termo dignidade já ser conhecido há muito tempo - a ideia de uma dignidade própria ao homem remete à filosofia de Kant -, a noção de uma proteção jurídica dessa dignidade liga-se a um duplo fenômeno: À barbárie nazista (a ideia de crimes contra a humanidade, no Tribunal de Nuremberg) e à biomedicina. O problema é, no momento, que a dignidade da pessoa humana não se limita a interesse existenciais comuns, pois o seu conteúdo abraça os mais variados aspectos da pessoa humana que "vem se enriquecendo, articulando e diferenciando sempre mais" 17; abre-se, assim, o "grande mar" da existencialidade18, em um alcance tendencialmente infinito. Com a Constituição Federal de 1988, de acordo com o já exposto ao longo deste texto, houve uma mudança importante no núcleo do sistema do Direito Civil, uma vez que a proteção da dignidade humana se tornou prioridade absoluta; deste modo, a solução para os casos não podia mais ser encontrada, levando-se em conta apenas o dispositivo de lei que parecia resolvê-la, mas sim, todo o ordenamento jurídico e, em particular, os princípios fundamentais. As normas constitucionais passaram a ser estendidas às relações privadas, e o Código Civil foi perdendo a centralidade de outros tempos, o que, por certo, reforça a proposta do presente estudo, no sentido de, efetivamente, decorrer da Constituição Federal o direito à reparação de danos imateriais, uma vez que os assuntos ligados aos danos imateriais já estão sob a alçada da lei maior. Dissiparam-se as resistências da incidência da Constituição nas relações de Direito Privado, não tendo mais os civilistas como negar a eficácia normativa da lei maior para, ao menos indiretamente, auxiliar a interpretação construtiva da norma infraconstitucional. Todavia, quatro são as objeções comuns à aplicação direta da Constituição nas relações de Direito Civil: Diz respeito à vocação da Constituição para a organização dos poderes estatais sendo normas destinadas ao legislador e não a particulares, e "a regulação da autonomia privada, neste sentido, só poderia se dar por uma instância mais próxima da realidade dos negócios, no âmbito da legislação ordinária", e ao juiz não caberia passar por cima do legislador na definição de regras de conduta; Quer significar a baixa densidade normativa dos princípios constitucionais, referindo que a aplicação direta às relações privadas acabaria por ocasionar uma excessiva discricionariedade do juiz na solução de lides concretas; Invoca a estabilidade milenar do Direito Civil que terminaria abalada pela instabilidade do jogo político, acaso as opções constitucionais não fossem mediadas pelo legislador ordinário; Refere que o controle axiológico das relações privadas acarretaria desmesurada ingerência na vida dos particulares; isto é, "reduziriam-se dessa forma, autoritariamente, os espaços de liberdade dos particulares. Afinal, a liberdade é inerente ao homem, anterior ao ordenamento jurídico que, no máximo, poderá limitá-la, estabelecendo os limites do ilícito" (grifo do autor). Cabe contrapor, no entanto, que "essas quatro críticas, embora respeitáveis, relacionam-se com uma realidade inteiramente obsoleta, pressupondo o cenário característico da codificação do século XIX, marcado por uma clara dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado, este destinado à sublimação da autonomia da vontade". 19 O dano à pessoa humana passa a ser, sem sombra de dúvida, reparável, e isso é o que assinala o civilista peruano Carlos Fernandez Sessariego20, um pioneiro na América Latina, por destacar a proteção jurídica à pessoa humana. Sessariego define os danos à pessoa como os incidentes em qualquer aspecto do ser humano, considerado em sua integridade psicossomática e existencial, abarcando o que tem sido chamado, em outros ordenamentos, de dano biológico, dano à saúde, dano ao projeto de vida e dano moral em um aspecto estrito, podendo, todavia, ter reflexos na esfera patrimonial do sujeito.21 Entrando no contexto e complementando o sentido, Josaphat Marinho22 aduz que: "o homem, por suas qualidades essenciais, e não propriamente o dado econômico, torna-se o centro da ordem jurídica". Abrindo espaço para que, embora de forma sucinta, se possa tratar do dano existencial, ainda pouco estudado no Brasil23, e oriundo da doutrina italiana, deve-se mencionar que se trata de uma mudança muito grande na vida das pessoas, como noites em claro, sacrifícios, renúncias, pensionamento, fins de semana perdidos, diminuição do horizonte, entre outros tipos de consequência.24 Não se confundindo nem com o dano material, nem com o imaterial, o dano existencial é um dano a toda a gama de relações que fazem parte do desenvolvimento normal de uma pessoa, tanto pessoal como socialmente. É algo que a pessoa não pode mais fazer, porém era parte de sua rotina. Em outras palavras, é um "ter que agir de outra forma" ou um "não poder fazer mais como antes" tanto relativo a uma pessoa física como jurídica, abrangendo, inclusive, aquelas atividades que, razoavelmente, a pessoa poderia desenvolver, segundo regras de experiência. Diferenciando-o do dano moral puro, observa-se que o dano moral faz referência a um sentimento; o dano existencial diz respeito a um não conseguir mais viver como antes; outrossim, o dano moral normalmente ocorre junto com o evento lesivo; o dano existencial, em momento posterior, pois é decorrente de uma sequência de atos. São considerados como fatos potencialmente ensejadores de dano existencial: "a transmissão de doenças, barulhos intensos, a discriminação sexual ou religiosa, a incitação à prostituição, o abuso sexual, os acidentes de trabalho, a lesão ao direito de privacidade e à honra, desastres ambientais"; enfim, "os sacrifícios, as renúncias, a abnegação, a clausura, o exílio, o prejuízo do cotidiano, uma interação menos rica do lesado com outras pessoas, coisas e interesses, provisórias ou definitivas" - tudo isso são ingredientes que formam o dano existencial.25 Há, todavia, argumentos contrários à reparação do dano existencial, quais sejam: Essa categoria de dano é um "modismo", não acrescentando nada de inovador ao dano imaterial já existente; Pode ensejar reparações em valores bastante altos, com um representativo prejuízo e problema à sociedade; Não existe um valor padrão, o que pode facilitar abusos; É difícil visualizá-lo, uma vez que cada pessoa tem um tipo de reação diferente para situações semelhantes; Há o perigo do colapso da responsabilidade civil extracontratual, visto que dissabores podem permitir uma indenização, desprestigiando o instituto da reparação e ocasionando um aumento no número de ações propostas; Se a responsabilidade civil está, em regra, baseada na culpa, responsabilizar uma pessoa sem que ela tenha podido prevenir ou evitar o dano, não teria cabimento.26 Acerca da prova do dano existencial deve-se, primeiramente, decidir qual é a sua natureza jurídica: Se consequencialista ou se considerado dano evento. No primeiro caso, a prova do dano será a efetiva alteração do quotidiano do lesado, como fonte do ilícito tanto contratual como extracontratual, diferenciando-se, nesse particular, acerca do ônus da prova. Se considerado dano evento, basta a lesão a um bem constitucional, ou seja, deve-se provar o fato lesivo propriamente dito, sem importar a consequência.27 Voltando ao dano imaterial, a responsabilidade civil por danos imateriais vem regulada em diversos artigos, tais como: art. 1º, III e art. 5º, V e X da CF/88; art. 6º, VI e VII do CDC; art. 17, combinado com o art. 201, V, VIII e IX do ECA; art. 946 e art. 186 combinado com 927, todos do Código Civil de 2002, como regras gerais; casuisticamente, os arts. 948, 949, 953, 954, todos do Código Civil de 2002. A preocupação é, pois, com a chamada "indústria do dano moral". Esta acaba sendo estimulada pelo fato de: O valor da causa em uma ação de reparação de danos pode ser o valor de alçada, isto é, pagam-se as custas com base neste valor; A parte pode pleitear assistência judiciária gratuita, portanto, não terá gastos com o processo; A Súmula 326 do STJ garante que não há sucumbência recíproca, ou seja, o autor só será o sucumbente quando o seu pedido for julgado improcedente, sendo óbvio, desta forma, que aquele que move ação de reparação por danos imateriais pode não ter nada a perder, vendo em qualquer situação a hipótese de pleito de dano imaterial. Uma possível sugestão de solução para o recém referido problema seria excluir a ressarcibilidade de muitas das imaginadas modalidades de dano, propagando-se a ideia de que o dano, para ser ressarcido, deve dizer respeito a interesses que realmente mereçam proteção e reparação. O que se pode constatar é que, com a erosão do filtro nexo causal, e, em se tratando de responsabilidade objetiva, o único filtro capaz de funcionar é o dano, por isso a preocupação com a sua constatação. Schreiber28 contempla como proposta para o desincentivo de demandas frívolas a reparação não-pecuniária dos danos extrapatrimoniais, sugestão com a qual não se concorda, pois o sujeito só sente que fez algo errado quando é obrigado a dispender, mas que por uma questão de honestidade traz-se os argumentos. O pagamento de uma soma em dinheiro, por danos não-patrimoniais, faz crescer sentimentos mercenários29, e pode levar à conclusão de que a pessoa está autorizada a lesar, desde que tenha dinheiro para pagar, ou seja, desde que possa arcar com o "preço" correspondente. Sugere, também, a retratação pública, não necessariamente para substituir ou para eliminar a compensação em dinheiro, mas para ser associado a ela. Comenta o autor que, nos ordenamentos do Civil Law, o valor das indenizações por dano imaterial tem-se mantido baixo e que esta insuficiência igualmente é frustrante para a vítima. Defendendo, também, a reparação in natura, Rabindranath de Souza30 esclarece que "a obrigação da indenização deve, em princípio, revestir o modo de reconstituição natural ou de indenização em espécie, por ser esta a forma mais perfeita de reparação dos danos concretos ou reais e que melhor garante a integridade das pessoas e dos bens"; dito de outra maneira, o lesante deve restar obrigado a "reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento (violador da personalidade) que obriga à reparação". Desta forma, em caso de furto ou de detenção ilícita de manuscritos, deve-se devolvê-los; se alguém indevidamente gravou conversa alheia, deve destruir os registros; quem ofendeu outra pessoa deverá destruir a corporização da ofensa e retratar-se. Em contrapartida, sustenta-se que o dano, mesmo imaterial, deve ser ressarcido de forma pecuniária, sem que isso traga consigo o caráter pejorativo da mercantilização. É, sim, uma visão utilitarista, mas ela está sempre presente nas mais diversas relações privadas - é inerente a estas relações. Igualmente, concorda-se que a retratação ou o desagravo sejam formas cumuláveis com a soma a ser despendida pelo cometimento de um dano imaterial, porque nem todos que leram a notícia vexatória, por exemplo, vão ler o desagravo, sendo apenas este, desta forma, insuficiente. E sobre o argumento de os valores destas reparações serem baixos, a solução é efetivamente se alcançar um caráter punitivo ao dano, elevando-se, substancialmente, os valores a serem pagos às vítimas. Observa-se, então, que a reparação in natura, como já foi salientado, traz consigo fortes limitações, havendo a necessidade, no mais das vezes, de complementá-la ou de substituí-la por dinheiro. Deve-se, pois, ter em mente que: A reconstituição natural pode não mais ser possível ou ter-se tornado impossível, tanto material como juridicamente, como no caso da morte, no caso da destruição de manuscritos que não têm como ser recompostos; A reconstituição pode não reparar integralmente os danos, devendo ser complementada com pagamentos em dinheiro, como no caso da injúria, em que só a retratação não repara, uma vez que nem todos que ouviram a injúria ouvirão as desculpas; A reconstituição natural pode não ser exigível quando for excessivamente onerosa para o devedor, assim "se algumas cenas de um filme industrializado contiverem referências inexatas ou não verdadeiras acerca da identidade da personalidade de certa pessoa mas forem essenciais à compreensão da perspectiva fílmica do realizador, não haverá lugar à destruição do filme e respectivas cópias, nem ao corte das cenas", cabendo, eventualmente, uma indenização em dinheiro.31 Como no dano imaterial a dificuldade é o arbitramento do seu valor, tendo em vista o grau de subjetividade que permeia o assunto, há quem defenda32 que o ideal seria estabelecer "grupos de casos típicos" de acordo com o interesse extrapatrimonial concretamente lesado. Assim, vão-se construindo, por meio da jurisprudência, alguns tópicos ou parâmetros que possam atuar, pela pesquisa do precedente, como "amarras à excessiva flutuação do entendimento jurisprudencial". Certamente, pode-se dizer que: "A reparação dos danos extrapatrimoniais, especialmente a quantificação da indenização, constitui o problema mais delicado da prática forense na atualidade, em face da dificuldade de fixação de critérios objetivos para o seu arbitramento". 33 Cumpre observar, outrossim, que a jurisprudência34 e a doutrina já traçaram alguns requisitos a serem examinados pelo julgador quando do momento do arbitramento do dano imaterial, sem, todavia, haver regras legais expressas sobre o assunto. O fato é que exigir do legislador a elaboração dessas regras não traria, salvo melhor juízo, a justiça esperada, porque, como cada caso é único, com as suas especificidades, melhor não há do que deixar ao prudente e razoável arbítrio do juiz a decisão do valor no caso concreto, embora tendo por base dados bastante subjetivos. Resta ao inconformado, no entanto, o seu direito de recorrer da decisão. Carlos Roberto Gonçalves35 enumera um apanhado dos critérios a serem analisados pelo juiz no momento do arbitramento: "a) a condição social, educacional, profissional e econômica do lesado; b) a intensidade de seu sofrimento; c) a situação econômica do ofensor e os benefícios que obteve com o ilícito; d) a intensidade do dolo ou o grau da culpa; e) a gravidade e a repercussão da ofensa; f) as peculiaridades e circunstâncias que envolveram o caso, atentando-se para o caráter antissocial da conduta lesiva". Carlos Alberto Bittar36 igualmente recorda que há fatores subjetivos e objetivos relacionados às pessoas e que acabam influindo no espírito do julgador, como, por exemplo, a análise do grau da culpa do lesante, a eventual participação do lesado na produção do dano, a situação patrimonial e pessoal das partes e o proveito obtido com o ilícito. Quanto ao Direito português, comenta Rabindranath de Souza que o valor dos danos imateriais será fixado equitativamente pelo tribunal, devendo-se levar em conta o grau da culpabilidade do agente, a situação econômica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso; assim, se A mata ou injuria B, o tribunal fixará equitativamente em dinheiro a compensação pelo dano morte ou pela violação da honra, tomando por conta a intensidade do dolo ou a mera culpa de A, a sua situação econômica e a de B, a idade e a saúde de B, em especial no caso de morte, a reputação social de B, a gravidade e a publicidade da ofensa caso se trate de injúria, e outras circunstâncias importantes para o caso em concreto.37 No Direito francês, há uma escala de critérios a fim de avaliar o dano sofrido: Muito leve, leve, moderada, média, suficientemente importante, importante e muito importante. Essa qualificação é aproximativa, porém ajuda o médico responsável a enxergar a extensão do dano, cabendo ao juiz determinar a conversão do dano em compensação, sem, repisa-se, valer-se de critérios objetivos. Já o prejuízo estético, compara o autor, pode ser facilmente verificável, mas se continua sem critérios para reparar esses danos - cada juiz tem o arbítrio de achar a própria indenização. Fará o juiz uma comparação daquilo que o lesado podia fazer antes do dano e do que ele pode fazer após o dano - apreciação, esta, extremamente subjetiva.38 Em sentido contrário, ou seja, criticando os referidos critérios, Anderson Schreiber39 defende que "as Cortes empregam critérios equivocados como a prova da dor, vexame, sofrimento ou humilhação - consequências eventuais e subjetivas do dano, que nada dizem com a sua ontologia -; ou ainda a gravidade da ofensa - critério que, consagrado sob a fórmula de que 'o mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral 40'". Alega o autor que a aplicação desses critérios é uma verdadeira inversão na axiologia constitucional, em que qualquer prejuízo suscita reparação; ainda complementa, afirmando que "na já pressentida inadequação de tais critérios seletivos, muitos Tribunais renunciam à tarefa, caindo em uma reparação indiscriminada, guiada tão-somente pela proteção à vítima". Igualmente contrária ao uso dos critérios mencionados, Maria Celina Bodin de Moraes41 pontua que estes não devem ser utilizados, pois são próprios do juízo de punição, como as condições econômicas do ofensor e a gravidade da culpa. A autora sustenta que tais elementos dizem respeito ao dano causado, e não ao dano sofrido, e que há outros critérios irrelevantes, pois também se referem à conduta propriamente dita, como a proporcionalidade entre a vantagem de quem praticou o dano e o prejuízo causado a terceiro, a presença ou a ausência de intenção, a previsibilidade ou a boa-fé, o interesse de quem causou o dano ou a intenção de prejudicar outrem. A reparação do dano imaterial, conforme já foi referido, deve ser encarada não como um pagamento pela dor causada, mas como uma compensação que se possa dar à vítima, com o objetivo de lhe alcançar um lenitivo para o seu abalo. Fala-se, deste modo, não em pretium doloris (preço da dor), mas em compensatio doloris (compensação para a dor), com o que se concorda, sob o argumento de que é melhor isso a deixar a lesante sem reprimenda. Outra dificuldade do dano imaterial é a sua prova. De fato, a prova de um dano imaterial não tem como ser feita da mesma forma que a de um dano patrimonial, pois não se tem como provar dor, sofrimento, humilhação, por documentos ou testemunhas; deste modo, há quem defenda que o dano imaterial existe in re ipsa, ou seja, ele é ínsito à própria ofensa, bastando a prova desta última para que se tenha aquele como existente. Por exemplo, no caso de alguém difamado em uma revista, basta a prova da notícia difamatória nessa revista para que dessa ofensa decorra uma presunção natural de dano, sentimento inerente a qualquer pessoa. Carlos Alberto Bittar42 igualmente expressa que, no que toca à constatação do dano, a responsabilidade do agente decorre, quanto aos danos imateriais, "do simples fato da violação, tornando-se, portanto, desnecessária a prova do reflexo no âmbito do lesado, ademais, nem sempre realizável"; dito de outra maneira, o sistema contenta-se com a simples causação, pela consciência que se tem de que alguns fatos afetam a moralidade tanto individual como coletiva, lesionando-a. Ressalva o autor que "não se cogita, mais, pois, de prova de prejuízo moral". Sobre o tema, mas contestando essa forma consagrada, Anderson Schreiber disserta que "na impossibilidade de prova matemática do dano moral, concluem, sem ulterior reflexão, que 'não é preciso que se demonstre a existência do dano extrapatrimonial. Acha-se ele in re ipsa, ou seja, decorre dos próprios fatos que deram origem à propositura da ação43'". (Grifou-se) E continua o autor, afirmando, sem o acompanhamento de doutrina e de jurisprudência majoritárias, que a prova da dor deve ser dispensada, mas não porque é inerente à ofensa, e, sim, porque o dano imaterial independe da dor, consistindo este na própria lesão, e não nas suas consequências. Neste sentido, "como se vê, a pretendida dispensa da prova abarca tão-somente as consequências da lesão sobre a sensibilidade da vítima, não já a lesão em si".44 Para Schreiber, deve-se reconhecer no dano imaterial a lesão a um interesse não- patrimonial concretamente, e não abstratamente, merecedor de tutela. Defende, portanto, que a lesão ocorre objetivamente e que a sua verificação deve dar-se de forma desvinculada da repercussão no estado de espírito da vítima. Outrossim, cumpre recordar que o STJ editou a Súmula 227 que preceitua: "a pessoa jurídica pode sofrer dano moral", até porque é forçoso concluir que a pessoa jurídica também titulariza alguns direitos especiais de personalidade, tais como o nome, a imagem, a reputação, o sigilo; ou seja, pessoa jurídica tem honra objetiva. O STJ, no recurso especial 60.033.2-MG, encampou essa tese, declarando que: "a honra objetiva da pessoa jurídica pode ser ofendida pelo protesto indevido de título cambial, cabendo indenização pelo dano extrapatrimonial daí decorrente". O desdobramento da honra, para fins de se tornar a pessoa jurídica sujeito passivo de dano imaterial, diz respeito ao conceito e ao crédito que ela desfruta na comunidade, em decorrência da eficiência de um mister ou da qualidade de um produto destinado ao público. Esta proteção refere-se às ofensas ao bom nome, cuja natureza é estendida às pessoas jurídicas, mas não sem críticas a isso. Não se pode ainda esquecer que o CDC (lei 8.078/90), no art. 6º, inciso VI, seguindo esta linha de raciocínio, previu a concessão de reparação destes danos à pessoa jurídica, tanto ao estatuir a reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos como pelo fato de que no art. 2º conceitua consumidor como toda a pessoa física ou jurídica, deixando claro que tanto uma quanto outra pode sofrer danos imateriais. A despeito desse entendimento, Maria Celina Bodin de Moraes45 destaca, no entanto, que a pessoa jurídica não seria passível de reparação por dano moral: "a propósito, não se pode deixar de assinalar a enorme incongruência da jurisprudência nacional, seguida pela doutrina majoritária, no sentido, de um lado, de insistir que o dano moral deve ser definido como dor, vexame, tristeza e humilhação e, de outro lado, de defender a ideia de que as pessoas jurídicas são passíveis de sofrer dano moral". Cumpre salientar, por outro lado, que há danos contra os quais as pessoas não são protegidas, pela simples razão de representarem o procedimento normal e necessário do exercício de um direito subjetivo determinado, como é o caso do direito à concorrência comercial (que é o poder dado a todo o empresário de atrair para si, por meios legais, a clientela de outro); a liberdade de crítica (que é o direito de emitir apreciações desfavoráveis sobre uma obra literária ou artística); o direito de greve (que é um cessar o trabalho de forma organizada e geral). Todos são exemplos de danos lícitos, ou seja, o desenvolver necessário e normal do exercício de um direito ou de uma liberdade, uma vez que o direito à segurança desaparece: A própria lei autoriza a execução do dano, caso em que não é o ato somente que é lícito - é o próprio dano que é autorizado. São, pois, casos em que a liberdade de ação ganha da segurança. Há casos, ainda, em que o conteúdo dos direitos subjetivos ou das liberdades individuais é impreciso e variável de acordo com as circunstâncias de tempo, de espaço, de pessoa, como, por exemplo, o direito de exprimir o seu pensamento que pode causar danos à reputação. Contudo, em outras situações, haverá o dever de reparar pelo fato de se ter violado um direito fundamental da pessoa. Igualmente fazendo alusão à liberdade, Carlos Alberto Bittar46 assinala que "a teoria da responsabilidade civil encontra suas raízes no princípio fundamental do neminem laedere, justificando-se diante da liberdade e da racionalidade humanas, como imposição, portanto, da própria natureza das coisas", e o autor ainda complementa que: "Ao escolher as vias pelas quais atua na sociedade, a pessoa assume os ônus correspondentes, apresentando-se a noção de responsabilidade como corolário de sua condição de ser inteligente e livre". O que se busca, em verdade, é uma proteção que possibilite a reparação de danos que atingem o que não tem preço, mas tem valor. ________ BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BUSNELLI, Francesco Donato. Il danno alla persona al giro di boa. Danno e Responsabilità, ano 8, 2003. CAPELO DE SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. CASSANO, Giuseppe. La Giurisprudenza del danno esistenziale. Piacenza: Casa Editrice La Tribuna, 2002. CENDON, Paolo. Il danno esistenziale. In: CENDON, Paolo; ZIVIZ, Patrizia (orgs.). Il danno esistenziale. Una nuova categoria della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2000. COMANDÉ, Giovanni. Risarcimento del danno alla persona e alternative istituzionali. Studio di Diritto Comparato. Torino: G. 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Milano: Giuffrè, 1999. p. 665. 8 BITTAR, 1994, op. cit., p. 29-30, 34.. 9 SCHREIBER, 2007, op. cit., p.101-102. 10 ITURRASPE, 1999, op. cit., p. 113-117. 11 CORRÊA DE ANDRADE, 2009, op. cit., p. 63. 12 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 457. 13 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 182. 14 BODIN DE MORAES, 2003, op. cit., p. 188. 15 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 577-578. 16 EDELMAN, 1999, op. cit., p. 505. 17 TOMASINI, Raffaele. Soggetti e area del danno risarcibile: l'evoluzione del sistema. Turim: G. Giappichelli Editore, 2001. p. 4. 18 Expressão de BUSNELLI, Francesco Donato. Il danno alla persona al giro di boa. Danno e Responsabilità, ano 8, p. 243, 2003. 19 TEPEDINO, 2004, op. cit., p. 22. 20 SESSARIEGO, Carlos Fernandez. Protección a la persona humana. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 56, p. 87-88, 1992. 21 Súmula n. 37 do STJ: "São cumuláveis as indenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato". 22 MARINHO, Josaphat. Os Direitos da Personalidade no Projeto do novo Código Civil brasileiro. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. 40, 2000. 23 Cumpre ressaltar a pertinente obra da autora brasileira, Flaviana Rampazzo Soares, que resolveu aclarar o tema, com base em suficiente e pertinente doutrina italiana, para fins de auxiliar o intérprete brasileiro, acenando com a novidade, no sentido de uma possível aplicação do dano existencial no ordenamento brasileiro. SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 24 CENDON, 2000, op. cit., p. 8-9. 25 SOARES, 2009, op. cit., p. 44-47. 26 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 62-63. 27 CASSANO, Giuseppe. La Giurisprudenza del danno esistenziale. Piacenza: Casa Editrice La Tribuna, 2002. p. 86-87. 28 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 187 e ss. 29 MARELLA, Maria Rosaria. La riparazione del danno in forma specifica. Pádua: Cedam, 2000. p. 290. 30 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 463. 31 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 464. 32 MARTINS-COSTA, 2002, op. cit., p. 439. 33 SANSEVERINO, 2010, op. cit., p. 275. 34 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível 2007. 001.02811, j. 28.2.2007. 35 GONÇALVES, 2010, op. cit., p. 577. 36 BITTAR, 1994, op. cit., p. 209. 37 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 466. 38 VINEY, 1988, op. cit., p. 203. 39 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 6. 40 STJ, Recurso Especial 403.919/MG, j. 15.5.2003. 41 BODIN DE MORAES, 2003, op. cit., p. 332. 42 BITTAR, 1994, op. cit., p. 199. 43 STJ, Recurso Especial 880.035/PR, j. 21.11.2006. 44 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 6, 193, 195.