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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Nelson Rosenvald
1. Introdução Desde a aprovação do AI Act como regulamento europeu - concebido com o objetivo de estruturar um regime preventivo para sistemas de inteligência artificial - havia a expectativa de que o texto viesse acompanhado de disposições expressas sobre responsabilidade civil por danos causados por IA. Contudo, apesar das inúmeras discussões travadas no Parlamento Europeu, o texto final do regulamento não incorporou tais previsões. O AI Act, em sua versão definitiva, não contém regras específicas sobre regimes de responsabilidade civil. Além disso, em 2025, a Comissão Europeia decidiu retirar da sua agenda a proposta de Diretiva de Responsabilidade por IA (AILD - AI Liability Directive), que inicialmente buscava complementar o regulamento. Estas brevíssimas reflexões têm como objetivo examinar essa posição: os motivos que levaram a União Europeia a não incluir regimes de responsabilidade civil no AI Act nem a avançar com a diretiva correspondente, bem como os argumentos e obstáculos enfrentados no processo. Busca-se, ainda, refletir sobre as lições que essa experiência europeia pode oferecer ao Brasil, especialmente no contexto do debate sobre a regulação da responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial. 2. Panorama da proposta original de responsabilização em IA na UE Para compreender a relevância da retirada, convém relembrar o arcabouço inicial das discussões regulatórias na UE: Em 2022, a Comissão propôs a AILD - AI Liability Directive, com o objetivo de complementar o AI Act e preencher lacunas no regime de responsabilidade civil, adaptando as normas de responsabilidade não contratual para os danos causados por sistemas de IA. Essa proposta contemplava instrumentos como: presunção de nexo causal (em casos de sistemas de alta complexidade); ordenação judicial de divulgação de evidências por operadores de IA (documentos, logs) quando necessário para apuração do dano; flexibilização do ônus da prova para vítimas em situações de opacidade algorítmica. Em paralelo, a revisão da Diretiva de Responsabilidade por Produtos (PLD - Product Liability Directive) buscava expandir o conceito de produto para abarcar software e IA, reconhecendo que essas tecnologias deveriam se submeter a regras de responsabilidade objetiva tradicionais quando causassem dano. Portanto, o modelo europeu pretendido era de dupla camada: o AI Act cuidaria da regulação preventiva (obrigações de conformidade, transparência, requisitos técnicos etc.), ao passo que a AILD e a PLD revisitada serviriam para garantir a reparação ex post, com regras de responsabilidade civil adaptadas ao contexto da IA. Nesse sentido, confira-se a tabela adiante: Instrumento AI Act - AIA (2024) Diretiva UE 2024/2853 (Product Liability Directive - PLD) AI Liability Directive (AILD)   Objeto principal Segurança, classificação de risco e conformidade de sistemas de IA Responsabilidade por produtos defeituosos Responsabilidade civil por danos causados por IA fora das relações de consumo Tipo de relação regulada Qualquer uso de IA (abrangência geral) Relações de consumo Relações civis extracontratuais (não consumeristas) Responsabilidade prevista Não trata de responsabilidade civil, mas impõe deveres ex ante Objetiva Subjetiva com mecanismos de facilitação probatória Situação atual Vigente Vigente Arquivada em fev. 2025 Tabela comparativa criada pelos autores sobre os instrumentos europeus relacionados à regulamentação da IA  3. Retirada da proposta de responsabilidade civil: fatos e motivações Em fevereiro de 2025, a Comissão Europeia incluiu formalmente na sua programação de trabalho a retirada da proposta de diretiva sobre responsabilidade civil extracontratual em IA (AILD). Tal decisão fez parte de uma inflexão mais ampla na política regulatória europeia, marcada por um movimento de simplificação normativa e estímulo à competitividade tecnológica. O marco simbólico dessa mudança foi o AI Summit 2025, evento realizado em Paris, que reuniu líderes de mais de 100 países e cujo documento final não apoiou a adoção de medidas restritivas ao desenvolvimento e à aplicação da IA. Pelo contrário, prevaleceu um discurso de desregulamentação seletiva e de alinhamento com tendências globais mais liberais, diante do receio de que regulações excessivamente onerosas comprometam a capacidade da Europa de competir no setor de inteligência artificial. A influência dos Estados Unidos foi particularmente notória nesse contexto. Durante o evento, o vice-presidente norte-americano JD Vance criticou de forma contundente o excesso de rigidez normativa na regulação da IA (overregulation), advertindo que ela poderia comprometer a ascensão de um setor transformador. Suas declarações foram alinhadas à política pró-inovação do governo Trump-Biden, em forte contraste com a abordagem regulatória mais cautelosa da União Europeia. Ao lado dessa pressão externa, também pesaram fatores internos, como o lobby de empresas europeias emergentes - em especial a startup francesa Mistral, especializada em IA generativa - e a resistência política de líderes como o presidente francês Emmanuel Macron, que, desde 2023, já se opunha à inclusão dos foundation models no escopo do AI Act, defendendo sua autorregulação. A Comissão Europeia, no seu programa de trabalho para 2025, adotou o lema "Avançando juntos: uma União mais ousada, simples e rápida", anunciando a retirada de 37 propostas legislativas, entre elas a AILD. A justificativa oficial foi a ausência de consenso político suficiente para sua aprovação. Nos bastidores, contudo, argumentou-se que, após a entrada em vigor do AI Act - que regula os sistemas de IA com base em níveis de risco -, uma diretiva paralela de responsabilidade civil tornar-se-ia redundante e excessivamente onerosa, sobretudo para pequenas e médias empresas. Essa reconfiguração sugere uma escolha evidente: substituir a tutela jurídica ex post por uma governança regulatória ex ante centrada no gerenciamento de riscos. Se, por um lado, essa opção favorece a atração de investimentos e o dinamismo do setor tecnológico europeu, por outro, há quem defenda que isso deixa desprotegido o espaço das relações civis extracontratuais fora do consumo - justamente o terreno mais permeável à insegurança jurídica. A retirada da proposta expõs a influência das pressões políticas e econômicas na regulação da inteligência artificial. A resistência de setores industriais e a preocupação com a competitividade digital muitas vezes prevaleceram sobre a construção de um regime jurídico de proteção mais robusto, revelando a tensão permanente entre os interesses de inovação tecnológica e a tutela efetiva dos direitos dos cidadãos europeus. Em resumo, com a revogação da AILD, a União Europeia abdica, ao menos por ora, de construir uma resposta jurídica sistêmica à complexidade da responsabilização civil em face de tecnologias autônomas. Nesses cenários, as vítimas devem recorrer ao Direito interno dos Estados-membros, que, em geral, adotam modelos de responsabilidade subjetiva, exigindo prova de culpa - um desafio significativo diante da complexidade técnica, do caráter autônomo e da opacidade dos sistemas de IA. 3.1 Motivos declarados Vale destacar que há 4 motivos expressamente declarados pela Comissão Europeia para a retirada da proposta de Diretiva de Responsabilidade por IA. O primeiro deles foi a falta de consenso entre Estados-membros e partes interessadas. Muitos governos nacionais manifestaram preocupação com a ingerência excessiva sobre seus sistemas de Direito Civil, considerados pilares de autonomia legislativa interna. Paralelamente, a indústria tecnológica exerceu forte pressão por regras mais simples e menos onerosas, temendo que um regime específico de responsabilidade para IA gerasse custos regulatórios desproporcionais e inibisse a inovação. Outro motivo relevante foi o temor de fragmentação normativa. A Comissão destacou a preocupação de que uma diretiva de responsabilidade civil, em vez de promover uniformização, acabasse por estimular soluções díspares entre os países, à medida que cada Estado-membro poderia transpor as normas de forma distinta, comprometendo a harmonização no mercado único europeu. Também pesou a complexidade técnica e jurídica do tema. Regulamentar juridicamente sistemas de inteligência artificial - caracterizados pela autoaprendizagem, opacidade algorítmica e interdependência de diferentes componentes - mostrou-se um desafio intrincado. Muitos avaliaram que seria arriscado introduzir específicos regimes de responsabilidade, presunções legais e regras de causalidade em um campo ainda marcado por incerteza científica e tecnológica. Por fim, a Comissão observou que a revisão da PLD - Product Liability Directive poderia ser suficiente para responder à maioria das situações envolvendo IA. A ampliação do conceito de produto para incluir software e algoritmos, aliada às novas presunções probatórias, foi considerada pela Comissão como capaz de suprir, ao menos parcialmente, a lacuna reparatória. 3.2 Consequências práticas da retirada Observa-se que o AI Act, em sua versão final, não contém regras sobre regime de responsabilidade civil, ficando essa matéria a cargo de outras diretivas ou da legislação nacional. Restou, como instrumento central, a revisão da Product Liability Directive, que alargou a definição de produto para incluir software/IA e ajustou regras de presunção e divulgação de evidências no âmbito dos produtos defeituosos. No entanto, a PLD atua essencialmente por meio do regime de responsabilidade objetiva por defeito, e não cobre plenamente a gama de casos que a AILD pretendia alcançar, como situações não estritamente "defeituosas" (por exemplo, decisões algorítmicas discriminatórias ou enviesadas) ou ocorrências fora de relações contratuais de consumo. Como visto, a decisão de excluir a responsabilidade civil do AI Act limita o alcance das obrigações preventivas nele estabelecidas. Embora o regulamento imponha exigências de conformidade, transparência e gestão de riscos, não há garantia de reparação direta em caso de dano. É possível que tribunais nacionais utilizem essas disposições como parâmetro indireto de "due care" na avaliação de condutas negligentes, mas tal aplicação dependerá de desenvolvimento jurisprudencial e poderá variar de acordo com cada ordenamento interno. A ausência de uma diretiva específica de responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial cria um vazio regulatório significativo. A inexistência de regras unificadas abre espaço para divergências jurisprudenciais entre jurisdições nacionais, criando insegurança tanto para as vítimas quanto para fornecedores que operam em diferentes países da União Europeia. Em vez de promover harmonização e previsibilidade, a retirada da AILD pode resultar justamente em fragmentação normativa no mercado único europeu. 4. Lições para o Brasil e implicações estratégicas No Brasil, o PL 2.338/23, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados, busca estabelecer um marco regulatório para a IA. É adotada a lógica de classificação de riscos, inspirada no AI Act, com previsão de medidas preventivas. Todavia, os seus dispositivos sobre responsabilidade civil (arts. 27 a 29) vêm sendo criticados pela falta de densidade normativa e sofisticação dogmática. A previsão contida no art. 27, por exemplo, proclama a adoção de um regime de responsabilidade objetiva, mas condiciona sua incidência à análise da participação do agente na ocorrência do dano. Ao proceder assim, reintroduz, ainda que de forma implícita, a necessidade de avaliação da conduta, o que compromete a pureza do regime objetivo e aproxima o modelo proposto de uma responsabilidade subjetiva disfarçada. Nesse sentido, ensina Mafalda Miranda Barbosa (2024) que, apesar de louvado o projeto brasileiro com a previsão de uma hipótese de responsabilidade objetiva, "fica-se sem perceber por que motivo a responsabilização do agente de IA fica limitada a` sua participação no dano". E complementa: "não só pode não haver efetiva participação no dano - no sentido causalista do termo -, como, em moldes imputacionais, o grande problema pode ser não se conseguir discernir o grau de contribuição de cada interveniente no ciclo de vida do sistema". Significa isto que "mesmo dando-se um passo em frente, parece denotar-se aqui uma certa prisão a quadros dogmáticos que devem ser superados (em geral e, muito em particular, no tocante a` IA)." Ainda que o PL 2.338/23 busque inovar com a introdução de presunções de culpa e responsabilidade objetiva, a partir da classificação de riscos, essas categorias não se articulam organicamente com o restante do ordenamento jurídico nacional. Em vez de propor uma reconstrução conceitual (ressignificação) coerente com os desafios próprios da inteligência artificial, a proposta recorre a institutos clássicos - como culpa, nexo causal e dever de cuidado - sem reconfigurá-los à luz das transformações tecnológicas contemporâneas. Assim, o modelo revela-se híbrido e, em certa medida, anacrônico, na medida em que mistura elementos normativos tradicionais com categorias regulatórias recentes, mas sem empreender o esforço teórico necessário para compatibilizá-los de forma sistemática. Diante disso, algumas lições podem ser extraídas da experiência europeia: Separar regulação preventiva e regime de reparação deve ser considerada uma opção interessante, mas apenas se o legislador assegurar, em outro nível normativo, uma disciplina efetiva da responsabilidade civil. O Brasil pode estruturar a resposta por meio de revisões pontuais ao CDC e ao CC, incorporando, por exemplo: presunções de causalidade e de defeito em litígios envolvendo IA; atualização do conceito de defeito para abarcar autoaprendizagem; critérios de solidariedade para a cadeia de agentes tecnológicos. A fragmentação normativa é um risco concreto: sem coordenação, normas díspares podem surgir, gerando insegurança para fornecedores e desproteção para vítimas. 5. Conclusão O recuo da União Europeia em relação à inclusão de um regime específico de responsabilidade civil para a IA - seja no AI Act, seja na extinta AILD - é um movimento pragmático que reflete a complexidade do tema e a preocupação com a competitividade digital. Ao priorizar a gestão de riscos e a conformidade preventiva (ex ante), a UE optou por delegar a reparação (ex post) à revisão da PLD - Product Liability Directive e, principalmente, à legislação civil nacional dos Estados-membros. Para o Brasil, essa experiência europeia é mais do que um alerta: é um caminho estratégico a ser considerado. A tentativa do PL 2.338/23 de criar um regime híbrido - uma responsabilidade objetiva que, na prática, reintroduz a avaliação de conduta e nexo causal complexos - demonstra a fragilidade dogmática e o risco de insegurança jurídica ao misturar categorias tradicionais com a dinâmica da IA. Esse modelo pode se tornar anacrônico e ineficaz. Diante disso, a lição estratégica é defender a retirada das previsões de regimes de responsabilização civil do PL 2.338/23. O Brasil deveria assumir, de forma mais explícita, a separação entre prevenção e reparação adotada pela UE. O framework regulatório da IA deve se concentrar na governança e na gestão de riscos (ex ante). A reparação civil, por sua vez, deve ser garantida por meio de atualizações pontuais, focadas e cirúrgicas no CC e no CDC. Essas revisões poderiam incorporar instrumentos já debatidos - como presunções de causalidade, flexibilização probatória e atualização do conceito de defeito para abarcar software e a autoaprendizagem - de forma a garantir a proteção das vítimas, sem sobrecarregar o marco regulatório da IA com um regime civil incompleto e de difícil aplicação. Delegar a responsabilidade civil ao Direito privado existente, mediante ajustes estratégicos, é a melhor forma de harmonizar a inovação com a tutela efetiva de direitos. _______ Referências bibliográficas BARBOSA, Mafalda Miranda. IA, riscos e responsabilidade - uma reflexão em torno do Regulamento IA e do projeto de lei brasileiro nº 2338, de 2023. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, v. 33, n. 4, p. 163-189, out./dez. 2024. NOGAROLI, Rafaella. Medical liability and artificial intelligence: Brazilian and European legal approaches. Springer Nature: Cham, 2025. NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
O famoso e recente vídeo do youtuber Felca sobre "adultização precoce" gerou imenso impacto em diversos setores da sociedade. Sem coincidência, no dia 17/9/25 foi sancionado o assim chamado "ECA digital", que cria regras para combater a adultização de crianças no mundo virtual - quer se trate de redes sociais, sites, programas, aplicativos, jogos eletrônicos, etc. Contudo, já há algum tempo essa preocupante questão ocupa áreas limítrofes entre o direito familista e a responsabilidade civil. De acordo com dados de 2024 da ITU - União Internacional de Telecomunicações, compilados pela ONU, as crianças brasileiras de até 14 anos estão entre as pessoas que mais utilizam a internet no país, alcançando nível de acesso próximo a 95%1. No que tange à participação ativa dessas crianças, por meio de perfis, a TIC Kids Online Brasil divulgou dados alarmantes: 88% da população brasileira entre 9 a 17 anos possui perfis em plataformas digitais.2 A palavra sharenting nasce na língua inglesa como junção dos termos share (compartilhar) e parenting (parentalidade), referindo-se à prática dos responsáveis legais de expor, de forma excessiva, informações sobre crianças e adolescentes nas redes sociais (Medon, 2021)3. Já o fenômeno do oversharenting se refere a abusos parentais nos planos quantitativo e qualitativo4, ou seja: compartilhamento de dados pessoais, vexatórios ou abusivos disseminados na rede de forma irrazoável e irresponsável - e quase sempre com fins lucrativos.5 A difusão de dados de crianças e adolescentes gera diversos riscos sociais, incluindo ameaças à integridade física, psíquica e moral por contatos maliciosos de terceiros; a hiperexposição de dados pessoais e discriminação; a modulação e manipulação de comportamento; e a microssegmentação da prática abusiva e ilegal da publicidade infantil6. Também há o risco de roubo de identidade e captura da narrativa da história da vida, vez que a construção da identidade pessoal está intimamente ligada à construção da identidade virtual, que é modulada por terceiros.7 Dados recentes evidenciam a gravidade do problema: na América Latina e Caribe, cerca de 18% dos menores sofreram abuso com imagens online e 12% receberam solicitações sexuais pela internet em 2024 (Relatório de Desenvolvimento Humano, 2025). No Brasil, a SaferNet registrou 71.867 denúncias de exploração infanto-juvenil em 2023, um aumento de 70%.8 Portanto, o sharenting configura um fenômeno de risco multifacetado, que compromete não apenas a privacidade das crianças, mas também sua integridade física, psíquica e moral9. A propagação irresponsável de dados na internet possibilita manipulação de comportamento, potencializa os riscos de exploração criminosa e ameaça a construção da identidade infantil. Imperativo que sejam assegurados às pessoas em desenvolvimento os adequados instrumentos de prevenção e reparação da esfera civil.  À luz desses pressupostos, verifica-se que compartilhar ou permitir o compartilhamento de conteúdo de caráter degradante ou impróprio, relativo a menores, fere direito fundamental das crianças e adolescentes, notadamente a imagem, a honra, e a vida privada (art. 5º incisos V e X da CF/88). Essa conduta viola o disposto nos arts. 17 e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que impõem um dever geral de preservar a imagem e a identidade dos infantes, bem como protegê-los de qualquer ação de caráter vexatório ou constrangedor10.  Realizada pelos genitores, a exposição excessiva viola o dever parental de dirigir a educação dos filhos (art. 1634 do CC/02), configurando autêntico abuso de direito (art. 187 do CCB). Malfere, ainda, a LGPD, que em seu art. 14 exige que o tratamento de dados dos infantes seja realizado sempre de acordo com o seu melhor interesse e sob obrigatório consentimento e diligência dos responsáveis legais.11 No plano jurisprudencial, relevante foi o julgamento do REsp 1.783.269/MG, pelo STJ12. Nele foi reconhecida a responsabilidade civil do provedor de internet que, após notificado, nega-se a excluir publicação ofensiva envolvendo menor de idade, sendo-lhe imposto o pagamento de indenização pelos danos morais causados à vítima.13 Já no REsp 1.887.697/RJ, o STJ afastou qualquer dúvida sobre a aplicação das regras da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares, diante da amplitude conferida pelos arts. 186 e 927 do CC de 200214. Assim, a responsabilidade civil decorrente do sharenting insere-se no âmbito da responsabilidade extracontratual (aquiliana), podendo a pretensão indenizatória ser exigida dentro do prazo prescricional de três anos (art. 206, §3º, V, do CC/0215), a ser contado a partir da maioridade. Ainda no campo pretoriano, o TJ/MG reconheceu a responsabilidade civil do genitor que, por meio de publicações em redes sociais, expôs aspectos pessoais da vida de seu filho menor, inclusive desabafos sobre a paternidade e conflitos familiares. A Corte entendeu que essa conduta, enquadrada no fenômeno do sharenting, configurava ato ilícito por violar direitos da personalidade da criança, gerando sofrimento e angústia, sendo, portanto, passível de reparação por danos morais16. Todavia, importa frisar que nem todo compartilhamento é nocivo e que o ato de publicar conteúdo relacionado a menores de idade não acarreta automaticamente uma violação do dever parental de proteção. Em caso no qual houve a divulgação, pela própria genitora, da imagem de uma criança com autismo - acompanhada de relatos sobre os cuidados demandados em razão da condição neurotípica -, o TJ/SP afastou a obrigação de indenizar, prestigiando a liberdade de expressão parental de compartilhar dados sobre os próprios filhos de forma razoável e justificada.17 Em síntese, necessária é a implementação, no contexto parento-filial, das funções preventiva18 e repressiva da responsabilidade civil, direcionadas ao combate às condutas lesivas ao melhor interesse criança ou a adolescente, seja em razão do volume ou da qualidade do conteúdo exteriorizado. No atual cenário de onipresença das redes sociais, a adequada formação psicossocial dos menores exige a tutela responsável de sua imagem e a mitigação das consequências sociais e psicológicas do sharenting - incluindo-se a reparação integral do dano causado por exageradas exposições midiáticas perpetradas por genitores gananciosos. _______ 1 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Human Development Report 2025: A matter of choice: People and possibilities in the age of AI [Relatório de Desenvolvimento Humano 2025: Uma questão de escolha: Pessoas e possibilidades na era da IA]. Nova Iorque: UNDP, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2025. No que tange à participação ativa dessas crianças, por meio de perfis, a TIC Kids Online Brasil, divulgou dados alarmantes que estimam que 88% da população brasileira entre 9 a 17 anos possuí perfis em plataformas digitais (ONLINE, Tic Kids. Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC Kids Online Brasil 2024 [livro eletrônico] / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. - São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2025). 2 ONLINE, Tic Kids. Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC Kids Online Brasil 2024 [livro eletrônico] / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. - São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2025. A partir da análise dos dados da TIC Kids, a maior parte dos usuários se concentram na rede social Instagram, seguido pelo Youtube e o TikTok. O acesso majoritário a essas redes pode sofrer alteração de acordo com o recorte da faixa etária, porém, é notável o crescimento do acesso às redes sociais na primeira infância, visto que, entre os anos de 2023 a 2025, houve um aumento de 13% no percentual da quantidade de crianças que acessam as redes sociais até os seis anos de idade. 3 MEDON, Felipe. (Over)sharenting: a superexposição da imagem e dos dados de crianças e adolescentes na internet e os instrumentos de tutela preventiva e repressiva. Disponível aqui. Acesso em: 22 out. 2025. 4 Assim, por mais que a prática ganhe percepção nos casos midiatizados, a superexposição também ocorre de forma silenciosa, pela violação da imagem subjetiva em virtude de compartilhamento não habitual ou pouco visualizado (TEPEDINO, Gustavo; MEDON, Felipe. A superexposição de crianças por seus pais na internet e o direito ao esquecimento. Indiatuba, SP: Editora Foco, 2021. Proteção de dados: temas controvertidos. Ebook). 5 "Em suma, o que realmente alarma são os pais que se utilizam da imagem dos filhos para angariar retorno financeiro, como é o caso de muitas famílias que vivem a vida a partir da renda advinda de canais do YouTube, como mencionado. A partir da discussão sobre o sharenting em casos como esses, surge a necessidade de avaliarmos quais direitos da criança estão sendo violados pelos pais, nessa má gestão de seu poder familiar, e em que ponto estão sendo atingidos seus direitos de personalidade" (SOARES, Marcelo Negri; PRAZAK, Maurício Ávila; TOKUMI, Carine Alfama Lima. A Possível Violação de Direitos de Personalidade de Crianças e Adolescentes pelos Pais e Consequências Jurídicas Ocasionadas pelo Fenômeno Conhecido como Sharenting. In: Revista Direito Comercial nº 54 - Ago/Set de 2023. 6 HARTUNG, Pedro; HENRIQUES, Isabella; PITA, Marina. A proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; SARLET, Ingo Wolfgang; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; BIONI, Bruno (coords). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 7 TEPEDINO; MEDON. Op. Cit. 8 OLIVEIRA, Marcelo. Safernet recebe recorde histórico de novas denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil na internet. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2025. 9 O Manifesto em Defesa da Melhoria da Governança de Dados de Crianças e Adolescentes, da UNICEF, exigiu o aperfeiçoamento da regulamentação para imposição de sanções e deveres acerca do compartilhamento de dados infantis. DAY, Emma; BYRNE, Jasmina; RAFTREE, Linda; UNICEF. The case for better governance of children's data: a manifesto. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 31 ago. 2025. 10 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 13563, 16 jul. 1990. 11 BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 ago. 2018. 12 REsp n. 1.783.269/MG, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 18/2/2022. 13 A decisão, ao ponderar entre a liberdade de expressão do emissor da publicação e os direitos da personalidade da criança, conferiu primazia ao interesse do infante, destacando que a solução de demandas dessa natureza deve observar os princípios basilares do Direito da Criança e do Adolescente, notadamente a proteção integral, o melhor interesse e a prioridade absoluta, consagrados no art. 227, caput, da Constituição Federal. Nesta linha de raciocínio, se ao provedor de internet se imputa responsabilidade civil pela manutenção do conteúdo, com ainda maior razão deve ser responsabilizado aquele que promoveu a divulgação ilícita da informação, inclusive o próprio genitor. 14 REsp n. 1.887.697/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 23/9/2021. 15 BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 11 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 24 de out. 2025 16 TJ/MG - Proc. nº 5008307-59.2021.8.13.0105, 3ª Vara Cível de Governador Valadares/MG, 23/04/2025. 17 TJSP; Apelação Cível 1015089-03.2019.8.26.0577; Relator (a): Vito Guglielmi; Órgão Julgador: 6a Câmara de Direito Privado; Foro de São José dos Campos - 6a Vara Cível; Data do Julgamento: 13/07/2020; Data de Registro: 13/07/2020. 18 Ocorre que como a pessoa humana não se realiza não mediante um único esquema de atuação subjetiva, mas por uma complexidade de situações qualificáveis caso a caso, sua tutela não pode se esgotar no "tradicional perfil do ressarcimento do dano. Assume consistência a oportunidade de uma tutela preventiva: o ordenamento deve fazer de tudo para que o dano não se verifique e seja possível a realização efetiva das situações existenciais". PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 766-768.
A responsabilidade civil dos notários e registradores já foi alvo de alterações legislativas e debates jurisprudenciais. O tema 777 do STF, de repercussão geral, sanou inúmeros pontos que eram discutidos acerca da responsabilização do estado e do agente delegado, mas também gerou uma nova discussão: com o tema 777, a responsabilidade do Estado é obrigatoriamente primária (direta) ou é possível ajuizar a ação de reparação de danos diretamente em face do agente delegado? Vamos traçar rapidamente uma cronologia do tema, desde a primeira redação do art. 22 da lei 8.935/1994: Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. O texto normativo original, portanto, estabelecia que não era necessária a demonstração de dolo ou culpa para que notários e registradores fossem responsabilizados por prejuízos decorrentes de atos inerentes à sua função, praticados por eles próprios ou por seus auxiliares. A verificação de dolo ou culpa se restringia, à época, à possibilidade de o titular da serventia exercer o direito de regresso contra seus prepostos. Em 2015, a lei 13.137 alterou a redação do art. 22, passando a dispor: Art. 22.  Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. (Redação dada pela lei 13.137, de 2015) Nesse momento, houve um acréscimo da responsabilização para os interinos e o dano passou a ser considerado inclusive ao relacionado a direitos e encargos trabalhistas. Já em 2016, a lei 13.286 deu nova redação ao texto (atualmente vigente): Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. (Redação dada pela lei 13.286, de 2016). Parágrafo único. Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial. (Redação dada pela lei 13.286, de 2016). Essa modificação alterou de forma significativa o conteúdo da norma, passando a condicionar a responsabilização de notários e registradores pela reparação de danos causados a terceiros à comprovação de culpa ou dolo. O direito de regresso contra os prepostos continuou garantido, contudo, a exigência de demonstração do elemento subjetivo (culpa ou dolo) passou a ser aplicável também à responsabilização direta do titular, afastando, assim, a lógica da responsabilidade objetiva. Contudo, em 2020, foi julgado o tema de repercussão geral RE 842.846/SC, que novamente alterou o entendimento: Tema 777: O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. A partir desse entendimento, consolidou-se a tese de que o Estado responde objetivamente pelos prejuízos decorrentes de atos praticados por notários e registradores. Uma vez efetuada a reparação, caberá ao Estado ajuizar ação regressiva contra o titular da serventia, desde que comprovada a existência de dolo ou culpa. O art. 22 da lei 8.935/1994 permanece em vigor, mantendo a natureza subjetiva da responsabilidade dos notários e registradores, sendo que o Tema 777 do STF acrescentou, de forma complementar, a responsabilidade objetiva do Estado nesses casos. Assim, inaugurou-se um novo debate jurisprudencial, discutindo-se se a vítima do dano é obrigada a acionar o Estado de forma primária ou se poderia optar por acionar o titular comprovando o dolo e a culpa. O entendimento é divergente entre alguns estados. Em São Paulo, o Tribunal se posiciona no sentido de que a responsabilidade do Estado é objetiva e direta, ou seja, não é subsidiária. Recurso inominado da FESP contra r. sentença que a condenou ao pagamento de indenização por danos materiais e morais, em razão de vício na prestação de serviços notariais - falha na prestação de serviço notarial incontroversa e comprovada - legitimidade passiva do ente público e inexistência de litisconsórcio necessário - responsabilidade objetiva direta (não subsidiária) do Estado - dever de indenizar, com possibilidade de regresso em face do agente responsável - Tema 777 do C. STF - existência de danos morais - razoabilidade do valor fixado (R$5.000,00) - negado provimento ao recurso da FESP - alteração da r . sentença de ofício apenas para adequação quanto à correção monetária e juros referentes aos danos materiais, em se tratando de repetição de valor de natureza tributária. (TJ/SP - Recurso Inominado Cível: 1004332-57.2022.8 .26.0281 Itatiba, Relator.: Fernando Bonfietti Izidoro, Data de Julgamento: 31/07/2023, 2ª turma Civel e Criminal, Data de Publicação: 31/7/2023) Recurso Inominado. 1ª turma Recursal da Fazenda Pública. Ação de danos materiais e morais. Autora pleiteia a devolução de valores pagos indevidamente ao 1º Cartório de Notas de Votuporanga/SP . Fazenda Pública do Estado de São Paulo sustenta, em sede recursal, ausência de comprovação do dano material e alega responsabilidade meramente subsidiária. Tese não acolhida. Conforme entendimento consolidado pelo STF no Tema 777 da repercussão geral (RE 842.846/SC), a responsabilidade civil do Estado pelos atos praticados por notários e registradores é objetiva e direta, cabendo-lhe a reparação integral ao terceiro prejudicado, com possibilidade de ação regressiva contra o delegatário mediante comprovação de dolo ou culpa . Aplicação do art. 22, parágrafo único, da lei 8.935/94. Documentos acostados aos autos evidenciam que a autora pagou R$ 14.472,00, valor superior ao efetivamente devido (R$ 10.273,16), resultando em cobrança indevida de R$ 4.198,84. Ainda que não juntado o recibo completo, o próprio requerido confirma o valor oficial, e há reconhecimento de fraudes praticadas no cartório, corroboradas por matérias jornalísticas . Comprovados o dano, a conduta lesiva e o nexo de causalidade, incide a responsabilidade objetiva da Administração Pública nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Inexistência de excludentes de responsabilidade, como culpa exclusiva da vítima. Presentes os requisitos legais, impõe-se a restituição integral do valor indevidamente cobrado . Recurso não provido. (TJ/SP - Recurso Inominado Cível: 10119847220248260664 Votuporanga, Relator.: Rubens Hideo Arai - Colégio Recursal, Data de Julgamento: 28/8/2025, 1ª turma Recursal de Fazenda Pública, Data de Publicação: 28/8/2025) Já no Rio de Janeiro, o entendimento é o de que não se verifica na Tese firmada no Tema 777 nenhum óbice para que se ajuíze a ação diretamente em face do titular, se houver a comprovação de dolo ou culpa, e que a responsabilidade do Estado é objetiva, mas subsidiária. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. FALHA NA ATIVIDADE NOTARIAL. DEMANDA EM FACE DO TABELIÃO. CHAMAMENTO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. IMPOSSIBILIDADE. De acordo com o disposto no art. 236 da CRFB/88, os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público . No tocante ao tema, por ocasião do julgamento do RE 842846/SC, com repercussão geral reconhecida relativa à Tese 777, o STF manifestou entendimento no sentido de que: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.". No entanto, depreende-se do acórdão exarado no referido julgamento inexistir óbice ao ajuizamento da ação diretamente em face do notário, oficiais de registro e seus prepostos por força da responsabilidade civil subjetiva de tais delegatários estabelecida no art. 22 da lei 8.935/1994, com redação atribuída pela lei 13.286/16. Nesse diapasão não há que se falar em afronta ao efeito vinculante da decisão proferida pelo STF em casos como o presente, na medida em que facultado ao prejudicado ajuizar ação em face do delegatário, que possui responsabilidade subjetiva, ou do Estado, que possui responsabilidade objetiva, mas subsidiária. Precedentes deste e. TJ/RJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJ/RJ - AI: 00778950320218190000, Relator.: des(a) . ANDRE EMILIO RIBEIRO VON MELENTOVYTCH, Data de Julgamento: 12/5/2022, VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/5/2022) AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE PRECEITO COMINATÓRIO CUMULADA COM INDENIZATÓRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA DO TABELIÃO, QUE PODE RESPONDER DE FORMA DIRETA E PESSOAL PELOS DANOS CAUSADOS NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CARTORÁRIO. ART. 22 DA LEI 8 .935/94. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS 842.846/SC E 1.027 .633/SP (TEMAS 777 E 940 DO STF) QUE NÃO AFASTARAM A POSSIBILIDADE DE A AÇÃO INDENIZATÓRIA SER DIRIGIDA DIRETAMENTE AO NOTÁRIO OU AO OFICIAL REGISTRADOR, TAMPOUCO FIXARAM EXPRESSAMENTE A APLICAÇÃO DA TEORIA DA DUPLA GARANTIA NO CASO DE RESPONSABILIZAÇÃO DESSES AGENTES PÚBLICOS ESPECÍFICOS. DESCABIMENTO DO CHAMAMENTO AO PROCESSO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, UMA VEZ QUE A SUA RESPONSABILIDADE, QUANTO AOS DANOS CAUSADOS PELOS NOTÁRIOS E OFICIAIS DE REGISTRO, NO EXERCÍCIO DE SUAS ATIVIDADES, É SUBSIDIÁRIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. 1 . Cuida-se de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida pelo juízo da Quinta Vara Cível Regional de Madureira que, em indenizatória, manteve a competência do juízo cível para o conhecimento e julgamento da demanda, diante da divergência existente na jurisprudência a respeito da natureza consumerista dos serviços notariais e de registro, bem como indeferiu o chamamento ao processo requerido, em virtude da ausência de solidariedade legal ou contratual entre o delegatário notarial e o Estado do Rio de Janeiro, salientando que a responsabilidade do ente estatal é subsidiária, consoante entendimento sedimentado pelo C. STF no julgamento do RE 842.856 (TEMA 777). Por fim, rejeitou as preliminares de ilegitimidade ativa e passiva, pois se confundem com o mérito e com ele serão apreciadas, assim como assentou que a prejudicial de prescrição será apreciada na sentença. [...] 20. Na hipótese dos autos, não se discute a responsabilidade do Estado, mas sim, a responsabilidade direta do próprio Tabelião em decorrência da má prestação do serviço delegado. 21. O art. 22 da lei 8.935/1994 prevê, expressamente, a possibilidade de o particular lesado ajuizar a ação diretamente contra os notários e registradores. 22. Nesse contexto, não se pode declarar a ilegitimidade passiva do responsável pelo cartório e conferir ao Estado a responsabilidade exclusiva e direta por responder acerca de danos eventualmente causados a particulares, uma vez que a parte lesada não precisa, necessariamente, acionar primeiramente o Estado, tendo em vista que não se aplica a tese da dupla garantia para os notários e registradores, assim como estes não são se constituem servidores públicos, mas particulares em colaboração. 23. No entanto, incumbirá a parte demandante provar o dolo ou a culpa do titular do cartório, considerando que a responsabilidade do notário ou registrador é subjetiva. 24. A lei 13 .286/16, ao alterar o art. 22 da lei 8.935/94, estabeleceu que a responsabilidade civil dos notários e registradores é subjetiva. 25 . Descabimento do pedido de chamamento do processo, tendo em vista a responsabilidade subsidiária (e não solidária) do Estado quanto aos danos causados pelos notários e oficiais de registro, no exercício de suas atividades, cabendo ao Estado, como visto, o direito de regresso contra o causador do dano em caso de dolo ou culpa. 26. Recurso conhecido e provido em parte. (TJ/RJ - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 00334529320238190000 202300246324, Relator.: des(a) . MÔNICA MARIA COSTA DI PIERO, Data de Julgamento: 30/7/2024, PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 8ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 1/8/2024) No estado do Mato Grosso do Sul, por outro lado, verifica-se uma divergência recente. Em julgado de 2024, o Tribunal se manifestou no sentido de que o Tema 777 não afasta a responsabilidade direta dos titulares e que o Tema 940 é inaplicável1. AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANO PATRIMONIAL C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO - LEGITIMIDADE PASSIVA DE EX-TABELIÃO/DELEGATÁRIO - AÇÃO AJUIZADA CONTRA O ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL E O EX-TABELIÃO/DELEGATÁRIO - TEMA 777 DO STF NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE DIRETA E SUBJETIVA DOS NOTÁRIOS E TABELIÃES - FIXOU-SE A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELOS DANOS CAUSADOS POR ESTES POR DOLO OU CULPA NO EXERCÍCIO DE SEU MUNUS - TEMA 940 DO STF TAMBÉM INAPLICÁVEL - DECISÃO REFORMADA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ/MS - Agravo de Instrumento: 14078187120248120000 Campo Grande, Relator.: Des. Amaury da Silva Kuklinski, Data de Julgamento: 25/7/2024, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/7/2024) Porém, houve divergência num julgado de 2025, no sentido de que, a partir do Tema 777, os tabeliães e os registradores "são partes ilegítimas para figurarem diretamente nas ações relacionadas aos atos praticados no exercício de suas funções". APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS C/C PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA CAUTELAR - EMENDA À INICIAL PARA CONVERTER O FEITO PARA REPARAÇÃO DE DANOS - PROCURAÇÃO DE PODERES DE COMPRA E VENDA - ILEGITIMIDADE PASSIVA DO TABELIÃO PARA RESPONDER POR DANO RELACIONADO A SUA ATIVIDADE - TEMAS 777 E 940, DO STF - REPERCUSSÃO GERAL -VALOR DA CAUSA - MANTIDO - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS - INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR DA CAUSA - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Apelação interposta pelos autores contra sentença que declarou a ilegitimidade do Tabelião para figurar na presente demanda de Ação de Exibição de Documentos c/c Pedido de Tutela de Urgência Cautelar, convertida em Reparação de Danos . II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Discute-se no presente recurso: a) a legitimidade passiva do tabelião para responder por dano relacionado a sua atividade; b) a correção do valor da causa; e c) o valor dos honorários advocatícios sucumbenciais. III . RAZÕES DE DECIDIR 3. Sobre a responsabilidade dos tabeliães e registradores, o Plenário do STF fixou tese no sentido de que: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa." Tema 777/RG (RE 842.846) . 4. O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa (Tema 777/STF); assim, os tabeliães e os registradores são partes ilegítimas para figurarem diretamente nas ações relacionadas aos atos praticados no exercícios de suas funções. 5 . Estabelece o art. 292, inc. V, do CPC, que no caso de ação de indenização, o valor da causa será o quantum pretendido. 6 . Se a parte autora, ao emendar a inicial, indicou qual é o valor da sua pretensão reparatória (somatório dos danos alegadamente sofridos), este será o critério adotado para a fixação do valor da causa. 7. Inexistindo condenação e também proveito econômico na hipótese de extinção sem resolução do mérito, o único critério legal restante é o valor da causa, que foi adequadamente aplicado na sentença.. IV. DISPOSITIVO 8. Apelação Cível conhecida e não provida. (TJ/MS - Apelação Cível: 08021707020228120020 Rio Brilhante, Relator.: des . Paulo Alberto de Oliveira, Data de Julgamento: 16/4/2025, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 23/4/2025) Não existe, por enquanto, portanto, uma confluência da jurisprudência sobre o tema. Por um lado, pode-se interpretar que, em análise conjunta dos Temas 777 e 940, a ação de reparação de danos deve ser proposta apenas em face do Estado, não sendo possível que o titular figure no polo passivo da ação. Esse entendimento alinha-se no fundamento de que o Estado é o responsável pela fiscalização dos serviços públicos e responde perante o cidadão independentemente do dolo ou culpa. Por outro lado, diante da omissão do Tema 777 sobre a responsabilidade do Estado ser direta, abre-se margem também para entender que é possível que o particular escolha contra quem ingressar, não estando restrito obrigatoriamente a mover a reparação do dano em face do Estado. Nesse caso, cabe ao particular decidir o que melhor lhe convém para garantir a reparação de seu dano. Para nós, a melhor posição teria sido a do voto divergente do ministro Marco Aurélio quando do julgamento do tema, que entendia não ser cabível a aplicação do § 6º do art. 37 da CF à atividade notarial e registral, na medida em que existe uma regra específica no art. 236 da CF definindo que a atividade é prestada por particular em delegação e que cabe à lei própria a sua disciplina (lei 8. 935/1994). Nesse sentido, o ministro entendeu que deveria ser seguido o art. 22 da referida lei, respondendo o titular de forma direta e subjetiva, e a responsabilidade do Estado, por sua vez, seria também subjetiva, "no caso de falha do Poder Judiciário em sua função fiscalizadora da atividade cartorial"2. Essa, inclusive, já era a posição que vinha se consolidando nos julgamentos do STJ. Contudo, tendo prevalecido o Tema 777, entende-se que ele deve ser interpretado conjuntamente ao tema 940, na medida em que o julgamento de ambos é extremamente próximo (2019) e, quando a tese final do tema 777 sobre a responsabilidade dos notários e registradores foi proferida, toda a matéria sobre a legitimidade da ação por danos causados por agente público já estava afetada pelo tema 940. Além disso, em 2021 outra mudança importante ocorreu na lei de improbidade administrativa - alterada pela lei 14.230 - que passou a definir ser ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário somente ações ou omissões dolosas (e não mais culposas), que enseje perda patrimonial3. Nessa linha de interpretação conjunta e alinhada entre a jurisprudência e as normas, nas hipóteses de improbidade administrativa, ainda, não haveria dever de regresso quando não constado dolo do titular4. Mostra-se imprescindível a preservação da harmonia e da coerência do sistema jurídico, bem como a busca por uma efetiva uniformização da jurisprudência pátria, de forma a assegurar não apenas o devido respeito aos temas de repercussão geral e às teses firmadas pelo STF, mas também a plena observância da legislação vigente, evitando-se contradições interpretativas, insegurança jurídica e tratamentos desiguais perante situações idênticas. _______ 1 Tema 940: "A teor do disposto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". 2 Plenário reafirma jurisprudência sobre responsabilidade civil do Estado pelas atividades de cartórios. STF, 27.02.2019. Disponível aqui. 3 Lei de Improbidade Administrativa com a alteração: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021) 4 Para maior aprofundamento, cf. LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; KÜMPEL, Vitor Frederico; MADY, Fernando Keutenedjian. Responsabilidade civil dos notários e registradores por danos decorrentes das atividades de tratamento de dados Lima. In LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; KÜMPEL, Vitor Frederico; MACIEL, Renata Mota (Coordenadores). Estudos Avançados em Direito Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2024. p. 61 e ss.
O aumento da judicialização dos conflitos familiares tem trazido à tona uma questão crucial: até que ponto as soluções tradicionais da responsabilidade civil - especialmente a indenização financeira - são adequadas para lidar com danos de natureza subjetiva e relacional? Embora o processo judicial forneça respostas técnicas, nem sempre alcança a pacificação social e emocional necessária. No âmbito do Direito de Família, não raras vezes, a sentença judicial, ainda que tecnicamente correta, não promove a pacificação, mas perpetua ressentimentos. A dor é reconhecida juridicamente, mas não é acolhida em sua integralidade. Ela é narrada nos autos, mas não escutada por quem realmente precisa ouvir. Diante disso, esta reflexão busca analisar os limites da judicialização e apresentar a mediação como caminho eficaz e humanizador para a resolução de conflitos familiares, em consonância com os princípios da afetividade e da solidariedade familiar. É preciso lembrar que o processo judicial está estruturado em uma lógica binária: ganhar ou perder. Essa lógica, adequada em diversas áreas do Direito, mostra-se frágil quando aplicada às relações familiares, onde estão em jogo laços afetivos, vínculos parentais e a própria organização da vida em comum de uma família. Assim, pode-se afirmar que a judicialização encerra o processo formal, mas não necessariamente resolve o conflito. No processo formal, a imposição estatal dificilmente restaura vínculos ou promove a compreensão das reais necessidades das partes. No processo judicial, em regra, não se conseguem identificar plenamente os interesses subjetivos dos envolvidos, as razões que motivaram condutas passadas nem suas intenções futuras. Esses aspectos, entretanto, são justamente aqueles tratados em uma sessão de mediação e revelam-se de extrema importância para que se alcance uma pacificação autêntica e uma reestruturação saudável da família. O Superior Tribunal de Justiça, em diversas oportunidades, já ressaltou que os princípios da afetividade e da solidariedade familiar devem orientar a interpretação do Direito de Família. Contudo, esse reconhecimento, ainda que louvável, nem sempre se traduz em medidas práticas capazes de possibilitar a restauração de vínculos. Nas demandas familiares - sobretudo naquelas que envolvem genitores e filhos - o objetivo primordial deve ser a preservação e o fortalecimento das relações, e a tentativa de reaproximação precisa anteceder a disputa judicial, sob pena de se perder a chance de promover a verdadeira pacificação. Assim sendo, simplesmente invocar o princípio da afetividade não protege o afeto. O que protege o afeto é a tentativa real da restauração daquele vínculo. A responsabilidade civil, tradicionalmente voltada à reparação e à compensação dos danos, mostra-se limitada quando aplicada às relações familiares. Se, por um lado, busco a reparação, percebo que não é possível devolver a experiência afetiva perdida nem reconstruir vínculos rompidos; se, por outro, busco a compensação, constato que não há montante suficiente capaz de compensar uma dor que, por sua natureza, é incomensurável. A dificuldade de reparar e compensar danos de natureza moral é um dos maiores desafios da responsabilidade civil, que frequentemente se vê diante da necessidade de atribuir valores a sofrimentos por essência incomensuráveis. Se essa realidade se manifesta de forma recorrente na própria lógica da responsabilidade civil, porque essa mesma lógica não deveria ser usada para danos familiares? Isso porque a lógica indenizatória, quando aplicada ao âmbito familiar, pode gerar uma consequência especialmente nociva: cristalizar a ruptura de vínculos que, idealmente, deveriam ser preservados e continuados. Como consequência dessa lógica indenizatória, muitas vezes a relação entre pais e filho fica impossibilitada de se restabelecer, seja no presente, seja no futuro. "A condenação do pai à indenização leva a uma ruptura definitiva e é este o resultado real da demanda."1. Nas palavras do ministro Fernando Gonçalves, relator do Resp. 757.411/MG: "Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo e amor dos filhos (...)." Nessas situações, exige-se a abertura a mecanismos dialógicos e restaurativos, capazes de tratar as feridas de forma mais específica. É justamente aqui que a mediação se mostra essencial. Ela oferece um espaço de diálogo, escuta e reconhecimento, em que a dor pode ser nomeada, os danos reconhecidos e a reparação ocorrer também no plano simbólico, relacional e afetivo. Nesse ambiente, as pessoas podem expor não apenas suas demandas jurídicas, mas também suas necessidades emocionais. A dor, quando narrada e escutada por todos os participantes, gera empatia, conexão e compreensão da perspectiva do outro. Esses elementos, juntos, transformam o conflito em oportunidade de diálogo, fortalecem vínculos e abrem caminhos para uma pacificação duradoura. Ao acolher a complexidade da vida em família, a mediação permite não apenas lidar com o passado, mas também transformar o futuro. Julgar pode encerrar o processo, mas mediar tem o potencial de reconstruir relações - e esse é o objetivo maior de quem se dedica à prática da mediação. Não se pode esquecer, ainda, que o advogado é um dos primeiros filtros por onde passa o conflito. Por isso, deve ele estar atento não apenas à defesa técnica, mas também às estratégias de solução que atendam aos interesses de longo prazo do cliente. O CPC/15, em seu art. 3º, §3º, determina que todos os operadores do Direito devem estimular a solução consensual dos conflitos. Esse dever impõe aos advogados o desenvolvimento de soft skills como escuta ativa, empatia e comunicação não-violenta - habilidades essenciais à advocacia colaborativa. Cabe a eles, ainda, orientar os clientes para caminhos mais adequados à sua realidade, como mediação e conciliação, capazes de preservar relações e construir soluções mais sustentáveis. O Direito de Família mostra, assim, que a aplicação rígida da responsabilidade civil, muitas vezes, não é suficiente para atender às necessidades humanas em jogo. A mediação surge como um instrumento não apenas jurídico, mas também social e ético, capaz de produzir soluções mais adequadas, pacificadoras e transformadoras. Optar pela mediação não significa abdicar da técnica jurídica, mas complementá-la com humanidade. Afinal, se o julgamento pode encerrar o processo, a mediação tem o poder de transformar o futuro. _______ 1 MATZENBACHER, Solange Regina Santos. Reflexão acerca da responsabilidade civil no Direito de Família: Filho-dano moral x Pai-abandono afetivo. E a família? Direito Justiça, Porto Alegre, v. 35, n.1, jan./jun., 2009, p. 67.
terça-feira, 23 de setembro de 2025

Então agora graduamos a culpa?

Quem consultar o CC no famoso site do Planalto observará uma curiosa anotação aposta aos dispositivos dos arts. 186 e 9271. Lê-se, ao lado de ambos a referência: "vide ADI 7055" e "vide ADI 6792". Rememoremos o teor de mencionados dispositivos: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. A anotação causa estranheza, afinal, a constitucionalidade dos dois dispositivos centrais da responsabilidade civil subjetiva (ato ilícito e dever de indenizar) foi desafiada? A resposta é positiva, ao menos parcialmente. Consoante acórdão do Plenário do STF, proferido no bojo das ações diretas de inconstitucionalidade acima mencionadas (ADI 7055 e ADI 6792), proferido em maio de 2024 e transitado em julgado em abril deste ano de 2025, não se pode aplicar rigorosamente o comando de mencionados dispositivos a uma determinada categoria profissional e econômica: a dos jornalistas e dos órgãos de imprensa. Ambas as ADIs em comento versam sobre uma temática de imensa importância: a proteção à liberdade de imprensa diante de reiterados relatos de perseguições a jornalistas por meio do chamado "assédio judicial". Entende-se por assédio judicial, na definição da própria Corte Constitucional: "o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa"2. O fenômeno produz um indesejável efeito silenciador sobre a liberdade de expressão e de imprensa, empobrecendo o debate público e prejudicando profissionais e entidades no seu legítimo exercício do direito de informar. Visando a combater esse fenômeno, dois atores de relevo da sociedade civil organizada levaram a questão ao STF. A ABRAJI - Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, ajuizou a ADI 7055, que buscava atribuir interpretação conforme à Constituição de dispositivos do CPC e da lei dos juizados Especiais (especificamente os arts. 53, IV, "a", 55, § 3º, e 69, II e § 2º, VI, do CPC e do art. 4º, III, da lei 9.099/1995). Com o mesmo intuito de combater o assédio judicial, foi ajuizada pela ABI - Associação Brasileira de Imprensa a ADI 6072, que, para além de questões processuais (arts. 53, 79, 80, 81 e 835, caput e § 1º, do CPC), contestou também a interpretação conferida aos arts. 186 e 927 do CC. As ADIs 7055 e 6072 foram julgadas conjuntamente, tendo sido fixada a seguinte tese: 1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa. 2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio. 3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)". Sem prejuízo da relevância dos aspectos processuais envoltos na questão, nesse texto me proponho a trazer uma reflexão inicial - ou melhor, uma inquietação - especificamente sobre o impacto do julgamento sobre a sistemática da responsabilidade civil. O que se observa pela tese fixada é a criação de uma categoria própria de responsabilidade aplicável à atividade jornalística. E mais, essa categoria vale-se de um critério subjetivo que comporta gradação. Historicamente, o sistema brasileiro de responsabilidade civil aquiliana jamais comportou a gradação do elemento subjetivo para configuração do an debeatur, segundo a máxima in lege aquilia et levissima culpa venit (Ulp. 42 ad Sab., D. 9, 2, 44 pr.). Havendo dolo, culpa grave, simples culpa, culpa leve ou mesmo culpa levíssima do agente, o dever de indenizar seguiria rigorosamente como de direito. É o que se colhe das clássicas lições de Caio Mário da Silva Pereira: "nosso direito desprezou esta gradação da culpa, que não deve influir na determinação da responsabilidade civil"3. A decisão da ADI 6792 quebra com essa tradição, inaugurando um novo regime de responsabilidade civil, aplicável exclusivamente à atividade de jornalistas e de órgãos de imprensa. Trata-se de um regime subjetivo e privilegiado, em que somente se configura o requisito do nexo de imputação diante da demonstração de dolo ou de culpa grave. Esse diagnóstico causa uma inquietação, pois a solução de limitar a responsabilização do jornalista e dos órgãos de imprensa às hipóteses de dolo ou de culpa grave em razão de uma maior exposição jurídica desses profissionais e agentes econômicos a um "assédio judicial" parece derivar de uma incompreensão do critério subjetivo de imputação de responsabilidades civil aquiliana vigente no direito brasileiro. Adota-se, contemporaneamente, o conceito normativo de culpa, que é balizado por standards de conduta, moldado não por um padrão abstrato, mas por considerações concretas extraídas dos códigos e padrões esperados no contexto específico da atividade profissional ou econômica desempenhada pelo autor do dano4. Nessa concepção, não há relevância - e sequer há lógica - na consideração de graus de culpa. Conforme bem explicitam Tepedino, Terra e Guedes: A classificação, cuja adoção pelo ordenamento brasileiro sempre foi contestada, tornou-se despicienda diante do contemporâneo conceito normativo da culpa. Se a concepção psicológica, contaminada por juízos morais, poderia até suscitar a avaliação do grau de negligência do agente a fim de mensurar a reprovabilidade de sua conduta para, então, sancioná-lo mais ou menos intensamente, o mesmo não se verifica com a noção normativa de culpa5. Para a concretização desses standards, assumem particular relevância os padrões profissionais codificados por associações e conselhos profissionais6, como é o caso do Global Charter of Ethics for Journalists, muitas vezes citados ao longo dos debates dos ministros na conformação do julgado da ADI 6792 como uma boa métrica de aferição da conduta dos jornalistas. A menção, no julgado, aos referidos standards, todavia, contrasta com a tese fixada. Isso porque o padrão normativo fixa-se não em graus - que se organizam a partir da proximidade com a conduta esperada de um diligentissimus paterfamilias - mas de acordo com a avaliação do nível de conduta esperada por determinada comunidade, o qual é densificado mediante procedimentos, diligências e cuidados específicos de determinado microcosmo ético, atento às realidades, dificuldades e garantias inerentes a cada profissão ou campo de atividade econômica. A preocupação externada no julgado é clara: evitar que erros factuais escusáveis cometidos por jornalistas que adotaram um padrão adequado de apuração e checagem levem à sua responsabilização civil. Ocorre que, dentro do padrão objetivo de diligência já presente em uma interpretação contemporânea do art. 186 c/c art. 927 do CC, sem qualquer necessidade adjetivações ao elemento subjetivo, ainda que incorresse em erro, um bom jornalista nada teria a temer em termos de responsabilização . Ao que me parece, portanto, o adjetivo "grave" aposto pela tese fixada pela ADI 6792 em nada contribui, a não ser - negativamente - para uma quebra sistêmica e para o aumento de indefinição dos limites entre a conduta jornalística lícita e aquela sancionável. Em que pese a relevância da preocupação em se preservar a liberdade de imprensa das ameaças de assédio judicial, a decisão do STF em comento parte, ao meu ver, de uma incompreensão do critério de negligência aplicável ao regime subjetivo de responsabilidade civil vigente no direito brasileiro, ocasionando uma quebra sistêmica. Afinal, agora não mais podemos falar que a gradação da culpa é irrelevante para a configuração da responsabilidade civil no direito brasileiro, ao menos não para o caso da responsabilidade civil dos jornalistas e dos órgãos de imprensa. _______ 1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 04/09/2025. 2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6792/DF. Rel. Min. Rosa Weber. Rel. p/ Acórdão Min. Luís Roberto Barroso. Julgado em 22/05/2024, Acórdão Publicado em 04/04/2025. 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Atual. Gustavo Tepedino. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forese, 2022. p. 120. 4 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de Direito Civil: responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 130. 5 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de Direito Civil: responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 131. 6 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de Direito Civil: responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 130.
Introdução Recentemente, no final de 2024, foi solucionada uma das celeumas jurídicas mais relevantes para o Direito Médico como um todo para os advogados que militam e promovem suas consultorias preventivas para os profissionais da medicina. Mas, a definição dessa questão foi especialmente importante para os próprios médicos visando a proteção de suas carreiras e de seu patrimônio, evitando responder ações indenizatórias e a instauração de processos criminais e representações ético-profissionais, pois eles que serão diretamente impactados pela conduta que adotarem a partir daqui. Pois bem, como se vê do título desse modesto escrito, dentro do STJ, havia, até o fim do ano de 2024, uma divisão jurisprudencial instalada acerca da seguinte questão, estando convidado o caro leitor à seguinte hipótese1: O médico se depara com o atendimento de uma paciente que precisa de cuidados com sua saúde e, em meio à consulta, o profissional passa a suspeitar de que ela praticou manobras abortivas; por hipótese, imagine-se que o médico, ante essa suspeita de abortamento promovido pela paciente, comunica a autoridade policial acerca dos fatos. A pergunta que se põe é a seguinte: havia alguma justa causa para que o médico promovesse essa comunicação da suspeita de aborto para a autoridade policial? Em outras palavras, a quebra do sigilo médico profissional nessa situação foi justificada pela suspeita da suposta prática do aborto? Ou não, mesmo diante dessa suspeita abortiva por parte da paciente, o médico ainda assim está obrigado a guardar o sigilo profissional com relação ao fato? Posta a hipótese, algo que chamou a atenção foi o fato de que, muito embora seja uma questão que gera todo impacto na vida das pacientes e nas carreiras dos médicos, que era objeto de uma profunda cisão jurisprudencial dentro do próprio STJ e que agora tenha sido resolvida definitivamente, o tema não encontrou praticamente nenhuma ressonância nos meios de discussão e divulgação dos grandes temas do Direito Médico e da Bioética, o que, segundo pensamos, é uma lacuna que precisa ser preenchia - para o que nos habilitamos modestamente nesse texto. Para isso, vamos trazer resumidamente todo o histórico dessa celeuma jurisprudencial que havia até o final do ano passado e que já está organizado cronologicamente no capítulo 12 - "CRIMES MÉDICOS" na recém-lançada 2ª edição do nosso: "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"2. 1. A exposição da questão e sua disciplina legal e ética de regência Voltando à hipótese ora em análise, se a própria paciente é suspeita da realização da manobra de abortamento, o médico teria ou não justa causa para quebrar o sigilo profissional e comunicar o fato à autoridade policial para os fins legais? Esta é a questão que aportou no STJ desde o final da década passada. Como se disse, em cada uma de suas duas turmas de Direito Criminal da 3ª seção, 5ª e 6ª turmas Julgadoras, havia duas posições absolutamente antagônicas na Corte até dezembro passado. Antes, porém, vamos aos artigos da legislação brasileira que disciplinam a questão. O sigilo médico no CP é tratado sob a rubrica da violação do segredo profissional: "Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa". Já o CPP traz a seguinte hipótese de impedimento legal para que o médico preste seu testemunho em juízo: "Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho". Por fim, ainda consta a seguinte disposição na lei das contravenções penais (decreto-lei 3.688/1941), quanto à contravenção de omissão de comunicação de crime: Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente: II - crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal: Pena: multa. Já no Código de Ética Médica, o sigilo médico vem tratado no Capítulo IX, sob o título sigilo profissional - É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Note-se que o Conselho Federal de Medicina foi cuidadoso no trato da questão e não tergiversou. Como visto, na alínea "c" do parágrafo único do art. 73 da resolução que implementou o Código de Ética Médica (Res. 2.217/18), deixou a orientação firme e expressa: na investigação de suspeita de crime o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Ora, é fácil concluir que, se o médico está impedido de revelar segredo que possa expor a paciente a processo penal dentro de uma investigação, obviamente está impedido de qualquer conduta que possa expor a paciente fora do âmbito de uma investigação. 2. Exposição da anterior divisão jurisprudencial no STJ Mesmo diante dessa clareza da normatização acima descrita e apresentada, havia a mencionada cisão jurisprudencial dentro da 3ª seção do STJ, por suas duas turmas de Direito Criminal: a) Decisão de 2019 da 5ª turma do STJ: a suspeita de aborto era justa causa suficiente para autorizar a quebra do sigilo médico: Processo penal. Habeas corpus substitutivo. Inadequação. Aborto provocado pela gestante. Trancamento. Declaração de inconstitucionalidade do art. 124 do cp. Controle difuso. Meio inadequado. Tema objeto de controle concentrado perante o STF na APDF 442/DF. Ilicitude das provas. Quebra do dever de sigilo profissional do médico. Não acolhimento das teses defensivas. Inocorrência de ilegalidade. Writ não conhecido. [...] 5. Sabe-se que o sigilo profissional é norma cogente e que, em verdade, impõe o dever legal de que certas pessoas, em razão de sua qualidade e de seu ofício, não prestem depoimento e/ou declarações, em nome de interesses maiores, também preservados pelo ordenamento jurídico, como o caso do direito à intimidade (art. 154 do Código Penal e art. 207 do Código de Processo Penal). A vedação, porém, não é absoluta, eis que não há que se conceber o sigilo profissional de prática criminosa. 6. A exemplo do sigilo profissional do advogado, já asseverou esta Quinta Turma que "o ordenamento jurídico tutela o sigilo profissional do advogado, que, como detentor de função essencial à Justiça, goza de prerrogativa para o adequado exercício profissional. Entretanto, referida prerrogativa não pode servir de esteio para impunidade de condutas ilícitas" (RHC 22.200/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJe 05.04.2010). 7. Na hipótese, a princípio, a conduta do médico em informar à autoridade policial acerca da prática de fato, que até o presente momento configura crime capitulado nos delitos contra a vida, não violou o sigilo profissional, pois amparado em causa excepcional de justa causa, motivo pela qual não se vislumbra, de pronto, ilicitude das provas presentes nos autos, como sustenta a defesa. 8. A situação posta no RE 91.218-5/SP, citado pela defesa, não se aplica ao caso em exame, na medida em que a controvérsia discutida nestes autos cinge-se na declaração ou não de ilicitude de todos os elementos de provas produzidos, oriundos da informação repassada pelo médico à autoridade policial acerca do cometimento em tese de um delito, que perpassa pelo óbito premeditado de um feto de 24 semanas, nascido com vida. 9. Writ não conhecido.3 Importante que se diga que esse posicionamento da 5ª turma pelo não reconhecimento da quebra do sigilo médico nesse caso estava impulsionando a produção de julgados nos Tribunais de Justiça estaduais nesse mesmo sentido, como no TJ/SC4 e no TJ/SP5. b) Decisões de 2023 da 6ª turma do STJ: a suspeita de aborto não é justa causa suficiente para autorizar a quebra do sigilo médico: A decisão da 6ª turma que inaugurou o posicionamento pela ausência de justa causa para a quebra do sigilo médico nessa hipótese é do primeiro semestre de 2023: 6ª turma tranca ação penal por aborto ao ver quebra de sigilo profissional entre médico e paciente.6 Já a segunda decisão da mesma 6ª turma do STJ é do segundo semestre do mesmo ano de 2023 e reiterou o posicionamento pela ausência de justa causa para a quebra do sigilo médico nessa hipótese: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 124 DO CP. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO INCIDENTAL DA NÃO RECEPÇÃO DO INDIGITADO PRECEITO DE REGÊNCIA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DA VIA ELEITA. PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. NULIDADE. ILICITUDE DA PROVA ANTE A SUPOSTA QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL PELA MÉDICA QUE REALIZOU O ATENDIMENTO DA PACIENTE. OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO SIGILO PROFISSIONAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa exige comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da ocorrência de causa de extinção da punibilidade, da ausência de lastro probatório mínimo de autoria ou de materialidade, o que se verifica na presente hipótese. 2. Inicialmente, quanto ao pedido defensivo de reconhecimento, incidenter tantum, no âmbito deste writ, da não recepção do art. 124 do CP, esta Corte já teve a oportunidade, em diversas ocasiões, de sedimentar o entendimento de que se revela "[...] inviável a apreciação de matéria por esse STJ, em sede de controle difuso, diante de afetação do tema em sede de controle concentrado de constitucionalidade perante o STF" (HC 514.617/SP, relator ministro RIBEIRO DANTAS, 5ª TURMA, julgado em 10/9/2019, DJe 16/9/2019). 3. Como cediço, esta 6ª turma, recentemente, por ocasião do julgamento do habeas corpus 783927/MG, de relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, reconheceu a ilicitude da prova e trancou ação penal também relativa a crime de autoaborto, supostamente cometido por paciente que se encontrava em situação similar a dos presentes autos, cuja investigação fora deflagrada a partir da provocação das autoridades competentes pelo próprio médico que realizara o atendimento da paciente. 4. Como bem consignado no parecer ministerial, "trata-se, tal garantia, de proteção jurídica ao direito à saúde, porquanto não deve o paciente se sentir tolhido ou ameaçado ao procurar ajuda médica; ao contrário, deve se sentir seguro e acolhido, para que sua saúde seja resguardada, ao contrário do que ocorreria se, por exemplo, as mulheres que optam pela prática do abortamento ilegal e, ato contínuo, enfrentam complicações que colocam em risco sua saúde e sua própria vida, não pudessem procurar socorro junto aos profissionais de saúde com receio de serem presas ou processadas criminalmente". 5. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida, para reconhecer a ilicitude da prova e trancar a ação penal em relação a ora paciente quanto ao crime previsto no art. 124 do CP (HC 448.260/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª turma, j. em 3/10/23, DJe de 6/10/23). 3. A definição da questão no STJ no final de 2024: uniformização do entendimento pelo reconhecimento da quebra do sigilo médico no caso em exame O que se tinha então, até dezembro de 2024, era uma divisão totalmente estanque entre os entendimentos das duas turmas de Direito Criminal do STJ sobre a questão, quando a 5ª turma passa a adotar posicionamento unânime que se alinha ao mesmo posicionamento unânime da 6ª turma na questão, dando pela quebra de sigilo médico profissional na hipótese, sob relatoria da ministra Daniela Teixeira: AgRg no RHC 181.907/MG, 5ª turma, julgado em 4/12/2024. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ABORTO. VIOLAÇÃO DO SIGILO MÉDICO. PROVAS ILICITAMENTE OBTIDAS. NULIDADE DA AÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME. 1. Trata-se de agravo regimental em recurso em habeas corpus interposto contra decisão monocrática que concedeu a ordem para trancar ação penal em que a recorrente é acusada de homicídio qualificado, ocultação de cadáver e aborto. A defesa alega a nulidade das provas utilizadas para fundamentar a denúncia, uma vez que foram obtidas com a violação do sigilo profissional entre médico e paciente. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. A questão em discussão consiste em determinar se as provas que deram início à ação penal, obtidas por meio de comunicação do médico à autoridade policial sobre fatos observados durante atendimento à paciente, violam o sigilo profissional e, portanto, devem ser consideradas ilícitas. III. RAZÕES DE DECIDIR. 3. A jurisprudência desta Corte é clara ao estabelecer que o sigilo profissional médico é protegido por norma de ordem pública, e sua violação para fins de denúncia de crime praticado pelo próprio paciente é inadmissível, salvo exceções legais específicas. 4. No caso, o médico que atendeu a recorrente comunicou à autoridade policial fatos relacionados ao suposto aborto, configurando quebra de sigilo profissional sem justa causa, o que torna ilícitas as provas obtidas a partir dessa comunicação. 5. De acordo com o art. 207 do CPP, profissionais que têm dever de sigilo, como médicos, são proibidos de depor sobre fatos relacionados ao exercício de sua profissão, salvo com autorização expressa do paciente, o que não ocorreu no presente caso. 6. A comunicação do médico à polícia violou o sigilo profissional, contaminando a ação penal com provas ilícitas. 7. Na linha de precedentes desta Corte, a ação penal deve ser trancada quando fundada exclusivamente em provas obtidas por violação do sigilo médico, pois a ilicitude dessas provas contamina o processo desde a sua origem. IV. DISPOSITIVO. 8. Agravo regimental desprovido. (AgRg no RHC 181.907/MG, relatora ministra Daniela Teixeira, 5ª turma, j. em 4/12/2024, DJEN de 9/12/2024). Essa, aliás, sempre foi a posição do médico e advogado Genival Veloso de França: "um dos casos mais comuns em nossa atividade é a constatação de prática criminosa de aborto, e, pelo visto, não se pode denunciar a paciente, pois ela está sujeita a procedimento processual".7 Conclusão: a definição da questão criminal pela quebra do sigilo médico-profissional na hipótese e a consequente responsabilização civil dos hospitais Resumindo, consolidou-se no STJ o posicionamento de que a comunicação nesse caso é hipótese de quebra de sigilo médico, gerando responsabilidade criminal e ética do médico, além da responsabilidade civil dele mesmo e da empresa médica a que está vinculado. Com relação às consequências advindas desse posicionamento, são de duas ordens: individual e corporativa. Sob o ponto de vista individual, isto é, com relação às consequências advindas para o médico quanto à adoção dessa conduta, vale anotar que, ao ser reconhecida a quebra do sigilo médico pela ausência de justa causa para a comunicação do fato à autoridade policial, já foi determinada a instauração de procedimento criminal e ético-profissional contra o médico pelo reconhecimento da ilicitude de sua conduta. Mas não é só. Poderão responder civilmente todos os atores da cadeia de prestação do serviço de saúde, e a paciente poderá e provavelmente ajuizará ação indenizatória por danos morais em virtude do mesmo fato não só contra o médico, mas também contra o hospital (se o serviço de saúde for privado - Saúde Suplementar) ou contra o Poder Público (se o serviço de saúde for público - SUS). Em sendo o atendimento pelo sistema de saúde suplementar, incidirá o art. 14, caput, do CDC, com reconhecimento da má prestação do serviço, bem como do §1º do art. 25, estabelecendo solidariedade indenizatória entre todos os responsáveis pela causação do dano pelo serviço defeituoso. Essa solidariedade no trato da questão na saúde privada também terá apoio no CC, nos termos do art. 932, inciso III, c.c. art. 933. Já no SUS, quando se der a hipótese durante a prestação do serviço de saúde pública, incidirá o §6º do art. 37 da CF, impondo-se a responsabilidade objetiva do ente público ou da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público pela quebra do sigilo por parte do médico que prestava o serviço público - diga-se - a qualquer título, complementada a disposição constitucional pelo teor do art. 43 do CC. Certo que há muitas nuances na questão da solidariedade entre médicos e hospitais, mas que não podem ser tratadas aqui pelos limites da presente abordagem. De qualquer modo, para essas outras questões, remetemos o caro leitor a nossa outra publicação nesse mesmo Migalhas8, devendo agora apenas ser noticiada a seguinte chamada de outubro de 2024: "STJ determina indenização de hospital a paciente por erro médico".9 No mais das vezes, o que se tem verificado é que essa situação de atendimento médico se dá no regime de plantão, em virtude da urgência/emergência que se cria a partir das manobras abortivas praticadas no ambiente extra-hospitalar, quando o médico plantonista se depara com o atendimento da paciente. Nesse cenário, de reconhecimento da má prestação do serviço médico ao longo do regime de plantão, especificamente com relação à indevida comunicação da suspeita abortiva, não há a menor dúvida acerca da solidariedade indenizatória que vai se estabelecer entre o profissional e o hospital.10 Resumindo e concluindo, uma vez reconhecida, agora de maneira uniforme, a ilicitude da conduta do médico ao promover a comunicação da suspeita de aborto pela paciente, e reconhecida a solidariedade indenizatória entre os agentes da cadeia da prestação do serviço de saúde, o hospital passa a responder pela indenização por danos morais gerados em virtude da conduta do médico que descumpriu a norma contida no Código de Ética Médica e quebrou o sigilo médico profissional nessa hipótese. Frente a essa realidade ético-normativa, legal e jurisprudencial, já posta de maneira sedimentada desde o fim de 2024, sugere-se que as administrações hospitalares promovam atividades de treinamento de seus médicos para que haja conformidade da conduta médica de seu corpo clínico à regulação correspondente a essa espécie de ação particularizada, evitando-se o futuro pagamento de pesadas indenizações judiciais médicas por danos morais, além de preservar os direitos, a imagem e a reputação de pacientes, médicos e hospitais. _______ 1 O presente texto, agora publicado na Coluna IBERC de Responsabilidade Civil, traz a definição da questão levantada no artigo publicado neste mesmo Migalhas, na Coluna Migalhas de Direito Médico e da Saúde: Uma tríade no Direito Penal Médico - A questão do Sigilo médico na suspeita de aborto pela paciente - Parte III. Disponível aqui. 2 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Manual de Compliance Médico-Jurídico na Prevenção de Indenizações Judiciais Médicas para Advogados, Médicos, Clínicas e Hospitais. Editora Foco, 2ª ed. agosto de 2025. 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 514617/SP, 5ª turma, relator ministro Ribeiro Dantas, Votação Unanime, Julgamento: 10/9/2019. 4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, RSE: 50346546720208240038, Primeira Câmara Criminal, relator desembargador Paulo Roberto Sartorato, Julgamento: 3/3/2022. 5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 2188894-33.2017.8.26.0000, 3ª Câmara de Direito Criminal, relator desembargador Airton Vieira, Julgamento: 24/10/2017. 6 O número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial. STJ. Disponível aqui. 7 VELOSO, Genival. Direito Médico. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 161. 8 Responsabilidade civil médica jurisprudencial: A questão da solidariedade indenizatória entre médico e hospital - recente e profunda divisão no STJ. Disponível aqui. 9 Disponível aqui. Essa decisão, publicada em outubro de 2024, trata do julgamento de Embargos de Declaração no REsp 1.540.580 do STJ prolatado em 2018 - a paradigmática decisão sobre a questão da negligência informacional médica no Direito Médico brasileiro. 10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.579.954/MG, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, Julgamento: 8/5/2018, Publicação: 18/5/2018.
A infância é, por definição, um tempo de inocência, descoberta, crescimento gradual e formação da identidade e da personalidade. Um período em que o mundo é (ou deveria ser) desvendado sob a tutela e proteção de adultos, em um ambiente social sadio, permitindo que a maturidade seja alcançada no tempo e no modo certo. O conto de Peter Pan, o menino que se recusa a crescer, ecoa profundamente essa ideia de uma infância que deve ser preservada, um lugar seguro, à parte das complexidades e perigos do mundo adulto. No entanto, a chegada do universo digital trouxe novos e complexos desafios a essa premissa. Crianças e adolescentes são hoje expostos a um ambiente que, embora fascinante, pode forçá-los a uma maturidade precoce, expondo-os a riscos e a uma exploração que lhes rouba a essência do crescer. É nesse contexto que se insere o ECA Digital - Estatuto da Criança e do Adolescente Digital, uma bússola jurídica para navegar por essa nova realidade, costurando a proteção que as novas gerações precisam para não se perderem na "Terra do Nunca". Era uma vez... um conto de falhas Era uma vez um menino que se recusava a crescer. Seu nome era Peter Pan, e ele vivia na terra do nunca, onde o tempo parecia não passar. Um dia, ele entrou na casa de uma família, procurando sua própria sombra, quando conheceu uma menina e seus irmãos. Ela o ajudou a costurar a sua sombra e ele convidou a todos para conhecerem o lugar mágico onde morava, em que se permanecia, para sempre, criança. O que parecia um convite à liberdade infinita - na sociedade plataformizada - pode se transformar em um conto de... falhas. Porque, no mundo digital, ser criança ou adolescente significa também estar exposto a perigos que não se veem de imediato, que estão disfarçados de fantasia e entretenimento, mas que, em verdade, colocam a vida e a segurança dos pequenos em xeque: há muitos piratas na Terra do Nunca. A Terra do Nunca "Li e aceito" Peter Pan, então, partiu para a Terra do Nunca. Um espaço mágico, sem regras claras, em que cada um a imagina de forma diferente e cheia de aventuras... mas também repleto de armadilhas. O mundo digital guarda grande semelhança: um território sem fronteiras, com poucos limites, lúdico e sedutor, capaz de estimular a criatividade e dar asas à imaginação de crianças e adolescentes. Mas a semelhança não termina aí. Por trás desse encanto, escondem-se perigos muito reais, quase sempre invisíveis aos olhos desatentos - inclusive dos responsáveis. Se a arquitetura e os fluxos de ideias do mundo encantado dependiam apenas das linhas escritas por James Matthew Barrie em 1902 e da imaginação de quem as lia ou ouvia, na era da plataformização o cenário é outro. Isso porque a arquitetura digital não nasce da inocência criativa, mas da engenharia algorítmica de grandes empresas que, com seus produtos e serviços digitais, desenham caminhos e ciladas invisíveis, onde a personalização, além de prejudicar a cognição e condicionar o aprendizado dos menores, cria atalhos para que o Capitão Gancho os encontre com maior facilidade. A sombra de Peter Pan: Perfis, identidade e adultização Na clássica história, a sombra de Peter Pan é algo que se desprende dele e ganha vida própria, de modo que ele precisa recuperar. Essa sombra, que se solta e age por si, pode ser vista como a metáfora perfeita para os rastros digitais que a criança e o adolescente deixam na rede, utilizados, em rigor, para a formação de perfis para fins comerciais, de publicidade e outros, sem que haja a menor percepção dos envolvidos sobre as consequências. Assim como a sombra do menino Peter, o perfil é uma parte essencial da identidade do indivíduo, mas que, uma vez solta, sai de seu controle. A identidade e a consciência de si de uma criança, em pleno desenvolvimento, podem ser moldadas e distorcidas pela forma como sua "sombra digital" é utilizada. Como no conto, muitas vezes será necessário que alguém (família, Estado, plataformas) "costure" essa sombra de volta, devolvendo à criança e ao adolescente - representada pelos seus responsáveis - o controle sobre sua própria identidade, sobre os modos de se desenvolver e sobre a proteção mental. Essa sombra digital representa também a ligação dos jovens com a realidade, o vínculo com o mundo humano e, crucialmente, com o tempo e o crescimento. A adultização precoce promovida pela exposição a conteúdos adultos na internet é uma forma de "perder a sombra", de se desconectar do ciclo natural da vida, impondo-lhes uma visão de mundo e comportamentos que ainda não são compatíveis com seu estágio de desenvolvimento biopsicossocial. O ECA Digital busca justamente garantir que esse elo não seja quebrado, protegendo a infância de ser forçada a um amadurecimento que ainda não lhe pertence, e garantindo que o tempo de crescer seja respeitado. Meninos perdidos na rede: Hipervulnerabilidade digital Os meninos perdidos habitam a Terra do Nunca sem casa, sem guia, sem proteção. No mundo digital, isso se repete em crianças e adolescentes que vagam por redes e plataformas, entregues à própria sorte. Eles são livres apenas na aparência: por trás da fantasia de autonomia, tornam-se alvos fáceis para os ganchos invisíveis da manipulação algorítmica, da exploração comercial, do abuso sexual e da violência online. A hipervulnerabilidade digital de crianças e adolescentes em ambientes online é, portanto, o ponto central que justifica a urgência da nova legislação. Ausentes de mediação parental ou institucional, eles se submetem a uma assimetria informacional, técnica e neurocognitiva e à arquitetura algorítmica persuasiva das plataformas, o que os expõe a riscos como: a) Exploração comercial, quando a publicidade predatória e a perfilização detalhada que visa à venda de produtos e serviços permite que seja direcionada e invasiva; b) Direcionamento a conteúdos ilícitos ou impróprios para a idade, podendo ter impacto negativo no desenvolvimento psíquico e emocional, bem como a existência de desafios cujas consequências podem ser danosas, incluindo automutilação, sufocamento e morte c) Oversharenting e coleta de informações pessoais e sensíveis, sem o consentimento ou base legal adequada e com finalidades que podem ir muito além do que a criança ou o responsável imaginam; d) Manipulação comportamental pela utilização de algoritmos que viciam e induzem a comportamentos específicos, minando a autonomia e a capacidade de escolha do menor, bem como seus processos de aprendizado; e) Cyberbulling, expondo jovens a humilhações, intimidações e agressões virtuais que podem causar danos psicológicos e físicos, tanto com relação a si quanto a terceiros; f) Exposição a predadores e golpistas, quando crianças e adolescentes são alvos de aliciamento, grooming, fraudes e outras práticas ilícitas, com o objetivo de obter vantagens sexuais, financeiras ou de manipulação. Dados esses fatores, é possível perceber que a hipervulnerabilidade do consumidor criança se agrava sem filtros adequados, procedimentos de verificação de idade e outras medidas de proteção - que cabem a quem desenvolve, fabrica, oferta, comercializa e opera produtos ou serviços de tecnologia da informação de acesso provável por ou direcionados para crianças e a adolescentes. Capitão Gancho: Do convés aos cliques Se antes o Capitão Gancho e seus piratas se escondiam em navios e ilhas remotas e mágicas, hoje eles se disfarçam na forma de interfaces atraentes, anúncios personalizados, conteúdos que parecem inofensivos e predadores disfarçados de pares ou de pessoas de confiança. O aliciamento online e a exploração de trabalho infantojuvenil sem autorização, por exemplo, são alguns dos muitos desafios que evidenciam que um espaço de educação, cultura e aprendizado (como pode ser a internet) pode rapidamente se transformar em hostilidade existencial. A lei entende que a coexistência entre os riscos e os benefícios do ambiente digital não é mais um problema a ser avaliado, mas sim um fato que exige uma resposta jurídica séria. O "gancho" do Capitão, uma arma física, se tornou invisível e volátil, agindo nos bastidores da internet para enganar, explorar e lucrar. A regulação busca tirar esse gancho das sombras, exigindo que as plataformas se tornem corresponsáveis pela segurança dos seus usuários mais vulneráveis, mais transparência, prestação de contas, procedimentalização e responsabilidade. A Sininho da regulação - o advocacy digital de Felca Para a Terra do Nunca, somente se pode voar com o auxílio do brilho mágico da Sininho. Na jornada do mundo virtual, o advocacy ganha uma nova cara, digitalizado, onde figuras como Felca assumem o papel desse pó mágico. Com sua publicação viral, o youtuber expôs de forma clara e corajosa a exploração de crianças e adolescentes por meio de monetização e impulsionamento de conteúdos e, pelo seu alcance, conseguiu catalisar um movimento social que deu visibilidade a um problema urgente. Seu "brilho", portanto, serviu para guiar a atenção pública e de legisladores, forçando a sociedade e o Congresso a confrontar de forma mais célere o lado  nocivo da internet e abrindo o caminho para que a regulação, um caminho que já estava sendo trilhado há alguns anos, pudesse - finalmente - alçar voo em busca de um ambiente mais seguro para crianças e adolescentes: nasceu o ECA digital. ECA digital: O narrador da história O ECA Digital não é apenas um conjunto de artigos; ele é o novo "narrador" da história - ainda sendo escrita - da infância e da juventude na era digital no Brasil. Ele dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais, aplicando-se a todo produto ou serviço de tecnologia da informação direcionado a eles ou de acesso provável. Podemos sintetizar seus principais pontos em: a) Proteção prioritária e absoluta: a Lei reafirma a doutrina da proteção integral, estabelecendo que a segurança e o bem-estar de crianças e adolescentes devem ser a prioridade absoluta na concepção e operação de produtos digitais. b) Melhor interesse: toda e qualquer decisão que envolva o tratamento de dados, questões operacionais e financeiras, ou a oferta de serviços digitais devem ser guiadas pelo que é mais benéfico para o menor, superando interesses comerciais. c) Dever de segurança e mitigação de riscos: as plataformas são obrigadas a adotar medidas efetivas para mitigar riscos, coibir a prática de crimes e remover conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes. d) Proibição de práticas abusivas: proíbe-se a publicidade direcionada a menores, a coleta abusiva de dados e o uso de técnicas de manipulação que possam prejudicar o desenvolvimento psíquico e emocional. e) Corresponsabilidade das plataformas: as empresas não podem mais alegar mera neutralidade. Elas se tornam corresponsáveis pela segurança dos seus usuários, devendo agir preventivamente e de forma rápida. f) Poderes de regulação e fiscalização: o texto prevê a criação de uma autoridade administrativa autônoma, com poderes de fiscalização e sanção, para garantir a aplicação efetiva da lei. g) Supervisão parental: as plataformas devem disponibilizar configurações e ferramentas acessíveis para apoiar o "cuidado ativo e contínuo" dos pais e responsáveis legais. Tais mecanismos devem permitir o gerenciamento de contas, a restrição de compras e a visualização do tempo de uso, com a configuração-padrão no nível mais alto de proteção disponível. ... e viveram felizes para sempre? A aprovação do ECA Digital não é um ponto final, mas sim um marco no início de uma jornada contínua pela segurança digital. O desafio agora é a implementação técnicas das medidas impostas e a fiscalização efetiva da lei, garantindo que o que foi escrito no papel se torne realidade nas telas. No final das contas - e dos contos -, o objetivo não é banir a Terra do Nunca digital, mas sim torná-la um lugar onde a magia da tecnologia possa coexistir com a segurança e a inocência da infância e da juventude. É um esforço para garantir que, ao invés de crescerem precocemente para se adaptarem a um mundo adulto, os jovens possam, finalmente, viver felizes para sempre em um universo digital que lhes é seguro.
Autonomia significa o direito que se atribui a qualquer pessoa de se ditar regras. Esta autonomia, contudo, consiste em figura tradicionalmente pensada e aplicada aos negócios jurídicos de cunho eminentemente patrimonial. A autonomia privada há também de encontrar especial relevância no âmbito dos direitos da personalidade. Em sede da personalidade humana, do seu desenvolvimento e dos direitos que a compõem, portanto, avulta a importância da autodeterminação individual: é por meio dela que, em larga escala, se pode concretizar a realização da personalidade dos seres humanos. O ponto de partida para a legitimidade das intervenções de terceiros sobre o corpo humano é o consentimento. Afinal, o melhor juiz sobre as decisões a tomar sobre a integridade física é o seu próprio titular, a quem compete manifestar seu querer de maneira livre, ao aceitar ou rejeitar determinadas intervenções conforme lhe pareçam ou não satisfatórias e adequadas. Outra lógica se revela, contudo, quando a pessoa em questão for incapaz. Quanto às intervenções sobre o seu próprio corpo, cumpre definir, essencialmente, quem tem legitimidade para manifestar o respectivo consentimento. Quando se fala na capacidade para manifestar o consentimento, cuida-se, por óbvio, da capacidade de fato ou de exercício, posto não se colocar em xeque a capacidade de gozo dos incapazes quanto aos seus direitos da personalidade. As regras do CC brasileiro quanto ao tema são claras. Absolutamente incapazes são as pessoas descritas no art. 3º e qualquer ato por elas praticado pessoalmente, em regra, será nulo, por força do art. 166, inciso I. Os relativamente incapazes, por sua vez, estão enumerados no art. 4º e os atos pessoalmente celebrados por eles, isto é, sem a presença de um assistente, serão anuláveis, segundo dispõe o art. 171, inciso II.  O problema que essencialmente se coloca é o estabelecimento de balizas à fixação das hipóteses em que cabe afirmar que uma pessoa, embora incapaz segundo as regras gerais do Direito Civil, possa pessoal e validamente manifestar o seu consentimento. Neste âmbito, o ponto de partida deve ser a proposta de se considerar a opinião do próprio incapaz, desde que este tenha discernimento suficiente para manifestá-la, por estar intelectualmente hábil a compreender as circunstâncias em que se encontra e decidir consoante os meios que lhe pareçam mais adequados para a salvaguarda dos seus interesses. Para justificar esta ruptura com a normatização geral que disciplina a matéria, caberá partir não das regras ordinárias que regem a capacidade, mas dar abertura a uma especial capacidade para consentir, (também conhecida por capacidade natural): em se tratando de direitos da personalidade inerentes aos incapazes, pode-se afirmar, à partida, que caberá a eles a manifestação do consentimento, caso tenham discernimento suficiente para tanto.1 Em sede doutrinária, prevalece cada vez mais a tese de que somente cabe colher de um representante legal a autorização para a prática de determinado ato, ignorando-se a vontade do próprio incapaz, quando este não é intelectual ou psicologicamente capaz de compreender a extensão e a gravidade do comportamento que adota.2 Esta concepção especial é seguramente mais propícia à resolução da questão que a fria aplicação das regras gerais sobre a capacidade de fato ou de exercício, projetadas ao consentimento para a prática de atos e contratos de cunho patrimonial e, destarte, insuficientes no tocante aos atos que envolvam, particularmente, os direitos de personalidade. Com efeito, a análise fria das regras sobre a capacidade e incapacidade previstas pelo CC, se pode bastar para a validação de atos jurídicos de conteúdo patrimonial, não dá resposta cabal à possibilidade de tomar decisões médicas, por não atender à "variação das capacidades intelectuais, emotivas e volitivas dos menores e dos doentes psiquiátricos dos nossos dias".3 O recurso a este critério tem, em seu fundo, um viés teleológico: há que raciocinar sobre o sentido da representação legal dos incapazes, especialmente os menores. O que justifica o poder familiar que os pais exercem sobre seus filhos menores é o fato de se pressupor que tal poder consiste na melhor maneira de proteger os interesses dos incapazes; o poder familiar é, assim, conferido na medida do necessário para a proteção dos menores. É de se esperar, pois, que os pais, no exercício do poder familiar, procedam de maneira a fazer todo o necessário para salvaguardar a vida e a saúde dos incapazes submetidos a tal tutela.4 Assim, em determinadas circunstâncias, mormente quando a atuação dos pais quanto à autorização a ser prestada em nome dos filhos menores puder causar-lhes prejuízo irreversível, é admissível a supressão da declaração não prestada pelos representantes legais, o que é particularmente válido para os casos em que a denegação da permissão objetiva obstaculizar a realização de atos médicos, cuja não realização possa colocar os incapazes em situação de grave risco de morte. O ordenamento jurídico brasileiro confere aos pais, por meio do poder familiar (arts. 1.630 a 1.638 do CC), o dever de zelar pela vida, saúde e integridade física dos filhos menores. Essa prerrogativa, entretanto, não lhes concede um direito absoluto de dispor sobre tais bens jurídicos, pois o poder familiar tem natureza funcional e finalística, devendo ser exercido sempre no melhor interesse do incapaz. Nesse contexto, o impedimento injustificado, pelos pais, da realização de tratamentos ou intervenções médicas necessárias à preservação da vida dos filhos configura grave violação a deveres jurídicos e pode ensejar responsabilidade civil. O direito à vida e à saúde, previstos nos arts. 5º e 196 da Constituição Federal, são direitos fundamentais de proteção prioritária e impõem, tanto ao Estado quanto à família, a obrigação de promovê-los e defendê-los. Assim, a recusa de autorização para tratamentos essenciais, fundada em convicções pessoais, religiosas ou ideológicas, não pode prevalecer sobre a necessidade de salvar a vida dos menores. Em tais hipóteses, pode-se caracterizar abuso do poder familiar, pois tal poder não pode ser utilizado como instrumento para suprimir direitos indisponíveis do filho. O abuso do poder familiar pode gerar não apenas a intervenção estatal imediata - por meio do Ministério Público e do Poder Judiciário, conforme prevê o art. 98, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente -, mas também responsabilidade civil pelos danos decorrentes da omissão. A responsabilidade civil, nesses casos, decorre da violação de um dever jurídico específico: o dever de proteção integral dos filhos menores. Configura-se pela conduta omissiva culposa ou dolosa dos pais, pelo dano à integridade física ou pela morte do menor, e pelo nexo causal entre a recusa injustificada e o resultado danoso. Nos casos específicos de menores que detenham capacidade para consentir, a atuação de seus genitores no sentido de impedir que aqueles exerçam sua autonomia é igualmente capaz de ocasionar-lhes danos e ensejar a necessária obrigação de repará-los. Dessa forma, a responsabilidade civil dos pais nesses casos possui caráter preventivo e reparatório: preventivo, ao inibir condutas que possam colocar em risco a vida de menores sob sua guarda; reparatório, ao compensar os danos causados pela violação de um dever de cuidado essencial. Trata-se de mecanismo essencial à efetividade dos direitos fundamentais e à consolidação de um modelo jurídico que compreenda a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, e não como objetos da vontade parental. É certo que a concretização destas ideias é problemática e gera alguma insegurança, pois remete à capacidade natural do incapaz, que consiste em circunstância ampla e flexível, a ser apurada em cada caso concreto. A saída mais simples seria determinar que o representante legal devesse sempre se manifestar com exclusividade pelo incapaz, desconsiderando-se as volições deste. Entretanto, o que se deve buscar, muito além do que parece ser meramente cômodo, é o ético e o justo. Assim, quando se cogita da proteção a bens jurídicos como a vida, a saúde e a integridade física, competirá ao próprio titular destes direitos a primazia da escolha, e caso haja discrepância entre a vontade do incapaz e a opção de seus representantes, caberá ao Poder Judiciário, em última análise, dirimir a controvérsia. _______ Referências DEL RÍO, Josefina Alventosa. *El derecho a la autonomía de los pacientes*. Madrid: Thomson-Civitas, 2003.  HÖRSTER, Heinrich Ewald. *A parte geral do código civil português*. Coimbra: Almedina, 2003.  PEREIRA, André Gonçalo Dias. *A capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica*. Coimbra: Ed. Coimbra, 2006.  ROMEO CASABONA, Carlos María. *Libertad de conciencia y actividad biomédica*. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (Coord.). *Biodireito*. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 1 É também o parecer de HEINRICH HÖRSTER: "também os menores podem consentir numa limitação voluntária ao exercício dos seus direitos da personalidade quando possuírem, conforme a gravidade do caso concreto, uma capacidade natural suficiente para entender plenamente o significado do seu acto" (HÖRSTER, Heinrich Ewald. A parte geral do código civil português. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2003, p. 270). 2 DEL RÍO, Josefina Alventosa. El derecho a la autonomía de los pacientes. Madrid: Thomson-Civitas, 2003, p. 198. 3 PEREIRA, André Gonçalo Dias. A capacidade para consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In: Comemorações dos 35 anos do código civil e dos 25 anos da reforma de 1977/ Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Ed. Coimbra, 2004-2006. 2. v., p. 201. 4 ROMEO CASABONA, Carlos María. Libertad de conciencia y actividad biomédica. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (Coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 29.
A 2ª seção1 do STJ, em junho deste ano, por unanimidade, decidiu afetar os recursos especiais 2.197.574/SP e 2.165.670/SP ao rito dos recursos repetitivos para "definir se há configuração de danos morais 'in re ipsa' nas hipóteses de recusa indevida de cobertura médico-assistencial pela operadora de plano de saúde" A justificativa da proposta de afetação foi "o número expressivo de processos com fundamento em idêntica questão de direito". Em complemento à justificativa, o ministro relator destacou quatro julgados anteriores, os quais foram analisados e estão contextualizados a seguir. No Agravo Interno no REsp 2.160.823/SP, da 3ª turma, julgado em 9/12/24, tratou-se do caso de negativa de custeio de parto de urgência por estar no período de carência contratual. Deparou-se como pressupostos de validade para possível condenação em dano moral a necessidade de "comprovação do agravamento da situação de saúde ou o abalo psicológico", situação não provada nos autos. Já no agravo interno no REsp 2.061.198/PB, 3ª turma, julgado em 2/12/24, a consumidora pretendeu a reforma da decisão monocrática do ministro relator que deu provimento ao recurso especial interposto pela operadora para não condenar por danos morais no caso envolvendo a negativa de home care. Da leitura da decisão, identificou-se como pressupostos de validade para eventual condenação por danos morais "quando houver agravamento da condição de dor, abalo psicológico ou prejuízos à saúde já debilitada do paciente", e não "in re ipsa" como foi o fundamento do tribunal de origem. Com relação ao agravo interno no REsp 1.979.022/SP, 4ª turma, julgado em 27/11/23, o caso envolveu a negativa de cobertura para sessões de terapia especial denominada de equoterapia com a justificativa que não consta do "Rol da ANS". O tribunal de origem reformou a sentença com o seguinte discurso: "A só expectativa de não poder custear o tratamento sabidamente caro, e correndo risco de agravamento de seu estado de saúde, implica sofrimento moral, que se configura in re ipsa". Inconformada, a operadora interpôs o REsp o qual foi provido para excluir a condenação por danos morais, sob o argumento que: "a recusa do plano de saúde em cobrir determinado procedimento médico, baseada em cláusula contratual controvertida, não configura a hipótese de dano moral presumido - ou in re ipsa - razão pela qual se mostra indispensável a comprovação do efetivo prejuízo para que haja o dever de indenizar". O último julgado citado na justificativa da afetação foi o agravo interno no REsp 2.083.260/SP, 3ª turma, julgado em 2/10/23. Nele consta que o tribunal de origem manteve a decisão de primeiro grau pela não condenação da operadora em danos morais, sob o fundamento que ocorreu na espécie o "mero inadimplemento contratual". O consumidor interpôs recurso, o qual não foi admitido pela Corte Especial por entender que não restou caracterizado o dano moral presumido. Importante ressaltar o posicionamento do ministro relator que consignou que "o mero descumprimento contratual não configura, em regra, danos morais, ressalvada a hipótese de indevida recursa de tratamento de urgência ou emergência". Portanto, entende o STJ que nos casos de urgência ou emergência ocorre, presumidamente, o agravamento da situação de aflição psicológica e de angústia do consumidor. Passa-se a contextualizar os dois precedentes qualificados escolhidos para afetação ao Tema repetitivo 1.365. No primeiro, o REsp 2.197.574/SP, tem-se como recorrente uma operadora de plano de assistência à saúde que interpôs o recurso por não concordar com a seguinte decisão do TJ/SP: "Cobertura do tratamento multidisciplinar atualmente prescrito ao autor, que tem como condição transtorno de espectro autista. Interrupção do tratamento em razão de descredenciamento de clínica antes frequentada pelo beneficiário. Prejuízo ao tratamento, que requer estímulos constantes. Dano moral 'in re ipsa' caracterizado. Indenização arbitrada em R$ 3 mil". O segundo é o REsp 2.165.670/SP, o qual foi interposto pelo consumidor, tendo em vista que o tribunal de origem decotou os danos morais da sentença com o fundamento "por se tratar de mero inadimplemento contratual". O caso versa sobre negativa de cobertura assistencial de limitações de sessões de terapias especiais para consumidor diagnosticado com transtorno do espectro autista. Como caracterizar a "recusa indevida" passível de indenização por danos morais? Da leitura dos precedentes qualificados expostos acima, há um forte indicativo que o STJ poderá modular a presunção para condenar por danos morais nos casos de urgência e emergência. Para os demais casos, o julgador terá que avaliar se no caso concreto o consumidor sofreu agravamento da situação de saúde; abalo psicológico; condição de dor; prejuízos à saúde já debilitada ou comprovação do efetivo prejuízo. Através de pesquisa genérica na página eletrônica do STJ com a expressão "recusa injustificada", deparou-se com outros argumentos utilizados pelo julgador. Como exemplo, o Agravo Interno no REsp 1.927.347/RS, que nele consta para não condenar em danos morais o pressuposto de validade: "dúvida razoável de interpretação do contrato". Com efeito, chama a atenção para as cláusulas que são impostas pelo órgão regulador por meio da instrução normativa 28/222. No seu anexo I, denominado de "Manual de elaboração dos contratos de planos de saúde", a ANS determina a inserção de inúmeras cláusulas como obrigatórias nos contratos a serem comercializados. Nesse particular, a operadora não possui autonomia para modelação dos seus contratos. Há um verdadeiro dirigismo estatual contratual. A negativa de cobertura assistencial baseada neste tipo de cláusula não deve gerar condenação por danos morais a operadora. Situação que merece reflexão, diz respeito ao entendimento exposto pelo STJ no informativo jurisprudência em tese, edição 2593, que diz: "A equoterapia, a musicoterapia e a hidroterapia são de cobertura obrigatória pelas operadoras de plano de saúde para o tratamento de TEA". A ANS já pronunciou de diversas maneiras que não existe cobertura obrigatória para equoterapia e hidroterapia. Como empresa regulada, a operadora deve obedecer aos ditames infralegais estatal. Nesse sentido, a operadora age no seu exercício regular de direito, inexistindo ato ilícito que justifique a condenação por danos morais. Outro exemplo de interpretação do STJ sobre recusa indevida está no REsp 1.651.289/SP. O caso versa sobre pedido de radioterapia de megavoltagem com acelerador linear Varian 21 IX para tratamento de neoplasia maligna no pâncreas. A ministra relatora justificou seu voto pela condenação por danos moral pela "frustração da justa e legítima expectativa do consumidor de obter o tratamento correto à doença que o acomete". Para a ministra a doença está prevista no contrato, bem como a radioterapia. A negativa foi dada pela operadora em virtude que o método não estava previsto no rol da ANS. O conflito de entendimento entre o Estado-juiz e o Estado-regulador gera uma verdadeira insegurança jurídica no mercado de saúde suplementar, fomentando a manutenção da judicialização da assistência à saúde. A ANS deve ser reconhecida como órgão regulador técnico pelo Poder Judiciário. O diálogo institucional entre os entes estatais é primordial para possibilitar a harmonização nesta complexa relação jurídica de consumo. ______ 1 Estiverem presentes no julgamento, os Ministros Moura Ribeiro, Daniela Teixeira, Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha, Humberto Martins, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cuevas (Relator) e Marco Buzzi (Presidente). 2 ANS - LEGISLAÇÃO. Disponível aqui. 3 STJ - Jurisprudência em Teses. Disponível aqui.
Nos últimos dias, o debate público voltou-se intensamente para temas como "adultização", sharenting1 e exploração da imagem de crianças e adolescentes em redes sociais. O gatilho para essa discussão foi o vídeo investigativo produzido pelo influenciador Felca, com quase cinquenta minutos de conteúdo que se aproxima de uma verdadeira reportagem. O material revelou práticas ilícitas que, até então, passavam despercebidas - ou eram ignoradas - pela mídia tradicional, pelas autoridades competentes e até mesmo pela sociedade. Apesar de contar com mais de 20 milhões de seguidores, o influenciador em questão não era figura amplamente conhecida do grande público, em razão das bolhas algorítmicas que segmentam a audiência digital. No entanto, para agências de marketing, anunciantes e seguidores fiéis, tratava-se de um verdadeiro fenômeno, classificado como o sexto maior influenciador do Brasil, atrás apenas de nomes gigantescos como Anitta, o ex-casal Zé Felipe e Virgínia, Vinicius Jr. e Neymar.2 O problema central que emerge desse caso é a normalização do inaceitável: a exploração da imagem de crianças e adolescentes, seja para satisfazer a lascívia de terceiros, seja para fins econômicos, o que constitui conduta criminosa.3-4 O contraste entre a reverência institucional e a posterior derrocada pública do influenciador é emblemático. Em 2024, por exemplo, ele foi homenageado pela Assembleia Legislativa da Paraíba como "inspiração para os jovens do estado", em razão de sua trajetória de "superação e ações sociais"5 . Hoje, essa mesma figura é alvo de forte reprovação social e jurídica. O vídeo de Felca retirou a coletividade da caverna platônica. Passou-se a enxergar, de forma incontornável, a gravidade das práticas imputadas ao influenciador. Advogados, magistrados, promotores e juristas, que até então interpretavam as condutas sob a ótica da licitude, passaram a reconhecer as potenciais ilicitudes e a gravidade da exploração digital infantojuvenil. Vale observar que denúncias semelhantes já haviam sido levantadas. A influenciadora Antônia Fontenelle, ainda que marcada por erros passados - como no episódio envolvendo a atriz Klara Castanho, em que foi condenada civil e criminalmente -, havia denunciado publicamente práticas atribuídas ao influenciador Hytalo Santos. Todavia, sua manifestação, restrita a um público mais alinhado a um espectro ideológico específico, foi silenciada pela própria opinião pública e até mesmo pelo Judiciário, resultando em ações de indenização e criminais contra ela. Em processo em trâmite perante o 1º Juizado Especial Cível de João Pessoa, em sede de tutela provisória, foi determinada a suspensão temporária de um vídeo de Fontenelle, sob o fundamento de potencial violação à honra e à imagem do autor, nos termos do artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal. De acordo com a inicial, o influencer "soma, em suas redes sociais, mais de 40 milhões (quarenta milhões) de seguidores, o que evidencia a solidez de sua carreira e a extensa rede de fãs que o acompanham diariamente" e estaria sendo caluniado, injuriado e difamado pela Sra. Antonia Fontenelle. O simples fato de ter milhões de seguidores não pode servir como escudo para a prática de ilícitos. Ter seguidores, por vezes, é um mero indicativo de conseguir capturar a audiência, jamais um sinônimo de boa índole. Eis um breve trecho da inicial com as acusações realizadas por Fontenelle: Isso é uma influência. Isso que eu vou acabar de ler pra vocês. Muitas coisas vão acontecer. Olha, eu tô recebendo uns vídeos bizarros de um tal de Hytalo, não sei das quantas. Esqueci o sobrenome dele porque me deu até dor de cabeça. Eu tava de manhã trabalhando, correndo pra cima e pra baixo e vi umas coisas de uma cara que tem 16 milhões de seguidores, que ele fica cercado de crianças, de adolescentes. É uma adolescente atrás da outra engravidando. Esse cara distribui presente, distribui prêmio e o canal dele é toda a vida inteira sexualizando crianças. Eu já mandei mensagem para a Damares, eu vou arrumar um tempo essa semana, e se Deus quiser, ela vai arrumar a agenda dela também entendeu? Para que a gente se reúna para falar a respeito do canal desse Hytalo. Não é possível que o Ministério Público vá fechar os olhos para um negócio desse. Sabe? Isso é um absurdo. Isso é um absurdo. E detalhe, eu fico para morrer. Algum deputado, sabe? Alguém tem que despertar e esse projeto tem quer ser aprovado e tem que vigorar para ontem. Pais, chocadeiras que botaram filhos no mundo e que não cuidam e que deixam nas mãos desse tipo de meliante, tem que ser preso. Porque a culpa não é só desse infeliz, irresponsável, não,. A culpa são dos pais que vendem seus filhos por nada. Eu vi quase nada do canal desse infeliz, eu fiquei... Eu fiquei esbabacada, eu falei, não é possível, não é possível. Ele tem milhões de seguidores e fica um monte de gente comentando, filhinho pra cá, filhinho pra lá, sensualizando, meninas de 14 anos dançando igual puuuuuuuta de quinta categoria. Entendeu? E os pais fechando os olhos pra isso. Uma barbárie. Uma barbárie. Então, esse estudo vai ter que ser grande, porque tem muita criança lá e esses pais vão ter que serem responsabilizados. É para ontem. Então, não é uma coisa pra eu vir aqui e só reclamar, não. Isso aí a gente vai denunciar no Ministério Público, a gente vai pedir, entendeu? Que algo seja feito. Daqui a pouco o inferno vai se levantar contra mim, que são esses próprios pais, que são os fãs desses acéfalos. É uma cagada. O que está acontecendo com esse país, gente? Pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus. Chegamos num lugar onde a gente não tem mais pra onde ir. Chegamos no fundo do poço. Sem uma única análise sobre os fatos imputados, o Douto Juízo do 1º Juizado Especial Cível de João Pessoa decidiu que: No caso dos autos, verifica-se que a parte promovida Antonia Fontenele de Brito possui canais e/ou inscrições em plataformas digitais, que atingem milhões de usuários. Por este fato e tendo em vista a possível violação ao direito de liberdade de expressão, ocasião em que será analisado quando da prolação da sentença, faz-se mister não a exclusão, mas tão somente a suspensão temporária da referida publicação, de modo que os usuários não tenham acesso ao referido vídeo. (Processo 0868861-85.2024.8.15.2001 - Decisão assinada em 05.12.2024) Para a sorte da Sra. Antonia Fontenelle, ainda não há sentença nos autos e é muito provável que ela seja de improcedência. De igual forma, o influencer havia processado outra pessoa que supostamente também teria violado os direitos da personalidade e excedido a liberdade de expressão. De acordo com a tutela antecipada proferida nos autos: Segundo narra o autor, a primeira requerida, após o término do relacionamento que mantinham, passou a veicular nas redes sociais - especialmente Facebook, Instagram e TikTok - vídeos e publicações com conteúdo ofensivo e calunioso, acusando-o de ser "P-didy" - expressão que, no contexto apresentado, tem conotação depreciativa e está associada à suposta prática de prostituição de adolescentes, sem qualquer base fática ou indício probatório. As postagens foram feitas nos perfis pessoais da ré, com marcação direta ao perfil do autor, gerando ampla visualização e repercussão negativa. Alega-se que os conteúdos expõem o autor a situações vexatórias, com abalo à imagem, honra e reputação pessoal e profissional. E continua a referida decisão: No caso concreto, a documentação acostada à inicial revela, em juízo de cognição sumária, a presença de publicações em redes sociais com conteúdo que, ao menos em tese, imputam ao autor condutas criminosas e moralmente reprováveis, sem prova mínima de sua veracidade, o que configura ofensa potencial à honra, à imagem e à dignidade pessoal, valores constitucionalmente protegidos (CF, art. 5º, incisos V e X). A manutenção de tais conteúdos nas plataformas digitais, sobretudo quando de acesso público e de ampla visualização, acarreta exposição indevida e prejuízos de difícil reparação, tornando presente o requisito do periculum in mora. (Processo 0830424-38.2025.8.15.2001) Ocorre que, com a publicação do vídeo de Felca, em 6 de agosto de 2025, houve uma mudança abrupta de posicionamento. A tutela concedida em 08.08.2025 foi revogada em 09.08.2025 sem qualquer fato novo que justificasse juridicamente a alteração. O ilícito já estava presente desde o início, mas a guinada interpretativa decorreu, essencialmente, da pressão social e da ampla repercussão midiática. Esse cenário expõe uma reflexão incômoda: até que ponto a opinião social condiciona o Judiciário? A revogação de tutelas provisórias sem provocação da parte é rara. O direito não mudou, tampouco os fatos ou as imputações. O que mudou foi a percepção coletiva sobre a gravidade da conduta, tornando insustentável a proteção judicial antes conferida ao influenciador. É preciso reconhecer que a popularidade digital e o sucesso comercial não constituem salvo-conduto para a prática de ilícitos. O que se apresenta como fortaleza construída sobre números de seguidores pode, em verdade, ser apenas um castelo de areia. Em última análise, talvez não seja necessário criar novos direitos para enfrentar situações como esta, mas sim retomar uma análise jurídica técnica e menos influenciada por clamor ou prestígio social/virtual. A responsabilização civil deve ser pautada por critérios objetivos e normativos, e não por flutuações do ambiente digital. Ainda assim, é inegável que, a partir da investigação de Felca, muitos processados por denúncias anteriores ganharam uma espécie de "redenção judicial". A opinião social mudou, e, com ela, também a postura do Judiciário. O episódio reforça a importância de refletir sobre a tênue linha entre a legítima proteção da honra e da imagem e a necessidade de expor, coibir e responsabilizar condutas ilícitas, especialmente quando envolvem a exploração de crianças e adolescentes. __________ 1 MEDON, Filipe. (Over) Shareting: a superexposição da imagem e dos dados pessoais de crianças e adolescentes a partir de casos concretos. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 31, n. 02, p. 265-265, 2022. 2 Disponível aqui. 3 Sobre o tema, sugerimos a leitura de outro texto publicado na coluna de autoria de Caio César do Nascimento Barbosa, Glayder Daywerth Pereira Guimarães e Michael César Silva: Superexposição de crianças e adolescentes e a hipersexualização de influenciadores mirins nas plataformas digitais. Disponível aqui. 4 Sobre o tema de responsabilidade civil dos influenciadores, sugerimos a leitura de texto publicado na coluna. 5 Disponível aqui.
Em uma onda de renovação legislativa, Bélgica e França refletem "l'esprit du temps", sistematizando a responsabilidade civil em vista ao estágio atual de suas sociedades e aquilo que se pretende para os próximos anos. Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme. A final, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. Os códigos oitocentistas são fotografias de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela abraça efeitos da violação de múltiplas e complexas situações patrimoniais, bem como de direitos fundamentais e direitos da personalidade, sem olvidar as consequências lesivas do emprego das tecnologias digitais emergentes, em todos os níveis. Em ambas reformas, mantém-se a primazia da função compensatória de danos e o correlato princípio da reparação integral. Todavia, na sociedade contemporânea - plural e complexa - danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais, por vezes anônimos, catastróficos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela clássica função compensatória, considera-se a necessidade de compreensão da responsabilidade civil como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Assim, em uma análise bilateral, para além de uma contenção de danos, abre-se espaço para uma contenção de comportamentos antijurídicos, mediante a introdução não apenas da função preventiva, como naquilo que aqui nos interessa, das funções restitutória e punitiva, na Bélgica e França normatizadas na figura do "faute lucrative". O novo livro 6 do CC belga entrou em vigor em 1º de janeiro de 2025. Substitui os arts. 1382 a 1386 do antigo Código Napoleônico, tendo como objetivo modernizar, clarificar e sistematizar a responsabilidade extracontratual. Em síntese, os seis artigos originais foram ampliados para 55 artigos, com o objetivo de regrar jurisprudência e doutrina prevalentes, incorporando os desenvolvimentos sociais. Ao reduzir a incerteza jurídica, esta codificação pretende conformar a liberdade dos privados à ampla proteção às vítimas. Especificamente no ponto que nos interessa, imaginemos que um meio de comunicação publique fotos de uma pessoa sem o seu consentimento, violando assim o seu direito de imagem e, dependendo do conteúdo da publicação, a sua reputação e/ou privacidade. No caso de uma figura pública em particular, é provável que essa publicação gere lucros para o autor da violação, nomeadamente através de receitas publicitárias ou do aumento das vendas. No entanto, a reparação tradicional, consubstanciada no dano moral e/ou econômico sofrido pela vítima não raramente alcança montantes tímidos em comparação com o lucro obtido. Destarte, o legislador reconhece que em determinadas situações, o princípio da reparação integral dos danos, não possui efeito dissuasivo, permitindo ao ofensor especular sobre os lucros que obterá com a sua conduta. Nesse contexto, assim se posicionou a reforma belga do CC: Art. 6.31 - Objetivos e modalidades de reparação: § 1º. A reparação do dano patrimonial tem como objetivo colocar a pessoa lesada na situação em que ela estaria se o fato gerador da responsabilidade não tivesse ocorrido. A reparação do dano extrapatrimonial tem por finalidade conceder à pessoa lesada uma compensação justa e adequada por esse dano. § 2º. A reparação ocorre in natura ou sob a forma de indenização por perdas e danos. Estas modalidades de reparação podem ser aplicadas simultaneamente, se necessário, para assegurar a reparação integral do dano. § 3º. Quando o responsável tiver, intencionalmente e com o objetivo de obter lucro, violado um direito da personalidade da pessoa lesada ou atentado contra sua honra ou reputação, o juiz poderá conceder à pessoa lesada uma indenização complementar, correspondente à totalidade ou a parte do lucro líquido obtido pelo responsável.1 Conforme se dessume do § 3º do art. 6.31, a restituição do lucro ilícito é canalizada para o interno da responsabilidade civil. Optou-se pelo disgorgement como indenização complementar para hipóteses de violações a situações existenciais. Vale dizer, a remoção de ganhos indevidos é facultada especificamente em condenações por danos extrapatrimoniais, surgindo em hipóteses especiais de intencionalidade de aferição de benefícios econômicos (não pela intenção de causar um dano) na lesão a direitos da personalidade. A regra interage com várias normativas sobre a proteção da propriedade imaterial e, designadamente, com a diretiva 2016/43 da União Europeia2, que prevê remédios restitutórios em alternativa a indenização pelo dano patrimonial, no âmbito da tutela do segredo comercial, reforçando o private enforcement. Em um mundo ideal, aplica-se o adagio "tort must not pay". Infelizmente, o ilícito não só se paga, como remunera muito bem. Como resposta ao fenômeno da antijuridicidade lucrativa a nova regra é elogiável sob o prisma da segurança jurídica, pois depura o dano extrapatrimonial, preservando unicamente a sua essência compensatória, lastreada na necessidade de reconduzir a vítima a situação semelhante à inocorrência da lesão. Assim, eventual necessidade de sancionar o comportamento antijurídico do ofensor - direcionado ao lucro indevido - será objeto de um tópico complementar da sentença, com motivação própria, capaz de preencher os requisitos normativos, propiciando tanto à vitima como o ofensor a possibilidade de se insurgir contra a indenização restitutória em si, ou, alternativamente, ao seu quantum, independentemente de qualquer discussão quanto à prévia condenação pelo dano extrapatrimonial. Adiante, no que concerne a França, por mais que a maior parte da ampla reformulação da responsabilidade civil ainda se encontre em discussão no Parlamento, a reforma aprovada em 2025 fere a temática da multifuncionalidade de forma ainda mais ambiciosa que na Bélgica. O art. 1.254 do code, situado no Capitulo V - intitulado "Sanção civil em caso de conduta dolosa que cause dano em série", encontra-se em vigência desde 3 de maio de 2025, tendo como base a lei 2025-391 (LOI DDADUE), que contém várias disposições de adaptação ao direito da União Europeia nas áreas da economia, finanças, ambiente, energia, transportes, saúde e circulação de pessoas. Art. 1.254: Quando uma pessoa for considerada responsável por violação das obrigações legais ou contratuais relativas à sua atividade profissional, o juiz poderá, a pedido do Ministério Público, perante as jurisdições da ordem judicial, ou do Governo, perante as jurisdições da ordem administrativa, e mediante decisão especialmente fundamentada, condená-la ao pagamento de uma sanção civil, cujo produto será destinado a um fundo voltado ao financiamento de ações coletivas. A condenação ao pagamento da sanção civil somente poderá ocorrer se forem preenchidas as seguintes condições: 1° O autor do dano cometeu deliberadamente uma falta com o objetivo de obter um ganho ou uma economia indevida; 2° A infração constatada causou um ou mais danos a várias pessoas físicas ou jurídicas colocadas em situação semelhante. O montante da sanção será proporcional à gravidade da falta cometida e ao benefício auferido pelo autor da infração. Se o autor for uma pessoa física, o valor da sanção não poderá exceder o dobro do lucro obtido. Se for uma pessoa jurídica, o montante não poderá ultrapassar cinco vezes o valor do lucro auferido. Quando a sanção civil puder ser cumulada com multa administrativa ou penal aplicada pelos mesmos fatos ao autor da infração, o montante global das sanções não poderá ultrapassar o maior limite legal aplicável. O risco de uma condenação à sanção civil não é segurável.3 Embora a responsabilidade civil no direito francês tenha sido historicamente baseada na exclusividade da função compensatória e no princípio da reparação integral, a recente introdução de uma abordagem punitiva no CC marca um desenvolvimento significativo na legislação. De fato, o novo art. 1254 do CC estabelece uma pena civil aplicável à conduta dolosa que cause danos em série por mecanismo de múltiplos indenizatórios, oscilando conforme a natureza de pessoa natural ou jurídica do agente que aufere lucros ilícitos. O dispositivo estabelece uma sanção autônoma, baseada na punição de condutas fraudulentas consideradas "lucrativas". Doravante, qualquer conduta ilícita lucrativa que cause danos em série provavelmente resultará na aplicação de uma sanção civil, cujos recursos se destinarão ao financiamento de ações coletivas. O escopo do artigo pretende ser aplicável não apenas às relações B2C, mas também às relações B2B. Assim, qualquer pessoa considerada responsável pelo descumprimento de uma obrigação legal no exercício de sua atividade profissional pode estar sujeita a esta penalidade em caso de danos seriais. Embora alocada no âmbito da responsabilidade extracontratual, a regra pode suscitar a questão da transfiguração da distinção tradicional entre responsabilidade contratual e extracontratual. Neste ponto, o texto é claro: a penalidade civil é aplicável em caso de "descumprimento de obrigações legais ou contratuais relativas à sua atividade profissional", o que sugere que seu escopo abrange tanto a responsabilidade negocial quanto a aquiliana. A primeira condição para que a sanção civil seja imposta consiste na caracterização da conduta dolosa com fins lucrativos, interpretada da seguinte forma: "1° O autor do dano cometeu deliberadamente uma conduta dolosa com o objetivo de obter um ganho ou economia indevida;" Isso implica, portanto, que a conduta negligente, não obstante a sua gravidade, estaria, portanto, isenta deste regime. Isso evidencia a intenção do legislador de se referir a uma abordagem dissuasiva e não a uma indenização restitutória propriamente dita, pois essa não se prende à intenção do ofensor e sim ao resultado lucrativo ou, ao menos, a economia de despesas propiciada pela prática do ilícito. Em seguida, e cumulativamente, a infração deve ter causado danos em série: "2° A infração observada causou um ou mais prejuízos a várias pessoas físicas ou jurídicas em situação semelhante." Essa condição visa identificar uma violação sistêmica, cujos efeitos se mostram significativos e repetidos. Ilustrativamente, isso remete às violações localizadas no direito da concorrência ou em questões de conformidade e due diligence. Mais uma vez, coloca-se acento na função pedagógica da responsabilidade civil, considerando-se que a restituição de ganhos indevidos (disgorgement) ou o remédio do reasonable fee (pagamento de um preço razoável pela intromissão no direito alheio) são aplicáveis a uma única conduta antijurídica, independente da aferição de sua reiteração pelo mesmo agente. O valor da sanção será proporcional à gravidade da infração e ao lucro dela auferido. O texto prevê um limite variável: o dobro do lucro obtido para uma pessoa física e o quíntuplo para uma pessoa jurídica. Esses valores claramente refletem o caráter dissuasivo do mecanismo, considerando-se que se a intenção do legislador fosse a de erigir um remédio puramente restitutório, a premissa seria que ostentasse como valor máximo o lucro obtido pelo infrator, porém jamais um múltiplo sobre ele aplicável. A pena civil reflete a severidade do ilícito, garantindo resposta significativa a comportamentos demeritórios economicamente motivados. Ressalta-se que as vítimas das lesões seriais não têm poder de iniciativa quanto à aplicação dessa sanção civil. De fato, conforme previsto no art. 1.254 do CC, a pena pode ser imposta por um juiz a requerimento do Ministério Público (para o sistema judiciário) ou do governo (para o sistema administrativo) e por decisão especialmente fundamentada. No mais, a sanção é insuscetível de seguro, confirmando sua natureza punitiva. Ao proibir a partilha de riscos por meio de contrato de seguro, o legislador pretende responsabilizar integralmente o autor do delito, expondo-o a uma pena pessoal e inescapável, evitando eventual gestão contratual por parte de agentes econômicos, apta a diluir e terceirizar os efeitos dissuasórios da condenação agravada. As novas disposições determinam que o produto da penalidade civil seja doado a fundos para financiar ações coletivas. Dessume-se do exposto que o novo art. 1254 do CC francês concilia a tradicional função compensatória a uma singular função punitiva, cuja eclosão requer o cenário da ilicitude lucrativa. Trata-se de resposta direcionada a comportamentos econômicos fraudulentos em larga escala. Portanto, condutas sociais negativamente exemplares, porém dissociadas de intuito econômico, não são alcançadas pela sanção pedagógica. A introdução da sanção civil de cunho dissuasório revela as tensões existentes na responsabilidade civil, oscilando entre sua necessária evolução e o respeito aos seus princípios fundamentais, entre os quais se destaca o princípio da reparação integral. Apesar das evidentes distinções quanto à critérios de incidência e direcionamento das sanções, as novidades legislativas oriundas de duas jurisdições do civil law, cuja estabilidade normativa é da própria índole, denotam que - como recentemente estabeleceu a Corte Suprema di Cassazione4 Italiana - em sociedades plurais e complexas, a responsabilidade civil pode albergar em seu interno a salutar convivência entre a função compensatória e remédios extracompensatórios, sendo suficiente que critérios objetivos bem delineados estremem divisas, ressignificando o princípio da reparação integral. _______ 1 Art. 6.31 Objectifs et modes de réparation § 1er. La réparation du dommage patrimonial vise à placer la personne lésée dans la situation où elle se serait trouvée si le fait générateur de responsabilité ne s'était pas produit. La réparation du dommage extrapatrimonial a pour but d'accorder à la personne lésée une juste et adéquate compensation de ce dommage. § 2. La réparation a lieu en nature ou sous forme de dommages et intérêts. Ces modes de réparation peuvent être appliqués simultanément si cela est nécessaire pour assurer la réparation intégrale du dommage. § 3. Lorsque le responsable a, intentionnellement et dans le but de réaliser un profit, violé un droit de la personnalité de la personne lésée ou porté atteinte à son honneur ou à sa réputation, le juge peut accorder à la personne lésée une indemnité complémentaire égale à tout ou partie du bénéfice net réalisé par le responsable. 2 Art. 14 : Ao fixar a indenização a que se refere o n.o 1, as autoridades judiciais competentes têm em conta todos os fatores adequados, tais como as consequências econômicas negativas, incluindo os lucros cessantes, que a parte lesada tenha sofrido, os lucros indevidos ganhos pelo infrator e, em casos apropriados, outros elementos para além dos fatores económicos, como os danos morais causados ao titular do segredo comercial pela aquisição, utilização ou divulgação ilegais do segredo comercial. Em alternativa, as autoridades judiciais competentes podem fixar a indenização como um montante fixo com base em elementos tais como, no mínimo, o montante de remunerações ou direitos que teriam sido auferidos caso o infrator tivesse pedido autorização para utilizar o segredo comercial em questão. 3 Chapitre V:- Article 1.254 : Lorsqu'une personne est reconnue responsable d'un manquement aux obligations légales ou contractuelles afférentes à son activité professionnelle, le juge peut, à la demande du ministère public, devant les juridictions de l'ordre judiciaire, ou du Gouvernement, devant les juridictions de l'ordre administratif, et par une décision spécialement motivée, la condamner au paiement d'une sanction civile, dont le produit est affecté à un fonds consacré au financement des actions de groupe. La condamnation au paiement de la sanction civile ne peut intervenir que si les conditions suivantes sont remplies : 1° L'auteur du dommage a délibérément commis une faute en vue d'obtenir un gain ou une économie indue ; 2° Le manquement constaté a causé un ou plusieurs dommages à plusieurs personnes physiques ou morales placées dans une situation similaire. Le montant de la sanction est proportionné à la gravité de la faute commise et au profit que l'auteur de la faute en a retiré. Si celui-ci est une personne physique, ce montant ne peut être supérieur au double du profit réalisé. Si l'auteur est une personne morale, ce montant ne peut être supérieur au quintuple du montant du profit réalisé. Lorsqu'une sanction civile est susceptible d'être cumulée avec une amende administrative ou pénale infligée en raison des mêmes faits à l'auteur du manquement, le montant global des amendes prononcées ne dépasse pas le maximum légal le plus élevé. Le risque d'une condamnation à la sanction civile n'est pas assurable. 4 Cassazione Civile, Sezioni Unite., Sentenza 05/07/2017 n° 16601: "É possível, no sistema italiano, prever o pagamento de uma soma superior àquela estritamente necessária a reintegrar o dano? Deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são preventiva e punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica. A condenação ao pagamento de uma soma superior àquela estritamente necessária a restabelecer o status quo ante se configurará somente se houver uma norma ad hoc, cuja fattispecie, preveja o elemento punitivo".
O modelo tradicional de atendimento de saúde, que ainda traz seus resquícios na contemporaneidade, baseia-se no paternalismo médico, o qual restringia o paciente ao papel decisivo de apenas acatar determinações médicas ou recusar o atendimento.  Com o tempo, esse modelo foi perdendo espaço para o modelo horizontal, baseado na relação dialógica capaz de fazer com que profissional e utente cheguem a um consenso quanto ao caminho que será percorrido no atendimento.  A informação ganha importância no palco do Direito Médico, a exigir-se que seja qualificada, acessível e inteligível, com a finalidade de permitir que o paciente tome decisões fundamentadas e seguras. Tudo parecia estável e em trajetória segura, mas os avanços tecnológicos que são expostos e impostos em progressão geométrica levam à reflexão sobre o impacto inexorável da inteligência artificial no Direito Médico, especialmente no consentimento do paciente. Afinal, esses avanços podem interferir decisivamente no trajeto de atendimento e no processo decisório, potencialmente tanto para trazer-lhes benefícios quanto para causar interferências prejudiciais. E essa avaliação, investigação e estudo não desconsidera a premissa primordial de que a informação é elemento essencial na relação médico-paciente, compondo uma marcha chamada "processo informativo-decisório", cujo conteúdo e extensão pode variar conforme o tipo de atendimento, mas sempre deve garantir que este compreenda plenamente sua situação e as opções disponíveis quanto ao porvir.  E a informação (o processo informativo-decisório) pode levar ao consentimento, consubstanciado na manifestação da vontade do paciente, construída a partir de um prévio encadeado informativo e de esclarecimento, a permitir que o usuário tome decisões de diversas ordens, como realizar ou recusar um procedimento, adiá-lo, buscar alternativas ou ouvir uma segunda opinião. A tecnologia, por sua vez, é parte integrante da jornada do paciente e como dito, inegavelmente ganhará cada vez mais espaço no atendimento de saúde. Muitos atores desse setor estão a utilizar ferramentas de IA, como chatbots, para obterem informações médicas preliminares, submetendo dados sensíveis para análise. No entanto, a precisão e utilidade das respostas dependem de vários fatores, incluindo a qualidade dos prompts e a capacidade dos modelos de IA para efetivamente prestarem algum auxílio útil e tecnicamente adequado.  A questão está posta em todas as suas nuances e vulnerabilidades, pois atualmente qualquer pessoa consegue lançar seus dados (inclusive os sensíveis) em plataformas de IA, sem que haja qualquer regulação mínima, sem saber de que modo a IA e seus agentes estão utilizando tais dados e sem ter ciência quanto ao modo pelo qual esses dados podem estar sendo empregados no treinamento dessa IA. Quanto ao resultado do uso da IA, ainda que inúmeras ferramentas estejam em constante e acelerado aprimoramento e, em alguns casos, possam oferecer respostas mais rápidas e detalhadas do que médicos humanos, há outros riscos significativos envolvidos. Modelos de IA podem errar, e na área da saúde, um erro pode gerar consequências graves. Enquanto um equívoco em um conselho sobre jardinagem pode ser inofensivo, um erro em uma orientação médica pode ser fatal. E mesmo em um mundo no qual a tecnologia galga espaços em progressão geométrica, o princípio da incolumidade das esferas jurídicas permanece como estandarte, ao estabelecer que nenhuma intervenção pode ocorrer sem que seja permitida por parte do paciente ou de quem por ele responda. A ausência do consentimento pode gerar responsabilidade jurídica, tanto na esfera penal - com enquadramentos como constrangimento ilegal, lesão corporal ou até homicídio - quanto na esfera civil, resultando em indenizações. Além da legalidade, o processo informativo-decisório tem papel importante na constituição de um profícuo vínculo de confiança entre médico e paciente. Quando este compreende plenamente a sua situação e participa ativamente do encadeamento dos atos que dizem respeito a atenção da sua saúde, os resultados tendem a ser melhores, inclusive no sentido de ser coerente com a sua própria biografia.  A colaboração do paciente é um fator essencial para o sucesso da intervenção médica, a informação e a sua decisão efetiva beneficia todo o sistema de saúde, não se restringindo apenas à proteção do paciente ou à defesa do médico. A IA pode ser uma ferramenta para a construção de argumentos e levantamento de dados (desde que oriundos de fontes idôneas), para auxiliar na tomada de decisão, para servir como apoio à cooperação do paciente ou mesmo na apresentação de informações necessárias à tomada de decisão. Mas isso não elimina a necessidade de consentimento, e o conhecido "termo de consentimento livre e esclarecido" não deve ser tratado como mera formalidade documental para evitar responsabilidade jurídica. Trata-se de uma prova importante do processo essencial de informação e participação ativa do paciente na condução da sua saúde, podendo ser emitido com o auxílio da tecnologia, mas isso não elimina o dever do médico de fazer o paciente passar pelo processo informativo-decisório prévio, o qual também poderá ter o apoio de IA, nos termos do que será exposto neste texto.  Igualmente é essencial para a melhor compreensão tanto da validade quanto da eficácia da decisão do paciente ter em mente a diferença entre consentimento e termo de consentimento, pois o consentimento é uma das possíveis decisões do paciente após o processo informativo-decisório (é uma decisão permissiva), enquanto o termo de consentimento é o documento que formaliza uma decisão permissiva quanto a um ato médico.  Embora seja possível formalizar eletronicamente o consentimento, pois essa providência permite a obtenção de permissão de forma ágil e segura, facilitando a realização de atos médicos ou de saúde isso não substitui o direito do paciente à informação adequada, a ser exercido antes da emissão da sua decisão.  O médico deve garantir que o paciente compreenda todos os aspectos essenciais do procedimento ou dos atos de saúde envolvidos, incluindo diferentes técnicas e possíveis consequências. Por exemplo, em uma cirurgia plástica abdominal, há abordagens que podem deixar um excedente de pele ou eliminá-lo por completo, que estão vinculados a tipos distintos de abdominoplastia. Se o médico não explicar essa diferença e o paciente ficar insatisfeito com o resultado ou com a técnica utilizada (quando mais de uma puder ser aplicada àquele paciente determinado) pode haver questionamentos e até responsabilização civil, mesmo que a técnica utilizada escolhida pelo médico ou pela IA que o médico utiliza como apoio decisório seja aceitável tecnicamente. A questão central nesse exemplo não é a técnica adotada, mas sim a falta de comunicação e a participação do paciente na decisão. Aliás, o médico que utiliza a IA como apoio decisório precisa ter alguns cuidados, como resguardar devidamente informações sensíveis do paciente, utilizar modelos treinados e específicos, informar ao paciente sobre o uso de ferramentas de subsídio. Ou seja, o uso da tecnologia na área da saúde é como uma teia de entremeios e de questões éticas, operacionais e legais de entrelaçamento e interferências complexas. Se na prática médica, é possível que o profissional esqueça de fornecer certas informações - afinal, médicos e pacientes são humanos e estão sujeitos a falhas - no ambiente da inteligência artificial também pode cometer erros, embora com avanços tecnológicos o percentual de erro possa diminuir ao longo do tempo. Entretanto, os sistemas de IA ainda não são confiáveis para substituir, por si, a decisão médica. Mesmo que um chatbot seja treinado para responder sobre uma cirurgia neurológica, ainda há incerteza sobre a exatidão e precisão das respostas, o que pode comprometer a escolha esclarecida do paciente. A grande questão é: como garantir a autonomia do paciente em tempos de IA e plataformas digitais? O futuro demonstrará que será impossível deixar de utilizar sistemas específicos e treinados de IA como meios auxiliares no processo de consentimento, mas dificilmente isso ocorrerá, ao menos em curto prazo, como única fonte de informação ou meio para o processo de escolha esclarecida. Se um sistema de IA for utilizado, ele deve passar por rigorosa supervisão e ser treinado para fornecer respostas seguras. Ainda assim, persistem desafios, que dizem respeito a impossibilidade de garantir que a IA ofereça respostas corretas e completas, a possibilidade prática de ocorrência eventuais vieses ou informações falsas produzidas pela IA e a impossibilidade de certeza quanto a restauração da informação correta quando houver erro do sistema. Apesar dos riscos, a IA inegavelmente traz agilidade e acesso ampliado à informação, inclusive geograficamente. Muitos pacientes podem utilizar sistemas digitais para formular dúvidas e, posteriormente, saná-las com o médico durante a consulta. Além disso, a tecnologia pode ser útil para pacientes com baixo letramento em saúde, ajudando-os a entender melhor os termos médicos e o impacto dos procedimentos. No entanto, a qualidade da comunicação ainda é um obstáculo, pois um paciente pode interpretar incorretamente uma informação médica, gerando confusão e decisões equivocadas. No contexto da saúde pública, onde o tempo para atendimento já é escasso, a falta de acesso à informação se torna um obstáculo ainda maior. A introdução de sistemas de inteligência artificial pode parecer uma solução viável, mas há desafios a serem enfrentados, como a barreira tecnológica - muitos pacientes têm dificuldade em utilizar dispositivos digitais e navegar por plataformas de IA. O futuro do consentimento informado nesse contexto complexo depende do equilíbrio entre tecnologia, letramento de usuários e supervisão e ações humanas, garantindo que o paciente tenha condições de receber e reflexionar sobre informações claras, acessíveis e confiáveis, para que possa tomar decisões conscientes sobre sua saúde. Uma alternativa para melhorar a comunicação e a compreensão dos pacientes são vídeos explicativos, animações e recursos interativos gerados por ferramentas de IA, que podem ampliar o arsenal informativo disponível para ajudá-los a tomar decisões mais conscientes, a demonstrar que o investimento em acessibilidade quanto a tais meios é uma medida hábil à redução de desigualdades no acesso à informação. No que diz respeito a digitalização do consentimento, há questões a ponderar, como a segurança no armazenamento e auditoria das informações. Tecnologias como blockchain podem oferecer um nível mais elevado de segurança, tornando as alterações nos registros rastreáveis, o que fortalece a confiabilidade e evita fraudes.  Além disso, o consentimento remoto com registro audiovisual tem se mostrado uma alternativa eficaz, especialmente na telemedicina. Essa abordagem permite que o paciente autorize procedimentos de maneira mais estruturada, garantindo maior transparência no processo (Conselho Federal de Medicina Resolução n. 2.314/2022). A inteligência artificial igualmente pode servir como suporte na decisão médica, porquanto modelos podem ser treinados para fornecer explicações personalizadas, ajustadas ao perfil do paciente (levando em consideração fatores como idade, condição clínica e nível educacional). Isso pode ser particularmente útil na identificação da capacidade para consentir, ajudando médicos a avaliar se o paciente está apto para tomar decisões quanto a sua saúde1.  Por exemplo, uma IA pode fazer perguntas estratégicas ao paciente e, com base nas respostas, identificar se ele possui discernimento ou está comprometido em sua capacidade de consentir, inclusive quanto ao seu grau. Com um relatório detalhado, o médico pode avaliar se deve conversar diretamente com o paciente ou com seu representante legal. Embora a tecnologia possa auxiliar no processo de escolha esclarecida, ela deve ser usada com supervisão humana e critérios bem definidos. A inteligência artificial não substitui a comunicação médico-paciente, mas pode ser uma ferramenta valiosa para melhorar o acesso à informação, desde que aplicada com cautela e seguindo parâmetros éticos e legais. A atividade regulatória é, portanto, urgente e imprescindível, pois o uso crescente da inteligência artificial traz desafios que vão além da tecnologia em si.  Entre os principais riscos estão o excesso de tecnicismo, que pode dificultar a compreensão do paciente, a dependência total de sistemas automatizados, sem a devida supervisão humana, a falta de conhecimento tecnológico por parte da população, além de omissões ou vieses, que podem comprometer a qualidade da informação ou mesmo direcionar decisões em um determinado sentido. Por mais avançadas que as ferramentas de IA sejam, e por mais utilizadas que venham a ser, a revisão humana continua sendo essencial. Médicos devem validar as informações fornecidas por sistemas digitais, verificando se o paciente realmente compreendeu as nuances do atendimento, que envolvem informações e esclarecimentos. O CC estabelece critérios para que um consentimento seja considerado válido. Para que uma decisão tenha eficácia jurídica, deve ser resultado de um processo de escolha esclarecido, garantindo voluntariedade na decisão, capacidade civil (e capacidade para consentir), além de forma prevista ou não proibida pelo ordenamento jurídico, o que assim é desde os mais antigos estudos sobre atos jurídicos lato sensu. Embora em muitos casos o consentimento verbal seja aceito, procedimentos como esterilização exigem consentimento escrito. Na telemedicina, a autenticação digital é fundamental para garantir a autoria e a integridade da decisão. Na análise dos desafios da inteligência artificial, adiciona-se mais uma camada, que envolve o chamado deep learning, pelo qual tais sistemas operam como uma "caixa-preta", muitas vezes gerando respostas inesperadas ou imprecisas. No campo jurídico, por exemplo, relatam-se casos em que sistemas de IA fabricam ementas de jurisprudência inexistentes, evidenciando a necessidade de cautela no uso dessas tecnologias. Ana Frazão destaca uma reflexão importante, no sentido de que não é possível "pretender encontrar explicações satisfatórias nos julgamentos algorítmicos, uma vez que eles não permitem a avaliação de causalidades. O próprio objetivo de acurácia pode ocorrer à custa das crescentes deficiências interpretativas."2 A IA não possui inteligência no sentido humano, mas coleta, processa e responde com base em dados. Apesar de sua utilidade, é fundamental reiterar a necessidade de agir no sentido de absorver os benefícios que a IA pode proporcionar, aliando esse agir com  a proteção de dados pessoais, principalmente dados de saúde, que são beneficiados por proteção reforçada pela LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados. Para garantir um processo de consentimento ético, lícito e eficaz, algumas recomendações são essenciais, como a explicação personalizada, ajustada ao perfil do paciente; a interface clara e acessível, com linguagem simples e adequada (como v.g. a tradução para Libras); contraste visual adequado para facilitar a leitura e a compreensão; a validação da compreensão, por meio de perguntas interativas e feedback oral; o registro documental, sempre que possível, para reforçar a transparência do processo. Carla Carvalho e Thais Tata Giba3 estudaram a integração de tecnologias de visual design no consentimento informado. Segundo elas, termos de consentimento elaborados com essa técnica podem melhorar a experiência do paciente, tornando a informação mais acessível e menos cansativa.  Contudo, não se deve confiar exclusivamente em termos digitais auto conduzidos pelo paciente. O contato humano direto continua essencial, pois permite que o paciente expresse dúvidas e receba avaliação adequada sobre sua capacidade de consentir, inclusive para que os profissionais envolvidos no atendimento consigam perceber a postura do paciente, seu agir e sua compreensão.  O uso ético da tecnologia pode fortalecer o processo de escolha esclarecida e o atendimento em saúde, mas não substitui o profissional de saúde em atividades consideradas chave, como a informação. A interação entre diferentes áreas deve equilibrar inovação e responsabilidade, garantindo que a IA sirva como uma ferramenta complementar, que não pode comprometer a necessária empatia e a qualidade do atendimento médico, pois o acolhimento também faz parte da atenção à saúde. A inteligência artificial pode auxiliar na comunicação entre médico e paciente, mas não pode substituir qualidades humanas que são importantes e únicas. Sistemas automatizados podem ser amigáveis, amplos no que diz respeito ao conjunto de informações pesquisadas, rápidos e criativos, mas também podem ser imprevisíveis, imprecisos, equivocados ou desvirtuados, e por isso precisam de supervisão cuidadosa. O avanço da tecnologia no consentimento informado exige equilíbrio entre inovação, qualidade técnica e segurança jurídica, garantindo que a autonomia do paciente seja preservada, sem comprometer a ética médica e a qualidade do atendimento. __________________________ 1 Disponível aqui. 2 Ana Frazão - Decisões algorítmicas e direito à explicação. Disponível aqui.  3 A utilidade das ferramentas de legal design para o consentimento efetivamente esclarecido. Carla Carvalho e Thaís Tatagiba p. 361-377
Um caso curioso ganhou as páginas dos jornais e circulou pela internet nos últimos dias. Durante um show da banda inglesa Coldplay, realizado em Boston, EUA, no dia 16/7/25, a denominada "câmera do beijo" (kiss cam) focalizou um casal que estava na plateia, em aparente situação de romance. Imediatamente, a mulher se virou de costas e o homem se abaixou, ambos com a clara intenção de se esconderem das lentes da kiss cam. Com a imagem projetada no telão, o vocalista da banda Chris Martin falou ao microfone, em tom de brincadeira: "Ou eles estão tendo um caso ou são muito tímidos".1 O casal que aparece na filmagem é Andy Byron e Kristin Cabot, respectivamente CEO e chefe de RH da empresa de tecnologia Astronomer. O problema é que ambos são casados com outras pessoas e claramente não desejavam aparecer nas imagens captadas pela kiss cam. A imagem foi postada nas redes sociais por uma fã e logo viralizou em todo o mundo, gerando toda sorte de críticas à conduta do homem e da mulher, que nitidamente estavam traindo os seus respectivos cônjuges. Uma das consequências desse episódio é o pedido de demissão de Andy Byron, do cargo de CEO que ocupava na Astronomer. Outra consequência é que sua esposa removeu o sobrenome do marido em seus perfis nas redes sociais. Alguns dias depois, foi noticiado que Kristin Cabot também pediu demissão de seu emprego na companhia Astronomer. Consta também que, após o episódio acima relatado, o vocalista do Coldplay passou a avisar a plateia sobre o uso da kiss cam durante as apresentações. É indiscutível que Andy Byron e Kristin Cabot tiveram suas vidas completamente reviradas, de uma hora para outra, em virtude da exibição de sua imagem, expondo ao mundo uma situação de dupla infidelidade conjugal. Em poucos dias, ambos perderam os empregos de elevado prestígio e renda, provavelmente destruíram as suas famílias, envolvendo os filhos menores de idade, bem como seus nomes se tornaram motivo de achincalhe por toda parte. O caso ocorrido nos Estados Unidos se sujeita naturalmente às leis norte-americanas, mas suscita interessantes questionamentos à luz do ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à proteção dos direitos da personalidade. De fato, a proteção ao direito de imagem é prevista diretamente pelo art. 5º da Constituição, entre os direitos e garantias individuais. O inciso V assegura a indenização por dano à imagem, ao lado dos danos morais e materiais. O inciso X é ainda mais detalhado ao decretar a inviolabilidade dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização. Em complemento a essa diretriz constitucional, o art. 20 do Código Civil proíbe a publicação, a exposição ou a utilização não autorizada da imagem da pessoa. A respeito dos direitos da personalidade, Adriano de Cupis ensina que eles são a medula da personalidade, sem os quais a personalidade restaria esvaziada de sentido e de conteúdo. São direitos essenciais porque, se não existissem, todos os outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse e a pessoa não existiria como tal. Para esse autor, a honra significa tanto o valor íntimo da pessoa quanto a estima dos outros, a consideração social, o bom nome, a boa fama, aspectos esses que constituem a dignidade pessoal. Ademais, o direito à imagem se apresenta como desdobramento do direito ao resguardo, definido como o modo de ser da pessoa, com exclusão do conhecimento sobre aspectos que interessam somente à própria pessoa.2 Por seu turno, Carlos Alberto Bittar concebe os direitos da personalidade como direitos inatos, que constituem a pessoa e, portanto, não se restringem aos que forem reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Na perspectiva desse autor, o direito à imagem se relaciona com o direito de escolher as ocasiões e modos pelos quais a pessoa deseja aparecer em público, tendo como substrato o direito à privacidade. Em uma apreciação mais estrita, envolve o direito à figura humana, de modo a evitar que seja utilizada - e explorada economicamente - sem autorização do titular. O direito à intimidade, em suas diversas designações, conduz à noção de direito ao resguardo, pois se destina a resguardar a personalidade humana contra intromissões alheias em suas esferas de interesses pessoais, familiares e até mesmo negociais. Por sua vez, o direito à honra compreende a reputação que a pessoa diante da coletividade e também o sentimento de estima e consciência sobre a própria dignidade.3 É fora de questão que Andy Byron e Kristin Cabot sofreram considerável abalo moral e patrimonial como decorrência da exposição de sua imagem e de seu envolvimento amoroso para o mundo todo. Não bastasse, o vocalista da banda aproveitou a situação embaraçosa para fazer um gracejo para diversão da plateia. Desse modo, é possível pensar que o casal faz jus a uma indenização pelos prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos em decorrência de sua exposição nos meios de comunicação. Inicialmente, deve-se destacar que não há ilicitude na captura de imagens dos telespectadores nas plateias de shows em geral, cuja finalidade é envolver o público presente e realçar a energia positiva do entretenimento. Da parte da banda Coldplay, observa-se a intencionalidade de sua conduta, que não teve como finalidade expor os casais em situação irregular, mas antes entreter o público, mostrando a felicidade e descontração das pessoas que se encontravam na plateia. Por outro lado, não resta dúvida quanto à reprovabilidade da conduta do casal filmado durante o show do Coldplay, uma vez que ambos são casados com outras pessoas e, inclusive, têm filhos pequenos em seus respectivos casamentos. Também é inquestionável que, ao comparecer a um evento público de tamanha amplitude, o casal assumiu o risco de ser visto por outras pessoas, incluindo parentes, amigos e colegas de trabalho, que se encontrassem entre os espectadores. É admissível até que o casal tenha assumido o risco de ser captado aleatoriamente pelas filmagens do próprio show. Desse modo, embora a causa original do dano seja a exposição do casal pela organização do show do Coldplay, é possível entrever a culpa das vítimas pelas consequências danosas dessa exposição. É dizer que a filmagem por si só não seria causa suficiente para produzir o resultado danoso, o qual só ocorreu em razão da conduta do próprio casal que, encontrando-se em uma situação de dupla infidelidade, compareceu a um evento público, assumindo o risco de ser visto e exposto. A Justiça brasileira é refratária à pretensão de reparação moral por uso de imagens captadas em espetáculos públicos. Há um caso análogo julgado pelo STJ, de um torcedor que teve sua imagem, capturada em meio à torcida durante uma partida de futebol, posteriormente utilizada pelo clube em uma campanha publicitária. A Corte Superior entendeu que, embora não tenha havido autorização pelo torcedor, "as filmagens não destacam a sua imagem, senão inserida no contexto de uma torcida, juntamente com vários outros torcedores".4 Outro processo julgado pelo STJ trata de ação indenizatória movida por um torcedor filmado em meio a outros torcedores, dentro de um bar nas proximidades do Sport Clube Internacional de Porto Alegre, cujas imagens foram utilizadas posteriormente pelo Clube para fins promocionais. A Corte entendeu que o torcedor sabia que estava sendo filmado e que não é possível identifica-lo nas imagens, razão pela qual não se caracteriza a hipótese de reparação por danos morais.5 A culpa da vítima, muitas vezes designada como "concorrência de culpas", é uma hipótese de interferência causal, uma vez que a conduta da vítima atua sobre a conduta ou atividade inicialmente apontada como causa do dano, produzindo uma diminuição ou até mesmo a exclusão da responsabilidade do ofensor.6 À luz do direito alemão, a hipótese é tratada como "negligência contributiva" da vítima, que colabora para a efetiva produção do dano, bem como para o agravamento ou a não mitigação das consequências da lesão.7 No Direito brasileiro, a interferência causal tem como consequência a redução proporcional do montante indenizatório, nos termos do art. 945 do Código Civil brasileiro, que segue o teor de disposições semelhantes encontradas em outras codificações, a exemplo do Código Civil alemão (§ 254, item 1),8 do francês (art. 1.245-12),9 do italiano (art. 1.227),10 do espanhol e do português (art. 506º e 570º).11 Eventualmente, a culpa da vítima pode assumir o caráter de causa principal, configurando a hipótese designada pela doutrina como "culpa exclusiva da vítima" ou "fato exclusivo da vítima", que elide completamente a responsabilidade daquele figurava inicialmente como causador do dano.12 Como dito, o caso dos espectadores flagrados no show do Coldplay ocorreu nos Estados e se submete à Justiça norte-americana. No sistema brasileiro, uma ação indenizatória com base nesse fato provavelmente seria julgada improcedente por ruptura do nexo de causalidade entre o dano e o fato inicialmente apontado como sua causa. As vítimas, que viviam uma situação de dupla infidelidade conjugal, compareceram a um evento público que sabidamente seria filmado e transmitido pelos meios de comunicação de massa, assumindo o risco de serem vistas e de terem a sua situação exposta para todo o mundo. A interferência causal, nesse caso, assume o papel de culpa exclusiva ou fato exclusivo da vítima, que se mostra suficiente para afastar qualquer responsabilidade dos organizadores do show. ________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 22/7/25. 2 CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2ª ed. Tradução de Afonso Celso Furtado Rezende. São Paulo: Quorum, 2008, p. 23-24, p. 121-122 e p. 139-140. 3 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ª ed. atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 4-10, p. 95-96, p. 110-111, p. 133-134. 4 STJ, 3ª Turma, RESP 1.773.593/RS, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, J. 16 jun. 2020, v.u. 5 STJ, RESP 1.827.965/RS, rel. Min. ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, J. 17 set. 2019, decisão monocrática. 6 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações; introdução à responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 620 e 644-647; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte especial. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958. t. XXII: Direito das obrigações e suas espécies, fontes e espécies de obrigações, p. 197; CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2018. p. 352-353; BONVICINI, Eugenio. La responsabilità civile. Milano: Giuffè, 1971. t. I: Responsabilità soggetiva e oggettiva contratuale ed extra contratuale, responsabilità per fatto altrui. p. 410-411. 7 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958. t. I: Versión española y notas de Jayme Santos Briz, p. 197 e 511; JANSEN, Nils. § 254. Mitverantwortlichkeit des Geschädigten. In: Reinhard Zimmermann, Mathias Schmoeckel, Joachim Rückert (Hrsg.). Historisch-kritischer Kommentar zum BGB. Band II: Schuldrecht: Allgemeiner Teil, §§ 241-432. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 656 e 660-661. 8 Seção 254 (Negligência contributiva). (1) Quando a culpa da pessoa lesada contribui para a ocorrência do dano, a responsabilidade pelos danos, bem como a extensão da indemnização a pagar, dependem das circunstâncias, em particular até que ponto o dano é causado principalmente por um ou a outra parte. 9 Article 1.245-12. La responsabilité du producteur peut être réduite ou supprimée, compte tenu de toutes les circonstances, lorsque le dommage est causé conjointement par un défaut du produit et par la faute de la victime ou d'une personne dont la victime est responsable. 10 Art. 1227 Concorso del fatto colposo del creditore. Se il fatto colposo del creditore ha concorso a cagionare il danno, il risarcimento è diminuito secondo la gravità della colpa e l'entità delle conseguenze che ne sono derivate. Il risarcimento non è dovuto per i danni che il creditore avrebbe potuto evitare usando l'ordinaria diligenza (2056 e seguenti). 11 Art. 506º (Colisão de veículos) 1. Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar. 2. Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores. Art. 570.º (Culpa do lesado) 1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. 2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar. 12 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 1004-1005.
A CPI das bets, instaurada pelo Senado Federal, evidenciou um dado que já era de conhecimento geral: há muito dinheiro envolvido nesse mercado. Segundo dados do Banco Central, as casas de apostas movimentam até R$ 30 bilhões por mês - um volume superior ao de muitos setores consolidados da indústria e dos serviços. A título de comparação, as loterias da Caixa movimentaram "apenas" R$ 25 bilhões no ano de 2024.1 Apesar dos alertas emitidos por entidades de saúde em relação à ludopatia (vício em jogos) e por órgãos de defesa do consumidor quanto ao superendividamento e comprometimento da renda familiar - muitas vezes alimentado pela ilusão de mudança de vida através das apostas -, pouco tem sido feito no campo legislativo e na formulação de políticas públicas eficazes. A situação é ainda mais grave quando se observa a vulnerabilidade das classes "C", "D" e "E", fortemente impactadas por esse fenômeno. Nesse cenário, evidencia-se uma contradição notável: ao mesmo tempo em que os cassinos são proibidos em território nacional, as apostas eletrônicas estão liberadas e amplamente exploradas. Tal paradoxo é agravado pelo fato de que o Poder Judiciário brasileiro vem sendo acionado por devedores - geralmente pertencentes às classes "A" e "B" - que contraíram dívidas em cassinos estrangeiros e passam a ser demandados judicialmente no Brasil. O Brasil das múltiplas realidades e desigualdades se reflete também nessa dicotomia: cassinos podem operar livremente no exterior e buscar o recebimento de seus créditos aqui, onde a atividade é formalmente proibida. Já as apostas e loterias supervisionadas pelo Estado operam em ambos os ambientes, físico e digital. Desde 2017, o STJ, por meio do REsp 1.628.974/SP, sob relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, já havia se posicionado a favor da exigibilidade de dívidas oriundas de cassinos estrangeiros, com base no art. 9º da LINDB, segundo o qual a qualificação e regência das obrigações devem observar a lei do local em que se constituíram. Assim, se a dívida foi validamente constituída no exterior, pode ser exigida no Brasil, desde que respeitadas as normas processuais e materiais brasileiras. O caso envolvia um brasileiro que havia emitido cheques no valor de US$ 1 milhão em um cassino em Las Vegas, Nevada. O relator argumentou que tal dívida não divergia, em essência, de outras formas de exploração estatal do jogo, como raspadinhas, bingos e loterias. Em que pese o passado de reprovabilidade social do jogo, já se vislumbrava em 2017 um contexto de maior tolerância e até mesmo de incentivo institucional à atividade. Essa visão foi acompanhada pelos ministros Marco Aurélio Bellizze e Paulo de Tarso Sanseverino. Contudo, os ministros Nancy Andrighi e Moura Ribeiro divergiram, apontando que a cobrança judicial no Brasil de dívidas oriundas de jogos de azar configuraria ofensa à ordem pública. Para eles, embora não houvesse impedimento para a cobrança no país de origem, tal pretensão não deveria prosperar no território nacional. Essa corrente, contudo, foi vencida. Mais recentemente, no julgamento do REsp 1.891.844/SP, em 13/5/25, a 4ª turma do STJ reafirmou o entendimento anterior: dívidas decorrentes de jogos de azar contraídas no exterior são exigíveis no Brasil, desde que sejam válidas segundo a legislação estrangeira. O caso era semelhante ao de 2017, envolvendo o mesmo cassino e o mesmo montante. O julgamento de 2025 possui, entretanto, maior densidade histórico-social. Em 2017, a aceitação social das apostas já era perceptível, mas agora ela se consolidou de maneira quase irreversível. Se antes se discutia uma possível ofensa à ordem pública, esse argumento hoje se mostra superado pela normalização social das apostas. Segundo levantamento do portal Globo Esporte, todos os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro são patrocinados por casas de apostas, sendo que 90% possuem uma delas como patrocinadora máster.2 Além disso, mais de 15% da população brasileira com mais de 16 anos realizou pelo menos uma aposta em 2024. Para se ter uma ideia da penetração desse mercado, há hoje mais brasileiros apostando do que investindo em produtos financeiros como CDBs, fundos de investimento ou ações na Bolsa de Valores.3 A ordem pública, outrora apontada como barreira à cobrança de dívidas de jogo, já não exprime reprovação social suficiente para sustentar tal tese. Apostar passou a ser encarado como comportamento ordinário, sendo o não apostador, por vezes, percebido como exceção. A contemporaneidade não apenas tolera, como estimula as apostas - e o faz com respaldo midiático, institucional e mercadológico. Se, como ensina a doutrina, a ordem pública é um conceito mutável, moldado pela moral e pela ordem jurídica vigente em determinado momento histórico, então não é possível sustentar que a cobrança de dívidas de jogo represente hoje uma afronta a esse conceito jurídico indeterminado. O julgado de 2017 apresentou divergência e a votação foi 3x2. Já a votação do processo de 2025, julgado caso análogo, foi unânime. A sociedade brasileira "evoluiu" para aceitar - ou ao menos naturalizar - as apostas, ainda que isso represente, paradoxalmente, uma regressão em termos de saúde pública, equilíbrio financeiro e bem-estar social. Nesse contexto, a invocação da ordem pública para impedir a cobrança de dívidas contraídas em cassinos estrangeiros se mostra anacrônica. A discussão relevante hoje não é mais apenas jurídica, mas política e social: é necessário debater, com urgência, a criação de políticas públicas que enfrentem os efeitos deletérios das apostas, locais ou estrangeiras, na vida dos brasileiros. Talvez, num futuro próximo, os impactos psíquicos, financeiros e sociais causados por esse sistema de apostas, especialmente entre os mais vulneráveis, passem a ser reconhecidos como elementos que verdadeiramente atentam contra a ordem pública. Mas, para tanto, será preciso deixar de lado a hipocrisia institucional e encarar, com seriedade, os prejuízos reais causados por uma atividade que, embora legalizada, permanece largamente desregulada. Enquanto isso não ocorre, e em nome da coerência normativa e da previsibilidade jurídica, é necessário reconhecer a exigibilidade de dívidas contraídas de forma válida no exterior, sem recorrer a conceitos que já não guardam aderência com a realidade social. Apesar de desigual em múltiplos aspectos, as consequências jurídico-sociais dos jogos de azar atingem a todos. ________ 1 MÁXIMO, Weltton. Apostadores destinam até R$ 30 bi por mês a bets, informa BC. Disponível aqui. 2 LOIS, Rodrigo. Todos os clubes do Brasileirão 2025 são patrocinados por bets. Disponívvel aqui. 3 GARCIA, Alexandre Novais. Brasil tem mais apostadores do que investidores em CDBs, Fundos e Bolsa. Disponível aqui.
Discussão A presente análise tem por objetivo discutir criticamente a possibilidade jurídica de reconhecimento do chamado "dano estético temporário" como categoria autônoma de dano indenizável no ordenamento jurídico brasileiro. Em que pese a crescente tentativa de expansão do conceito de dano estético por alguns setores da jurisprudência, a doutrina mais abalizada, bem como os fundamentos estruturais da responsabilidade civil, impõe limites claros a essa ampliação conceitual. A construção do dano estético sempre se apoiou na ideia de uma alteração sensível e duradoura da aparência da vítima, que implique em impacto relevante em sua vida pessoal, social ou profissional. A tentativa de abarcar lesões temporárias e reversíveis sob a rubrica do dano estético compromete essa construção e acarreta riscos significativos à coerência e estabilidade do sistema de responsabilização civil. À luz do que se expôs, não há como admitir, sob a ótica da dogmática jurídica atual, o reconhecimento do chamado "dano estético temporário" como categoria autônoma e indenizável no sistema brasileiro de responsabilidade civil. A proposta de sua aceitação, embora movida por compreensíveis impulsos protetivos, carece de sustentação normativa, conceitual e teleológica. O dano estético, como figura jurídica consolidada, pressupõe mais do que um incômodo transitório ou uma alteração passageira da aparência. Requer uma deformidade relevante, objetivamente constatável, que interfira de maneira duradoura na imagem, na autoestima ou na inserção social do indivíduo. Admitir a reparabilidade do dano estético temporário significa desfigurar o próprio conceito de dano estético, fragilizando seus critérios definidores e diluindo sua função dentro do sistema de responsabilidade civil. Além disso, a responsabilidade civil não deve ser compreendida como instrumento de compensação simbólica por qualquer desconforto experimentado pela vítima, sob pena de se transformar em um mecanismo de indenização automática, apartado da noção de dano juridicamente relevante. Do ponto de vista normativo, inexiste previsão legal que autorize expressamente a reparação por dano estético de natureza temporária. Não se ignora que o sofrimento decorrente de uma alteração física temporária possa ser intenso em certos contextos, especialmente quando relacionado a situações de exposição social. Todavia, esse sofrimento é matéria própria do dano moral, e não do dano estético. A própria jurisprudência majoritária, quando debruçada com rigor técnico sobre o tema, resiste a aceitar o dano estético temporário como fundamento autônomo de condenação. Não se trata de negar à vítima o direito à reparação quando comprovado sofrimento legítimo e relevante. Trata-se, antes, de exigir que tal reparação ocorra com base em critérios jurídicos adequados. O alargamento das fronteiras do dano estético para abarcar lesões de caráter efêmero rompe com o princípio da proporcionalidade e compromete a segurança jurídica. Também do ponto de vista ético, a extensão do conceito de dano estético para além de seus limites naturais pode ensejar consequências indesejáveis, como a trivialização do sofrimento estético real e profundo. A construção doutrinária sólida exige clareza conceitual, rigor argumentativo e respeito aos marcos normativos que sustentam o edifício da responsabilidade civil. Em síntese, o reconhecimento do dano estético temporário - além de juridicamente insustentável - representa uma indevida inflexão conceitual, incompatível com os princípios da reparação integral, da razoabilidade e da tipicidade dos danos indenizáveis. Da inexistência de dano estético indenizável - Lesão temporária e reversível Não tem sido incomum, ainda que inapropriado, observar decisões judiciais que reconhecem a existência de dano estético temporário indenizável. Incorre-se aqui em equívoco jurídico e fático, uma vez que se baseia unicamente em alteração estética de natureza temporária e reversível, sem a devida demonstração de sequela permanente, tampouco de abalo estético duradouro e relevante que comprometa a imagem do paciente de forma objetiva e persistente. Consoante reconhece a melhor doutrina e jurisprudência, o dano estético pressupõe uma deformidade duradoura ou definitiva, que altere sensivelmente a aparência da pessoa, com prejuízos à sua imagem, autoestima, vida social ou profissional, não bastando modificações transitórias ou efêmeras, típicas de um processo natural de cicatrização ou recuperação clínica. Nas palavras da professora Teresa Ancona Lopez, em estudo publicado na Revista de Direito da Universidade Federal de Viçosa: "O dano estético exige permanência da agressão ou, ao menos, seu efeito prolongado. Lesões que são totalmente reparadas por tratamento estético ou que sofrem cura com o lapso temporal não fazem jus à proteção pelo dano estético."  (Revista de Direito da UFV, v. 6, n. 1, 2021, p. 141) A jurisprudência não é menos clara nesse ponto. O TJ/DF, por exemplo, assim decidiu: "CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA ELETIVA. INTERCORRÊNCIA TRANSOPERATÓRIA. INSTABILIDADE HEMODINÂMICA. HIPOTENSÃO ARTERIAL. SUSPENSÃO DO PROCEDIMENTO. FORÇA MAIOR. CASO FORTUITO. DANO MORAL INEXISTENTE. DANO ESTÉTICO. INEXISTENTE. PROVA. INDISPENSABILIDADE DE IMAGENS. AUSÊNCIA DE CULPA. IRREPETIBILIDADE DE VALORES PAGOS. 1. O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. (Código de Ética Médica, Princípios Fundamentais) 2. O CDC é de 1990; a Internet, no Brasil, só passou ao domínio público em 1995. Por razões óbvias, o CDC não contemplou a transformação social que a Internet produziria no mundo. As novas tecnologias deram às pessoas a oportunidade de se instruírem sobre quase tudo. Hoje, sabe-se muito mais sobre procedimentos médicos, saúde, doenças e seus tratamentos do que se sabia há três décadas. 3. O consentimento livre e esclarecido não tem forma prevista em lei para as cirurgias plásticas eletivas. Mas desde a primeira consulta, na fase ambulatorial, e, posteriormente, na fase pré-cirúrgica, há espaço formal e informal para o esclarecimento que conduz ao procedimento. O TCLE - termo de consentimento livre e esclarecido é a forma documental de um processo de informação que pode ser firmado no dia da cirurgia, não havendo necessidade de prazo mínimo para reflexão. Ninguém faz cirurgia eletiva na fase ambulatorial, na primeira consulta. 4. É impensável, na Capital da República, que uma pessoa com curso superior, funcionária pública concursada, com pretensão de realizar cirurgia estética de lipoescultura (lipoaspiração e enxerto localizado da gordura retirada), não tenha tido nenhuma informação sobre os riscos desse procedimento. 5. A monitorização da circulação sanguínea é de responsabilidade do anestesista, de quem o cirurgião plástico não é subordinado hierárquico, mas a quem está vinculado eticamente, no melhor interesse do paciente. A instabilidade hemodinâmica persistente por hipotensão arterial é causa inadiável de interrupção de qualquer cirurgia eletiva e não gera dano moral nem direito a indenização ou repetição de valores pagos por decorrer, salvo erro médico, de força maior/caso fortuito. Nestes casos, não há responsabilidade do médico pela sua ocorrência. 6. "Ato cirúrgico" e "ato anestésico", ainda que no mesmo contexto, são procedimentos autônomos, realizados por profissionais liberais distintos. Todas as consequências decorrentes do ato anestésico são da responsabilidade direta e pessoal do médico anestesista (Resolução CFM 1.363/93). 7. Dano estético não é a alteração morfológica temporária, decorrente da inconclusão da cirurgia plástica de lipoescultura por falta de enxerto do tecido adiposo aspirado. 8. Por dano estético compreende-se a fealdade produzida, a deformação provocada, a supressão do que era belo, a feiúra permanente. A percepção do dano estético, afastada a sensibilidade de alguma poesia que enaltece a beleza do que é feio, só pode ser feita pelo testemunho visual de uma imagem, real ou reproduzida em fotografias, filmes etc. 9. Sem laudo pericial, sem imagens, sem feiúra para os olhos enxergarem não há como se condenar alguém por causar dano estético a outrem. 10. A conclusão, por outro médico, do processo cirúrgico suspenso por instabilidade hemodinâmica, mesmo com a disponibilidade do réu para concluí-lo, foi uma opção da paciente, que, entretanto, deve arcar com as consequências da sua decisão. 11. O dano aleatório, resultante da chamada "álea terapêutica" (alea therapeutike), sobre a qual o médico não tem controle, decorre de resultado imprevisível ou conjuntural, em que não há falta ou falha na prestação do serviço. 12. Ausente a culpa do cirurgião plástico, inexiste dever de indenizar a qualquer título ou de repetir valores recebidos. 13. Recurso da ré não conhecido. Recurso do réu conhecido e provido para julgar improcedentes todos os pedidos. Recurso da autora prejudicado." (TJ/DF 20150111282870 DF 0037435-14.2015.8 .07.0001, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Data de Julgamento: 14/9/2017, 8ª TURMA CÍVEL, Data de publicação: Publicado no DJE: 29/9/2017. Pág.: 541/547) Ora, alterações estéticas que se dissipam com o tempo, sem deixar marcas perceptíveis, não têm o condão de afetar a imagem de forma duradoura, tampouco de comprometer a integridade psicofísica do indivíduo em medida suficiente para ensejar reparação por dano autônomo. A situação se torna ainda mais grave, em processos indenizatórios que apontam que a suposta alteração estética decorrente do fato narrado foi integralmente resolvida com o tratamento adequado, não havendo qualquer elemento técnico que comprove a permanência de sequelas visíveis, deformidades, ou prejuízos à estética pessoal do paciente. Não se pode olvidar que o princípio da reparação integral (art. 944 do CC) impõe a indenização proporcional ao dano efetivamente sofrido. O reconhecimento de dano estético autônomo em hipóteses onde a alteração foi transitória, representa verdadeiro alargamento indevido da responsabilidade civil, comprometendo o equilíbrio entre o dano e o dever de reparar. É certo que a jurisprudência admite, em casos excepcionais, a compensação por sofrimento psíquico derivado de eventos temporários. Contudo, esses são enquadrados sob a rubrica do dano moral, e não do dano estético - que tem requisitos objetivos mais rigorosos. Permitir o reconhecimento de um "dano estético temporário" como categoria autônoma significa admitir uma duplicidade indenizatória sem lastro legal, afrontando os princípios da legalidade e da vedação ao enriquecimento sem causa. Ainda que o ordenamento jurídico brasileiro reconheça a possibilidade de reparação por danos extrapatrimoniais, não se pode admitir a expansão ilimitada das categorias de dano indenizável sem a devida análise jurídica rigorosa e sistemática. A Constituição Federal e o CC autorizam a reparação de danos morais e estéticos, mas sempre sob a égide da razoabilidade, da proporcionalidade e da existência de lesão efetiva e juridicamente relevante. A criação de uma categoria denominada "dano estético temporário" carece de previsão legal específica e encontra-se dissociada da tipicidade mínima exigida para a caracterização de dano autônomo. A figura do dano estético, como tradicionalmente concebida pela doutrina e pela jurisprudência, exige uma modificação perceptível, duradoura e constrangedora na aparência física da vítima, que afete sua integridade psicofísica ou social de maneira relevante. Tal compreensão está consolidada em décadas de construção jurisprudencial e doutrinária, não havendo margem segura para se reconhecer como dano estético aquilo que é, em sua essência, um desconforto momentâneo e reversível, como equimoses, hematomas ou cicatrizes que naturalmente se atenuam com o tempo ou por meio de terapias simples. Admitir o dano estético temporário como categoria passível de reparação autônoma equivale a subverter o conceito clássico de dano estético, promovendo uma perigosa elasticidade da responsabilidade civil, em que qualquer lesão efêmera - ainda que desprovida de impacto social, psicológico ou funcional relevante - poderá ser convertida em indenização. Tal postura compromete a segurança jurídica e estimula a litigância oportunista, especialmente em ações de responsabilidade médica, nas quais efeitos transitórios do próprio tratamento ou do curso clínico natural acabam sendo indevidamente qualificados como danos indenizáveis. Não se ignora que a vítima possa experimentar desconforto, aborrecimento ou mesmo angústia durante o período em que convive com alguma alteração estética temporária. No entanto, tais sentimentos não configuram, por si sós, dano estético - devendo, se for o caso, ser avaliados no campo do dano moral, de acordo com a repercussão subjetiva do evento. A criação artificial de um terceiro polo indenizável, ancorado exclusivamente na transitoriedade do incômodo físico, representaria indevido bis in idem, ou seja, dupla indenização por uma mesma consequência, o que é expressamente vedado pela boa técnica jurídica. Além disso, é preciso lembrar que o sistema jurídico brasileiro, embora de matriz civilista, não opera sob uma lógica absolutamente aberta de danos. Ao contrário, há uma tendência crescente de valorização da tipicidade material do dano indenizável, como forma de conter abusos, padronizar critérios e evitar a hiperinflação do sistema de responsabilidade civil. Nesse contexto, a ausência de legislação que reconheça o dano estético temporário como espécie autônoma de dano revela a impropriedade de qualquer condenação neste sentido e sob esta rubrica. O raciocínio é reforçado pelo fato de que, mesmo em ordenamentos mais abertos à proteção da imagem e da estética, como o europeu, não se tem admitido de modo sistemático a reparação por lesões estéticas temporárias, justamente porque a função pedagógica e compensatória da responsabilidade civil exige efetividade do dano. A ausência de permanência ou de repercussão significativa sobre a vida da vítima esvazia a própria razão de ser da tutela indenizatória. No plano processual, é igualmente importante destacar que, em não existindo qualquer comprovação técnica inequívoca de que a alteração estética sofrida pelo paciente tenha ultrapassado os limites da normalidade clínica, ou que tenha perdurado por tempo suficiente para justificar compensação pecuniária específica. A hipótese trata, portanto, de um quadro compatível com os efeitos típicos de um procedimento ou lesão já superada, sem evidência de impacto estético de longo prazo. A atribuição de valor indenizatório com base em impressões subjetivas, sem a necessária subsunção aos critérios objetivos do dano estético, viola o princípio do ônus da prova (art. 373, I, do CPC). Do ponto de vista da política judiciária, também se deve atentar para o risco de banalização da tutela jurisdicional do dano estético, o que pode conduzir a um colapso simbólico da própria ideia de reparação. Quando tudo pode ser dano, nada o é com efetividade. A responsabilidade civil, longe de ser instrumento de enriquecimento ou de compensação simbólica, deve manter-se vinculada à ideia de recomposição real e proporcional da esfera jurídica lesada, o que exige, para o dano estético, a demonstração de alteração relevante e duradoura da aparência pessoal. Por fim, permitir o reconhecimento do dano estético temporário como categoria indenizável desvinculada de suporte legal específico - e sem amparo jurisprudencial consolidado - seria conceder ao magistrado um poder normativo que não lhe compete, contrariando o princípio da legalidade (art. 5º, II, da Constituição Federal). A jurisprudência que admite tal espécie de dano o faz de maneira pontual, excepcional e sempre com base em circunstâncias bem delimitadas, não podendo servir de fundamento para generalizações que subvertem os limites legais e doutrinários do instituto. A bem da discussão, necessário trazer que alguns tribunais se pronunciaram favoravelmente sobre a matéria (de modo equivocado, em nosso sentir), sendo os arestos abaixo exemplos desta posição contrária: APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. QUEIMADURAS EM PROCEDIMENTO DE DEPILAÇÃO A LASER. PARCIAL PROCEDÊNCIA. APELO DA RÉ. ACOLHIMENTO PARCIAL. MÁ PRESTAÇÃO DO SERVIÇO DEMONSTRADA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. QUEIMADURAS COMPROVADAS PELA PROVA DOCUMENTAL QUE INSTRUI A INICIAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA PRESTADORA DE SERVIÇO. INTELIGÊNCIA DO ART. 14 DO CDC. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. Valor da indenização exacerbado. Lesões leves. Dano estético aparentemente temporário. Sanção pecuniária reduzida para R$ de R$ 18 .000,00 para 8.000,00 (oito mil reais), com juros a partir da citação e correção monetária do arbitramento. Sentença reformada em parte. Recurso parcialmente provido. (TJ/SP - Apelação Cível: 10032995220218260609 Taboão da Serra, Relator: Costa Netto, Data de Julgamento: 16/8/2024, 6ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/8/2024).1 APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO. Danos estéticos decorrentes de procedimento de microagulhamento. Sentença de improcedência. Relação de consumo. Observância das regras previstas no CDC nexo causal entre o dano e o procedimento evidenciado. Circunstância de que o dano estético foi temporário que não afasta o dever de indenizar. Má prestação de serviço configurada. Danos morais. Ocorrência. Abalo psicológico que supera o mero dessabor. Condenação ao pagamento de indenização por danos morais arbitrada em R$5 .000,00. Correção monetária a partir da fixação súmula 362 do STJ. Juros de mora devidos a partir da citação. Readequação das verbas de sucumbência. Recurso parcialmente provido. (TJ/SP - AC: 10059888820198260011 SP 1005988-88.2019.8.26.0011, Relator: HERTHA HELENA DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 22/3/2022, 2ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/3/2022).2 No mesmo sentido, o STJ: STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 1.416.310 ES 2013/0367881-6 Jurisprudência Decisão publicado em 3/8/2016 Inteiro teor: Outrossim, ainda que temporários, devem os danos estéticos ser reconhecidos e arbitrados conforme os critérios da proporcionalidade e da razoabilidade... Considerando, então, que a ausência de dentes, ainda que temporário se enquadra no conceito de "dano estético", entende-se devida esta verba ao Apelado... Por derradeiro, sustenta ser indevida a cumulação do dano moral com o dano estético. É o relatório [...].3 Conclusão À luz do que se expôs, não há como admitir, sob a ótica da dogmática jurídica atual, o reconhecimento do chamado "dano estético temporário" como categoria autônoma e indenizável no sistema brasileiro de responsabilidade civil. A proposta de sua aceitação, embora movida por compreensíveis impulsos protetivos, carece de sustentação normativa, conceitual e teleológica. O dano estético, como figura jurídica consolidada, pressupõe mais do que um incômodo transitório ou uma alteração passageira da aparência. Requer uma deformidade relevante, objetivamente constatável, que interfira de maneira duradoura na imagem, na autoestima ou na inserção social do indivíduo. É, portanto, um instituto que não se confunde com os meros efeitos secundários de uma lesão, como equimoses, inchaços ou cicatrizes em processo de regressão. Admitir a reparabilidade do dano estético temporário significa desfigurar o próprio conceito de dano estético, fragilizando seus critérios definidores e diluindo sua função dentro do sistema de responsabilidade civil. Em última análise, isso conduz à hipertrofia da tutela indenizatória, incentivando a multiplicação de pleitos reparatórios desprovidos de lesividade significativa. Além disso, a responsabilidade civil não deve ser compreendida como instrumento de compensação simbólica por qualquer desconforto experimentado pela vítima, sob pena de se transformar em um mecanismo de indenização automática, apartado da noção de dano juridicamente relevante. A legitimidade da reparação exige a ocorrência de um prejuízo real, mensurável e juridicamente qualificado, e não apenas a existência de um aborrecimento estético efêmero. Do ponto de vista normativo, inexiste previsão legal que autorize expressamente a reparação por dano estético de natureza temporária. O CC e a Constituição Federal reconhecem a indenização por dano moral, patrimonial e estético, mas partem do pressuposto da existência de lesão efetiva e grave. Criar uma subespécie de dano, desprovida de base legal e de densidade conceitual própria, significa atribuir ao juiz uma função legiferante, em flagrante afronta ao princípio da legalidade. Não se ignora que o sofrimento decorrente de uma alteração física temporária possa ser intenso em certos contextos, especialmente quando relacionado a situações de exposição social. Todavia, esse sofrimento é matéria própria do dano moral, e não do dano estético. O deslocamento indevido do critério de análise apenas contribui para confundir institutos distintos e fomentar duplicidade indenizatória. A própria jurisprudência majoritária, quando debruçada com rigor técnico sobre o tema, resiste a aceitar o dano estético temporário como fundamento autônomo de condenação. Em julgados que rejeitam tal pretensão, os tribunais demonstram preocupação com a objetividade da lesão, com sua permanência e com a repercussão concreta sobre a imagem da vítima, evitando a banalização da tutela estética. Não se trata de negar à vítima o direito à reparação quando comprovado sofrimento legítimo e relevante. Trata-se, antes, de exigir que tal reparação ocorra com base em critérios jurídicos adequados, dentro dos limites das categorias reconhecidas, e com respeito à função reequilibradora - e não compensatória pura - da responsabilidade civil. O alargamento das fronteiras do dano estético para abarcar lesões de caráter efêmero rompe com o princípio da proporcionalidade e compromete a segurança jurídica, abrindo caminho para decisões casuísticas, descoladas de critérios técnicos objetivos. A confiança no sistema de justiça repousa, justamente, na previsibilidade e na racionalidade de suas decisões. Também do ponto de vista ético, a extensão do conceito de dano estético para além de seus limites naturais pode ensejar consequências indesejáveis, como a trivialização do sofrimento estético real e profundo, aquele que compromete de fato a identidade visual e a vivência corporal de uma pessoa. Numa sociedade já marcada pela hiperexposição da imagem e por padrões estéticos muitas vezes opressivos, o direito não deve contribuir para a superficialização da dor estética. A construção doutrinária sólida exige clareza conceitual, rigor argumentativo e respeito aos marcos normativos que sustentam o edifício da responsabilidade civil. Nesse cenário, a criação ou aceitação do dano estético temporário como categoria indenizável representa um desvio teórico e prático, que não encontra eco nos fundamentos do direito privado contemporâneo. "Aparentemente beleza e feiúra são conceitos com implicações mútuas, e, em geral, entende-se a feiúra como o oposto da beleza, tanto que bastaria definir a primeira para saber o que seria a outra. No entanto, as várias manifestações do feio através dos séculos são mais ricas e imprevisíveis do que se pensa habitualmente. E assim, tanto os textos antológicos quanto as extraordinárias ilustrações deste livro nos fazem percorrer um surpreendente itinerário entre pesadelos, terrores e amores de quase três mil anos, em que movimentos de repúdio seguem lado a lado com tocantes gestos de compaixão e a rejeição da deformidade se faz acompanhar de êxtases decadentes com as mais sedutoras violações de qualquer cânone clássico." (ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007) Em resumo, se a beleza ou a feiura estão nos olhos de quem vê, não há como se condenar por dano estético sem imagens, sem ilustrações para serem vistas. Em síntese, o reconhecimento do dano estético temporário - além de juridicamente insustentável - representa uma indevida inflexão conceitual, incompatível com os princípios da reparação integral, da razoabilidade e da tipicidade dos danos indenizáveis. A prudência, a técnica e o respeito à coerência do sistema impõem, portanto, sua rejeição como categoria autônoma, mantendo-se o dano estético dentro dos marcos da permanência, da gravidade e da relevância social da lesão. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
Em 26/6/25, chegou ao fim o julgamento dos recursos extraordinários 1.037.396 (Tema 987 da repercussão geral), relatado pelo ministro Dias Toffoli, e 1.057.258 (Tema 533), relatado pelo ministro Luiz Fux. Ficou decidido, por 8 votos a 3, pela inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19, do marco civil da internet. O que estava em jogo era a obrigatoriedade da notificação judicial específica como requisito para a responsabilização (por omissão) dos provedores de aplicação por conteúdo postado por terceiros. Sancionado em 2014, o MCI - marco civil da internet - lei 12.965/14 - estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. À época, saudado como uma lei caracterizada pela ampla participação popular em sua construção e alinhado com regras de padrão de responsabilidade endossadas por grupos internacionais da sociedade civil e pela literatura de direitos humanos (e.g., Princípios de Manila), o MCI representou um importante papel na validação da internet como um espaço em que a liberdade de expressão era reconhecida como um pressuposto inegociável da atuação em rede. Contudo, dez anos passados, a internet, enquanto espaço de exercício do livre pensamento, tornou-se um ambiente inóspito e, por meio da onipresença das redes sociais, um local de disseminação de discursos que não deveriam ser legitimados pela sua potencialidade danosa. Os avanços da tecnologia, por meio do uso de algoritmos de recomendação e perfilamento de usuários da rede, disseminação de contas inautênticas, impulsionamento de conteúdos ilícitos, e uso tolerado de bots, transformou a internet num espaço dominado por uma lógica de mercado, que trabalha a serviço de um "ecossistema de publicidade digital". O tráfego orgânico de dados foi capturado pelo uso de links patrocinados e outras técnicas publicitárias que impõem ao usuário da rede um conhecimento cada vez mais limitado, por meio dos chamados filtro bolhas, que segmentam informações de acordo com o perfil formatado do usuário. De ambiente de livre circulação de ideias, a internet transformou-se numa máquina de fazer dinheiro com base na exploração de dados pessoais e perfilamento dos usuários, consolidando as bases da chamada economia da atenção. Hoje, os provedores de aplicação são mais do que "anfitriões neutros" - moldando a forma como pensamos, nos informamos e nos organizamos socialmente. O julgamento no STF utilizou-se deste histórico da Internet para construir um entendimento acerca da responsabilidade dos provedores de aplicação, de forma fragmentada, representado por, pelo menos, quatro teses distintas de interpretação do art. 19. De acordo com a norma, "com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário". Essa norma era excepcionada somente nas hipóteses em que o conteúdo gerado por terceiro infringisse direitos de autor ou contivesse cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado não autorizados, conforme dispõem o par. 2° do art. 19 e o caput do art. 21, do MCI. A primeira tese apresentada no julgamento é a da inconstitucionalidade do art. 19, impondo aos provedores de aplicação a responsabilidade civil decorrente de dano causado pelo conteúdo postado por terceiros, pelo mero descumprimento de notificação - não mais judicial - que requer a indisponibilização de conteúdo infringente (notice and take down), à semelhança da regra adotada pelo art. 21 e pelo § 2° do art. 19, ambos do MCI. Assim, em determinadas hipóteses bastaria a notificação do provedor para indisponibilizar o conteúdo, seguida do seu descumprimento, para impor a obrigação de indenizar. As hipóteses seriam as seguintes: (i) divulgação de nudez não consentida (tal como prevista no art. 21), (ii) crimes e atos ilícitos em geral, sem prejuízo do dever de remoção do conteúdo, (iii) contas denunciadas como inautênticas ou falsas; e (iv) conteúdos referentes a crianças. A segunda tese é a da constitucionalidade e manutenção da regra do art. 19, tal como prevista, isto é, exigindo-se a notificação judicial (judicial notice and take down), em caso de crimes contra a honra, sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial, e ressalvada a hipótese de sucessiva repetição de ilícito já reconhecido por anterior decisão judicial,1 ou quando o conteúdo é disponibilizado por meio de: (i) provedor de serviços de e-mail; (ii) provedor de aplicações cuja finalidade primordial seja a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz; (iii) provedor de serviços de mensageria instantânea, exclusivamente no que diz respeito às comunicações interpessoais, resguardadas pelo sigilo das comunicações (art. 5º, inciso XII, da CF/88).2 A tônica dessa tese é privilegiar a liberdade de expressão, impedir a censura e a remoção de conteúdos lícitos que veiculem críticas e respeitar o sigilo das comunicações. A terceira tese é a da presunção - relativa - de responsabilidade dos provedores de aplicação, fundamentada no dever de cuidado, que impõe a remoção do conteúdo independentemente de notificação (judicial ou extrajudicial), reconhecendo um dever de monitoramento ativo e atuação proativa por parte dos provedores. Essa tese se aplicará nos casos em que se identifiquem danos causados por: (i) anúncios patrocinados e impulsionamentos pagos, desde que caracterizados por ilicitude; e (ii) rede artificial de distribuição, por meio de chatbot ou robôs. O racional dessa tese é a presunção de que nesses casos a plataforma detinha conhecimento da ilicitude, presunção essa que somente pode ser afastada se comprovado que a plataforma agiu em tempo razoável e com diligência para remover o conteúdo danoso. A quarta tese que se extrai do julgamento consiste no dever das plataformas de atuar de maneira diligente e proativa - aplicando-se, aqui, o chamado "dever de cuidado" - para que, independentemente de notificação extrajudicial ou ordem judicial, conteúdos que configurem crimes graves específicos não sejam sequer publicados ou compartilhados. Esses crimes graves foram definidos em rol taxativo,3 que inclui condutas e atos antidemocráticos, crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero, crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes e tráfico de pessoas. Nessas hipóteses haverá a responsabilização das plataformas, em decorrência da falha no dever de cuidado e na obrigação proativa na prevenção de tais situações. Sempre bom lembrar que a responsabilidade do provedor é subjetiva. Inclusive, foi afastada da decisão qualquer tipo de interpretação em sentido contrário, tendo sido expressamente excluído o reconhecimento de uma responsabilidade objetiva. Contudo, embora o STF tenha afastado a responsabilidade objetiva, não esclareceu, até o momento, se a responsabilidade a ser aplicada seria subsidiária ou solidária e qual sua extensão. A questão é relevante, já que parte significativa dos ilícitos cometidos nas redes são perpetrados por contas inautênticas ou automatizadas, o que cria obstáculos concretos na reparação em face do causador do dano (aquele que gerou o conteúdo danoso). Nos casos de circulação massiva de conteúdos ilícitos graves, os provedores de aplicações de internet serão responsabilizados se, configurada falha sistêmica por ausência de medidas adequadas de prevenção ou remoção - segundo o estado da técnica e os mais elevados padrões de segurança -, deixarem de atuar de forma diligente, responsável, transparente e em tempo razoável para tornar indisponíveis anúncios ou conteúdos manifestamente ilícitos. Nesses casos, se entender que sua postagem não configura o ilícito, poderá o responsável pelo conteúdo removido requerer judicialmente seu restabelecimento, sem que isso implique dever de indenizar por parte do provedor, ainda que o conteúdo venha a ser restabelecido por ordem judicial. Em conclusão, o STF, ao reconhecer a inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do marco civil da internet, estabeleceu um regime temporário de responsabilização dos provedores enquanto o Congresso Nacional não edita legislação específica que supra essa omissão normativa incompatível com a Constituição. De fato, o estabelecimento de um regime temporário de responsabilização pelo STF não afasta o debate sobre a regulação das plataformas digitais. Ao preverem a responsabilidade por conteúdo gerado por terceiro em outras hipóteses não previstas no MCI, estabelecendo ainda um regime de presunção de responsabilidade em certos casos e uma série de deveres adicionais a serem cumpridos pelos provedores, o julgamento do STF reforça o dever de moderação - não apenas reativa, mas também, proativa - das plataformas digitais e, com ele, a necessidade de uma regulação para garantir maior confiabilidade e transparência à moderação de conteúdo nas redes sociais, assegurando uma governança democrática da esfera pública digital. Inclusive, a Corte fez apelo ao legislador para regulamentação definitiva e modulou os efeitos da decisão com eficácia prospectiva. A decisão ressalva a possibilidade de regulação específica em matéria eleitoral, notadamente pelo TSE, e indica a necessidade de cumprimento de deveres adicionais pelos provedores, por meio de autorregulação, como a adoção de mecanismos de autorregulação com notificações, respeito ao devido processo, assegurando que os usuários entendam os fundamentos das decisões de remoção e possam recorrer, publicação de relatórios anuais de transparência sobre conteúdos, anúncios e impulsionamentos, além da oferta de canais de atendimento eficazes e acessíveis ao público e da constituição e manutenção de sede e representante legal no país, para garantir que as plataformas cumpram decisões judiciais, respondam em juízo e por penalidades em razão do descumprimento de obrigações legais e judiciais, assim como prestem informações relevantes às autoridades competentes acerca das políticas, dos procedimentos e sistemas de moderação de conteúdo e da gestão de riscos sistêmicos. ___________ 1 Nos casos de crime contra a honra (calúnia, difamação ou injúria), quando determinado ilícito já reconhecido por decisão judicial for repetidamente replicado, o STF previu a obrigação de os provedores de removerem as publicações com conteúdos idênticos a partir da notificação judicial ou extrajudicial, independentemente de novas decisões judiciais. 2 Os provedores de internet que funcionarem como marketplaces, por sua vez, responderão civilmente de acordo com as normas do CDC (lei 8.078/1990). 3 A definição de um rol de crimes taxativos, para fins de estipulação de um dever de monitoramento ativo e atuação proativa das plataformas, tem paralelo tanto na proposta legislativa do "PL da Fake News" (PL 2.630/20), iniciativa de regulamentação que deixou de ter protagonismo no Congresso Nacional em meados de 2024, quanto na regulação alemã aplicável à moderação de conteúdo nas redes sociais ("NetzDG").
O artigo questiona o dualismo das obrigações médicas e defende que, mesmo nos procedimentos estéticos, a obrigação deve ser de meios, diante dos riscos e incertezas inerentes ao ato médico. Os contratos de prestação de serviços médicos possuem natureza sui generis, por comportar um fator de álea preponderante. No Brasil, doutrina e jurisprudência majoritárias defendem que, em regra, a obrigação assumida pelo médico, enquanto prestador de serviços, é de meios, por não ser vinculada a um resultado.1 Genival Veloso explica que "nem todo resultado adverso na assistência à saúde individual ou coletiva é sinônimo de erro médico".2 Em certas áreas da medicina, essa categorização pode não ser tão evidente, sendo motivo de debates doutrinários e jurisprudenciais. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa complexidade é a cirurgia plástica estética, na qual há quem defenda que a natureza da obrigação pode variar conforme a natureza do procedimento realizado. A doutrina brasileira majoritária, representada por autores como José de Aguiar Dias3 e Sérgio Cavallieri Filho,4 reconhece como obrigação de resultado a atividade do cirurgião plástico em procedimentos estritamente estéticos. No mesmo sentido, está o entendimento consolidado na jurisprudência brasileira.5 Dentro da cirurgia plástica estética, a doutrina defende que é fundamental estabelecer uma diferenciação entre dois tipos principais de intervenção: a cirurgia estética propriamente dita (fins estritamente estéticos) e a cirurgia reparadora (estética lato sensu).6 A primeira tem como objetivo aprimorar ou modificar aspectos físicos considerados insatisfatórios pelo paciente, sem que haja, fundamentalmente, uma necessidade médica. São exemplos desse tipo de intervenção o aumento mamário por razões estéticas, a rinoplastia para harmonização facial e a lipoaspiração com fins puramente cosméticos. Nesses casos, a doutrina e a jurisprudência frequentemente classificam a obrigação do cirurgião como uma obrigação de resultado, uma vez que o paciente busca um objetivo estético específico e mensurável, e o profissional assume a responsabilidade de alcançá-lo. Por outro lado, a cirurgia reparadora (estética lato sensu) destina-se a corrigir ou minimizar deformidades causadas por doenças, acidentes ou condições congênitas. Intervenções como a reconstrução mamária após mastectomia, o tratamento de queimaduras severas, a correção de fendas labiopalatais, a reconstrução de membros amputados, a reparação de cicatrizes extensas resultantes de traumas ou cirurgias anteriores e a reconstituição facial em pacientes acometidos por câncer de pele ou outras doenças debilitantes enquadram-se nessa categoria. Nesses casos, a obrigação do médico é de meios, pois o resultado pode ser influenciado por fatores biológicos do paciente e pelo próprio processo de recuperação, fugindo do controle absoluto do profissional. O cirurgião, assim, compromete-se a empregar todas as técnicas e conhecimentos adequados, mas não pode garantir um resultado específico. Essa distinção entre obrigação de meios e de resultado na cirurgia plástica tem grande repercussão na análise da responsabilidade civil do profissional. No caso de cirurgias estéticas propriamente ditas (fins estritamente estéticos), eventuais insatisfações do paciente podem ensejar demandas judiciais por falha na obtenção do efeito esperado, já tendo decidido o STJ de que o uso da técnica adequada na cirurgia estética não é suficiente para isentar o médico da culpa pelo não cumprimento de sua obrigação.7 Assim, o médico se obriga a um resultado determinado e se submete à presunção de culpa correspondente e ao ônus da prova para eximir-se da responsabilidade pelo dano eventualmente decorrente da intervenção.8 Já nas cirurgias reparadoras (estéticas lato sensu), há uma finalidade terapêutica e, assim, uma obrigação de meios. Assim, desde que o cirurgião tenha agido com diligência e seguindo as melhores práticas médicas, eventuais insucessos tendem a não configurar responsabilidade indenizatória. Isso porque, ao corrigir a distorção/deformidade, deverá o profissional atentar-se ao dever de prudência e diligência exigido - e não estará ligado a uma obrigação de resultado. Por exemplo, na correção de cicatrizes extensas causadas por queimaduras, o médico pode empregar técnicas como enxertos ou laser, mas a elasticidade da pele e o processo inflamatório podem comprometer a obtenção de um resultado ideal. Outro caso relevante é o da reparação de fissuras labiopalatais, em que o objetivo é restaurar a funcionalidade e a estética da região. Entretanto, mesmo com técnicas avançadas, o paciente pode necessitar de múltiplas intervenções para obter um efeito satisfatório, sem que isso implique em culpa do profissional. Portanto, nesses procedimentos, a atuação do médico será avaliada pelo critério de prudência e diligência, ou seja, se ele utilizou os recursos disponíveis de forma correta e seguiu as normas médicas vigentes. Críticas ao entendimento jurisprudencial brasileiro: a necessidade de considerar a cirurgia estética como obrigação de meios Em que pese o entendimento unânime da jurisprudência brasileira, nos últimos anos, passou-se a questionar na doutrina, mais frequentemente, a serventia teórica da inclusão das cirurgias estéticas entre as obrigações de resultado. Em verdade, já há muitos anos, há no Brasil o entendimento da doutrina minoritária, representada por Miguel Kfouri Neto9 e Eduardo Dantas,10 defendendo que a cirurgia plástica estética propriamente dita também é uma obrigação de meios. Toda intervenção cirúrgica envolve riscos e variáveis que fogem ao controle do profissional, independentemente de sua diligência. Assim, como sustentado pelos doutrinadores, não há fundamento sólido para tratar a cirurgia estética como obrigação de resultado, pois a medicina, por sua natureza, não pode garantir desfechos exatos. A cirurgia plástica é um procedimento comparável a qualquer outro, sujeito às mesmas condições e variáveis, pois as respostas do organismo humano são incertas, podendo ocorrer efeitos adversos, mesmo quando aplicados todos os recursos técnicos, conhecimentos disponíveis, cautela e habilidade profissional no caso específico. Ademais, como ressaltado pelos autores, o êxito de uma cirurgia plástica está fortemente atrelado aos cuidados pós-operatórios adotados pelo próprio paciente, sendo esse um fator que também foge ao controle do médico. Logo, a tentativa de separar cirurgias estéticas e reparadoras de forma rígida é artificial, já que ambas possuem objetivos terapêuticos e envolvem incertezas inerentes ao ato médico. Conforme leciona Miguel Kfouri Neto, "a doutrina francesa - e a formulação pode ser transposta para o Brasil - tem considerado que, na cirurgia estética, haveria obrigação de meios reforçada, que deve ser observada muito mais estritamente que na cirurgia clássica. Isto porque, muitas vezes, a cirurgia estética visa não ao restabelecimento da saúde, mas à possibilidade de melhoria e reconforto psíquico a uma situação considerada insuportável pelo paciente". Ainda, sustenta o doutrinador que a obrigação, em cirurgia estética, não é fundamentalmente diferente da obrigação das demais modalidades de cirurgia, em razão da álea, do imponderável, inerente a todo ato cirúrgico. Contudo, na cirurgia plástica embelezadora, ressalta que "o rigor é transposto para o dever de informação ao paciente - a fim de obter o seu consentimento".11 A separação entre cirurgias estéticas e reparadoras na responsabilidade civil médica tem raízes em uma decisão judicial francesa da primeira metade do século passado, como explica José de Aguiar Dias.12 Nesse caso, um cirurgião plástico foi condenado por erro médico ao realizar uma cirurgia puramente estética em uma paciente saudável. O tribunal entendeu que, como a intervenção não era necessária do ponto de vista terapêutico, o médico deveria garantir um resultado satisfatório, afastando a aplicação da obrigação de meios. Esse julgamento estabeleceu um paradigma - posteriormente seguido em outros países - no qual as cirurgias estéticas passaram a ser vistas sob um regime mais rigoroso de responsabilidade civil, diferenciando-se das cirurgias reparadoras ou funcionais. Mas vale destacar que esta distinção surgiu em um contexto social e médico muito diferente do atual, quando a cirurgia estética ainda era considerada um procedimento de luxo e de finalidade exclusivamente cosmética. Todavia, atualmente, essa diferenciação tornou-se ultrapassada, pois a cirurgia estritamente estética não é mais vista como um luxo, voltada apenas para a aparência - mas sim como parte do universo médico voltado à saúde e ao bem-estar do paciente.13 Procedimentos estéticos são frequentemente indicados para corrigir questões que impactam a psiquê, a autoestima e a qualidade de vida, demonstrando que a linha entre estética e tratamento médico é tênue. Além disso, toda cirurgia envolve riscos e variáveis que fogem ao controle absoluto do médico, tornando injustificável a imposição de uma obrigação de resultado apenas porque o procedimento tem fins estéticos. A evolução da medicina e a compreensão mais ampla sobre saúde física e mental indicam que a dicotomia criada pela decisão francesa já não se sustenta, e que a cirurgia estética deve ser tratada, como qualquer outra intervenção médica, sob a perspectiva da obrigação de meios. Diante desse cenário, como bem pontuam Nelson Rosenvald, Felipe Braga Netto e Christiano Chaves de Farias, é preciso ser traçado no cenário brasileiro um caminho de superação do dualismo que biparte as obrigações em meios e resultado, por intermédio de um novo critério hermenêutico: a inversão do ônus da prova.14 Para os autores, tal inversão deveria ser a regra nessas demandas, não a exceção, aplicando-se não apenas aos cirurgiões plásticos em procedimentos estéticos, mas a todas as áreas da medicina. Além disso, vale destacar que muitas controvérsias jurídicas na cirurgia plástica surgem da falta de comunicação clara sobre os riscos inerentes a cada procedimento estético, o que pode gerar expectativas irreais. O essencial não é determinar se o procedimento tem caráter terapêutico ou embelezador, mas sim garantir que o paciente receba informações claras e detalhadas sobre os riscos envolvidos, para que possa dar um consentimento informado, livre e esclarecido. Complicações como contratura capsular em mamoplastias com prótese, abertura de pontos em cirurgias mamárias, fibroses e necroses em lipoaspirações, assimetrias em cirurgias faciais e dificuldades no fechamento palpebral após blefaroplastias são apenas alguns exemplos de intercorrências que devem ser devidamente informadas. Além disso, procedimentos como preenchimento glúteo e lipoescultura apresentam riscos específicos que demandam cautela redobrada, especialmente em relação à procedência dos materiais utilizados. A mamoplastia, mesmo quando realizada com técnica cirúrgica adequada e diligente, pode apresentar variações no resultado final devido a fatores biológicos individuais da paciente e limitações inerentes ao procedimento. Elementos como a elasticidade da pele, a qualidade do tecido mamário, a resposta cicatricial e a ação da gravidade desempenham um papel essencial na acomodação dos tecidos após a cirurgia. Além disso, a assimetria natural do corpo, a reabsorção de gordura em casos de lipoenxertia e alterações no peso da paciente podem impactar o formato e a simetria das mamas ao longo do tempo. Essas variáveis, muitas vezes imprevisíveis, evidenciam que o resultado cirúrgico não depende exclusivamente da técnica do cirurgião, mas também das características fisiológicas de cada indivíduo. Além dos fatores biológicos, a própria dinâmica corporal e hábitos do paciente podem influenciar o processo de cicatrização e a estabilidade dos resultados. A força gravitacional, a acomodação dos implantes (quando presentes) e possíveis retrações cicatriciais podem contribuir para desvios sutis no formato mamário. Assim, ainda que a cirurgia seja conduzida com excelência técnica, pequenas assimetrias ou graus de ptose podem ocorrer devido à resposta individual do organismo. Essa imprevisibilidade reforça a importância de um adequado esclarecimento pré-operatório, garantindo que as expectativas do paciente sejam realistas e alinhadas às limitações naturais do procedimento. Diante disso, reforça-se a necessidade de um consentimento esclarecido qualificado, abrangente e detalhado, assegurando que o paciente compreenda as possíveis complicações e que o profissional atue com transparência e diligência. Afinal, sendo a cirurgia plástica um ato médico como qualquer outro, sua obrigação deve ser de meios, cabendo ao cirurgião demonstrar que forneceu todas as informações e prestou o devido acompanhamento, afastando qualquer culpa por eventos adversos intrínsecos ao procedimento. A evolução jurisprudencial espanhola sobre a natureza jurídica obrigacional em cirurgia plástica Na Espanha, há duas décadas vislumbra-se uma evolução jurisprudencial no que se refere à concepção dicotômica sobre a natureza da obrigação médica. Explica Julio César Galán Cortés que, desde 2005, o Tribunal Supremo (STS 758/2005), tem o entendimento consolidado no sentido de que, as obrigações do médico na denominada medicina voluntária ou satisfativa - aí incluídos os procedimentos estritamente estéticos ou a cirurgia reparadora - são considerados como obrigações de meios, com uma exigência rigorosa no que se refere à informação sobre seus riscos, alternativas e inconvenientes. Apenas nos casos em que houver um asseguramento do resultado por parte do médico ou quando a publicidade o indicar ou sugerir, essa obrigação poderá ser qualificada como de resultado.15 Nessa decisão paradigmática, debatia-se o caso de uma paciente que se submeteu a um procedimento de cirurgia estética para eliminar pequenas cicatrizes puntiformes na região peribucal e do mento, causadas por uma depilação elétrica realizada anos antes por outro profissional. No entanto, após a cirurgia, a paciente sofreu um agravamento estético significativo, com o surgimento de cicatrizes queloides, piorando sua aparência em relação ao estado inicial. Ao analisar o caso, decidiu o Tribunal Supremo que a responsabilidade do cirurgião não decorreu da falha na execução técnica do procedimento, mas sim da omissão de informação adequada sobre o risco de formação de queloides - um evento raro, mas que poderia ter sido informado previamente à paciente. O Tribunal reconheceu que a intervenção foi realizada de acordo com as técnicas médicas adequadas e que a formação das cicatrizes foi consequência de uma predisposição genética da paciente, sem que houvesse meios prévios para prever tal reação. Além disso, o Tribunal afastou a tese de asseguramento do resultado, reforçando que, no caso da medicina voluntária ou satisfativa, a regra geral é a de obrigação de meios. Assim, o erro do cirurgião não foi a falha no resultado obtido, mas sim a ausência de um consentimento informado adequado, levando à sua condenação por falta de informação clara e suficiente sobre os riscos do procedimento. Mais recentemente, em 2021, o Tribunal Supremo (STS 828) reafirmou o mesmo entendimento da decisão paradigma e de decisões subsequentes, no sentido de que "o médico se compromete a utilizar os conhecimentos e técnicas que a medicina oferece, dentro dos riscos típicos, que ocorrem à margem da atuação diligente e que, além disso, estão sujeitos a um certo componente aleatório, na medida em que nem todas as pessoas reagem da mesma forma aos tratamentos dispensados".16 Galán Cortés destaca que o cirurgião estético não deve ser colocado em condição inferior à do cirurgião geral, uma vez que o fator aleatório e a resposta individual de cada paciente tornam conceitualmente inadequada a classificação de sua obrigação como uma obrigação de resultado. No entanto, explica que, isso não exclui a possibilidade de que, em determinadas situações, sua obrigação possa assumir essa natureza, especialmente quando há uma informação parcial, tendenciosa ou incompleta, induzindo o paciente a acreditar que o procedimento é simples, isento de riscos e que o resultado é praticamente garantido. Além disso, o autor espanhol observa que, frequentemente, essa percepção equivocada é amplificada pela própria publicidade promocional, que, ao ser elaborada com o único intuito de atrair clientes, direciona intencionalmente o público para essa falsa expectativa. Por esse motivo, nesse tipo de cirurgia, a transparência e a clareza das informações prestadas ao paciente devem ser priorizadas.17 Diante desse breve panorama, percebe-se que na Espanha, doutrina e jurisprudência mais recentes reconhecem, de maneira consolidada, a responsabilidade do cirurgião plástico em procedimentos estéticos segue uma linha interpretativa que privilegia a obrigação de meios, salvo quando há um compromisso explícito com o resultado ou quando a publicidade induz o paciente a essa expectativa. O fator determinante para a responsabilização, em grande parte dos casos julgados por tribunais espanhóis, reside na qualidade e abrangência da informação prestada ao paciente, destacando-se o dever de esclarecimento sobre os riscos, as limitações da técnica e a possibilidade de variações individuais nos resultados. Assim, a transparência na relação médico-paciente assume um papel central na proteção da autonomia do paciente e na delimitação da responsabilidade profissional. Notas conclusivas Embora no Brasil haja estudiosos que defendam a classificação da cirurgia plástica estritamente estética como uma obrigação de meios - nos mesmos termos da doutrina e jurisprudência espanholas mais recentes -, os tribunais brasileiros ainda resistem a essa mudança de paradigma, ancorados em entendimentos doutrinários tradicionais ultrapassados. A jurisprudência pátria insiste em dispensar à cirurgia estética tratamento draconiano: ou se atinge o resultado "embelezamento" ou responde o médico pela frustração. Em um cenário jurídico em constante transformação, urge a necessidade de traçarmos um novo caminho de entendimento sobre a responsabilidade civil em cirurgia plástica. Mais do que delimitar fronteiras entre o reparador e o estético, é preciso enxergar além, compreendendo que a essência do ato médico reside na prudência, na técnica e, sobretudo, na comunicação transparente. A confiança entre médico e paciente deve ser alicerçada na clareza e na verdade, permitindo que as expectativas sejam reais e os riscos devidamente ponderados. O Direito não pode se enclausurar em fórmulas estanques, mas deve evoluir, reconhecendo que a medicina, como a própria vida, é feita de variáveis e incertezas. Que o futuro do entendimento jurídico brasileiro seja moldado pelo equilíbrio, afastando a ilusão de conceitos absolutos e abraçando a complexidade inerente ao humano! __________ 1 ST, AgInt no AREsp n. 1.662.960/PR, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4a T., j. 22.11.2021, DJe 25.11.2021. 2 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 276. 3 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 373 e ss. 4 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 380 e ss 5 STJ, AgInt no AREsp n. 1.662.960/PR, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4a T., j. 22.11.2021, DJe 25.11.2021. Mais recentemente: REsp n. 2.173.636/MT, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4a T., j. 10.12.2024, DJe 18.12.2024. 6 Sobre a classificação binária dos procedimentos realizados em cirurgia plástica e suas repercussões jurídicas, remeta-se a KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 12. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 220-250. 7 STJ, REsp n. 1.395.254/SC, rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 15.10.2013, DJe de 29.11.2013. Mais recentemente: REsp n. 2.173.636/MT, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4a T., j. 10.12.2024, DJe 18.12.2024. 8 AgRg no REsp 1468756/DF, rel. Min. Moura Ribeiro, 3ª T., j. 19.05.2016, DJe 24.5.2016) 9 KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 51 ss. 10 DANTAS, Eduardo. Direito médico. 8. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 199-232. 11 KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 51 ss. 12 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 373-379. 13 KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 51 ss. 14 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe; FARIAS, Christiano Chaves de. Curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 11 ed. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 982-985. 15 CORTÉS, Julio César Galán. Responsabilidad civil médica. 9. ed, Navarra: Civitas, 2024, p. 236-237 16 CORTÉS, Julio César Galán. Responsabilidad civil médica. 9. ed, Navarra: Civitas, 2024, p. 244-245 17 CORTÉS, Julio César Galán. Responsabilidad civil médica. 9. ed, Navarra: Civitas, 2024, p. 236; 245-248.
Em 25 de janeiro de 2019, aconteceu o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG, uma das maiores tragédias socioambientais do Brasil, que gerou perplexidade mundial. Em 2025, o STJ, no âmbito do julgamento do RE 2.113.084/RJ, instaurou Incidente de Assunção de Competência (IAC 18) para a definição da seguinte questão de direito: "caracterização do Termo de Compromisso firmado entre a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e a Vale S.A. como título executivo extrajudicial para o ajuizamento de ações individuais e a legitimidade das vítimas para sua execução." Na ocasião, discute-se a possibilidade de execução direta, por parte dos atingidos pelo rompimento da barragem, do Termo de Compromisso firmado entre a Defensoria Pública de Minas Gerais e a empresa Vale S.A. Esse texto tem por objetivo clarificar alguns pontos do Termo de Compromisso e colaborar com a discussão jurídica subjacente ao IAC 18 do STJ. Para compreender a singularidade do Termo de Compromisso celebrado entre a DPMG e a mineradora Vale S.A., é necessário contextualizá-lo no marco da catástrofe, que exigiu respostas institucionais rápidas, efetivas e adequadas à complexidade dos danos. Exemplos recentes e antigos, como a tragédia ambiental pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana/MG, de 2015, e o desabamento do pavilhão da Expominas, de 1971, até então o maior acidente do trabalho do país1, revelaram certa ineficiência quanto à indenização de direitos individuais homogêneos no processo coletivo. Diante da urgência e da gravidade da situação, a DPMG atuou junto à comunidade, promoveu escuta ativa dos atingidos e avaliação das alternativas de reparação. Constatada a magnitude dos danos e a vulnerabilidade das vítimas, restou evidente a necessidade de uma resposta eficaz para além da via judicial. Nesse contexto, em 5 de abril de 2019 - menos de três meses após o desastre - foi celebrado o Termo de Compromisso com a Vale S.A., que estabeleceu um procedimento extrajudicial para promover a reparação de danos morais e materiais às vítimas. O modelo adotado estruturou-se como um mecanismo de conciliação direta entre a empresa e os atingidos, com a intermediação institucional da DP/MG.2 O instrumento em análise não fora concebido como título executivo, judicial ou extrajudicial, para ser manejado por terceiros que optaram - legitimamente, diga-se - por não aderir ao procedimento específico de reparação nele previsto. O referido Termo de Compromisso apresenta peculiaridades jurídicas próprias, que faz com que sua natureza e funcionalidade se distanciem do tradicional TAC - Termo de Ajustamento de Conduta, previsto na lei 7.347/1985, que, conforme parcela da doutrina3, admite execução por terceiros beneficiários. Aqui, portanto, a primeira observação crucial para sua adequada compreensão, ao mesmo tempo em que revela seu caráter inovador: o TC - Termo de Compromisso não se confunde com TAC - Termo de Ajustamento de Conduta. O procedimento consiste na análise individualizada de cada demanda, assegurando ampla participação do atingido e garantindo o contraditório material no âmbito extrajudicial. Para conferir objetividade, segurança jurídica e isonomia, o Termo de Compromisso definiu previamente hipóteses de indenização e valores correspondentes, alinhados aos padrões jurisprudenciais e doutrinários consolidados. A definição de critérios objetivos e valores previamente fixados visou evitar distorções decorrentes de negociações casuísticas, muitas vezes permeadas pela urgência financeira e pela assimetria entre as partes. Ainda assim, a adoção de parâmetros indenizatórios não implicou reconhecimento automático de responsabilidade civil e nem a criação de título executivo, mas sim a implementação de uma via de resolução alternativa dos conflitos, não formalista, célere e voluntária. Importa destacar que o Termo de Compromisso não contemplou cláusulas relativas à liquidação ou execução judicial, pois sua finalidade não visou a substituição da jurisdição estatal, mas a criação de um caminho alternativo de resolução de conflitos - justiça multiportas4 - em um ambiente de reparação horizontal e humanizado, adequado à superação da crise de direitos vivida pelos atingidos. Aspecto disruptivo do instrumento foi a aceitação, pela empresa, de meios mais flexíveis de comprovação dos danos, como a possibilidade de suplementação de prova e da aceitação contundente da própria palavra da vítima como meio de prova, notadamente quanto aos danos materiais, compatíveis com a realidade informal de grande parte dos atingidos5, superando as exigências probatórias típicas do processo civil tradicional, o que, de fato, causou "estranheza no meio jurídico, quer pelo seu relativo ineditismo, quer pela eleição de uma nova metodologia para a solução de conflitos envolvendo direitos individuais homogêneos"6. A participação da Defensoria Pública em todas as etapas - da concepção do Termo à celebração dos acordos individuais até a quitação - foi determinante para mitigar as desigualdades materiais entre as partes, assegurando efetividade e legitimidade ao procedimento.7 A via extrajudicial revelou-se solução eficiente, desburocratizada e garantidora de justiça social, conferindo efetividade ao direito fundamental de acesso à justiça por meio de sua dimensão substancial, além, é claro, da própria indenização pelos danos causados. Dessa forma, o Termo de Compromisso não é autoexecutável por terceiros exatamente porque sua essência não é a criação de um título para execução forçada, mas a promoção de reparações voluntárias, adequadas à complexidade e à urgência da situação vivida, em procedimento extrajudicial a ser realizado pela e com a DP/MG.   O Termo de Compromisso, em si, não se trata de acordo entre a Vale S.A. e vítimas assistidas pela DP/MG, mas sim negócio jurídico celebrado entre a DP/MG e a Vale S.A. para regulamentar a negociação dos futuros acordos individuais daqueles atingidos que buscarem a assessoria jurídica gratuita da Defensoria Pública e concordarem com os seus termos, sem prejuízo da submissão desses acordos individuais à homologação judicial, principalmente via CEJUSC. O Termo de Compromisso, portanto, não impede a via judicial para aqueles que assim desejarem8. A vítima que decidir pelo ajuizamento de ação ordinária contra a mineradora assim o faz e se sujeita, positiva e negativamente, aos ditames do processo de conhecimento. Por outro lado, a vítima que optar pela via extrajudicial, por meio da DPMG, sujeita-se também, positiva e negativamente, ao procedimento e parâmetros estabelecidos no Termo de Compromisso, sem as vicissitudes e custos do processo judicial. Por outro lado, a opção pelo TAC teria implicado a instauração de novas demandas judiciais, com necessidade de produção probatória, liquidação de danos, interposição de recursos e possibilidade de ônus processuais. Frente à magnitude do desastre, à força econômica da empresa causadora e às vulnerabilidades dos atingidos, esse caminho teria resultado, muito provavelmente, em ineficácia prática da reparação. O Termo de Compromisso firmado entre a DPMG e a Vale S.A. representa um modelo inovador e paradigmático de resposta a desastres socioambientais de grande escala. Longe de se confundir com instrumentos tradicionais como o Termo de Ajustamento de Conduta, sua estrutura foi pensada para promover a superação extrajudicial de conflitos, com foco na dignidade das vítimas, na isonomia das reparações, na celeridade das respostas e, principalmente, na voluntariedade9 da vítima. Na pesquisa comparada, a doutrina especializada já vem observando essa nova tendência de junção entre as modalidades opt in e opt out de tutela coletiva - notadamente em grandes desastres ou de lesões massivas à consumidores individualmente considerados - em que se revela adequado, em alguns casos, permitir que "os titulares dos direitos individuais ligados à pretensão individual homogênea optem individualmente por aderir ou não, com benefícios de receber os valores indenizatórios de forma imediata, dispensa dos processos de liquidação e execução individual"10. No âmbito do Termo de Compromisso, estabeleceu-se essa "situação intermediária em que mesmo buscando a solução individual extrajudicial, o atingido poderia se beneficiar dos resultados futuros da demanda coletiva, não sendo compelido a fazer uma escolha entre as modalidades de reparação".11 Portanto, transformar o Termo de Compromisso em um Termo de Ajustamento de Conduta é produzir um grave retrocesso na luta pela efetividade e celeridade da reparação civil de direitos, pois transforma um instrumento de resolução extrajudicial de litígios em um instrumento de judicialização forçada de acordos. Entende-se correto, portanto, o voto do min. relator no REsp 2.113.084, que originou o IAC 18, com propositura da seguinte tese: "1) O termo de compromisso firmado entre a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e a Companhia Vale S.A. não constitui título executivo extrajudicial para a execução diretamente pelas vítimas; 2) As vítimas não têm legitimidade para executar individualmente o referido termo de compromisso." Ao viabilizar reparações efetivas, com baixos custos, sem litígios e com respeito à vulnerabilidade dos atingidos, o Termo de Compromisso não apenas atende ao direito individual à indenização, mas concretiza o acesso à justiça e a efetividade dos direitos fundamentais. "Em síntese, a DP/MG - Defensoria Pública de Minas Gerais prestou relevante serviço ao acesso à Justiça consensual multiportas no Brasil com vistas ao acesso à ordem jurídica justa e à satisfação de necessidades jurídicas, sem qualquer sobreposição ou óbice ao acesso às outras portas do 'novo' edifício jurídico denominado justiça multiportas".12 O Termo de Compromisso e sua metodologia se consolidam, portanto, como um modelo de sucesso13 para se promover justiça diante dos - infelizmente - corriqueiros desastres socioambientais da nossa era. Referências CARVALHO, Leandro Coelho. Solução de conflitos em ambientes dominados por litigantes habituais e os acordos individuais via defensoria pública em Brumadinho. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito, 2021 (Dissertação de mestrado). DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 15 ed. Salvador: Ed. JusPodvm, 2021. MAIA, Maurílio Casas. Justiça consensual e Defensoria Pública multiportas: o Caso Brumadinho, o acesso à Justiça e as necessidades jurídicas. In.: Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais. n. 6, nov. 2020. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 33ª Ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023. MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. A Defensoria Pública e o cotidiano do direito: a memória dos atendimentos dos Defensores Públicos do Estado de Minas Gerais aos atingidos pelo rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão em Brumadinho. São Paulo: Dialética, 2023. RIOS, Richarles Caetano. Na mesa de negociação: argumentos, critérios e precedentes na construção dos parâmetros indenizatórios. In. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, nº6, nov. 2020. SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. A reparação civil na tragédia de Brumadinho: quanto Vale? In. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, n. 6, nov. 2020. 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A Defensoria Pública e o cotidiano do direito: a memória dos atendimentos dos Defensores Públicos do Estado de Minas Gerais aos atingidos pelo rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão em Brumadinho. São Paulo: Dialética, 2023, p. 194. 3 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 33ª Ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 563. 4 Vide art. 1º da Resolução 125/2010 do CNJ, que concebe o "direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade". 5 Vide RIOS, Richarles Caetano. Na mesa de negociação: argumentos, critérios e precedentes na construção dos parâmetros indenizatórios. In. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, nº6, nov. 2020, p. 200. 6 "Ou seja, o procedimento extrajudicial posto substitui o processo judicial de conhecimento e de cumprimento de sentença, na medida em que a partir de um relatório de danos construído pelo atingido, com o auxílio da Defensoria Pública, a empresa responsável elabora uma proposta baseada nos critérios e parâmetros já consensuados. Essa proposta é submetida ao próprio atingido, que decide se aceita ou não o valor." Vide SOLEDADE, Felipe Augusto Cardoso. As premissas da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais na tutela extrajudicial de direitos coletivos - razões de escolhas para Brumadinho. In. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, nº6, nov. 2020, p. 116. 7 "Através desse valioso instrumento - confeccionado sob o escrutínio técnico de uma instituição de Estado, com poder de negociação frente ao ente hiperpoderoso - foi possível garantir às pessoas afetadas pelo rompimento da barragem da Mina do Feijão justa (e individualizada) reparação patrimonial dos danos causados". Vide VARGAS, Cirilo Augusto. Apresentação da Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, In. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, nº6, nov. 2020, p. 3. 8 "Ressalta-se que a possibilidade de reparação apresentada pelo Termo de Compromisso não teve como objetivo exaurir, numerar, restringir, esgotar e taxar os direitos dos atingidos. Tampouco teve a pretensão de ser o único caminho a ser seguido, excluindo os demais, e jamais impôs a solução como a única a ser adotada". Vide SILVA, Rodrigo Zouain da. Da atuação da deusa Éris à segurança jurídica: desmistificando o Termo de Compromisso a partir do Termo de Quitação. In: Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, n. 6, nov. 2020, p. 78. 9 "Os afetados devem apresentar uma declaração com a enumeração dos bens atingidos e os demais danos. A Vale faz uma proposta de acordo, nos limites do Termo de Compromisso, que pode ser aceita ou rejeitada de plano, ou no prazo de três dias. Ultrapassado esse prazo, entende-se pela rejeição da proposta. Previu-se, ainda, um breve período em que os afetados possam exercer o direito de arrependimento." Vide: SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. A reparação civil na tragédia de Brumadinho: quanto Vale? In. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, n. 6, nov. 2020, p. 132-133. 10 DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 15 ed. Salvador: Ed. JusPodvm, 2021, p. 418. Os autores informam que essa tendência é observada nas Regras Modelo Europeias de Direito Processual e na Diretiva 2020/1828 da União Europeia e, ainda, indicam como exemplo da junção dos modelos opt in e opt out, no Brasil, o acordo dos expurgos inflacionários, homologado pelo STF. 11 MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. A Defensoria Pública e o cotidiano do direito: a memória dos atendimentos dos Defensores Públicos do Estado de Minas Gerais aos atingidos pelo rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão em Brumadinho. São Paulo: Dialética, 2023, p. 197. 12 MAIA, Maurílio Casas. Justiça consensual e Defensoria Pública multiportas: o Caso Brumadinho, o acesso à Justiça e as necessidades jurídicas. In: Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais. n. 6, nov. 2020, p. 149. 13 CARVALHO, Leandro Coelho. Solução de conflitos em ambientes dominados por litigantes habituais e os acordos individuais via defensoria pública em Brumadinho. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito, 2021 (Dissertação de mestrado).
Há alguns dias noticiava-se1 a decisão da 2ª turma do TJ/DFT que determinava, em ação civil pública, que duas 'financeiras' se abstivessem de realizar novos empréstimos garantidos pelo celular do devedor. Na prática, contudo, não se mencionava a constituição de penhor (ou de seu registro) nem de qualquer outra forma tradicional de garantia do crédito. O que realmente importaria, aos credores, era a presença de outra cláusula contratual que os autorizava a bloquear, de forma remota, por meio de aplicativo instalado no momento da concessão do crédito, diversas funcionalidades do aparelho 'dado' em garantia. A decisão do TJ/DFT entendeu que esta seria uma prática abusiva que imporia ao consumidor a violação de direito fundamental em razão de excessiva restrição que se aproveitaria da vulnerabilidade do contratante2. Este não é o único caso apreciado pelo Judiciário3, nem reflete uma prática isolada. Embora o caso tenha sido endereçado - até por conta de seus limites processuais - por meio da legislação de consumo, ele nos convida a questionar a lógica daquela 'garantia' de forma mais ampla. Até porque ampla é também a forma como a prática vem se disseminando. É o que convido o leitor a fazer com a seguinte indagação: afinal, o que há de tão fundamentalmente equivocado em se bloquear a utilização do celular em caso de inadimplemento? A discussão, por certo, extrapola os estritos limites da técnica redacional do contrato para buscar o fundamento na compreensão de responsabilidade e na função social que ela exerce. Na faculdade de Direito, logo que iniciamos nossos estudos de Direito obrigacional, somos apresentados à noção central da responsabilidade patrimonial do devedor. Embora este seja o fundamento da própria obrigatoriedade, usualmente, não se gastam mais que alguns momentos em sua contextualização4. Assim, apresentado o teor do art. 3915 do CC ou do art. 7896 do CPC, passamos a uma 'lista' de exceções a contrapor à interpretação literal dos dispositivos. Não raras vezes, a explicação, por provocação discente, acaba se desdobrando  para o "bem de família" e para a prisão civil do devedor de alimentos. Esta estratégia de análise da responsabilidade atrai, contudo, um risco estratégico: o exemplo motiva mais que o fundamento. É talvez por isso que vemos algumas discussões sobre se este ou aquele bem é impenhorável7 ou se, para proteção da moradia, o devedor solteiro pode ser considerado família8 chegando às Cortes Superiores. Para maior didatismo, imagine que as duas provocações dos alunos abordam, na realidade, dois lados da mesma moeda. Comecemos pela face, ou seja, pela identificação de que existem limites patrimoniais à responsabilização. Embora diversos sejam os exemplos legislativos (bem de família, bens impenhoráveis9, o mínimo existencial10, etc.) há - por certo - um fundamento comum que os explica, justifica e amplia.  Buscar uma exceção prevista em lei é, neste sentido, uma armadilha. Não que elas não sejam úteis, mas o fato é que não há um dispositivo que proíba a tal cláusula de autorização de bloqueio, assim como não há aquele que determine a obrigatoriedade de um contrato11. Ambas as compreensões são extraídas da mesma responsabilização patrimonial: um contrato é obrigatório porque seu descumprimento pode impor responsabilização do devedor recalcitrante (não cogitamos, é claro, a tutela da pretensão como parte desta obrigatoriedade). A responsabilização, por outro lado, pode extrapolar o patrimônio do devedor e tem certo rito para ocorrer.  Qual patrimônio? Aquele previsto em uma lista? Não, aquele que obedece a um fundamento comum de proteção patrimonial escolhido pelo nosso sistema jurídico. Ele, aliás, já foi identificado como o "patrimônio mínimo"12 necessário ao desenvolvimento dos direitos de personalidade e, é, talvez, para este contexto que acena a mencionada decisão do TJ/DFT: privar o devedor da utilização do celular impede, como sabemos, até mesmo exercício de alguns direitos fundamentais, o que é especialmente verdadeiro quando pensamos na centralidade que as ferramentas digitais (bancárias, previdenciárias, serviços públicos) ganham em nossa vida. Passando à 'coroa' daquela mesma moeda, ou seja, ao limite patrimonial da responsabilização, sabemos que a responsabilidade patrimonial exclui a responsabilidade pessoal, entendida como aquela sofrida na pessoa do devedor. A rigor, contudo, nem mesmo a chamada prisão civil aqui se encaixaria, pois a prisão do devedor não extingue a dívida. Há um segundo sentido também: o crédito não autoriza o credor a se apropriar do patrimônio alheio. Cabe a ele deduzir sua eventual pretensão e buscar a satisfação por meio da expropriação, eis o rito da responsabilização.  Mas poderíamos cogitar que espaço de liberdade individual também tem um sentido patrimonial? Não para a responsabilização patrimonial, pelo menos. É neste contexto que se tem destacado os convites ao Judiciário para que amplie as hipóteses de incentivo à colaboração do devedor por meio da adoção de medidas executivas atípicas13. Elas assim como a prisão civil em caso de alimentos não são pagamento (nem o substituem), mas valem-se de restrições à liberdade individual como mecanismos de cooperação. Assim, os exemplos da apreensão do passaporte ou da CNH14, a privação da frequência em clubes ou as multas diárias dependerão de uma decisão judicial que pondere a relevância do crédito frente a possibilidade de tal limitação à liberdade. Eis, então, que uma resposta a nossa indagação pode ser esboçada: as cláusulas que 'davam' o celular em garantia ou que autorizavam seu bloqueio são, em resumo, ofensivas à responsabilidade patrimonial do devedor. Não se trata, propriamente, de uma questão de autonomia do contratante ou vulnerabilidade do consumidor, mas, salvo melhor juízo, de acomodação aos contornos colaborativos que devem embasar a relação obrigacional, percebida como um processo15.  ____________________ 1 BOLZANI, Isabela. Financeiras são proibidas pela Justiça de bloquear celular de clientes inadimplentes; entenda. G1. Economia. 10/05/2025. Disponível aqui.  2 TJDFT, Apelação Cível n° 0742656-87.2022.8.07.0001, 2ª Turma Cível, Relator Desembargador Renato Rodovalho Scussel, julgado em 05 de maio de 2025. Disponível aqui.  3 Vide, por exemplo, em âmbito individual, SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n° 1033838-05.2022.8.26.0564, 15ª Câmara Cível, Relator Desembargador Achile Alesina, julgado em 11/02/2025. 4 Sobre esta contextualização, recomendo o artigo: NANNI, Giovanni Ettore. Responsabilidade patrimonial do devedor: conceito e evolução histórica. In Revista de Direito Privado, vol. 123/2025, p.149-185, jan/março 2025. 5 Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor. 6 Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei. 7 Recordo-me da Reclamação 4374/MS, apreciada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, que precisou declarar a impenhorabilidade de televisor e máquina de lavar roupas (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Rcl 4374 / MS, Segunda Seção, Relator Min. Sidnei Beneti, julgado em 23/02/2011). 8 Por exemplo: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 301580 / RJ. Terceira Turma, Relator Min. Sidnei Beneti, julgado em 28/05/2013. 9 O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar (art. 1º da Lei n° 8.009/1990). 10 O rol do art. 833 e incisos do CPC, por exemplo. 11 Em nítido contraste com alguns Restatements internacionais. Vide, por exemplo, art. 1.3 dos PRINCÍPIOS UNIDROIT RELATIVOS AOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS 2016, disponível aqui.  12 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, 2. Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 13 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; 14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5941, Pleno, Relator Min. Luiz Fux, julgado em 09/02/2023. 15 COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976.
A vulnerabilidade digital tornou-se assunto que adquiriu repercussão mundial1 em razão dos novos paradigmas tecnológicos que passam a repercutir praticamente em todos os seguimentos da sociedade na atualidade, provocando os setores público e privado a renovadas formas de atuação em prol da inclusão digital dos vulneráveis. Trata-se de fenômeno que desafia os diferentes âmbitos da sociedade a compreender, antes de tudo, as causas e as consequências dessa exclusão2. A vulnerabilidade digital pode ser identificada sob enfoques técnicos, científicos, fáticos e informacionais, atingindo os mais variados grupos sociais3, densificando-se, proporcionalmente, na mesma velocidade em que as tecnologias se desenvolvem4, trazendo um vertiginoso incremento de danos nunca antes vivenciados. Para além dos novos danos experimentados, os segmentos sociais mais frágeis ainda sofrem com notórios obstáculos para acessar os meios extrajudiciais e judiciais de proteção de seus direitos, o que os torna presas fáceis para todo o tipo de atividades ilícitas lucrativas. A temática ganha proporções ainda mais dramáticas quando se analisa a vulnerabilidade das pessoas idosas diante das novas tecnologias5. Nada obstante a vigência de alguns importantes estatutos protetivos - tais como o Estatuto da Pessoa Idosa (lei 10.741, de 2003), a lei de Política Nacional do Idoso (lei 8.842, de 1994) e a própria Constituição Federal -, as dificuldades de compreensão e manuseio dos recursos tecnológicos acabam por obstaculizar a plena fruição de seus direitos individuais e sociais. Por isso, para muito além de se garantir aos idosos a prioridade de tratamento, impõe-se "que as políticas públicas devem ser pensadas primeiramente para atendê-los e que no sistema de saúde, de justiça, nas relações entre os particulares e entre esses e o Poder Público, o idoso assume uma posição privilegiada de sujeito de direitos".6 Um ótimo (apesar de repugnante) exemplo de como a vulnerabilidade digital e a hipossuficiência multicausal afeta cruelmente os idosos no Brasil pode ser inferido do recente escândalo dos desvios bilionários perpetrados por entidades associativas contra milhões de aposentados e pensionistas do INSS. Para apurar a fraude, foi deflagrada pela Polícia Federal a operação "Sem Desconto", que investiga um esquema de descontos em folha de pagamento não autorizados, em prol de entidades associativas, de aposentadorias e pensões pagas pelo governo federal. O que se sabe, até então, é que algumas entidades de classe (associações e sindicatos) formalizavam Acordos de Cooperação Técnica com o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, mediante os quais se lhes autorizava a realização de descontos automáticos (em folha) de aposentadorias e pensões, a título de taxas mensais associativas.   Ocorre, no entanto, que a imensa maioria dos descontos foram feitos sem autorização dos aposentados e pensionistas, mediante a falsificação de documentos de filiação e autorização. Assim, as cobranças indevidas eram descontadas diretamente dos benefícios previdenciários daqueles, calculando-se um prejuízo estimado em R$ 6,3 bilhões, entre os anos de 2019 e 2024.7 Diante da descoberta da fraude e da repercussão nacional, o governo federal vem orientando os aposentados ou pensionistas a acessar o aplicativo "Meu INSS" e, preferencialmente, por meio da plataforma digital, reportar a ausência de consentimento e os danos sofridos.8 Ou seja, exige-se de uma classe notoriamente vulnerável e desassistida que, por uma via digital a que muitos não tem acesso ou não conseguem manipular que: i) constate se vem sendo vítima dos descontos indevidos; ii) verifique se autorizou ou não o desconto; iii) solicite a devolução dos valores decontados e, iv) aguarde a entidade associativa se manifestar sobre o referido desconto. Como se percebe, o idoso vulnerável é duplamente penalizado: sofre com as consequências dos desvios de seus benefícios e não possui, muitas vezes, sequer acesso adequado para formalizar as pretensões de reparação. Para além de despertar uma verdadeira comoção nacional e chamar a atenção para o tema da vulnerabilidade digital, o escândalo das fraudes contra os aposentados e pensionistas do INSS ainda suscita relevante debate jurídico, concernente à responsabilidade civil do Poder Público pelos danos a eles causados.9 Nesse sentido, a turma nacional de uniformização dos Juizados Especiais Federais está debatendo a fixação de tese jurídica específica (Tema 326, ainda pendente de julgamento), que objetiva avaliar "se o INSS é civilmente responsável nas hipóteses em que se realizam descontos de contribuições associativas em benefício previdenciário sem autorização do segurado, bem como, em caso positivo, quais os limites e as condições para caracterização dessa responsabilidade."10 O entendimento jurisprudencial que vem se consolidando aponta no sentido da responsabilidade objetiva da autarquia (INSS) pelos descontos indevidos efetuados em benefícios sociais, ainda que decorram de fraudes cometidas por terceiros. Bons argumentos, para tanto, abundam. Muito embora, nos mencionados casos, seja possível imputar a responsabilidade civil do Poder Público também por omissão (na medida em que desatendeu notório dever de vigilância, deixando de fiscalizar adequadamente os convênios firmados com as entidades associativas e prevenir possíveis fraudes), parece clara a imputação de responsabilidade civil também por ação - na medida em que as fraudes só foram viabilizadas em virtude da autorização concedida às associações e sindicatos para a utilização da ferramenta dos descontos em folha. De todo modo, a imputação da responsabilidade civil ao Poder Público pelos desvios de valores bilionários dos aposentados e pensionistas parece ser um imperativo derivado da necessidade da facilitação ao integral e tempestivo ressarcimento, a uma classe sabidamente vulnerável (hipossuficiente), de verbas de caráter indiscutivelmente alimentar. Todavia, o que se revela mais intrigante em todos os casos de fraudes por via dos descontos em folha de benefícios previdenciários pagos pelo INSS talvez não seja exatamente a discussão sobre a viabilidade da responsabilização do Poder Público (que parece óbvia), muito menos sua natureza jurídica. O cenário dessas fraudes, acima de tudo, escancara a necessidade de se compreender e discutir a respeito da forma pela qual, uma vez admitida a responsabilidade do Poder Público, passe a providenciar o integral e tempestivo ressarcimento de todas as vítimas pela via administrativa, sob pena de provocar, mais uma vez, a profusão da judicialização de demandas ressarcitórias (individuais e coletivas), retroalimentando, assim, uma litigância absolutamente desnecessária e lesiva, tanto às vítimas quanto ao próprio Estado. Vale lembrar, aliás, que as demandas envolvendo o INSS - usualmente fundadas na intempestividade das deliberações administrativas ou no  indeferimento da concessão de benefícios previdenciários - constituem uma das maiores causas da judicialização no Brasil. Em recente estudo denominado "Projeto de redução da litigância contra o Poder Público"11, coordenado pelo STF em parceria com o CNJ - Conselho Nacional de Justiça, foram diagnosticados os temas mais suscitados na litigância em face do Estado. No levantamento empírico da pesquisa, apurou-se que as ações previdenciárias representam impressionantes 87,43% das demandas ajuizadas contra o governo Federal, isto é, o grande tema "Previdenciário" foi identificado como o principal tema da litigância preponderante, com 5.336.429 processos.12 E, pelo andar da carruagem, tais números só tendem a crescer. Enquanto o governo federal patina na assunção de suas responsabilidades e demora imensamente na tomada de decisões justas, estratégicas e econômicas - que passam, necessariamente, pela disponibilização a todos os aposentados e pensionistas de modelos indenizatórios adequados (simples, céleres e acessíveis) pela própria via administrativa -, a litigância esfrega as mãos. Mais uma vez. _______ 1 HELBERGER, N.; SAX, M.; STRYCHARTZ, J.;MICKLITZ, H.-W. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability.  Journal of Consumer Policy, dez.2021, p. 1-26. 2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Plínio Dentzien (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 3 MARQUES, Claudia Lima; MUCELIN, Guilherme. Vulnerabilidade na era digital: um estudo sobre os fatores de vulnerabilidade da pessoa natural nas plataformas a partir da dogmática do Direito do Consumidor. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 11, n.13, 2022. Disponível aqui. 4 HOFFMANN-RIEM,  Wolfgang. Teoria  geral  do  direito  digital:  transformação  digital,  desafios  para  o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 5 SANTOS, Romualdo Baptista dos. A responsabilidade digital na Lei da Telessaúde. O que é isso? Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. 6 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário. Mútuo bancário e vulnerabilidade do consumidor idoso analfabeto. Tese doutoral defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério José Ferraz Donnini. São Paulo, 2016. 7 Ministério da Justiça e Segurança Pública. Policia Federal. PF e CGU investigam descontos irregulares em benefícios do INSS. Entidades investigadas descontaram de aposentados e pensionistas o valor estimado de R$ 6,3 bi, entre 2019 e 2024. Disponível aqui. 8 Ministério da Previdência Social. INSS. Confira como pedir a restituição de descontos indevidos no benefício do INSS. Disponível aqui. 9 BRAGA NETTO, Felipe. Novo Manual de Responsabilidade Civil. 5° ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2025. 10 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Turma Nacional de Uniformização. Tema 326. Disponível aqui. 11 Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Redução da litigância contra o poder público : relatório final - fase 1 : resumo executivo.  Coordenação da obra:  Luís Roberto Barroso, Patrícia Perrone Campos Mello, Lívia Gil Guimarães. -- Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação: CNJ, 2025. 40 p. Disponível aqui. 12 Ibid. p. 16.
1. Aspectos gerais Nos hospitais e clínicas, públicos e privados, são comuns os óbitos decorrentes de infecções hospitalares. Pacientes internado no processo de cuidados com a saúde por distintas doenças ou tratamentos eletivos, figuram nas expressivas estatísticas brasileiras por óbitos provenientes de sepse, pneumonia ou infecções urinária e sanguínea. Essas quatro causas são as mais frequentes na contaminação por infecção hospitalar. Ainda que as estatísticas indiquem maior incidência de óbitos por infecções hospitalares por categoria de paciente ou espécie de comorbidade, a infecção hospitalar é potencialmente capaz de atingir todos os pacientes, independentemente da condição orgânica, evolução patológica e tratamento dispensado. Portanto, todos os pacientes podem ser vitimizados, fatalmente, por infecções hospitalares. Importantes questões devem ser trazidas à baila, principalmente na imperiosa contextualização do Brasil no contexto global dos pacientes internados nos Hospitais e Clínicas brasileiras. Segundo o Ministério da Saúde, por seus Boletins Epidemiológicos e a Anvisa, por seus Relatórios sobre IRAS - Infeções Relacionadas à Assistência à Saúde, no ano 2024, estima-se que cerca de 14% dos pacientes internados adquiriram infecções durante a estadia, e mais de 45 mil brasileiros morrem, anualmente, devido a infecções adquirias no ambiente hospitalar. A OMS - Organização Mundial da Saúde apresenta diretriz no sentido de que as mortes decorrentes por infeção hospitalar não devem ultrapassar o percentual de 5% quando comparadas à totalidade de pacientes em tratamento de saúde.  No Brasil, no entanto, as estatísticas oficiais comprovam que os óbitos decorrentes de infecção hospitalar são quase três vezes superiores ao aceitável, cerca de 14%. Estima-se que 45 mil brasileiros morrem, anualmente, por infecções adquiridas no ambiente hospitalar, segundo a OMS. A vexatória estatística brasileira - três vezes superior à média mundial - não se traduz em novas políticas públicas, quiçá ganha foro jurídico na esperada irresignação das autoridades constituídas no Brasil. Todos somos responsáveis por esse lastimável estado da arte. Trazer à lume os alarmantes dados estatísticos e as verdadeiras causas da infecção hospital no Brasil, no entanto, podem produzir mudanças desse cenário. No ano de 2013 foi publicado o Programa Nacional de Segurança do Paciente através da portaria 529, de 1º de abril de 2013, importante marco para a importância na prevenção das infecções hospitalares. Nessa linha, "a partir de 2013, a partir de 2013, a Fiocruz, o Ministério da Saúde e a Anvisa publicaram protocolos básicos de segurança do paciente. Os seis protocolos- Identificação do paciente; Prevenção de úlcera por pressão; Segurança na prescrição, uso e administração de medicamentos; Cirurgia segura; Prática de higiene das mãos em serviços de saúde; e Prevenção de quedas - fazem parte do Programa Nacional de Segurança do Paciente, cujo objetivo é prevenir e reduzir a incidência de eventos adversos nos serviços de saúde públicos e privados" (ARMOND, 2016, p. 27).  2. Infecção hospitalar - Adversidade do evento A infecção hospitalar pode ser considerada, efetivamente, um evento adverso e inesperado? Estaria inserida nas hipóteses de exclusão do nexo de causalidade equiparável aos casos fortuitos ou força maior? Relembre-se que referidas hipóteses excluem o dever indenizatório por prescindirem da conduta humana e do seu elemento volitivo. De modo geral, as infecções hospitalares, e os consequenciais óbitos humanos, são associadas à fragilidade orgânica do paciente, ora pela causa ou condições pretéritas (idade, estágio de uma doença), ora pela impotência do corpo humano não suportar o locus hospitalar, como local necessário à permanência do paciente em estado de convalescença. Dentro dessa clássica divisão binária, pouco se atribui a outros fatos subjacentes à ocorrência de infecções hospitalares no Brasil. Paradoxalmente, a maioria dos casos que geram infecções hospitalares, e os óbitos decorrentes dessa infecção, ocorrem pela ausência de medidas preventivas de cunho sanitário e científico, em desalinho com as diretrizes mundiais da arte de cuidar. Atribuir ao paciente à sua própria finitude, ou agravamento do seu quadro clínico, por infecção hospitalar sob as perspectivas da fragilidade orgânica, idade, ou gravidade da doença ocultam, em verdade, evento que não é adverso e que não é inesperado, quando assumido o risco da sua ocorrência. O locus deve ser seguro e impassível de qualquer espécie de contaminação, já que qualquer espécie de gravame causado ao paciente, que agrave à sua condição, deveria ser intolerável, o que não ocorre na maioria avassaladora dos casos. Pacientes brasileiros têm abreviadas suas vidas por fatores externos que não deram causa. O estado de impotência e vulnerabilidade são incontestáveis à condição de ser e estar paciente. 3. As medidas preventivas de cunho sanitário - Negligência No Brasil, em hospitais públicos e privados, diversas medidas preventivas de cunho sanitário ainda são negligenciadas e se inserem no elenco das causas de infecção hospitalar. Dentro desse gênero podem se citadas à ausência ou incorreção na higienização das mãos dos profissionais de saúde, à ausência e insuficiência de bactericidas e o uso inadequado de antibióticos, ora na eleição da espécie, ora na utilização por tempo excessivo, como fatores que contribuem para que a imunidade orgânica seja reduzida e apta a ser contaminada por novos micro-organismos. Somadas a essas primárias medidas de sanitarização do ambiente hospitalar, constata-se a ausência de controle preventivo com vistas à inocorrência de novos fatos danosos ao paciente. As estatísticas são crescentes e os mesmos fatos são rotineiramente estampados em dados oficiais. Distinguem-se, apenas, o recorte temporal e os pacientes que foram ceifados dos maiores bens jurídicos: a vida e a saúde humana. Em países desenvolvidos, a tecnologia é utilizada para coadjuvar os gestores na administração hospitalar à inibição de fatos relacionados à infecção hospitalar. No Brasil interna corporis, nos ambientes hospitalares, discutem-se obituários, e suas causas, apresentando sazonalmente processo de reestruturação organizacional para eliminação ou redução do gravíssimo problema, que é a infecção hospitalar. Não é demais frisar que o Brasil oscila entre as 9ª e 10ª posições de arrecadação do PIB - Produto Interno Bruto que, em última análise, impõe concluir que se trata de um dos países mais ricos do globo e um dos que de longa data discute-se a abissal desigualdade social e as mazelas do progresso: do clientelismo à corrupção;  dos privilégios à reparação por quotas; da injusta divisão de terras no contexto agrário à iniquidade na causa indígena; na redução da verba destinada ao SUS - Sistema Único de Saúde. Há de se frisar que no ano de 2024 o gasto público com saúde no Brasil representou cerca de 4% do PIB, percentual relativamente estável comparativamente aos anos anteriores, já que a média estabelecida globalmente é de 6,5% do PIB, segundo a OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Quando a temática se relaciona aos índices de infecção, impõe-se apresentar aspectos sociopolítico do Brasil, e ressaltar que essa espécie de mortalidade humana, e de agravamento dos quadros de saúde, não são restritos aos hospitais públicos ou mais precarizados, como a princípio poderia se concluir. Nessa ordem de ideias, assinale-se que em todos as clínicas e hospitais brasileiros são constatados altíssimos índices de infecção hospitalar que culminam com mortes e agravamento da saúde de pacientes de distintas condições etária, grau de enfermidade, higidez orgânica, raça, etnia ou condição social.    4. As medidas preventivas de cunho científico: Negligência              O ato médico é privativo do profissional da saúde, regularmente habilitado, segundo diretrizes e conselho profissional, segundo a lei 12.842, de 10 de julho de 2013, que define as atividades privativas dos médicos e estabelece diretrizes para a atuação profissional na área da saúde. Portanto, cabe a esse profissional, em atenção às respectivas especialidades, o tratamento com a saúde humana, respeitados os limites do exercício da autonomia do paciente. Elencar medidas preventivas de cunho científico à inocorrência de infecções hospitalares não se insere na intromissão do plano de tratamento da saúde humana traçado pelo médico, suprimindo a autonomia profissional, muito menos importa em indesejável interferência na anamnese. Trata-se de diretriz geral, comprovada em campo, que ampara o profissional da saúde como medida adicional de importante observância durante a convalescença do paciente.     Nessa quadra, o uso de antibióticos por período prolongado não só pode produzir resistência bacteriana ao medicamento, como pode também gerar redução na imunidade orgânica fragilizando o paciente para a contaminação por infecção hospitalar. Da mesma forma o uso contínuo, e prolongado, de cateter pode culminar com infecção urinária. Tais fatores podem produzir, respectivamente, o agravamento do quadro clínico do paciente, ora pela impotência do antibiótico no combate bacteriano, ora pela soma de fatores que somado ao fato primitivo potencializa o estado geral do paciente. O mesmo se aplica às distintas pneumonias e sepse, causas comumente verificadas em ambientes de internação hospitalar que, somados à primitiva causa, tornam-se mais potentes e se apresentam como causa preponderante do agravamento da comorbidade, ou do evento morte do paciente. 5. A responsabilidade jurídica no Brasil pelas infecções hospitalares  No Brasil são irrelevantes os casos de responsabilidade jurídica relacionados à infecções hospitalares, ora no âmbito civil, ora no âmbito criminal, quando comparados às taxas oficiais. Numericamente, são casos inexpressivos e incapazes de apresentar qualquer processo de mudança cultural, organizacional ou pedagógica. Some-se a esses fatores a grande dificuldade de contatar a negligência subjacente à infecção hospitalar, ora de cunho sanitário, ora de cunho científico. Mesmo no correlacionamento de dados oficiais, a expressão "infecção hospitalar" não consta na maioria dos casos, ainda que constatada causa externa e completamente dissociada da comorbidade primitiva do paciente. Na hipótese da infecção hospitalar, como evento eminentemente externo, acredita-se que a grande maioria dos casos se circunscrevem na responsabilidade civil objetiva, já que a atividade de risco decorre das condições a que o paciente se encontrou sujeito no afã de se submeter a um tratamento de saúde em locus inapropriado.   O art. 927, caput e parágrafo único do CC em vigor prevê que "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único - Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." Destaque-se que a atividade "naturalmente de risco" se subsumi aos riscos provenientes de tratamento de saúde, eis que as medidas negligenciadas pela administração hospitalar em conjunto, ou não, com os médicos são condutas típicas de assunção de risco, cuja probabilidade de dano é realística, e não improvável. Os danos material e moral serão mensurados com base em aspectos individualizantes do paciente, cujas provas sejam imprescindíveis à constatação da infecção hospitalar como causa de extermínio da vida, ou do agravamento da saúde humana.   No que tange à responsabilização criminal, trata-se de responsabilidade em que o dolo ou a culpa sejam imprescindíveis de serem provados no bojo de uma conduta essencialmente humana, no caso em espécie. Assim, há de ser provada uma conduta dolosa ou culposa do médico ou do gestor hospitalar potencialmente capazes de causar o evento maior, a infecção hospitalar, como causa contributiva da enfermidade, ou causa preponderante e inserta na categoria de ato ilícito da responsabilidade civil. 6. O atraso brasileiro na adoção do padrão adotado por países desenvolvidos   A ausência de métodos rígidos e uniformes de controle e erradicação da infecção hospitalar, aliados a falta de transparência de dados, são causas preponderantes a que não sejam minimizados os impactos dessa espécie de obituário entre os brasileiros. Distintas razões podem ser apontadas à não implementação das melhores técnicas de gestão objetivando reduzir os altos índices de infecção hospitalar. Acredita-se que a principal se relaciona à contenção de custos, uma vez que instituir comitês permanentes, tais quais os preconizados para as medidas de compliance, e investir em tecnologia, principalmente a digital, para aferir controle preventivo, são medidas habitualmente constatadas em países considerados desenvolvidos. 7.  O Estatuto do Paciente - Diploma normativo necessário    É urgente a edição do Estatuto do Paciente no Brasil apto a promover menos dissensos na relação médico-paciente, promovendo maior estabilidade social. Dissídios judiciais não só poderiam ser evitados, como também seriam menos divergentes, minimizando a propositura de recursos especiais perante o STJ, na forma do art. 105 da Constituição da República em vigor. No Estatuto do Paciente os direitos e obrigações dos pacientes restariam elencados, assim como as garantias inerentes à condição de ser paciente, já que essa condição é comum a todas as pessoas, em qualquer estágio da vida, independentemente de qualquer condição externa afeta ao humano. A lei de âmbito nacional publicada pelo Congresso Nacional, no sistema bicameral, com a ulterior sanção presidencial, mediante prévia participação da sociedade civil são etapas imprescindíveis à elaboração do idealizado Estatuto do Paciente numa sociedade democrática, plural, como a brasileira. Medidas de garantia, e transparência, têm espaço nesse importante Estatuto, tais como a previsão de normas de conduta de administradores hospitalares, padrões comportamentais inaceitáveis que configurariam ato ilícito, e mesmo infrações penais, e principalmente, a divulgação de dados para que o paciente tenha pleno conhecimento, e liberdade de contratar a prestação do tratamento de saúde humana em locus cujas condições sejam públicas.    8. Considerações Finais As mortes e agravamento da saúde de pacientes brasileiros por infecção hospitalar em índices alarmantes é realidade inaceitável não só pelas altas taxas, mas principalmente por permanecerem altas e em ascensão na estatística oficial. A não adoção do manancial tecnológico, informatizado, já utilizado em países desenvolvidos como forma preventiva de impedir o desenvolvimento dessa gravíssima infecção, é medida de extrema relevância, que deve ser imediatamente aplicada no Brasil.     Dessa forma, urge a imposição de critérios definidos para a acreditação de todos os hospitais e clínicas brasileiras, sem prejuízo da fiscalização promovida pela Anvisa, assim como seja publicado o Estatuto do Paciente, como forma de serem transparentes os direitos e obrigações do paciente, minimizando conflitos administrativos e judiciais. Considere-se que no Brasil uma das demandas mais expressivas é a relacionada às questões do tratamento da saúde humana, apesar de todos os esforços na composição dos litígios na fase pré-processual. As infecções hospitalares devem ser desmistificadas para a análise da sua real identificação: a causa negligente- sanitária ou científica. Deve-se promover o protagonismo do paciente, não só como figura central em todos os tratamentos da saúde humana, mas por sua indissociável vulnerabilidade. Há se reconhecer, sobretudo, que o paciente deposita credibilidade na ausência de risco do ambiente hospitalar e ali se submete permanecer internado na expectativa de promoção de sua condição físico-orgânica. Definitivamente, o paciente, na grande maioria dos casos, não tem qualquer ingerência acerca das condições sanitárias do locus hospitalar. Há de se interromper o ciclo dos agravamentos de saúde e mortes evitáveis por infecção hospitalar, adotando-se padrões rígidos e permanente política de gestão primando, sobretudo, pela transparência de dados ao paciente, não só pela incidência do código de defesa do consumidor, considerada a relação do tratamento de saúde "sui generis", mas sobretudo pelo paciente figurar como protagonista no iminente, e imperioso, Estatuto do Paciente.   _______ ALBUQUERQUE, Aline. Direitos humanos dos pacientes. Curitiba. Ed. Juruá. 2016. ANDRÉ, Victor Conte (coord). Responsabilidade Médica. Curitiba: Ed. Juruá. 2020. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 13ª edição. São Paulo: Editora Gen/Atlas. 2017. ARMOND, Guilherme. Segurança do Paciente. Rio de Janeiro: Ed. DOC Content.2016. BRUSTOLIN, Leomar Antônio (org). Bioética. São Paulo: Ed. Paulus. 2010. BYK, Christian. Tratado de Bioética. São Paulo: Ed. Paulus. 2015. CIMINO, Valdir. Humanização em Saúde: humanizar para comunicar ou comunicar para humanizar? São Paulo: Ed. Contracorrente. 2016. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO-Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DALVI, Luciano. Curso Avançado de Biodireito. Florianópolis: Editora Conceito. 2008. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil-parte geral. Rio de Janeiro:Ed.Rio.1977. DEODATO, Sergio. Direito da Saúde. Portugal: Ed. Almedina.2012. DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. São Paulo: Ed. Wmfmartinsfontes.2019. MEDICI, Andre Cezar. 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Introdução O STJ, em recente julgamento (REsp 2.172.296/RJ), enfrentou um tema de alta relevância jurídica e social: a responsabilidade de provedores de aplicativos de mensagens privadas diante da disseminação de imagens íntimas de menor, sem consentimento, prática comumente associada à chamada pornografia de vingança. A expressão, portanto, chama a atenção para um fato grave. O caso analisado envolvia o WhatsApp, cuja defesa repousava na alegação de impossibilidade técnica de remover o conteúdo, em razão da criptografia ponta a ponta. Contudo, a 3ª turma foi além da literalidade da legislação e da superficial invocação da impossibilidade técnica, para reafirmar a necessidade de concretude na proteção das vítimas, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes, pessoas em peculiar condição de desenvolvimento. Sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, o Tribunal reconheceu que a proteção da dignidade e da intimidade da vítima não pode ser frustrada por justificativas genéricas baseadas em supostas limitações tecnológicas, sobretudo quando inexiste prova pericial que comprove, com rigor técnico, a impossibilidade de cumprimento da ordem judicial. Mais do que isso, o julgado destacou que, ainda que a exclusão direta do conteúdo fosse inviável por questões estruturais do serviço, caberia ao provedor adotar outras medidas eficazes para mitigar o dano, como o bloqueio ou a suspensão das contas envolvidas, especialmente quando possível a identificação do usuário infrator por meio do número de telefone vinculado à conta. Rechaçando o paradoxo da segurança digital, em que quanto mais avançado o sistema de segurança, mais vulneráveis ficam as vítimas dos abusos, o STJ deixou claro que o Marco Civil da Internet deve ser interpretado à luz da função protetiva do Direito, especialmente no que diz respeito à dignidade infantojuvenil. Além disso, houve importante manifestação da Corte quanto à tentativa da empresa recorrente de desistir do recurso após a distribuição, conduta vista como potencial estratégia para evitar a formação de jurisprudência. Em razão do relevante interesse público, da originalidade do tema e da necessidade de uniformização nacional da jurisprudência, a 3ª turma decidiu não homologar a desistência, firmando-se como leading case. O julgamento consolida uma orientação que alia responsabilidade digital e efetividade dos direitos da personalidade, contribuindo para o fortalecimento de uma jurisprudência comprometida com a proteção das vítimas e com a adaptação do Direito às novas tecnologias e, no caso ora em análise, à luz da proteção de crianças e adolescentes. Conclusão Bruno Miragem leciona que pela interpretação do Marco Civil da Internet, em especial atenção ao art. 21, está inserida a responsabilidade subsidiária e subjetiva do provedor1, quando este "[...] deixa de promover a indisponibilização do conteúdo."2. O mestre ressalta, ainda, que a disponibilização do conteúdo é, por si próprio, concausa para o dano a um terceiro. Ensina, também, que a regra geral que exige do interessado que recorra ao Poder Judiciário se trata de um ônus grave, considerando a velocidade que que a propagação da informação pela internet ocasiona no sentido da disseminação do conteúdo ofensivo.3 O julgamento do REsp 2.172.296/RJ representa um avanço na tutela da dignidade humana no ambiente digital, ao afirmar que provedores não podem se esquivar da responsabilidade sob o pretexto de limitações técnicas não comprovadas. Ao priorizar a proteção das vítimas, especialmente de crianças e adolescentes, o STJ reafirma o compromisso do Direito com a efetividade dos direitos da personalidade frente aos desafios das novas tecnologias. A condenação ora em análise nos inspira às lições de Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto quando nos ensinam sobre o princípio da prevenção, ou seja: "Evitar e mitigar um dano se converte em questão central e maior desafio para a responsabilidade civil do século XXI."4.Contudo, não foi o que fez o réu conforme as linhas que aqui traçamos. Referências bibliográficas 1 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 478. 2 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 478. 3 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 479. 4 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 51. _______ BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.172.296/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado: em 04/2/2025. Disponível aqui. MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024.
A ampliação da dimensão multifuncional da responsabilidade civil tem por base que ela deve ser capaz de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social. Para além da abordagem do estudo da responsabilidade civil das escolas e dos pais pelos atos dos filhos menores, importante realçar o acesso à educação. Nas excelentes observações do ministro Luis Edson Fachin1, "cabe recordar que, em todo campo do saber, há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não liberta". E se não fosse só por estes ensinamentos, Paulo Freire2 conclui que "a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa". E não é por outra razão que o Direito contribui em estimular o regime democrático, sobrepujando o que há na teoria para enfrentar a prática. Não há democracia, isonomia e Justiça social sem o acesso pleno à educação para só assim confirmar o quão isso esperado pelo legislador constituinte. Como asseverou Norberto Bobbio3 "uma das maiores virtudes da democracia é permitir-se espaço até mesmo para aqueles que nela não creem". E nessa apuração do regime democrático e o enfrentamento da prática nos Tribunais verifica-se que o que ocorre no cotidiano dos estudantes, em especial dos menores do ensino fundamental e médio, são as profundas mudanças da relação colégio (professor) e alunos. Há um enorme esforço para impedir prejuízos na formação de personalidade por conta de ilícitos dentro da escola. É notório que a responsabilidade do estabelecimento privado de ensino, - com o CDC - não se apresenta como responsabilidade indireta do educando, mas sim, como responsabilidade objetiva direta, com base no art. 14 do CDC. O dever do colégio (fornecedor) de prestar serviços seguros a seus alunos (consumidores) funda-se no fato do serviço e não no fato do preposto ou de outrem. Assim, para se aferir a responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor, é necessário a verificação da existência de conduta (comissiva ou omissiva), do nexo causal e do dano alegado, sem se adentrar sobre elemento subjetivo. É certo que durante o período em que o aluno se encontra sob os cuidados da escola e dos educadores há um intervalo do exercício efetivo da guarda, da autoridade dos pais. Por esta razão os atos danosos praticados por alunos a outros alunos dentro das escolas remetem à responsabilidade indenizatória da escola. Todavia, será que deveria caber somente à escola o pedido indenizatório quando ela não contribuiu para o incidente lesivo diante do que nos pauta a realidade voraz que vivenciamos hoje nos padrões de comportamento de nossas crianças e adolescentes? Passamos a análise. Não há como não reconhecer o enorme avanço que a sociedade contemporânea experimentou nas últimas décadas, em especial no que tange à realidade tecnológica, a necessidade constante (em especial nos Tribunais) da objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano. Emerge-se a necessidade de se identificar os riscos, a relevância de suas funções e os seus instrumentos de atuação. Não há dúvida de que há insuficiências - para efetiva tutela de direitos - da função exclusivamente reparatória da responsabilidade civil, principalmente quando os danos atingem direitos fundamentais, cujos interesses jurídicos dificilmente são recompostos ao estado anterior ao dano. Nesse compasso, o Projeto do Código Civil vem preenchido com as expectativas de ampliação da "tutela efetiva da vítima" com forte aplicação da função preventiva com foco em combater prática de comportamentos considerados intoleráveis na sociedade. Para Nelson Rosenvald4 tais medidas possuiriam um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica".  Nesse sentido o STJ5 há tempos tem assinalado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis". É por isso que a proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com forte inspiração na função preventiva. Sem dúvida esse novo olhar seguramente dará foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela (negativa) do direito. A abordagem trazida pela proposta legislativa é a de que a responsabilidade civil intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva (tutela positiva), sem que isso represente o não acesso ao Judiciário quando há lesão. Nas palavras de Norberto Bobbio6, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrario sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa". Sem se olvidar do espaço ocupado pela tradicional função reparatória, a responsabilidade civil preventiva consiste no redimensionamento do instituto, com o desígnio de proteger a integralidade dos direitos, prevenindo tanto a violação desses direitos, quanto a eventual ocorrência de danos. De início, o caput do art. 927-A do anteprojeto ampara o dever de prevenção ao dispor que "todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los". Vê-se claramente a função preventiva posto impor medidas de evitar danos considerados previsíveis, de mitigação de seu alcance e de não agravamento do dano, na hipótese de já ter se realizado (art. 927-A, parágrafo 1º, do anteprojeto). E nesse diapasão o efeito didático - como alertado por Rosenvald - a responsabilidade civil das escolas e pais deve-se ver pela ótica preventiva também, pois assim proporcionar-se-á maior segurança jurídica e atenderia aos anseios atuais que orientam o instituto a um sistema multifuncional. Prescreve o anteprojeto no art. 932 que "responderão independentemente de culpa, ressalvadas as hipóteses previstas em leis especiais: I - os pais, por fatos dos filhos, crianças e adolescentes, que estiverem sob sua autoridade [...] VI - ressalvada a incidência da legislação consumerista, os donos de estabelecimentos educacionais e de hospedagem, pelos danos causados por seus educandos e hóspedes, no período em que se encontrarem sob seus cuidados e vigilância". Atentem-se que a responsabilidade dos pais continua sendo objetiva e a expressão companhia foi retirada da proposta legislativa por não ser apropriada, afinal, não é a proximidade física que invoca exclusivamente responsabilidade dos pais por danos provocados pelos filhos menores. De forma pragmática, não há dúvida que mesmo os pais mais cuidadosos não estão presentes em todos os momentos do dia do filho (e nem deveria ser). A tarefa dos deveres educativos é árdua e, mesmo que ajam adequadamente num padrão geral de conduta de educadores/preceptores de pessoas, não estão livres de más condutas dos filhos. Rosenvald7 apontando jurisprudência argentina destaca que "o conceito de vigilância ativa, que não significa vigilância constante, mas educação constante cuja tarefa abrange toda uma vida, e implica entre outras tarefas, reprimir as más inclinações dos filhos, redirecionando-as". No julgado citado pelo autor, o tribunal argentino menciona que há presunção de defeito na educação à vista do fato cometido. Em ato contínuo e não menos responsável as escolas também respondem objetivamente por danos causados por alunos no período em que eles estejam aos seus cuidados. De fato, as escolas - como prestadoras de serviços - estão sujeitas ao CDC e responderão independente de culpa (art. 14 CDC). Os estabelecimentos de ensino respondem independente de culpa pelos danos causados por seus funcionários ou dos alunos causem a terceiro, só não aplicável às universidades cujos alunos já possuírem discernimento e são responsáveis pelos seus atos. De fato, as escolas são responsáveis por coibir práticas lesivas (mesmo no atual Código) podendo ser responsabilizadas pela omissão incluindo no período de intervalos de aulas sendo típico caso de aplicação da tutela preventiva, ou seja, impõe-se evitar lesão e, por isso, respondendo a escola e, subsidiariamente os pais dos menores agressores. E aqui encontra-se o fundamento deste artigo, se por um lado as escolas assumem o risco da atividade, por outro lado essa responsabilização pode se mostrar excessiva, pois os professores e direção das escolas não podem suprir posturas agressivas e hostis, resultados de educação de pouco zelo dos pais no todo ou em parte, já que traços de personalidade perversa pode haver independente das ações dos pais. Isentar os pais da responsabilidade diante do dano causado mesmo no ambiente escolar é transferir (muitas das vezes) integralmente a responsabilidade pelos filhos para a escola e é medida extrema sem relação causal. Os danos causados pelos alunos podem (e quase sempre é) advir não de antecedentes imputáveis à escola, mas (também) aos pais. Assim, veja-se: os conceitos educação e escolarização parecem iguais, mas não são. A educação é um processo contínuo de desenvolvimento do ser humano, possibilitando a formação e integração dele como cidadão na sociedade e isso começa com os pais, pois eles são os principais responsáveis pela formação dos filhos como pessoa. Por outro lado, a escolarização é um conjunto de conhecimentos obtido por meio da escola, sendo o professor o responsável por ensinar. Educar é mais amplo e que também envolve escolarização. O papel dos pais nesse processo de formação pessoal não pode ser transferido para a escola. A instituição de ensino e os professores não assumirão as responsabilidades que são dos pais, algo que certamente seria inviável. As crianças observam o comportamento e atitudes dos pais e das mães e, mesmo sendo potencialmente os tidos como "melhores comportamentos" há o viés da personalidade da pessoa e que é (também) formada na infância. A prática fundada dos pais em valores humanos é o alicerce para construção de seres humanos respeitosos. Além de impor limites, ensinar a ter respeito, reconhecer e corrigir erros, os pais também devem marcar presença na vida dos filhos, assumindo o papel de incentivadores da criança ou adolescente. O que não quer dizer que com isso se afasta a responsabilidade das escolas por danos provocados pelos alunos às vítimas enquanto estão sob seus cuidados, mas retirar o direito à ação regressiva delas contra os pais é deixar à cargo das escolas o dever de educar difere de seu projeto, que é a escolarização. Em algumas cenas da série da Netflix "Adolescência" mostra o quão é difícil detectar o malefício que sofre o filho ou que ele seja o ofensor ou pior ainda transpor a barreira e labirinto da internet. Em um dos diálogos tocantes da série a mãe do adolescente misógino e que sofria bullying traduz a dor e angústia de não conseguir se infiltrar no impermeável mundo virtual: "Nunca dizia nada, a gente também fez ele". Sob o ângulo geracional, o diálogo entre pais e filhos é hoje mais assíduo e sincero que no passado, mas a diferença é que antes não havia a internet com seus símbolos, idioma próprio e um pacto silencioso. Parece-nos que para as crianças e adolescentes recebam a melhor educação e escolarização, é necessário que tanto a escola quanto a família atuem em conjunto, mas isso não quer dizer que mesmo com tudo isso, não existe situação em que eles (pais) não sejam mais educadores dos seus filhos. A função educacional dos pais é imperativa, eles sempre serão educadores em razão da sua posição enquanto referência primeira e imediata. A escola e pais (em conjunto) devem estar atentos e agir com rapidez para que alunos reflitam sobre suas atitudes e questões de gênero, preconceitos, masculinidade. Apoio para identificar a desinformação, romper a inércia e adentrar aos quartos. São passos na direção certa, porém insuficientes da envergadura do desafio difícil de mecanismos para garantir espaço seguro nas redes, talvez a adoção da Austrália de proibir o acesso às redes a menores de 16 anos pode ser uma alternativa8 Parece que não se pode excluir uma responsabilidade dos pais junto com a escola quando o menor mesmo dentro da desta realiza atos ofensivos e ligados aos traços de personalidade. Estudo e análise do caso concreto é que fará a composição da indenização. O caminho para solução de indenizações em razão de danos causados por menores é um desafio colossal para nossa doutrina e jurisprudência e, por isso só as circunstâncias de cada caso poderão esclarecer a proporcionalidade das responsabilidades jurídicas para pais e escolas mesmo que o menor esteja sob os cuidados da escola. É por esta razão que o anteprojeto do código civil faz um diálogo com as disposições do CPC (art. 497, parágrafo único CPC) relacionadas à tutela inibitória e de remoção do ilícito. A responsabilidade civil preventiva, ao atuar por meio dos instrumentos inibitórios, cumpre o dever jurídico de diligência e proteção, com o propósito de que os indivíduos, em suas interações, não infrinjam direitos alheios ou causem danos a eles e isso inclui os pais com ainda que estejam os filhos na escola quando as ações dos filhos ultrapassam a medida de educação que deveriam ter em casa. Amparado nesse propósito, o relatório do anteprojeto sustenta a introdução das funções preventiva (art. 927-A) e pedagógica (§ 3º, artigo 944-A) com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais. Por fim, não há outro referencial para prevenção: só agindo de forma, ética, comprometida com o outro e com o mundo, com o cuidar é que se pode imaginar a preservação da própria civilização. O cuidado constitui a categoria central do novo paradigma mundializado e globalizado, assumindo dupla função: de prevenção a danos futuros e regeneração de danos passados. ___________ 1 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, p.3. 2 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 42. 3 BOBBIO, Norberto.In OLIVEIRA JÚNIOR, O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2000. 4 ROSENVALD, Nelson. Curso direito 2022, p. 430 5 Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão. 6 BOBBIO, Norberto. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 24. 7 ROSENVALD, Nelson. Curso direito de direito civil. 2022, p. 552. 8 Disponível aqui. Acesso em 4/5/25. _____________ Bibliografia MORAES, Ana Beatriz; LOPES, Carlos Eduardo. A Função Preventiva da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2020. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma releitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2017. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book. SILVA, João Carlos. Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. As penas privadas no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
A complexidade crescente do universo digital e seus impactos nas relações sociais impõem desafios constantes ao direito, especialmente no que tange à identificação e reparação de danos. Em um cenário marcado pela onipresença das redes sociais, a responsabilidade civil dos provedores de aplicações por conteúdos gerados por terceiros emerge como um dos debates de grande relevância, tangenciando até mesmo riscos ao princípio democrático. O marco civil da internet (lei 12.965/14) constituiu um marco na regulamentação da Rede no Brasil. Apesar de estabelecer princípios importantes e enunciar direitos no meio digital, a opção legislativa para a responsabilização dos provedores de aplicação pelo conteúdo gerado por terceiros, nos termos do art. 19 e ss., ocupa o centro destes debates. A regra geral estabelece que a responsabilização civil do provedor por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros está condicionada à existência de uma ordem judicial específica, que deve conter a identificação clara do conteúdo ilícito pelo respectivo endereço eletrônico (URL), e ao descumprimento dessa ordem em prazo razoável.1 A lógica declarada por trás dessa opção legislativa no marco civil foi a de resguardar a liberdade de expressão e evitar a censura prévia. Ou seja, supostamente, buscar-se-ia evitar retiradas indevidas de conteúdos unilateralmente pelos provedores. Contudo, essa sistemática desequilibra a proteção à vítima, uma vez que, para que o provedor seja responsabilizado civilmente pela omissão em retirar o conteúdo, exige-se uma ordem judicial em que se forneça o link exato do conteúdo lesivo. Especialmente em se tratando de um ambiente cujas informações circulam em tempo real e, em pouco tempo, os danos podem se tornar irreversíveis, especialmente em casos do que ficou conhecido como "viralização". Em linhas gerais, viralização consiste na rápida difusão de determinados conteúdos na Internet, especialmente em redes sociais. Segundo lecionam Daniel Dias, Nicolo Zingales et alli, o uso em larga escala de algoritmos de impulsionamento, típico dos grandes provedores de aplicações, popularmente chamados de big techs, elevam o risco de danos decorrentes da viralização de conteúdos lesivos, razão porque seria necessária a construção de um sistema de responsabilidade progressiva capaz à altura de seus potenciais danosos.2 Entretanto, a 4ª turma do STJ, em recente julgamento do recurso especial 1.969.219-SP (informativo 848/25)3, não tomou em conta tal peculiaridade e reforçou a necessidade da indicação da URL específica para a remoção de conteúdo por provedores de busca. A decisão reiterou a tese de que a imposição de remoção genérica sem a indicação de URLs seria uma "obrigação impossível de ser cumprida". Embora o acórdão trate especificamente de provedores de busca, distinguindo-os dos provedores de conteúdo e hospedagem, onde se alocam as aplicações mais comuns em redes sociais, sublinham-se os problemas gerados pela suposta primazia da exigência da URL no entendimento da Corte para a configuração da responsabilidade do provedor. É precisamente neste ponto que reside uma das principais críticas ao modelo adotado pelo marco civil, reafirmado pelo Tribunal da Cidadania. Essa exigência de indicação da URL, embora compreensível no contexto de proteção genérica da liberdade de expressão e suposta garantia contra a censura, torna-se um desproporcional para a vítima. Em especial quando se tem em mente conteúdo ofensivo, inverídico ou discriminatório, os quais se replicam rapidamente na Internet, dificultando ou tornando inviável que a vítima identifique e monitore cada novo link onde a violação ocorre.4 Nesse sentido, o enunciado 554 da VI Jornada de Direito Civil do CJF - Conselho da Justiça Federal, dispõe: "Independe de indicação do local específico da informação a ordem judicial para que o provedor de hospedagem bloqueie determinado conteúdo ofensivo na internet".5 A ratio do enunciado baseia-se na necessidade de tutela da dignidade humana do usuário. A rapidez com que as informações se propagam e se replicam torna a exigência da URL específica inócua na prática, frustrando a efetividade da tutela jurisdicional e dificultando sobremaneira a mitigação em favor da cessação dos danos. Ademais, a lógica do art. 19 do marco civil parece tratar as violações de forma atomizada, como incidentes individuais. No entanto, o cenário atual da internet é marcado pela propagação em massa de conteúdos tóxicos: perfis falsos, discurso de ódio, desinformação ("fake news"), etc. Esses fenômenos não são meros "desvios patológicos de conduta", mas sim, muitas vezes, fruto de ações coordenadas, milícias digitais e uma "economia paralela" que subvertem o ambiente informacional e prejudicam o próprio debate democrático. Nesses casos, a ilicitude do conteúdo é, muitas vezes, flagrante e sistêmica. Para esses tipos de conteúdo flagrantemente ilícitos, também chamados de  conteúdos tóxicos ou potencialmente perigosos,6 a rigidez da exigência da notificação judicial com URL específica, prevista no art. 19 do MCI, mostra-se inadequada. Inspirado pelo modelo de responsabilidade objetiva e a lógica de proteção da vítima e mitigação de riscos que permeiam o Código de Defesa do Consumidor e a evolução do sistema de responsabilidade civil para além da culpa, perquire-se acerca da possibilidade de os provedores de aplicações serem responsabilizados civilmente se não tomarem as providências para torná-lo indisponível em um prazo razoável, independentemente de ordem judicial específica e, em muitos casos, da indicação precisa da URL. Trata-se de uma exceção necessária à regra geral do art. 19, §1º, do MCI. Afinal, é crescente o coro doutrinário no sentido de que os grandes provedores de aplicações possuem os meios técnicos capazes de executar um poder de moderação sobre o conteúdo que hospedam e, portanto, permitir que a "imunidade" baseada na falta de URL específica continue contribuindo para um ambiente online hostil e potencialmente perigoso. Apesar das preocupações sobre se tal  implicaria censura prévia generalizada, a prática é que a imunidade aumenta o espaço de discricionariedade da plataforma, fortalecendo seus poderes privados e, portanto, os riscos de imposição de censura privada. Daí porque uma interpretação do art. 19 à luz da Constituição Federal e do CDC, especialmente diante de violações a direitos da personalidade e danos causados por conteúdos tóxicos, poderia levar a uma flexibilização da exigência da URL específica para as redes sociais, na linha do enunciado 554 do CJF. A decisão do STJ no REsp 1.969.219-SP, ao reafirmar a necessidade da URL para provedores de busca, embora distinta dos provedores de conteúdo/hospedagem, alerta para a rigidez interpretativa em prol da imunidade dos provedores. Mas não é surpresa, dado o posicionamento consolidado da Corte.7 É crucial que a doutrina e a jurisprudência, especialmente o STF ao analisar a constitucionalidade do art. 19 do MCI, considerem a particularidade e a gravidade dos conteúdos tóxicos. Para Fernando Henrique de O. Biolcati, na melhor interpretação do art. 19 do MCI: [...] haver a imposição normativa de obrigação de controle de conteúdo aos provedores de redes sociais, consentânea ao tipo de atividade por eles exercida, cada vez menos neutra ao se ampliarem os instrumentos de personalização do uso e de massificação no compartilhamento dos materiais, com o incremento anormal dos riscos.8 O autor ainda aponta que a falha nesta obrigação de controle poderia "gerar a responsabilização civil, em caso de conteúdos claramente ilícitos e potencialmente danosos, bem como de remoção indevida de conteúdos, com foco no vício na prestação do serviço".9 Este modelo enfatiza que, dada a natureza da atividade dos provedores, que se tornam menos neutros e aumentam os riscos com a personalização e massificação do conteúdo, até mesmo um dever de controle se impõe, e seu descumprimento pode acarretar responsabilidade civil. A tutela da dignidade humana e a proteção da sociedade contra os males da desinformação e do ódio online exigem que se repense a distribuição do sistema de responsabilidade civil. A vítima de um perfil falso ou de discurso de ódio replicado centenas de vezes não pode ser obrigada a travar uma batalha judicial individual por cada link. Nessa esteira, destaca-se que o STF retomou o julgamento que discute a constitucionalidade do art. 19 do MCI e a possibilidade de responsabilização dos provedores de aplicação por conteúdos inseridos por terceiros. O julgamento não foi concluído, uma vez que foi suspenso pelo pedido de vista do ministro André Mendonça. Votaram até agora os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Destaca-se a proposta no voto do ministro Dias Toffoli, ao posicionar-se pela inconstitucionalidade do art. 19 do MCI e a adoção da sistemática do art. 21 como marco para a responsabilização das redes sociais por conteúdos ilícitos ou ofensivos. Ou seja, as redes poderiam ser responsabilizadas caso não tomassem providências após o recebimento de notificação extrajudicial, retornando-se a um sistema semelhante ao adotado pela jurisprudência anteriormente à promulgação do marco civil da internet.10 Em essência, deve-se ter em mente que a relação entre provedores de aplicações que oferecem serviços digitais e seus usuários configura relação de consumo. O responsável pela "plataforma", ao veicular ofertas de produtos e disponibilizar sua infraestrutura tecnológica, assume a posição de fornecedor de serviços. Se a lei especial, no caso o marco civil, estabeleceu um suposto regime de responsabilidade diverso do CDC, a harmonização entre ambos é fundamental e o STF tem a oportunidade de analisar o tema sob a ótica da proteção da dignidade dos usuários, consumidores. Referindo-se ao STJ, o ministro Tóffoli, em seu voto,  destaca a necessidade de posicionamento cauteloso sobre a relação entre marco civil da Internet e o CDC, uma vez que não são diplomas legais em rota de colisão.11 A atuação econômica dos provedores de aplicações deve corresponder a um dever geral de cuidado, cautela e diligência, um dever de segurança e transparência para com os respectivos ambientes virtuais e seus usuários. Como temos nos posicionado, espera-se que o STF tenha sensibilidade em estabelecer um regime em que se harmonizem a liberdade de iniciativa dos grandes provedores, as big techs, e direitos fundamentais dos consumidores no Brasil, evitando a sobreposição de poderes privados de gigantes conglomerados empresariais em prol até mesmo da soberania nacional e da força normativa da Constituição. ______________ BIOLCATI, Fernando Henrique de O. Internet, Fake News e Responsabilidade Civil das Redes Sociais. (Coleção Direito Civil Avançado). São Paulo: Grupo Almedina, 2022. E-book. ISBN 9786556276410. Disponível aqui. Acesso em: 16/3/25. BRASIL. Conselho Da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado n. 554. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses: Edição n. 224: Marco Civil da Internet III - Lei n. 12.965/2014. Brasília, 27 de outubro de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.969.219-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 24/3/2025, DJEN 28/3/2025, noticiado em BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência n. 848, de 29/4/25. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do Ministro Dias Toffoli no Recurso Extraordinário 1.037.396-SP. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. DIAS, Daniel Pires Novais; BELLI, Luca; ZINGALES, Nicolo; GASPAR, Walter; CURZI, Yasmin. Plataformas no Marco Civil da Internet: a necessidade de uma responsabilidade progressiva baseada em riscos. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 1-24, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 8/5/25. LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil e redes sociais: retirada de conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio, fake news e milícias digitais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na Internet. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. ____________ 1 Acerca do tema, MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na Internet. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 431. 2 Cf. DIAS, Daniel Pires Novais; BELLI, Luca; ZINGALES, Nicolo; GASPAR, Walter; CURZI, Yasmin. Plataformas no Marco Civil da Internet: a necessidade de uma responsabilidade progressiva baseada em riscos. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 1-24, 2023. p. 18. Disponível aqui. Acesso em: 8/5/25. 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.969.219-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 24/3/2025, DJEN 28/3/2025, noticiado em BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência n. 848, de 29 de abril de 2025. 4 Para maiores aprofundamentos, V. o nosso: LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil e redes sociais: retirada de conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio, fake news e milícias digitais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. p. 101 e ss. 5 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado n. 554. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. 6 Cf. LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil e redes sociais: retirada de conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio, fake news e milícias digitais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. p. 121 e ss. 7 Consolidado na Jurisprudência em Teses Edição n. 224: 1. Não é possível obrigar os provedores de pesquisa virtual a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde estiver inserido o conteúdo ilícito/ofensivo. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Jurisprudência em Teses: Edição n. 224: Marco Civil da Internet III - Lei n. 12.965/2014. Brasília, 27 de outubro de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 30/4/25. Este entendimento é fundamentado, entre outros, nos seguintes julgados: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1848036/SP. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05/05/2022. DJe 05/05/2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1593249/RJ. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 09/12/2021. DJe 09/12/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1616664/GO. Relator: Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/05/2021. DJe 27/05/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1771911/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/04/2021. DJe 26/04/2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1754214/SP. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 03/08/2020. DJe 03/08/2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1599054/RJ. Relator: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 11/05/2017. DJe 11/05/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 730119/RJ. Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 09/06/2016. DJe 09/06/2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rcl 5072/AC. Relator: Ministro Marco Buzzi. Relator p/ Acórdão: Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 11/12/2013. DJe 04/06/2014. 8 BIOLCATI, Fernando Henrique de O. Internet, Fake News e Responsabilidade Civil das Redes Sociais. (Coleção Direito Civil Avançado). São Paulo: Grupo Almedina, 2022. E-book. ISBN 9786556276410. Disponível aqui. Acesso em: 16/3/25. p. 202-203. 9 Id. p. 202-203. 10 Por outro lado, Toffoli elenca um rol taxativo de conteúdos que levarão à responsabilidade civil objetiva das plataformas caso o material não seja excluído, independentemente de notificação extrajudicial ou decisão judicial: (a) crimes contra o Estado Democrático de Direito (CP, art. 296, parágrafo único; art. 359-L, art. 359-M, art. 359-N, art. 359-P, art. 359-R). (b) atos de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260, de 2016. (c) crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou à automutilação (CP, art. 122). (d) crime de racismo (Lei nº 7.716, de 1989, arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C). (e) qualquer espécie de violência contra a criança, o adolescente e as pessoas vulneráveis, incluídos os crimes previstos nos arts. 217-A a 218-C do Código Penal, com redação dada pelas Leis nº 12.015, de 2009, e nº 13.718, de 2018, e na Lei nº 8.069, de 1990, e observada a Lei nº 13.257, de 2016, e a Res. CONANDA nº 245, de 2024. (f) qualquer espécie de violência contra a mulher, incluindo os crimes da Lei nº 14.192, de 2021. (g) infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, nos termos do art. 10 da Lei nº 6.437, de 1977. (h) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A). (i) incitação ou ameaça da prática de atos de violência física ou sexual (CP, art. 29 c/c arts. 121, 129, 213, 215, 215-A, 216-A, 250 e 251 c/c art. 147). (j) divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que levem à incitação à violência física, à ameaça contra a vida ou a atos de violência contra grupos ou membros de grupos socialmente vulneráveis. (k) divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral (Res. nº 23.610/2019, arts. 9-C e 9-D). BRASIL. Voto do Ministro Dias Toffoli no Recurso Extraordinário 1.037.396-SP. Disponível aqui. https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2024/12/05210439/RE-1037396-VOTO-RELATOR.pdf. Acesso em: 30 abr. de 2025. 11 Id. p. 19.
No presente artigo, busca-se analisar a fundamentação da sentença judicial que arbitrou indenização em favor da atriz global Glória Pires, em razão de uso indevido de sua imagem, caracterizado pela aplicação de meme em propaganda. Em meados do mês de fevereiro do ano de 2025, o nome da atriz global Glória Pires foi repercutido nos mais diversos meios de notícia, mas dessa vez por um fato não relacionado à sua dramaturgia. Trata-se da divulgação da sentença exarada nos autos de processo judicial movido por ela em face da empresa "ME PASSA AÍ EDIÇÕES, PRODUÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA S/C" e seu suposto proprietário. Em síntese, a decisão proferida pelo juízo, vinculado ao TJ/RJ, determinou o pagamento de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) em favor da atriz, a título de indenização pelos danos morais causados por utilização indevida da imagem da atriz. Isso posto, cabem considerações jurídicas sobre a notícia no que tange à responsabilidade civil, ponto central do processo. Para tanto, convém tratar da utilização da imagem da celebridade. Da leitura do decisum, é possível verificar que a imagem da global foi utilizada em formato de meme pela empresa, que reproduziu trecho famoso da participação da atriz na cobertura do Oscar de 2016 realizada pela emissora Globo, notadamente pelo uso da frase: "não sou capaz de opinar". Diante disso, o pensamento menos atento pode ser induzido a acreditar que o reconhecimento do dever de indenizar decorreu do tom jocoso ou pejorativo que um meme eventualmente carrega, que poderia ter atingido à honra da celebridade. Porém, da leitura da decisão é possível notar que o reconhecimento da utilização indevida tem no seu núcleo dois outros fatores principais, quais sejam: a ausência do consentimento e a finalidade comercial da veiculação da imagem. Prova disso é o fato de que a decisão aplicou como base da sua fundamentação a súmula 403 do STJ, que estabelece: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais". No que tange ao uso indevido de imagem, é necessário pontuar que o dever de indenizar está previsto no art. 5°, inciso X, da CF/88: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;    (grifos nossos) De mais a mais, também é ilícito o enriquecimento à custa de outrem sem justa causa, conforme reza o art. 884 do CC: Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Assim sendo, a suposta violação constatada pela aplicação de um meme sem autorização, para além da evidente mácula que pode causar à imagem da global ao ser associada a um produto que desconhece ou, no mínimo, não referenda, atinge diretamente direito personalíssimo de imagem, sob o qual a ninguém é lícito locupletar-se. Diante disso é que, apoiado no entendimento fixado pelo STJ, o eminente julgador entendeu pela aplicabilidade do dano in re ipsa no caso concreto, dispensando o requisito da comprovação do dano para configurar o dever de indenizar. Sobre a figura do dano in re ipsa, oportuno destacar que sua existência não está prevista em nenhum Diploma Legal integrante do Ordenamento Jurídico brasileiro, sendo, sobretudo, uma figura oriunda da jurisprudência, com destaque para a produção do Tribunal da Cidadania.1 Objetivamente, o dano in re ipsa é usualmente reconhecido nos casos em que a ação ou omissão apreciada, por si só e pelos elementos que lhe cercam naturalmente, em razão do bem jurídico que ofende, seus reflexos e natureza, tem o condão de gerar o dever de indenizar, sendo o dano causado deduzido pela mera utilização da razão comum, consoante fundamentação do acórdão proferido durante o julgamento do REsp 1.327.773-MG2, sob a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. Isso posto, sendo a demandante pessoa que trabalha e se mantém financeiramente pela exploração direta da imagem, torna-se ainda mais fácil a compreensão da relevância da proteção do bem jurídico e dos danos que o ato ilícito discutido, em si, pode causar. Por fim, conclui-se com a certeza de que a indenização arbitrada em favor de Glória Pires teve como fato ensejador não o meme, diretamente, mas o possível enriquecimento ilícito de terceiro por meio da utilização de sua imagem em plataforma comercial sem o devido consentimento ou contraprestação. _____________ 1 Criado pela Constituição Cidadã de 1988, o STJ também é conhecido como "Tribunal da Cidadania". 2 Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 403. Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fi ns econômicos ou comerciais. Diário da Justiça: Segunda Seção, Brasília, DF, 24/11/2009. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025. 4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025. 5 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025. 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.327.773-MG (Quarta Turma). Acórdão. Recurso Especial. Propriedade Industrial. Uso indevido de marca de empresa. Semelhança de forma. Dano material. Ocorrência. Presunção. Dano moral. Aferição. In re ipsa. Decorrente do próprio ato ilícito. Indenização devida. Recurso provido. [...] Recurso especial provido. Data de Julgamento: 28/11/2017, Data de Publicação: DJe 15/02/2018, Brasília-DF. Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2025.
Como ensina Sérgio Cavalieri, a seara da responsabilidade civil é das mais férteis, podendo desaguar no direito público e privado; área essa cujos domínios são ampliados "na mesma proporção que se multiplicam os inventos, as descobertas e outras conquistas da atividade humana" (CAVALIERI FILHO, 2007, p. xxv). Uma das atividades humanas recentes são as novas tecnologias digitais associadas às telecomunicações, despontando novos arranjos econômicos e sociais, cada vez mais alinhados à transmissão de informações (Doneda, 2006). É a denominada sociedade da informação (Castells, 2020). No Brasil, por exemplo, desenvolveu-se o Livro Verde, tratando da sociedade da informação (BRASIL. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 2000). Outro autor que já analisava, numa perspectiva econômica, essa sociedade da informação, foi Jeremy Rifklin, ao denominar como a era do acesso; supera-se a era da acumulação, do ter, para a era da informação, do conhecimento (Rifklin, 2001, p. 13). E agora despontam-se as tecnologias disruptivas. E uma delas é a inteligência artificial.  A IA toma decisões, mediante atuação de algoritmos e grande volume de dados; e a aplicação dela avança para potencializar funcionalidades em equipamentos, blockchain, drones, smartgrids (redes elétricas inteligentes), robótica. Por exemplo, a robótica, ao ser utilizada na saúde, desponta debates e desafios na responsabilidade civil (sobre o tema, consultar Nogaroli, 2023). Ressalte-se que a IA mereceu, recentemente, análise no relatório da UNCTAD (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2025, p. 153). Dito documento reconhece a necessidade de os indivíduos buscarem indenizações decorrentes de danos relacionados à IA; mas o relatório pondera que, se por um lado, essas preocupações conduzem para temas relacionados aos padrões de segurança, confiabilidade e ética, por outro, ressalta o Relatório de que ditas preocupações podem desviar a atenção e os investimentos no âmbito dos modelos de IA. Ou seja, o Relatório pontua a necessidade de equilíbrio entre ditas preocupações, mas, reforçamos que o enfoque deve ser a proteção da vítima. Os desafios da interpretação jurídica em matéria de responsabilidade civil decorrente da IA sugerem vários questionamentos: i. Qual o limite da imputação deste dever de indenizar? ii. A quem imputar o dever de indenizar? iii. Ao desenvolvedor da IA? iv. Àquele que dela se utiliza para expandir seus negócios? v. Àquele que maneja e alimenta a IA com dados? vi. Àquele que exerce a programação? vii. Ou a própria IA mediante sua personificação, conforme ela passe a ser uma pessoa jurídica? Diante desses questionamentos, inegável que a IA passa a exigir novos deveres de conduta, revelam-se novos danos, novos riscos e decisões mais e mais imprevisíveis. Neste sentido, propõem articularem-se IA e responsabilidade civil. 1. Da sociedade industrial para sociedade do conhecimento e tempos de IA Conforme dito, se já despontava a era do acesso, em virtude da internet, agora, a era digital incrementa com as tecnologias disruptivas e desafios para o Direito. E uma delas é a inteligência artificial. IA é a tecnologia aparelhada de dispositivos que permite simular a "capacidade humana de raciocinar, perceber, tomar decisões e resolver problemas" (Vilela, 2022); e essas decisões estão associadas a atuação de algoritmos. Com machine learning, a IA pode acumular experiências próprias assemelhadas ao desenvolvimento cognitivo humano e de aprendizados continuados, permitindo que ela passe a tomar decisões sem interferência humana. E a IA ganha mais sofisticação e complexidade, conforme ocorre o deep learning e as redes neurais artificiais; e nesse contexto, as decisões da IA podem se tornar imprevisíveis. E como fica a proteção das vítimas diante dos danos que possam surgir em virtude da decisão ou manejo da IA que conduziu para uma decisão imprevisível? Nesse cenário é que se despertam novos desafios no direito diante dos novos conflitos. Registre-se que a história nos ensina de como transformações sociais e econômicas despontaram conflitos que repercutiram no direito. É só retomarmos a Revolução Industrial. Nela ocorreu produção (fordismo) e consumo em larga escala, transporte mais rápido e eficiente. Estas situações, por sua vez, despertaram mais e mais acidentes, de modo que a responsabilidade civil passou a ter um novo elemento vinculatório para imputação ao dever de indenizar, denominada objetiva, afinal, a imputação baseada na culpa não correspondia mais eficientemente para que as vítimas alcançassem alguma indenização. Dada a importância da responsabilidade objetiva, ela passou a ser incorporada no ordenamento jurídico. Ressalte-se que ela já constava no decreto 2.681/1912 (lei das estradas de ferro). Mas, ela avançou para constar em matéria de dano ambiental (art. 14, § 1º, da 6.938/1981); na responsabilização do fornecedor em situações de danos nas relações de consumo (arts. 12, 14, da 8.078/1990-CDC); nas relações privadas (arts. 927, § único; 931, do CC). Em que pese haja outras situações que a legislação adota a responsabilidade objetiva. Só que agora, o desafio é a IA. É suficiente a responsabilidade civil objetiva para promover a tutela do cidadão que sofre danos em virtude de uma IA? Podemos dar pistas a partir de alguma reflexão, que tende a avançar mais e mais, conforme as situações de riscos se tornem ou simples ou complexas para melhor proteção da vítima. 1.1.   IA e responsabilidade civil Partimos da seguinte situação fática inusitada e real ocorrida ao final de 2020, envolvendo um robô aspirador de pó, da iRobot. Dito aparelho foi adquirido pela consumidora; e esta autorizou, no ato da compra que, o dito aspirador de pó pudesse realizar gravações e captura de imagens do interior da casa dela, e depois transmiti-las para uma central de dados para alimentar a IA, cujo intuito era o robô aspirador assimilar mais e mais informações (imagens, por exemplo), para tornar o equipamento mais eficiente. Só que, sem que a dona da casa soubesse, dito robô aspirador começou a filmar e capturar imagens dela no interior da sua casa; e numa dessas filmagens constou a dona da casa sentada no vaso sanitário do banheiro da sua casa; dita imagem foi captada indevidamente; porém, para agravar, aquelas imagens foram transmitidas e vazadas na rede mundial de computadores (Guo, 2022). Nesta perspectiva, há o dever de indenizar em favor da moradora diante do dano extrapatrimonial experimentado por ela ante a captura indevida da sua imagem? Diversos sistemas de inteligência artificial - sobretudo os que utilizam técnicas de IA generativa, machine learning e deep learning (aprendizado de máquina e aprendizado profundo) - operam de maneira opaca, assemelhando-se à verdadeiras "caixas-pretas". Conforme Taylor, interações entre o código e dados de treinamento reverberam um cenário de opacidade, haja vista que as bases do processo decisório automatizado não estão disponíveis nem mesmo para seus próprios programadores (Taylor, apud Franzolin, 2025). Explica Alves e Andrade (2022) que, se o algoritmo é uma caixa-preta, da qual não se pode depreender o processo preditivo interno, será um grande desafio determinar quando, como e pelos quais motivos o algoritmo errou, informações sem as quais a atribuição de responsabilidades tornam-se tarefas eminentemente espinhosas. No entanto, o que é certo é que a responsabilidade civil, conforme o dano sofrido pelo cidadão ou o dano que possa advir, o intérprete não pode, apenas, se concentrar na função reparatória; mas, a responsabilidade civil também deve assumir uma função preventiva, ou seja, antes do dano ser causado pela IA. Afinal, os institutos e categorias devem ser interpretados de modo funcionalizado, conforme os fins que se pretende. Ademais, a responsabilidade civil pode envolver diferentes momentos da IA, conforme seja imputado o dever de indenizar em favor da vítima. O que se destaca é de que, tanto mais elaborada e arrojada for a IA na sua capacidade de tomar decisões e ser autodidata, mais riscos de imprevisibilidade podem ocorrer em detrimento dos indivíduos, conforme as decisões sejam danosas em maior ou menor intensidade; e nesse sentido, aquele que projeta, desenvolve, programa, dá assistência técnica deverão adotar mais e mais deveres de conduta, como dever de acompanhamento nas decisões, dever de investimento continuado da IA, dever de informação, dever de investimento em pesquisas sobre a IA de modo permanente, dentre outros. De qualquer modo, o dever de segurança e o dever de proteção da pessoa humana deverá ser a bússola que orientará a responsabilidade civil e deverá ser manejada pelo intérprete conforme a função mais adequada ao caso concreto, podendo ser reparatória, preventiva, punitiva. Por outro, quanto aos deveres a serem exigidos daqueles que lidam com IA, precisa ser considerado também políticas públicas para que haja investimentos na dita tecnologia. O objetivo é assegurar uma proteção eficaz e proporcional às vítimas de eventuais danos, independentemente da natureza da relação jurídica envolvida. Algumas reflexões jurídicas acerca da imputação ao dever de indenizar já são debatidas. Em matéria de consumo, há a responsabilidade objetiva. E também é possível abordar a incidência ou não do instituto do risco do desenvolvimento em matéria de IA. Responsabilidade civil pelo risco do desenvolvimento significa "riscos não cognoscíveis pelo mais avançado estado da ciência e da técnica no momento da introdução do produto no mercado de consumo e que só vem a ser descoberto após um tempo de uso" (CALIXTO, 2004, p. 175), cuja descoberta, prossegue o autor decorre do posterior avanço cientifico. Para contextualizar, é só pensar no carro autônomo que causa acidente, cuja situação jamais havia sido prevista. Nesta hipótese, Felipe Medon traz em destaque o instituto do risco do desenvolvimento, de modo que este não pode ser arguido como excludente de responsabilidade (2020, p. 215) pelo fabricante. Já numa relação interempresarial, no âmbito societário, Frazão destaca a responsabilidade civil subjetiva, quando envolve de o administrador utilizar IA e causar danos captando o ensinamento da autora, então, para exemplificar, caso o administrador manejasse a IA para estabelecer algumas distinções entre os próprios acionistas minoritários, e despertassem algum danos em relação a eles, deve perquirir se houve ou não obediência do administrador ao dever de diligência. Enfim, de todos os desafios envolvidos em matéria de responsabilidade civil na IA, é possível sustentar que por meio do método do diálogo das fontes, pode ser buscadas soluções no próprio ordenamento. A dúvida é se há ou não necessidade e lei específica para lidar com a responsabilidade civil no manejo da IA. De qualquer modo, vale ponderar o Projeto de Lei, conforme ela propõe, no seu texto, uma parte a qual regula a responsabilidade civil no âmbito da IA. 2. Sobre o PL 2.338/23 e critérios orientadores para definição do regime de responsabilidade civil. No Brasil, o PL 2.338/23, que institui o marco regulatório da inteligência artificial, propõe um conjunto de diretrizes para orientar o desenvolvimento, implementação, uso e a fiscalização desses sistemas. Vale ressaltar que o referido PL, de autoria senador Rodrigo Pacheco, foi aprovado pelo Plenário do Senado no dia 10/12/24 e, atualmente está em tramitação na Câmara dos Deputados. Os arts. 35 a 39 do PL 2338/23 compõem o "Capítulo V", dedicado especificamente à responsabilidade civil dos fornecedores de sistemas de inteligência artificial. No art. 35, estabelece de que, no caso do fornecedor que utiliza sistemas de IA causa danos, tratando-se de relações de consumo, seguirá as regras do CDC. No entanto, pelo próprio método do diálogo das fontes, o estatuto consumerista já incidirá nas situações que envolvem relações de consumo. Aplica-se a lógica da responsabilidade objetiva, em que não há necessidade de comprovação de culpa do fornecedor, bastando a existência do defeito no produto ou serviço e o nexo causal com o dano sofrido. Mas é inegável, que também é possível debater a responsabilidade pelo risco de desenvolvimento. Já, o art. 36 trata dos casos em que os sistemas de IA são utilizados fora da esfera de consumo, ou seja, em contextos civis gerais. Nessas circunstâncias, a responsabilidade será regida, principalmente, pelas normas do Código Civil de 2002, o que pode envolver a responsabilidade subjetiva (com exigência de comprovação de culpa), bem como a objetiva, a depender do caso concreto. No entanto, também consta no Código Civil, a responsabilidade pelo risco da atividade (art. 927, § único) O parágrafo único do art. 36 representa um avanço (ou retrocesso) significativo ao estabelecer critérios que orientam a definição do regime de responsabilidade civil aplicável em situações concretas envolvendo danos decorrentes do uso de IA. Qual seja: o nível de autonomia do sistema de IA e seu grau de risco, reconhecendo que, quanto mais autônomo e mais complexo, mais agravados e mais intensos devem ser os deveres de proteção, de segurança a serem adimplidos pelos operadores ou desenvolvedores do sistema de IA. Também é preciso considerar a situação existencial  de cada um dos envolvidos diante de empresas que se valem de machine learning e deep learning. Ainda, é preciso destacar que o manejo de IA por alguém pode agravar a situação de vulnerabilidade de grupos já vulnerabilizados, conforme haja assimetria informacional. Logo, torna-se essencial reformular e expandir os instrumentos jurídicos voltados à proteção das vítimas, especialmente em razão da recorrente assimetria de poder entre usuários e os desenvolvedores ou fornecedores dessas tecnologias. Subsequentemente, o art. 37 prevê que o juiz poderá inverter o ônus da prova (ou seja, transferir a obrigação de provar os fatos para o agente responsável pela IA) quando a vítima for hipossuficiente (em condição de desvantagem econômica, técnica ou informacional) e quando o funcionamento da IA dificultar excessivamente a prova por parte da vítima. Em síntese, o referido artigo visa evitar que a complexidade técnica das tecnologias de IA sirva de escudo para obstar o direito da vítima dela alcançar alguma indenização. O art. 38 estabelece uma diretriz relevante ao tratar da responsabilidade civil no contexto do ambiente de testagem regulada, conhecido como sandbox regulatório. Conforme o mencionado dispositivo, os participantes desse ambiente continuam sujeitos à responsabilidade por eventuais danos causados a terceiros durante a fase de experimentação, nos termos da legislação vigente. Logo, o referido artigo reforça que o sandbox não configura uma zona de isenção total de responsabilidade, mas sim, um instrumento que busca conciliar inovação tecnológica, desenvolvimento seguro e garantia de segurança jurídica. Por fim, o art. 39 assegura a vigência de regimes de responsabilização previstos em legislações específicas, como as normas do direito ambiental, lei das SA's, CDC. Ou seja, o porvir da legislação sobre IA atuará de modo complementar, reafirmando o diálogo entre as fontes normativas vigentes. Considerações finais Em síntese, o acelerado desenvolvimento da inteligência artificial demanda uma atuação responsiva do Direito, de modo a garantir a proteção da pessoa humana, mesmo diante de situações de danos imprevisíveis ocasionados pela IA. Assim, a responsabilidade civil dos atos praticados pela IA configura-se como um campo em constante desenvolvimento, sendo necessária uma abordagem equilibrada, ante os novos danos. Enquanto isso, segue os desdobramentos do PL 2.338/23, atualmente, na Câmara dos Deputados, cuja aprovação poderá contribuir para melhor dispor sobre a IA no Brasil. ___________ ALVES, Marco Antonio Sousa; ANDRADE, Otavio Morato de. Da "caixa-preta" à "caixa de vidro":  o uso da explainable artificial intelligence (XAI) para reduzir a opacidade e enfrentar o enviesamento em modelos algorítmicos. Revista direito público, v. 18, n. 100 (2022). BRASIL. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Sociedade da informação no Brasil : livro verde [Organizador: Tadao Takahashi]. Brasília : Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000. Disponível aqui. Acesso 20/4/25. BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2338/23. Dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial com base na centralidade da pessoa humana. Brasília. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento. Rio de Janeiro, Renovar, 2004. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7ª Ed. São Paulo, Atlas. FRANZOLIN, Cláudio José; MONTEIRO, Giovanna Voorn; LAURENTIS, Lucas De. A (in) existência de um direito à explicação de decisões automatizadas. Themis: Revista da Esmec, v. 23, n. 1, p. 65-91 (2025). Disponível aqui. Acesso em: 9/4/25. FRAZÃO, Ana. Responsabilidade civil de administradores de sociedades empresárias por decisões tomadas com base em sistemas de inteligência artificial. FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin [Coordenadoras]. Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019, 481-521 GUO, Eileen. A Roomba recorded a woman on the toilet. How did screenshots end up on Facebook? MIT Technology Review, 19 dez. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 6/4/25 MARQUES, Guilherme Raso. Responsabilidade civil na era da inteligência artificial. Revista da Advocacia Pública Federal, v. 8, n. 1, p. 58-80, 18 dez. 2024. MEDON, Felipe. Inteligência artificial e responsabilidade civil: autonomia, risco e solidariedade. Salvador, Editora JusPodivm, 2020. MELO, Gustavo da Silva. Inteligência Artificial e responsabilidade civil: uma análise do anteprojeto do Marco Legal da Inteligência Artificial e do Projeto de Lei 2338/2023. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 49-65 (Jan.-Abr./2024). Disponível aqui. Acesso 20/4/25). NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil medica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2023. TEPEDINO, G.; DA GUIA SILVA, R. Desafios da inteligência artificial em matéria de responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil, [S. l.], v. 21, n. 03, p. 61, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 6/4/25. VILELA, Camila Maria de Moura. Inteligência artificial e big data: o processamento de dados como instrumento de uma inclusão sociodigital. Branco, Sérgio; MAGRANI, Eduardo (Coordenadores). Inteligência artificial: aplicações e desafios. Rio de Janeiro, Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio Rio de Janeiro (ITS/Obliq), 2002 [Ebook].
A prática jurídica tem sido progressivamente influenciada pelas inovações tecnológicas, notadamente pela adoção de sistemas de inteligência artificial como ChatGPT, Grok, Gemini e Claude, capazes de gerar conteúdo textual com surpreendente similaridade ao discurso humano. Nessa conjuntura, muitos operadores do Direito, em especial os advogados, têm recorrido a tais ferramentas para a elaboração de petições, recursos e demais peças processuais, buscando aumentar a produtividade e a precisão no manejo de informações jurídicas. É inegável que tais sistemas de inteligência artificial propiciam um manancial extenso de informações, facilitando a pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência de modo a permitir que o advogado se dedique mais à estratégia processual. Todavia, não se pode olvidar que toda produção de conteúdo deve ser rigorosamente revisada pelo profissional, haja vista a possibilidade de equívocos, distorções ou omissões significativas, para evitar a ocorrência do que tem sido chamado pela doutrina especializada de "alucinação". E, embora eu não seja adepto do termo, que me parece sensacionalista e incoerente, devido à incapacidade desses sistemas de, efetivamente, pensar1 -, parece-me inequívoco que, sob o prisma da responsabilidade técnica, é imprescindível que o advogado mantenha postura diligente na seleção e validação das informações fornecidas pelos sistemas de inteligência artificial. Qualquer um desses sistemas opera a partir de lógica heurística pura, robustecida por parâmetros e hiperparâmetros orientados por modelos transformadores (transformer-based models), o que lhes permite contrastar cada palavra da construção textual a partir de comparação ampla baseada em contexto, que demanda grande poder computacional, mas resulta em conteúdo bem escrito e deveras persuasivo. Por essa razão, não há confiabilidade quanto à extração de conteúdo literal, para citação direta, o que pode fazer com que sejam sugeridos entendimentos jurisprudenciais inexistentes, colacionados excertos doutrinários que conflitam com as fontes originais ou mesmo apresentadas previsões normativas desconexas do texto legal em vigor, culminando em grave prejuízo à defesa dos interesses do cliente. Aliás, a situação é tão alarmante que os sistemas de IA, por vezes, podem fundir parágrafos de diferentes autores ou decisões, criando um híbrido que não corresponde fielmente a nenhuma das fontes. Essa "quimera de texto" passa despercebida ao olhar desatento, mas pode suscitar graves questionamentos quando identificada em juízo. A função social do advogado, como prevista no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (lei 8.906/1994), exige que este atue de modo a promover a ordem jurídica justa, observando a ética e da profissão. Consequentemente, o uso de sistemas como ChatGPT, Grok, Gemini ou Claude não exime o profissional de responder por eventuais incorreções ou deturpações, em consonância com o que preceitua o art. 34, inciso XIV, do referido Estatuto, que define como infração disciplinar a conduta de "deturpar o teor de dispositivo de lei, de citação doutrinária ou de julgado, bem como de depoimentos, documentos e alegações da parte contrária, para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa". Esse dispositivo reforça a ideia de que cabe ao advogado a verificação acurada do conteúdo que subscreve, ainda que tenha sido gerado por sistema de IA, pois, ao exercer seu múnus, tem o dever de assegurar a correção e a fidedignidade dos argumentos e citações apresentados nas peças jurídicas que oferece em juízo, com sua assinatura. Retoma-se a noção de accountability, que, nesse sentido, representa uma dimensão ética e jurídica pela qual o profissional se vê obrigado a prestar contas quanto à qualidade e veracidade das informações fornecidas ao Poder Judiciário. O uso de sistemas de inteligência artificial não exclui essa obrigação, pois a essência do exercício da advocacia permanece vinculada ao compromisso com a veracidade dos fatos e com a integridade do ordenamento jurídico2. Nesse sentido, a falta de zelo na verificação das citações e referências oferecidas por sistemas de inteligência artificial pode caracterizar a citada infração ético-disciplinar, posto que o advogado seria o canal que legitima, perante o Judiciário, a manifestação textual produzida. De fato, o profissional que ignora essa necessidade de avaliação acurada incorre em potencial violação do art. 34, XIV, do Estatuto da OAB.  Noutro norte, a perspectiva teleológica do processo civil, orientada pela busca da verdade e pela resolução efetiva das lides, não se concilia com a negligência na checagem das fontes tecnológicas. O advogado que despreza esse cuidado incorre em contradição com a finalidade essencial do processo, que é pacificar o conflito de interesses de forma justa e célere. Assim, a prudência na contratação e no uso de sistemas de IA exige do advogado uma postura de permanente atualização e crítica, questionando a procedência de cada sugestão gerada e rechaçando aquelas que não encontrarem base sólida na realidade fática ou no direito aplicável, uma vez que somente assim se harmoniza o avanço tecnológico com o compromisso ético. Por essa razão e, tendo em vista que a higidez do processo judicial pressupõe que as partes atuem com lealdade e boa-fé, a utilização irrefletida dessas ferramentas sem qualquer controle de veracidade pode caracterizar litigância de má-fé, nos moldes do art. 80 do CPC, que prevê que há má-fé processual quando a parte altera a verdade dos fatos (inc. I) ou procede de modo temerário (inc. V). Também é de rigor a menção à possibilidade de configuração de ato atentatório à dignidade da justiça, tipificado pelo art. 77 do CPC em situações como a prática de inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso (inv. IV), que é caracterizada por atos inúteis ou desnecessários ou pela apresentação de defesa ou formulação de pretensão sem fundamento3. Nos dois casos, se o advogado, valendo-se das respostas incorretas de um sistema de inteligência artificial, apresentar argumentos e provas sem a mínima cautela investigativa quanto à sua autenticidade, estará sujeito às multas respectivas, que poderão ser cobradas nos próprios autos do processo (art. 777 do CPC). Sob a ótica da responsabilidade civil, o advogado que negligencia a supervisão do conteúdo gerado por sistemas de inteligência artificial também se expõe à reparação de danos causados ao cliente, pois o controle de qualidade do material gerado por sistema de IA torna-se um imperativo inegociável. Assim, o profissional precisa elaborar e executar protocolos de revisão que incluam a verificação de fidelidade às fontes originais, a compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro e a conformidade com os valores éticos da função advocatícia. Quando se fala em accountability, sublinha-se a importância de que cada ato do advogado possa ser rastreado e justificado, especialmente em matérias sensíveis nas quais qualquer deturpação do texto legal, doutrinário ou jurisprudencial pode acarretar consequências graves, seja para o cliente, seja para a própria credibilidade do Judiciário, seja para a reputação do profissional. A adoção precipitada de sistemas de IA, sem a devida compreensão de seus limites, pode acabar por iludir o profissional menos experiente, que passa a confiar cegamente na ferramenta. Por esse motivo, é fundamental compreender que, mesmo com algoritmos sofisticados, a IA não substitui o raciocínio jurídico pautado na hermenêutica e na prudência. Nesse novo contexto de atuação orientada por sistemas ditos "generativos", exige-se que cada passo do profissional seja respaldado em uma fonte legítima e verificável, afastando a possibilidade de que se subverta a lógica do direito com informações desconexas ou adulteradas, uma vez que o advogado é a última trincheira na garantia de que o conteúdo apresentado em juízo encontre fundamento seguro na lei, na doutrina e na jurisprudência. Nesse sentido, a conduta do advogado ao se valer dessas ferramentas deve espelhar a prudência dos bons profissionais, aqueles que compreendem a tecnologia como instrumento de auxílio, mas nunca de substituição do discernimento ético-jurídico. Tal postura envolve uma deferência inegociável aos preceitos normativos e o escrutínio rigoroso das sugestões fornecidas pelos sistemas de IA. Sem esse compromisso, a prática forense se converte em um exercício meramente mecanicista, no qual a qualidade argumentativa e a profundidade técnica cedem lugar a reproduções automáticas e, muitas vezes, carentes de segurança jurídica. À advocacia, não basta o volume de produção textual; impõe-se a qualidade do raciocínio jurídico e a confiabilidade das fontes citadas. Considere-se, outrossim, que a multiplicação de litígios baseados em textos gerados por IA pode levar à saturação do Judiciário com peças de menor densidade, comprometendo a efetividade da justiça. Este fenômeno se agrava se o conteúdo for turvo ou confuso, dificultando a compreensão do magistrado e ensejando maior morosidade no deslinde dos processos em razão da necessidade de contínua checagem de cada artigo de lei, excerto de doutrina ou ementa de julgado que estiver transcrito em uma peça processual. A responsabilidade civil por danos causados ao cliente, aludida anteriormente, pode se concretizar em hipóteses nas quais a utilização indevida desses sistemas leve à formulação de teses jurídicas temerárias. O cliente, ao ver frustradas suas expectativas, poderia alegar falha na prestação de serviços e buscar responsabilizar o advogado pelos prejuízos provenientes de uma demanda mal sustentada.  Como se sabe, a derrota em litígio processual, por si só, não gera responsabilidade civil do advogado, pois a advocacia não se confunde com a garantia de resultado. No entanto, se restar demonstrado que a derrocada advém de erros grosseiros, baseados em informações fornecidas pela IA sem qualquer conferência, o advogado pode vir a responder pelos prejuízos diretos sofridos pelo cliente4. Nesse âmbito, a possibilidade de derrota em litígio processual agrava ainda mais as repercussões negativas dessa prática antiética, pois, além dos danos pecuniários inerentes ao insucesso, há o descrédito profissional e a deterioração do relacionamento com o patrocinado, muitas vezes irreversível. A confiança outrora depositada no patrono fica irremediavelmente abalada diante de erros que poderiam ter sido evitados com verificação mínima. A análise da culpa profissional, neste caso, ganha contornos ainda mais evidentes quando a conduta faltosa está associada à desídia na supervisão de um sistema que o próprio advogado decidiu empregar. O risco inerente à tecnologia deve ser calculado e gerenciado, sob pena de recaírem sobre o profissional as consequências jurídicas e disciplinares de sua omissão ou imperícia. Com efeito, a fronteira entre o produtivismo alavancado por sistema de IA e a autonomia profissional do advogado requer delimitação precisa. Enquanto os sistemas podem oferecer suporte na pesquisa e na sistematização de informações, não devem jamais se sobrepor ao discernimento humano, que permanece o principal garantidor da legitimidade e da justiça das pretensões levadas a juízo. A dimensão ética, pois, torna-se inseparável da dimensão técnica na medida em que o profissional que não domina suficientemente a tecnologia, tampouco se dispõe a controlar seu resultado, coloca em risco o interesse do cliente e a qualidade do processo judicial.  A formação continuada torna-se, então, um pressuposto indispensável para a adoção responsável desses sistemas. Nesse sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de seus órgãos de classe, possui papel fundamental na orientação e conscientização dos inscritos quanto ao uso responsável de tecnologias em questão5. Promover cursos, seminários e publicações a respeito da matéria é uma forma de assegurar que os profissionais conheçam os riscos e saibam precaver-se das armadilhas oriundas de tais ferramentas, inclusive para cumprimento do comando normativo inserido na Política Nacional de Educação Digital (lei 14.533/23), que prevê como estratégia prioritária, em seu art. 3º, §1º, inciso II, a "promoção de projetos e práticas pedagógicas no domínio da lógica, dos algoritmos, da programação, da ética aplicada ao ambiente digital, do letramento midiático e da cidadania na era digital". De outro lado, os magistrados, cientes de que o número de peças produzidas com auxílio de IA cresce exponencialmente, devem atentar-se ao exame minucioso das citações e dos dispositivos legais supostamente aplicados, exigindo sempre a comprovação fidedigna das fontes. Assim, atua-se de forma preventiva contra eventuais deturpações.  Caso haja constatação de discrepâncias ou de incoerências, deve o advogado proceder à devida correção, rejeitando o uso de informações que não encontre respaldo. A parcimônia no uso de sistemas de IA também é recomendável, pois o excesso de dependência pode embotar a análise crítica e conduzir a soluções simplistas, divorciadas das nuances próprias de cada caso concreto. Nesse sentido, é altamente recomendável que o advogado mantenha registros das verificações efetuadas, documentando a pesquisa de fontes e o confronto dos dados para que, caso seja questionado, possa demonstrar que agiu com diligência. Tal medida de precaução protege o profissional, evidenciando sua boa-fé e seu compromisso com a retidão de seu trabalho. Sob a lente ética, tal adulteração é ainda mais crítica, visto que atenta contra a integridade intelectual da produção acadêmica e do próprio precedente judicial. Ao advogado compete assegurar a autenticidade de qualquer citação, fazendo referência clara aos autos, às páginas, aos trechos efetivamente transcritos, evitando, assim, qualquer acusação de manipulação ou falsidade. Cabe salientar que o dever de veracidade não é mero formalismo, mas reflete a própria razão de ser do processo judicial. O juiz, ao julgar, baseia-se nas alegações das partes e nas provas que lhe são apresentadas. Se estas se mostram manipuladas ou errôneas, a prestação jurisdicional fica comprometida, afetando, em última análise, a confiança social na Justiça. Assim, o zelo ético do advogado abrange não somente a fidelidade no relato dos fatos, mas também a correção das fontes jurídicas empregadas para fundamentar suas teses.  Diante desse cenário, a prudência recomenda que o advogado instrua seu cliente a respeito das limitações e possibilidades dos sistemas de IA clarificando que, em última instância, ele mesmo será o revisor final de tudo o que for produzido. Esse ato de transparência se coaduna com a noção de accountability, fortalece a confiança na relação advogado-cliente e diminui a probabilidade de disputas posteriores acerca de erros no conteúdo gerado6. De igual modo, para reforçar a integridade da atuação, o advogado pode adotar práticas de revisão colaborativa, envolvendo outros profissionais do escritório, ou mesmo contratando serviços de consultoria especializada em checagem de dados e citações. Esse método sistematizado de validação reduz as chances de que passe despercebida uma deturpação textual. __________ 1 MALEKI, Negar; PADMANABHAN, Balaji; DUTTA, Kaushik. AI Hallucinations: A Misnomer Worth Clarifying. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 09 abr. 2025. 2 Eis o alerta de Susskind: "I implore you, tomorrow's lawyers, to take up the mantle of the benevolent custodians; to be honest with yourselves and with society about those areas of legal endeavour that genuinely must be preserved for lawyers in the interests of clients". SUSSKIND, Richard. Tomorrow's lawyers: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2017. p. 195. 3 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Processo Civil. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 168. 4 PIRES, Fernanda Ivo. Responsabilidade civil e o "robô-advogado". In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 264-265. 5 Segundo Nalini, "o estudo incessante, o aprofundamento conceitual, o domínio do vernáculo e de mais de um idioma, a familiaridade com as TCIs - Tecnologias de Comunicação e Informação, a formação interdisciplinar, a vontade de vencer desafios, a capacidade de se adaptar a novas realidades, são valores agregados ao diploma". NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 656. 6 Permanece atual o primeiro mandamento da advocacia, sublinhado por Couture: "Estuda - O direito está em constante transformação. Se não o acompanhas, serás cada dia menos advogado". COUTURE, Eduardo. Os mandamentos do advogado. Trad. Ovídio A. Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1979. p. 21.
Introdução A recente minissérie britânica Adolescência, disponibilizada pela Netflix, tem chamado a atenção não apenas pelo enredo instigante, mas pela abordagem sensível e realista das complexas interações entre juventude, sistema de justiça e sociedade. A trama acompanha Jamie Miller, um menino de 13 anos preso sob acusação de assassinar uma colega de classe. O episódio inicial apresenta uma cena impactante: agentes policiais invadem sua residência em uma cidade inglesa, ordenam que seus familiares se deitem no chão e vasculham o local até encontrá-lo - um garoto franzino, deitado na cama, segurando um ursinho de pelúcia. Com armas apontadas diretamente para si, Jamie é detido sob o olhar atônito e desesperado de seus pais e irmã. Embora ambientada no Reino Unido, a série revela similaridades estruturais com o sistema de justiça infantojuvenil brasileiro. O choque inicial não decorre apenas da brutalidade da cena, mas da vulnerabilidade exposta: um adolescente sendo confrontado, de forma abrupta, com um aparato repressivo projetado para adultos. A narrativa transcende a questão da culpabilidade de Jamie e se concentra no impacto psicológico e social que sua detenção provoca na família. Esse deslocamento do foco investigativo para as consequências emocionais e institucionais permite uma reflexão profunda sobre as fragilidades dos sistemas de proteção infantojuvenil e os desafios enfrentados quando um adolescente se vê imerso no sistema de justiça criminal. A minissérie levanta questões essenciais sobre o papel da sociedade na tutela dos direitos de crianças e adolescentes. Qual deve ser a resposta estatal diante de um crime cometido por um adolescente? Como a sociedade pode atuar na prevenção da delinquência juvenil e na reabilitação de jovens infratores? Esses questionamentos dialogam diretamente com a doutrina da proteção integral, consagrada no art. 227 da CF/88 e regulamentada pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. O ordenamento jurídico brasileiro reconhece que crianças e adolescentes encontram-se em peculiar condição de desenvolvimento, o que exige do Estado, da família e da sociedade uma atuação conjunta para garantir seus direitos fundamentais. Além disso, a neurociência e a ciência do desenvolvimento humano demonstram que o cérebro adolescente ainda está em formação, tornando-o mais impulsivos e suscetíveis à influência do meio social, mas também altamente responsivos às medidas socioeducativas que priorizem a ressocialização. Adolescência explora esse processo ao evidenciar a influência do ambiente escolar, das redes sociais e da cultura digital na formação da identidade juvenil. O acesso irrestrito a conteúdos online e a exposição a dinâmicas sociais excludentes podem amplificar vulnerabilidades e impactar o comportamento dos jovens, tornando premente a necessidade de políticas públicas que abordem esses fatores de risco. Para pais e responsáveis, a série se revela perturbadora, suscitando reflexões sobre as lacunas na rede de proteção infantojuvenil. A obra não apenas dramatiza uma situação extrema, mas problematiza a fragmentação das responsabilidades entre diversos atores na garantia da proteção integral de crianças e adolescentes. Nesse contexto, este artigo propõe uma análise crítica dos desafios enfrentados pelo sistema jurídico brasileiro na tutela da criança e do adolescente, investigando como falhas institucionais e a ausência de uma abordagem sistêmica podem agravar essa vulnerabilidade e comprometer a efetividade dos seus direitos fundamentais. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
O uso de novas tecnologias se traduz como uma necessidade contemporânea. O próprio CFM estabelece no Código de Ética que é dever do médico desenvolver suas atividades conforme a melhor técnica e tecnologia disponível em benefício do paciente. Nesse cenário, o uso de inteligência artificial representa uma conquista inegável de como as novas tecnologias podem colaborar com o exercício da medicina. A resolução CFM 2.381/24 normatiza a elaboração e a clareza dos documentos médicos, considerando a importância da comunicação eficaz entre médicos e pacientes para garantir a autonomia dos assistidos. Dentre os aspectos centrais trazidos pela norma, o que se observa é a preservação da autonomia do paciente e garantia de um processo de consentimento esclarecido eficaz e legítimo. Observando a norma citada, o CFM buscou regulamentar os diversos tipos de documentos médicos como laudos, relatórios, pareceres, solicitação de exames, atestados e declarações. Ocorre que, apesar do detalhamento dos tipos de documentos existentes, o Conselho Federal de Medicina não tratou das formas de expedição e potencial limites para o exercício da IA em sua construção. Logo, não há hoje uma orientação clara sobre o uso da IA, em que pese haver uma preocupação do CFM sobre sua incorporação no cotidiano médico, visto que foi criado o Departamento de Inteligência Artificial do CFM, coordenado pelo conselheiro Federal Jeancarlo Cavalcante - 3º vice-presidente e representante do Rio Grande do Norte, e ter criado uma pesquisa sobre o uso de inteligência artificial na medicina1.  O ponto que se propõe discutir é o dever de transparência e extensão da responsabilidade do médico pelo uso de inteligência artificial na elaboração de documentos e na construção do processo diagnóstico. Conforme estudo desenvolvido por Densen, o conhecimento médico demorava 50 anos para dobrar em 1950, caindo para 3,5 anos em 2010 e apenas 73 dias em 20202, de forma que o médico precisaria dedicar 29 horas por dia para absorver todas as novas informações3. Dentro desse cenário, o domínio tecnológico e uso da inteligência artificial tem o poder de reduzir verdadeiras via crúcis e também reduzir o trabalho burocrático realizado pelo médico. Ocorre que o uso da tecnologia e o volume de informação tratado levanta três grandes questões:  Qual o limite para uso da IA na medicina? Qual a responsabilidade pelo uso da IA na medicina? Há um dever de informação sobre o uso da IA? Sobre os questionamentos formulados, é prudente destacar que a IA é uma ferramenta à disposição do profissional da medicina. Não substitui o médico, é apenas um instrumento que deve ser incorporado ao exercício profissional sem representar uma substituição do profissional físico pelo profissional "virtual". Assim como um exame médico tradicional, o médico deve se guiar pelo seu raciocínio clínico combinado com os achados durante o processo diagnóstico. Enquanto instrumental, o uso da IA deve ser supervisionado pelo médico, uma vez que, ao fim e ao cabo, a responsabilidade pelo ato profissional não pode ser transferida para uma inteligência artificial. A IA não pode ser usada como muleta para o médico, mas como instrumento complementar do ato médico.  Considerando que o ato médico continua sendo praticado pelo profissional, a IA enquanto instrumento, assim como o médico, não tem o dever de acertar o diagnóstico, porém a IA, diante das informações disponibilizadas, não pode alucinar ou, caso alucine, o profissional tem o dever de supervisionar para evitar vieses e manifestações esdrúxulas. Apesar dos avanços rápidos, a IA ainda tem limitações, podendo falhar em reconhecer certos padrões, interpretar informações que dependem de contexto e levar em conta fatores emocionais que podem também influenciar a saúde do paciente e seu diagnóstico4. Manifestações médicas, com o auxílio ou não da IA, devem estar dentro de um escopo do possível para fins de afastar a responsabilidade profissional. Ou seja, deve ser demonstrado um raciocínio clínico coerente, ainda que não gere conclusões verdadeiras. Nesse sentido, Reá-Neto destaca que: Entretanto, o uso do raciocínio lógico não é uma garantia de conclusões verdadeiras. A lógica possui regras úteis para processar as informações clínicas na busca de uma solução adequada para o problema clínico, mas não integra nenhuma segurança de que as informações clínicas e suas interpretações estão corretas. A lógica estuda somente as formas de raciocínio e, não, os seus conteúdos. O médico necessita obter, analisar, sintetizar e avaliar adequadamente informações clínicas precisas e acuradas para, depois, processá-las de forma lógica. Somente assim ele estará próximo do raciocínio correto e da decisão certa.5   Desta forma, a obrigação de meio e responsabilidade subjetiva dos profissionais de saúde exigem, para fins de responsabilização profissional, que a alucinação, seja esta virtual ou humana (erro profissional tradicional), gere uma realidade dissonante entre o quadro clínico do paciente e o potencial diagnóstico realizado ou documento elaborado. A Associação Médica Americana recomenda diretrizes que podem servir de auxílio aos médicos no uso seguro da IA na sua prática clínica, são elas: é fundamental que a tecnologia seja segura, eficaz e baseada em evidências científicas; a sua adoção deve considerar a adequação ao contexto clínico, em especial ao perfil da população atendida; por fim, é necessário que a IA contribua de forma concreta para a melhoria dos resultados clínicos6. Uma análise dessas diretrizes deve ser realizada periodicamente pelo profissional médico que usa a tecnologia.  Por outro lado, há um dever de transparência de que os atos e documentos médicos foram influenciados pela incorporação do uso da IA. O ganho de eficiência, potencial eficácia diagnóstica e celeridade do ato médico devem ser acompanhados da informação de que o médico utilizou a IA como instrumental na sua atuação. O processo de consentimento se traduz como um processo dialógico construído entre médico e paciente. De acordo com o CFM: As informações e os esclarecimentos dados pelo médico têm de ser substancialmente adequados, ou seja, em quantidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar sua decisão, ciente do que ocorre e das consequências que dela possam decorrer. O paciente deve ter condições de confrontar as informações e os esclarecimentos recebidos com seus valores, projetos, crenças e experiências, para poder decidir e comunicar essa decisão, de maneira coerente e justificada.   Ocorre que o paciente precisa saber a origem das informações para ele repassadas, sob pena do processo de consentimento ser parcial e, por vezes, viesado. Os pacientes devem ser informados sempre que a tecnologia for empregada em seu tratamento, incluindo quais dados serão coletados, bem como as formas de uso, tratamento e proteção dessas informações. Ao obter o consentimento para a utilização da IA, promove-se a participação ativa dos pacientes nas decisões relacionadas ao seu próprio cuidado em saúde7.  Em não raras as situações, foi observado que o uso da IA na saúde pode acentuar desigualdades8, que podem ser observadas sob no mínimo duas óticas: se por um lado os algoritmos, ao serem alimentados com dados históricos que reflitam desigualdades de acesso aos serviços de saúde ou estereótipos sociais, podem reproduzir ou amplificar estas discrepâncias9, por outro lado a própria estrutura de implantação dessas tecnologias pode evidenciar desigualdades socioeconômicas e territoriais.10  Desta forma, o médico pode e deve usar a IA como instrumento otimizador do exercício médico, notadamente por se traduzir como uma tecnologia disponível em benefício do ser humano. Porém, esse uso deve ser responsável, transparente e, sobretudo, crítico. Diagnósticos, condutas ou documentos elaborados com o auxílio da IA não são infalíveis, de modo que o profissional da medicina, para não responder civilmente pelo mau uso tecnológico ou por eventuais alucinações tecnológicas precisa supervisionar os atos da IA e, diante das sugestões propostas, refletir sobre a verossimilhança dos dados extraídos. Paralelamente, para que o processo de consentimento informado seja válido, é ainda fundamental que o paciente seja informado sobre o uso da IA, sob pena de termos um processo de consentimento deficiente. _______________ 1 Disponível em https://portal.cfm.org.br/noticias/departamento-de-inteligencia-artificial-do-cfm-intensifica-trabalhos-para-aprimorar-a-pratica-medica-no-brasil e https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-inicia-pesquisa-sobre-o-uso-de-inteligencia-artificial-na-medicina.  2 DENSEN, Peter. Challenges and opportunities facing medical education. Transactions of the American clinical and climatological association, v. 122, p. 48, 2011. 3 PARANJAPE, Ketan et al. "Short keynote paper: mainstreaming personalized healthcaretransforming healthcare through new era of artificial intelligence. IEEE Journal Of Biomedical And Health Informatics, v. 24, n. 7, jul. 2020.  4 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 5 RÉA-NETO, A. Raciocínio clínico--o processo de decisão diagnóstica e terapêutica. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 44, p. 301-311, 1998. 6 American Medical Association. AMA Principles for Augmented Intelligence (AI) Development, Deployment and Use. Chicago: AMA, 2023. 7 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 8 NORORI, Natalia et al. Addressing bias in big data and AI for health care: A call for open science. Patterns, v. 2, n. 10, 2021; ABRÀMOFF, Michael D. et al. Considerations for addressing bias in artificial intelligence for health equity. NPJ digital medicine, v. 6, n. 1, p. 170, 2023 e AGARWAL, Ritu et al. Addressing algorithmic bias and the perpetuation of health inequities: An AI bias aware framework. Health Policy and Technology, v. 12, n. 1, p. 100702, 2023. 9 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 10 SMALLMAN, Melanie. "Multi scale ethics - Why we need to consider he ethics of AI in healthcare at diferent scales". Science and Engineering Ethics, v. 28, n. 63, 2022. 
Columbine (Colorado, EUA) 20 de abril de 1999, estudantes do ensino médio chegam à Columbine High School para mais um dia de aula. Perto do horário do almoço, às 11h19 Eric Harris e Dylan Klebold, alunos do local, iniciam ataque previamente planejado utilizando explosivos e armas de alto calibre. O massacre resultou na morte imediata de 12 (doze) alunos e 1 (um professor) e 24 (vinte e quatro) pessoas feridas. Entre os feridos, estava Anne Marie Hochhalter (17 anos), atingida por dois tiros (no peito e nas costas) que resultaram em paralisia da cintura para baixo. Anne morreu de sepse aos 43 (quarenta e três) anos, em 16 de fevereiro de 2025 e sua morte foi classificada pela médica legista Dawn B. Holmes como homicídio resultante daquele ataque. No relatório de 13 (treze) páginas, a médica indicou como causa da morte complicações decorrentes dos ferimentos à bala. A sepse teria sido resultado de efeitos persistentes dos ferimentos resultantes do massacre, incluindo uma úlcera de pressão que pode ter sido a causa da infecção. A notícia de que a morte de Anne Marie foi classificada como homicídio, sendo ela incluída na lista de vítimas de Columbine, não causou espanto apenas aos familiares que afirmam que ela sempre se apresentou como uma sobrevivente. Embora o caso tenha origem em um sistema jurídico que se diferencia em vários aspectos da regulamentação brasileira da responsabilidade civil, de fato, a classificação da morte como tal, leva a questionamentos mais profundos sobre a possibilidade de nexo de causalidade, como pressuposto da responsabilidade civil, ser tão longo a justificar eventual indenização pela morte. E é com o olhar da doutrina brasileira que se procederá a presente análise. "Nexo de causalidade é o pressuposto virtual da responsabilidade civil. É a relação de causa e consequência que se estabelece entre dois fatos que se sucedem no tempo: a conduta culposa ou a atividade de risco e o dano"1. É a causalidade, portanto, que determinará a medida da responsabilidade. Segundo Flaviana Rampazzo Soares2, o nexo de causalidade é um "traço imaginário entre um acontecimento e um resultado, estabelecendo um liame entre uma conduta e o dano, ambos juridicamente qualificados. Trata-se de uma ligação entre uma ocorrência e um resultado, capaz de responder às perguntas que espontaneamente se anunciam quando se está diante de um prejuízo: Por que? Quem?". A busca de respostas a tais perguntas exigiria certeza ou a medida da suficiência da causa para ser juridicamente qualificada, o que em casos como o antes noticiado pode ser um grande desafio, não só em razão do longo tempo transcorrido entre a causa inicial da lesão e a morte, mas também em virtude da própria causa clínica da morte. Se é possível afirmar que Anne sofria com as lesões decorrentes do massacre, talvez não seja possível categoricamente afirmar que morte é objetivamente decorrência daquele acontecimento. Passados 26 anos do ataque, seria possível afirmar ser a morte de Anne um desdobramento previsível ou necessário de seus ferimentos ou trata-se de causa autônoma cujo resultado não pode ser imputado aos tiros que levaram Anne à cadeira de rodas? É possível reconhecer, sem dúvida, que as lesões provocadas pelos tiros têm origem em ato ilícito doloso que provocou séria deficiência na vítima. Mas será que a sepse, que eventualmente pode ter tido origem em uma úlcera de pressão (conforme laudo médico), pode ser associada àquele ato? Segundo Aguiar Dias3, as funções do nexo de causalidade podem ser classificadas em interna e externa. Interna é a causalidade natural (material ou de fato), ou seja, refere-se à causa no plano natural conforme as regras gerais da natureza. Já a externa (jurídica) é o critério técnico (jurídico e normativo) que busca estabelecer o vínculo adequado entre a conduta e o dano, integrando o suporte fático que determinará (ou não) o dever de indenizar. "Trata-se de um mecanismo destinado à verificação, à apuração, à definição da extensão e ao balizamento das consequências dos danos, que repercutirão tanto no nexo de imputação quanto na determinação da indenização, quando e se for cabível"4. Dessa forma, é possível afirmar que a causalidade jurídica (externa) sempre dependerá da seleção das consequências indenizáveis. O problema reside na ausência de critérios legais para fazê-lo. A jurisprudência brasileira não se apresenta uniforme na adoção e aplicabilidade das teorias do nexo causal e no estabelecimento de critérios objetivos de aferição, o que dificulta ainda mais a análise em situações complexas. Poder-se-ia, então, buscar no critério trifásico um auxílio? Por tal modelo, no primeiro momento traça-se abstratamente o curso provável de um determinado acontecimento, buscando-se no padrão médio de conduta a evolução possível dos fatos ou eventos até se chegar ao potencial dano. Na segunda fase, realiza-se a recapitulação do evento concreto e os resultados deles decorrentes. Na terceira fase, faz-se a transposição entre os elementos das duas fases anteriores para verificar a existência de componentes causais comuns e dissonantes, para então se concluir pela verificação do nexo causal ou pelas excludentes de responsabilidade. Aplicando o critério trifásico, possivelmente a conclusão seria pela inexistência do nexo de causalidade, não só porque o Código Civil, ainda que indiretamente para a responsabilidade extracontratual, tenha adotado como critério da causalidade próxima (danos diretos e imediatos), mas porque claramente o último evento apto a ser considerado determinante não pode ser diretamente associado aos tiros, mas a lesões posteriores decorrentes da vida em cadeira de rodas e que podem ter distintas origens e causas. Afirmar que as úlceras por pressão seriam causas diretas do ato ilícito originário (tiros) seria de um subjetivismo tal que estaria a levar em consideração apenas a condição de vítima do massacre e não propriamente os critérios objetivos necessários à definição do nexo causal. O percurso estabelecido pelo critério trifásico parece de fácil aplicação, mas não é capaz de dar resposta a todos os desafios da causalidade como o contido no caso aqui apresentado, cuja solução depende não apenas da análise do evento em si, mas especialmente das causas objetivamente aferíveis e previsíveis que conduziram à sepse. Assim, embora se pudesse vislumbrar que a morte de Anne decorra das lesões causadas pelos tiros, a causalidade talvez não possa ser determinada de maneira irrefutável. Poder-se-ia, então, aventar-se a possibilidade de flexibilização do nexo causal com emprego da teoria do critério probabilístico? Tal teoria afirma que a maior probabilidade estatística quanto a uma determinada causa deve ser considerada na definição do nexo. A dificuldade então, acabaria novamente centrada na própria origem da sepse, cuja definição muitas vezes carece de critérios e evidências médicas científicas objetivas5. Por isso, nessa situação, não se poderia considerar a prova exclusivamente estatística6 (quantitativa) como idônea a determinar o nexo. Dessa forma, segundo Flaviana Rampazzo Soares, "deve-se estabelecer uma seleção de desdobramentos suficiente, eficiente, necessária e juridicamente qualificada quanto ao dano experimentado. Sendo identificadas consequências imediatas hipotéticas coincidentes com as fáticas (assim consideradas as consequências ordinárias segundo o padrão o observador experiente), então a formação do nexo causal é facilitada, e se forem consequências imediatadas (as quais não decorram de vínculos diretos entre causa e efeito), poderão formar nexo causal de forem previsíveis e provierem de uma conduta ilícita"7. Nota-se, então, que as clássicas teorias8 do nexo de causalidade e soluções propostas pela doutrina e jurisprudência brasileira talvez não sejam suficientes a dar respostas para casos complexos como de Anne que envolvem transcurso tão longo entre a lesão originária (isso sem falar em outras necessárias discussões sobre prescrição), a morte e a ausência de critérios objetivos médicos para aferição da causa da sepse e sua evolução provável. A certeza em situações como a aqui narrada, não serve de critério para determinar a solução, pois inalcançável do ponto de vista médico. A interrogação aqui deixada, portanto, é suscetível de diferentes respostas que não podem ser informadas por subjetivismos embasados apenas 'na condição de vítima de um massacre', mas que devem levar em conta critérios objetivamente aferíveis sobre a causa da sepse e sua evolução para a morte.  _______ 1 SANTOS, ROMUALDO BAPTISTA. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018. p. 152. 2 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 72. 3 DIAS, Aguiar. Da responsabilidade civil. 10a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 693. 4 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 78. 5 "O nexo causal é a 'esfinge' da responsabilidade civil. Aqueles que não podem responder seu enigma, se bem que não sofrerão um destino bem típico dos contos e histórias mitológicas - sendo mortos e totalmente devorados por esses monstros vorazes -, infelizmente serão excluídos da possibilidade de prosseguir na trajetória dessa matéria para aquilo que propõe a complexidade de nossos tempos" (FARIAS, Cristiano Chaves; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 457). 6 Vale lembrar que a probabilidade estatística não se refere a fatos individuais, mas sim à frequência com que determinada classe de fatos ocorre. "As estatísticas são úteis para demonstrar o risco, ou seja, a probabilidade que eventos semelhantes ao narrado ocorram no futuro. Mas não são suficientes, no entanto, para demonstrar o singular enunciado de feto ocorrido no passado" (CARPES, Artur Thompsen. Quando a estatística de 95% pode não ser suficiente para provar o nexo de causalidade. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, Revista dos Tribunais, v. 25/2020, out./dez. 2020, p. 111-127). 7 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio (Coords.). 20 anos do Código Civil Brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88. p. 87. 8 "Teorias são citadas não pelo seu conteúdo intrínseco, mas apenas para conferir uma aparência de legitimidade às escolhas emocionais dos julgadores, normalmente destinadas a favorecer vítimas incapazes de demonstrar o nexo causal" (FARIAS, Cristiano Chaves; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 458).