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A necessidade de adequação de acesso, proteção e tratamento dos dados na reprodução assistida à luz da LGPD

terça-feira, 1 de abril de 2025

Atualizado em 31 de março de 2025 13:29

O direito ao conhecimento da herança genética por parte das pessoas concebidas por meio de reprodução assistida heteróloga, especialmente no que tange à proteção do direito à saúde, configura-se como uma questão sensível e complexa. Essa delicadeza decorre da necessidade de harmonizar a efetivação desse direito da personalidade, o conhecimento da origem genética, com o acesso aos dados genéticos do doador de gametas os quais estão resguardados pelo sigilo garantido ao doador, através da norma deontológica do CFM - Conselho Federal de Medicina.

Dessa forma, é indispensável assegurar a proteção tanto dos direitos dos indivíduos nascidos dessa técnica reprodutiva quanto dos direitos da personalidade como a intimidade e a privacidade do doador pensando em mecanismos jurídicos de equilíbrio entre esses interesses sob pena de responsabilização pelos danos quando uma das duas esferas for maculada. 

LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, lei 13.709/18, foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com o propósito de regulamentar o tratamento de dados pessoais, assegurando a proteção dos direitos fundamentais à liberdade, à privacidade e ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, conforme disposto no art. 1º da referida norma.

Nesse contexto, a LGPD representa uma contribuição relevante para o debate acerca do acesso às informações genéticas de doadores, especialmente no que se refere à tutela do direito à saúde, ao estabelecer limites normativos claros para o acesso a tais dados.

O art. 2º da Lei Geral de Proteção de Dados estabelece que a proteção de dados pessoais deva fundamentar-se na salvaguarda da privacidade, da autodeterminação informativa, da liberdade de informação, da inviolabilidade da intimidade, do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana.

Partindo da premissa de que os dados genéticos referentes à saúde ambulam, em virtude da sua natureza jurídica pelos direitos da personalidade de mais de uma pessoa e que é perpassado através da herança genética do doador de gametas à pessoa que foi concebida por técnica de reprodução assistida. 

Diante dessa realidade, resta que as clínicas de reprodução assistida adéquem suas práticas no intuito de efetivar, na prática, a harmonia entre a intimidade/privacidade do doador através do sigilo e a proteção do livre desenvolvimento da personalidade, do direito à saúde, da autodeterminação e da dignidade que estão presentes no direito ao conhecimento da origem genética da pessoa nascida através de técnica de reprodução assistida heteróloga. 

As informações genéticas, nomeadamente, relacionadas ao direito ao conhecimento da origem genética, configuram-se como dados sensíveis, nos termos do art. 6º da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados. Tais informações, geralmente coletadas e armazenadas por clínicas de reprodução assistida, devem observar as diretrizes e requisitos estabelecidos pela referida legislação, adequando-se integralmente às disposições normativas aplicáveis.

A clínica de reprodução, bem como os profissionais da saúde envolvidos no processo de reprodução assistida, passam a ter o dever jurídico de, para além da coleta, realizar o armazenamento e tratamento desses dados devendo implementar mecanismos eficazes de coordenar tanto o direito a privacidade e identidade do doador, sem que, ao mesmo tempo, suprima do direito ao acesso à herança genética das pessoas nascidas por este meio reprodutivo e assim evite a mácula de qualquer direito que possa acarreta em dano.

As informações genéticas só podem ser coletadas e tratadas mediante o consentimento informado, livre e inequívoco do titular. Além disso, a legislação assegura aos titulares desses dados os direitos de acesso, retificação e exclusão de suas informações genéticas pessoais. Nesse sentido, a LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados garante que os indivíduos mantenham o controle sobre suas informações genéticas, podendo decidir quais dados desejam compartilhar e quais preferem manter em sigilo. Contudo, a LGPD também possibilita o tratamento (art. 5º, inciso X, LGPD), desses dados sensíveis em situações específicas, conforme previsto no art. 11, inciso II, alínea "e".

É um dever de adequação às clínicas de reprodução assistida que criem no âmbito de suas politicas de consentimento, mecanismos de acesso ao direito de conhecimento da herança genética, através do tratamento adequado dos dados de saúde do doador de gametas capaz de manter as vertentes do sigilo, sejam a privacidade e identidade do doador, e, o pleno exercício do acesso à herança genética da pessoa nascida desse processo de reprodução assistida sob pena de cometer ilícito e gerar dano provocado pela ausência ou demora na efetivação do exercício desses direitos.

Um dos principais desafios vinculados a essa adequação é a superação da interpretação da norma deontológica do CFM - Conselho Federal de Medicina, resolução CFM 2.320/22, que induz uma redução a proteção do direito ao conhecimento da origem genética, quando versa que o sigilo do doador em caráter absoluto, bem como vinculando que "as informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente aos médicos, resguardando a identidade civil do (a) doador(a)" (CFM, 2002), fortificando o paternalismo médico e colocando em cheque a autonomia e do direito ao livre desenvolvimento da pessoa, protegido pelo consentimento livre esclarecido.

A interpretação literal dessa norma deontológica consiste em assegurar que os direitos das pessoas envolvidas em processos de reprodução assistida, que envolvem a doação e o armazenamento de material genético, sejam plenamente respeitados, mas olvida-se de proteger os direitos das pessoas nascidas através dessa técnica.

O ordenamento jurídico brasileiro prevê normas e procedimentos específicos, como a exigência de consentimento informada, bem como a proteção da privacidade e da confidencialidade das informações genéticas, sendo o sigilo do doador essa expressão mais clara.

Nesse contexto, destacam-se os princípios que orientam a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados. No que se refere ao princípio da finalidade, estabelece-se que o tratamento de dados pessoais deve estar restrito aos propósitos específicos, legítimos e previamente determinado para cada atividade, ou seja, manter a intimidade e privacidade, no caso em tela. 

Sob essa perspectiva, verifica-se que a coleta de dados genéticos do doador tem, como objetivo principal, viabilizar a reprodução humana assistida. Contudo, o consentimento dado para a coleta e o armazenamento de exames e informações genéticas também se fundamenta na finalidade de assegurar a saúde e o bem-estar da futura pessoa que será concebida por meio dessa técnica. Assim, em conformidade com o princípio da finalidade, previsto no art. 6º, inciso I, da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, a coleta e o tratamento dos dados genéticos do doador configuram-se como uma medida destinada, também, à proteção do direito à saúde do descendente gerado a partir desse material genético.

A finalidade da coleta e do armazenamento dos dados genéticos de saúde do doador é evidenciada pela prerrogativa estabelecida pela própria resolução 2.320/22 do CFM - Conselho Federal de Medicina, que veda a utilização de gametas considerados inviáveis.

Nesse sentido, o tratamento adequado dos dados genéticos relacionados à saúde do doador consiste, também, na transmissão dessas informações diretamente àqueles que, por herança genética e, na utilização em pleno exercício de sua autonomia e livre desenvolvimento da personalidade, poderão utilizá-las de maneira consciente e responsável dessa informação pra proteção da sua própria saúde. 

Tal abordagem mostra-se proporcional e adequada, considerando que esses dados, isoladamente, não permitem a identificação do indivíduo nem se afastam da finalidade inicial, qual seja proteção da identidade do doador que se mantém em sigilo, mas adequa-se a proteção da saúde da pessoa gerada por meio da técnica de reprodução assistida, que passa a ter acesso ao conhecimento de sua herança genética relacionada aos seus traços genéticos de saúde. Assim, essa prática preserva os objetivos previstos no item 3 da resolução 2.320/22-CFM, que visa mitigar os riscos à saúde do descendente.

Ainda sobre o anto do princípio da finalidade, esclarece LIMA; ABOIN (2019, p.173) que as "clínicas de reprodução humana somente poderão obter os dados estritamente necessários para atingir a finalidade buscada pelos casais e pelos doadores". A finalidade na coleta dos dados genéticos relativos à saúde genética do doador, impacta à saúde da pessoa nascida por meio dessa técnica. Logo, a sua coleta e conhecimento dos dados de saúde do doador, ao que parece, não tem outra finalidade a proteção do direito à saúde do descendente genético e, isso é possível através da anonimização dos dados de identidade, mesmo resguardando o sigilo da identidade da pessoa do doador.

A responsabilidade das clínicas de reprodução assistida na correta coleta, armazenamento, e tratamento dos dados genéticos do doador para que se preserve a identidade deste e ao mesmo tempo consiga resguardar o pelo direto de conhecimento da herança genética das pessoas nascidas por reprodução assistida, para que estas tenham livre acesso a esse traço da sua personalidade, nomeadamente seus traços genéticos hereditários de saúde, sem a necessidade de intervenção de terceiros para o exercício deste direito de acesso aos dados genéticos que carregam no tocante à saúde. 

Nesse sentido, tem-se que "não basta analisar a finalidade da coleta, do armazenamento, da utilização ou do tratamento dos dados pessoais. Além disso, há que se comprovar que tais atividades são adequadas ou proporcionais às suas finalidades" (LIMA; ABOIN, 2019, p.173). 

Assim, o sigilo e o tratamento especial que a LGPD dá aos dados sensíveis relacionados à identidade genética não é o entendimento de que o sigilo imposto acarrete um direito à privacidade e seja intransponível nas relações existenciais, mas, sim, que o direito à privacidade não é apenas "o direito ao segredo nem o direito a um controle de seus dados, mas o direito a um fluxo apropriado dos dados pessoais". (NOGUEIRA; BELLOIR; SANTOS, 2021, p. 350).

O conhecimento à origem genética é um direito da personalidade legítimo, o que o sigilo deve proteger o acesso para fins vedados pela própria LGDP, que está inserida no art. 11, §4º, logo o que se torna ilícito é o acesso aos testes genéticos preditivos para fins econômicos, por exemplo, ou mesmo a identidade civil do doador.

Essa é a preocupação de Stefano Rodotà com a utilização dos dados genéticos, pois, mesmo que para proteção do direito da personalidade, reveste-se do que toca na liberalidade essencial da liberdade e, que nos avanços tecnológicos, se os dados não forem muito bem protegidos, podem levar a ultrapassar a utilização dos dados para os fins aos quais foram consentidos (RODOTÁ, 2004).

No entanto, o mesmo autor alerta para o fato de que "graças aos dados genéticos, aumentaram, em modo significativo as oportunidades da tutela da saúde" (RODOTÁ, 2004, p.98). 

A necessidade de adequação dos termos de consentimento livre e esclarecida e a desburocratização do acesso ao direto ao conhecimento da herança genética não busca o fim do sigilo profissional ou do sigilo que protege a privacidade, mas, sim, o reconhecimento que os dados genéticos colhidos e armazenados nas clínicas de reprodução têm a finalidade de proteção também do direito à saúde da pessoa que nasce através da técnica de reprodução assistida e, portanto, a torna legitimada ao acesso desses dados que também compõem a sua identidade genética e estão abrigados pelo direito ao conhecimento da origem genética.

O dever jurídico das clínicas de reprodução assistida de adequação à LGPD, advém do dever proteger a intimidade do doador, mas de se reconhecer que, como os dados genéticos transitam na esfera jurídica de doador e da pessoa que nasceu por meio da técnica de reprodução assistida e caberia aos dois o acessos e a proteção desses dados pessoais sensíveis e o exercício de autodeterminação. Nesse sentido SCHULMAN; ALMEIDA (2021, p.27) defendem que "o cuidado sobre os mecanismos de transmissão de dados pessoais, além de atenderem ao direito ao corpo e ao consentimento, harmonizam-se com o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, do direito fundamental à proteção de dados pessoais e da autodeterminação informativa".

A adequação ao cesso aos dados genéticos colhidos e armazenados nas clínicas de reprodução assistida não deve ficar restrito na órbita jurídica do doador, mas também, da pessoa que nasce através da técnica de reprodução assistida, no que se refere aos dados genéticos de saúde que impactam nas duas esferas. 

O princípio do livre acesso às informações é aplicado nestes casos, visto que, os dados genéticos relativos à saúde do doador constituem parte integrante da personalidade da pessoa que nasceu através da técnica de reprodução assistida (LIMA; ABOIN, 2019).

Sendo a origem genética composta pelos dados genéticos relativos à saúde de seus antepassados, e que compõem a sua personalidade, tais dados devem pertencer também à pessoa nascida através de técnica de reprodução assistida, e qualquer óbice a esse exercício deve ser considerado ilícito.

Sendo assim, cabe a clínica de reprodução assistida efetivar o devido tratamento dos dados de saúde do doador mantendo-se a finalidade de proteger a identidade e privacidade deste, mas, não pode se escusar de disponibilizar os dados de saúde referente à herança genética, devidamente tratada, retirando qualquer possibilidade de identificação do doador, para a pessoa nascida desse processo reprodutivo, bem como afastar o acesso apenas através de terceiro como, induz a norma deontológica do CFM.

Em adequação à LGPD, o termo de consentimento do processo de reprodução assistida deve prever que o dado relativo à herança genética da saúde será compartilhado com a pessoa que nasce com a utilização desse material genético, resguardado o sigilo da identidade do doador.

O acesso a tais informações dar-se-á de forma anônima, e uma aplicação eficaz dos arts. 5º, inciso XI, o art. 11, alínea e, bem como, art. 12 da LGPD, possibilitando que o sigilo da identidade civil e o sigilo médico sejam preservados, em proteção ao direito à intimidade.

A ausência de adequação dos termos de consentimento esclarecido na reprodução assistida aos termos da LGPD acarreta em dano, tanto na esfera do doado, quando da pessoa que nasce por essa técnica reprodutiva, pois o dado genético não perde a sua característica de dado pessoal sensível só porque foi anonimizado (MACHADO, 2023) desde que deixe claro o esclarecimento da necessidade de compartilhamento dos dados genéticos relativos à saúde, entre o doador e a pessoa nascida pela utilização do seu material genético, como dever legal passível de responsabilização civil dos danos provocados pela ausência de proteção dos direitos da personalidade elencados.

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1 LIMA, Cintia Rosa Pereira; ABOIN, Ana Carolina. Proteção de dados clínicos e genéticos na era tecnológica: uma análise como base nos avanços da reprodução humana. In: SCALQUETTEET, Ana Claudia (Coord.). Biotecnologia, Biodireito e liberdades individuais: novas fronteiras da ciência jurídica. Vol. 1. Editora Foco: Indaiatuba/SP, 2019.

2 NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; BELLOIR, Arnaud Marie Pie; SANTOS, Alexandre Guilherme dos. Predição Gênica, autodeterminação informativa e boas práticas no tratamento de dados. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de Sá (Coord.).  Direito e Medicina: interseções científicas: genética e biotecnologia. Vol. I. Conhecimento Editora: Belo Horizonte, 2021.

3 RODOTÀ, Stefano. Transformações do corpo. Revista trimestral de Direito Civil - RTDC, v.19, ano 5, jul/set, 2004.

4 SCHULMAN, Gabriel; ALMEIDA, Vitor. Novos olhares sobre a responsabilidade civil na saúde: Autonomia, informação e desafios do consentimento na relação médico paciente. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana (Coord.). Responsabilidade Civil e Medicina. Editora Foco: Idaiatuba, SP, 2021