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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Nelson Rosenvald
Em seu perfil liberal, o Direito Civil, historicamente, sempre foi palco das situações patrimoniais, proeminentes no tráfego jurídico conduzido pelas leis civis. No entanto, a partir da Constituição da República de 1988, a centralidade da pessoa humana em sua intrínseca dignidade desafia uma constante renovação do Direito Civil, agora voltado à tutela concreta da pessoa humana, em especial dos vulneráveis, apto a coibir os atos de discriminação que oprimem e subalternizam ainda mais grupos minoritários. A afirmação abstrata da proeminência das situações existenciais, diretriz nuclear a guiar a interpretação das normas civilistas, desconsidera a complexidade do mosaico social, nichado por múltiplas discriminações, diretas e indiretas, e perpassadas pela interseccionalidade, que num país de profunda desigualdade social agrava a exclusão social e não concretiza o direito à vida digna. Gênero e sexualidade sempre foram assuntos até pouco tempo atrás pouco debatidos no universo do Direito, que habitualmente reproduzia o paradigma dominante binarista e biológico. Contemporaneamente, é indispensável as lentes de gênero para a releitura do direito posto, sob pena de perpetuação das violências e discriminações em nome da abstrata igualdade legal. Vale dizer que a perspectiva de gênero deve considerar seu viés dinâmico e fluído, sob o ângulo da performance social, de modo a evitar a naturalização dos arquétipos biológicos. Por sua vez, a sexualidade sempre foi aprisionada pelo Direito, que contemplava apenas a matriz heterossexual, seja nas relações afetivo-familiares, seja no próprio desenvolvimento da identidade no meio social. Em sua dimensão plural, indispensável proteger as dissidências sexuais, reconhecendo as diferentes formas de exercício da sexualidade e disposição do afeto. O florescer do fenômeno de reconhecimento da emergência das pautas ligadas ao gênero e às sexualidades inicialmente se restringiu aos impulsos do movimento feminista na seara jurídica. Interessante notar, no entanto, que a igualdade de gênero e a promoção da diversidade sexual não é uma pauta exclusivamente feminista ou que apenas deve ser discutido de forma segmentada. Tal temática se impõe e desafia como central a toda comunidade jurídica, que deve reler e reinterpretar o ordenamento como um todo, de forma unitária, na busca incessante por uma igualdade real e concreta entre os gêneros, que não mais se curva ao modelo binário e determinista. Diante desse cenário, a responsabilidade civil é convocada a atuar de forma a repensar a qualificação e quantificação de danos decorrentes de atos de discriminação com base no gênero e nas dissidências sexuais. Em sua feição inicial de viés reparatória e desatenta aos impactos de uma sociedade patriarcal, sexista, machista e heteronormativa, a responsabilidade civil é desafiada a efetivamente ser um instrumento de inibição, prevenção e compensação dos danos injustos sofridos por grupos vulnerabilizados. Ao contrário, apesar do seu potencial e de sua função vital para a harmonia da coexistência humana, a responsabilidade civil ainda parece distante de desempenhar sua vocação de remédio paliativo, mormente emergencial, para os casos de injustos danos por atos de violência e de desigualdade de gênero, de discriminação por homotransfobia e assimetria de poder estruturalmente absorvidas pelo Direito. Infelizmente, a compreensão da responsabilidade civil ainda está distante das diretrizes constitucionais de redução das desigualdades e não-discriminação. Os tradicionais filtros reparatórios, infelizmente, vêm sendo utilizados como obstáculos à efetiva reparação/compensação dos danos discriminatórios injustos, o que reflete na própria quantificação que igualmente desconsidera as especificidades de tais danos. Nesse cenário, como visto, não resta inalterada a seara da responsabilidade civil, de feição residual e instrumento de reparação/compensação, que cada vez mais é acionada diante de um ordenamento que ainda não tem respostas enérgicas e eficazes aos atos de discriminação. Diante dessa conjuntura, foi gestada a obra coletiva "Responsabilidade civil, gênero e sexualidades", sob o selo do IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil e os tipos da Editora Foco, que contou com a adesão de profissionais e pesquisadores(as) de diferentes regiões do país, com a presença de estudiosos de formações acadêmicas e trajetórias de vida diferentes, o que permite uma visão plural do tema sob diferentes ângulos. A presente coletânea é estruturada em 5 eixos temáticos, o que permite uma análise dos temas a partir de uma visão unitária. Na primeira parte, são enfrentadas as funções da responsabilidade civil, não discriminação e comunidade LGBTQIAPN+. Nelson Rosenvald e Wagner Inácio Freitas Dias enfrentam o tema do "Direito dos danos e indenização: A diferença que pesa onde não deveria importar na quantificação dos lucros cessantes". Vitor Almeida aborda a temática da responsabilidade civil e discriminação por orientação sexual diante dos atos de homofobia. Por sua vez, Thiago G. Viana trata do caso Olivera Fuentes versus Peru julgado pela Corte Interamericana de Direito Humanos (Corte IDH). Sérgio Lorentino examina o tema da responsabilidade civil das agremiações religiosas pela prática de culto de teor discriminatório em razão das questões de gênero e de orientação sexual. O último artigo do primeiro eixo é de Silmara D. Araújo Amarilla sobre a responsabilidade paterna em razão dos danos causados à prole dissidente da heteronormatividade. Em seguida, no eixo sobre responsabilidade civil, transgêneros e intersexo, Carla Watanabe nos brinda com artigo sobre "O apagamento, o lawfare e o cyberbullying como estratégias de discriminação contra pessoas trans". Vanessa de Castro Dória Melo e Leandro Reinaldo da Cunha enfrentam o tema da responsabilidade civil do Estado pela insuficiência de unidades hospitalares credenciadas para a realização do processo transexualizador. Em parceria com Teila Rocha Lins D'Albuquerque, Leandro Reinaldo da Cunha incursiona pela temática da responsabilidade civil em decorrência da violação póstuma da identidade de gênero. O eixo temático é encerrado com a contribuição de Natan Galves Santana e Tereza Rodrigues Vieira que investigam a luta das pessoas trans pelo direito fundamental à igualdade. Em terceiro lugar, a obra se dedica ao emergente problema da responsabilidade civil e violência de gênero. Inicia-se com o texto de Ana Carla Harmatiuk Matos e Jacqueline Lopes Pereira que investigam o contemporâneo tema da "Responsabilidade civil, gênero e violência obstétrica". Fernanda Nunes Barbosa e Renata Peruzzo enfrentam as repercussões nos domínios da responsabilidade civil do dano direto e reflexo nos casos de violências de gênero no contexto da violência doméstica. Por fim, Gilberto Fachetti Silvestre analisa a extensão do dano à mulher na violência doméstica ou familiar. No penúltimo eixo temático, emerge as discussões atinentes à responsabilidade civil, planejamento familiar e cuidado sob a ótica do gênero. Cíntia Muniz de Souza Konder enfrenta o polêmico tema da "Responsabilidade civil por concepção indesejada". Em perspectiva inovadora, Fernanda Paes Leme e Pedro Gueiros propõe análise sobre os úteros artificiais e as novas fronteiras ao planejamento familiar. Andressa Regina Bissolotti dos Santos nos apresenta relevante reflexão sobre a responsabilidade civil pelo tempo dedicado ao cuidado como forma de promover a igualdade material. Finaliza o eixo, o texto de Lígia Ziggiotti de Oliveira e Francielle Elisabet Nogueira de Lima sobre a possibilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance em hipótese de ausência de divisão de cuidados parentais. Por fim, analisa-se o cruzamento entre discriminação, dados pessoais e gênero. Tal eixo temático inicia com artigo de Ana Frazão e Maria Cristine Lindoso sobre responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados em perspectiva de gênero. Fabíola Albuquerque Lôbo e Camila Sampaio Galvão discorrem sobre o atual tema da responsabilidade civil dos pais pela hipersexualização das filhas influenciadoras mirins. No âmbito da proteção dos dados pessoais, Fernanda Pantaleão Dirscherl e José Luiz de Moura Faleiros Júnior enfrentam a temática da "Responsabilidade civil e dados pessoais sensíveis sobre gênero". Por fim, encerra a obra o texto de Dóris Ghilardi e Ariani Folharini Bortolatto que trata da responsabilidade civil em razão da exposição não consensual de imagens íntimas a partir da perspectiva da violência de gênero. A coletânea representa movimento de todo indispensável na conformação do ordenamento jurídico aos desígnios constitucionais voltados à promoção de uma sociedade sem discriminações, igualitária e livre. Cuida-se, a rigor, de uma contribuição ao repensar as estruturas da responsabilidade civil, mas sobretudo suas funções, em especial para fins de proteção das dimensões do gênero e da sexualidade a partir do espectro emancipatório e solidarista desenhado pelo constituinte de 1988. Um percurso indispensável de humanização e emancipação da responsabilidade civil voltada à concreta tutela da pessoa humana.
Em 2022 ganhou notoriedade vídeo, compartilhado pelo humorista Eddy Jr, no qual a sua vizinha o ofendia reiteradamente de maneira racista. Para além da discussão acerca da responsabilidade civil pelos danos morais causados, tal atitude colou em voga o debate sobre a possibilidade de exclusão de condôminos antissociais. Apesar de ser uma possibilidade aceita em diversos ordenamentos estrangeiros, esse tipo de sanção ainda encontra alguma resistência no Direito pátrio, devido à falta de previsão expressa no CC.1 Não obstante a falta de unanimidade sobre o tema no país, vem crescendo o número de decisões que entendem pela aplicação da penalidade2, tendo como exemplo mais recente a sentença da 29ª Vara Cível de São Paulo3, na qual a juíza determinou, após dois anos das agressões e ameaças sofridas por Eddy Jr, que sua vizinha seja removida do condomínio devido ao seu comportamento antissocial. O caso em tela serve como excelente expoente para desmistificar algumas concepções equivocadas sobre assunto, bem como ilustrar alguns problemas de aplicação prática da medida pelos tribunais pátrios. A começar, deve-se apontar que a referida sentença acertadamente reconheceu que o comportamento da condômina expulsa era, de fato, antissocial. Tal termo, apesar de previsto no art. 1.337 do CC, não tem sua definição bem elucidada pela lei. Nessa senda, a doutrina define como sendo antissocial o condômino que, de forma reiterada, desrespeite os deveres condominiais, tornando sua convivência incompatível com a dos demais moradores.4 Além disso o caso concreto também apresenta observância do escalonamento das sanções aplicadas à condômina antissocial, de modo que lhe foram impostas sanções pecuniárias iniciais no valor de uma quota condominial, com a última alcançando o valor máximo legal de dez quotas devido ao comportamento reiterado e gravoso. É justamente após este ponto que a doutrina brasileira se divide. Parte acredita que esta deve ser a punição máxima imposta ao condômino antissocial, uma vez que a sua exclusão, por não ter previsão legal expressa, violaria o ordenamento jurídica por representar forma de extinção do direito real de propriedade não previsto em lei.5 Tal corrente, porém, só mereceria ter razão caso a exclusão se traduzisse, de fato, na venda forçada da unidade autônoma, como previsto em alguns ordenamento alienígenas. Ocorre que, o defendido pela melhor doutrina, é a mera restrição do uso do imóvel, de modo que o proprietário reteria os direitos de fruir e dispor, como bem mencionado na sentença em tela.6 Tal construção se dá pela leitura conjunta da parte final do parágrafo único do art. 1.337 com o art. 1.277 do CC. Ou seja, a expressão "até ulterior decisão da assembleia", constante naquele, daria permissão aos condôminos para que, uma vez insuficientes as sanções previstas no capítulo de condômino do CC, possam se socorrer da regra geral de direito de vizinhança, prevista neste.7 Assim, afastam-se as principais críticas à aplicação da sanção no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que: i) não há a extinção do direito de propriedade; e ii) o direito de vizinhança permite restrições do uso da propriedade para coibir abuso do direito, inexistindo, então, falta de base legal para a exclusão do condômino antissocial. Se é verdade que o caso ora analisado representa a crescente aceitação da possibilidade de exclusão do condômino antissocial, como também pode se verificar pela existência de enunciado do 508 do CJF nesse sentido, bem como sua previsão expressa no anteprojeto de atualização do CC, também é inegável que ele ilustra um dos principais problemas de sua aplicação prática: A falta de unicidade nos critérios de aplicação pelos tribunais pátrios. Tendo em mente a proteção conferida pelo direito constitucional à moradia, é imprescindível que seja conferido um prazo para que o condômino antissocial se mude. Ocorre que, ante a falta de norma expressa sobre o tema, a jurisprudência varia no seu arbitramento.8 A situação se torna ainda mais complexa quando percebe-se que os casos que chegam ao STJ não são apreciados pelo tribunal, que invoca o verbete de sua Súmula 7. Reconhece-se a louvável intenção dos julgadores em buscar manter a axiologia constitucional ao determinarem tais prazos, porém, os números arbitrados com base em uma noção discricionária de razoabilidade acabam por causar inconsistências com a sistemática civilista. Entende-se que o prazo concedido para o condômino expulso deve ser o mesmo de trinta dias, dado ao locatário para se retirar do imóvel locado após publicação de sentença de despejo (art. 63, lei 8.245/91). Tal analogia se justifica pelo fato do prazo contido na ação de despejo e o que é disponibilizado ao condômino que foi removido da convivência condominial exercem a mesma função no ordenamento jurídico: São corolários concreção da tutela da moradia prevista na Constituição Federal. Ademais, diante do giro repersonalizante promovido pela Constituição Federal de 19889, não se é possível conceder maior proteção ao interesse patrimonial do locador - que teria que esperar apenas trinta dias para reaver o imóvel - do que à dignidade da pessoa humana dos vizinhos ordeiros, que vão se submeter ao martírio de continuar convivendo com o morador antissocial por meses. Por fim, reafirma-se a necessidade da aplicação da exclusão como forma de garantir a sistemática do ordenamento jurídico, sob pena do seu não reconhecimento transformar a tolerabilidade do abuso do direito de propriedade em uma questão de preço, com os condôminos que possuem condições financeiros de arcar as sucessivas multas recebendo verdadeiro passe livre para desrespeitarem as normas de vizinhança. Nesta senda, a exclusão representa ponto de intercessão entre a responsabilidade civil e o direito de vizinhança. Tomando como exemplo as lições de San Tiago Dantas10, assim como o proprietário de uma pedreira pode ser obrigado, além de restituir vizinhos pelos danos causados pelo uso de sua propriedade, a restringir determinado uso do seu imóvel, o condômino antissocial, como visto no caso em tela, também pode se ver afastado do seu lar, independentemente de ter que arcar com eventual indenização aos seus vizinhos. __________ 1 VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 566. v. 16.  2 Cf.: TJSP, 36 ª CDP, AC 1001406-13.2020.8.26.0366. Rel. Des. Milton Carvalho. Julg. em: 22/04/2021;  TJSP, 36 ª CDP, AC 1009323-33.2019.8.26.0006. Rel. Des. Lidia Conceição. Julg. em: 12/12/2022.  3 TJ/SP. 29ª Vara Cível de São Paulo. Processo no 1007991-98.2023.8.26.0100. Juíza Laura de Mattos Almeida. Julg. em: 30/04/2024. 4 Cf: ABELHA, André. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013. p. 131-132; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 726-727. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 247. v. 4  5 LOPES, João Batista. Condomínio. 7 ed. São Paulo: RT, 2000. p 149.  6 Cf: TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 261. v. 5;  MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 176. v. 5.; LOUREIRO, Francisco Eduardo. Coisas. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021. p. 1.338; ANGÉLICO, Américo Izidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento antissocial à luz do novo Código Civil - Atualidades. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024; VIEIRA, Fernando Borges. A exclusão do condômino antissocial. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024; GARCIA, Thyyago. Exclusão de condômino antissocial: é possível? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024. 7 ABELHA, André. op cit. p. 156.  8 A sentença analisada concedeu prazo de 90 dias para que a moradora e seu filho deixassem o apartamento. Tomando como exemplo o próprio TJSP, é possível também encontrar decisões cujo prazo foi de 60 dias, como, por exemplo: TJSP, 36 ª CDP, AC 1001406-13.2020.8.26.0366. Rel. Des. Milton Carvalho. Julg. em: 22/04/2021;  TJSP, 36 ª CDP, AC 1009323-33.2019.8.26.0006. Rel. Des. Lidia Conceição. Julg. em: 12/12/2022.  9 FACHIN, Luiz Edson. O Giro repersonalizante: singrar, a viagem do redescobrimento, In: Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 231-281.  10 DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 22. __________ ABELHA, André. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013. ANGÉLICO, Américo Izidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento antissocial à luz do novo Código Civil - Atualidades. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024. DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 22. FACHIN, Luiz Edson. O Giro repersonalizante: singrar, a viagem do redescobrimento, In: Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. GARCIA, Thyyago. Exclusão de condômino antissocial: é possível? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024. LOPES, João Batista. Condomínio. 7 ed. São Paulo: RT, 2000. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Coisas. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021. MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. v. 5. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. 4. TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 5. VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. 16.  VIEIRA, Fernando Borges. A exclusão do condômino antissocial. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024.
O desastre climático que recentemente se abateu sobre o Rio Grande do Sul compreendeu a ocorrência de chuvas excepcionais, alagamento, cheias de córregos e riachos e mesmo de lagoas, como a Lagoa dos Patos, que veio a transbordar com o escoamento da água acumulada das chuvas. Além de prejudicar a produção rural, as cheias atingiram a região metropolitana de Porto Alegre e inundaram cidades mais ao sul, como Rio Grande e Pelotas, num processo que foi avançando com o passar dos dias. Essa triste situação ilustra a importância de bem compreender o conceito de sinistro com que trabalham os contratos de seguro. Há, com efeito, sinistros que correspondem a uma ocorrência imediata, instantânea ou de curta duração. Mas há também sinistros contínuos ou cujos efeitos danosos se prolongam no tempo. Nestes casos, podem surgir dúvidas sobre as apólices que respondem pelas perdas decorrentes desses sinistros, quando o evento coberto ou suas consequências se estendem por tempo superior ao da vigência dessas apólices. Ou ainda sobre a possibilidade de a seguradora que as emitiu, nessas situações, recusar a renovação do seguro, para novo período. Com relação à primeira questão, é preciso ter em conta que os sinistros não são, necessariamente, ocorrências localizadas no tempo. Um sinistro pode ocorrer por tempo longo, ou resultar de causas que já há algum tempo despontavam, mas que só se revelam posteriormente, demorando a serem conhecidas. Muitas vezes, apenas quando sua manifestação danosa se explicita e pode ser conhecida pelo segurado, é que o sinistro se revelará, como sói acontecer no tocante a riscos de construção, ou riscos de produtos e contaminação. Como sinistro, por definição, é a realização do risco coberto, haverá sinistro uma vez que ocorrido o evento descrito como risco. Risco não se confunde com dano. O risco de falha de montagem ou de fabricação, por exemplo, coberto pelo seguro de riscos de engenharia, pode se manifestar, em sua potencialidade danosa, tempo depois de o equipamento ser colocado em operação, quando já se encontrar vigente o seguro operacional. Há sinistros, por outro lado, que geram danos que irão se protrair no tempo. O exemplo mais evidente é o de lucros cessantes, à medida que a perda de receita venha a repercutir por período de tempo que ultrapasse o da vigência da apólice em que ocorrido o risco. No seguro de responsabilidade civil, as perdas indenizáveis sofridas por terceiros, como os aluguéis a cargo do segurado até que seja reconstruída sua residência arrastada pela lama de uma barragem que rompeu, ou derrubada num evento de subsidência, podem perdurar por meses ou anos, sendo em regra indenizáveis por força das apólices vigentes à época do rompimento ou da subsidência. Nesse sentido, vale ressaltar que, com enorme ganho de precisão em relação ao direito vigente, o PLC 29/17, na versão recentemente aprovada pelo Senado Federal, que pouco alterou a versão anteriormente aprovada pela Câmara dos Deputados, estabelece, no art. 70, que "a seguradora responde pelos efeitos do sinistro caracterizado na vigência do contrato, ainda que se manifestem ou perdurem após o término desta". Importante, também, ressaltar o disposto no parágrafo 5º do art. 66 do mesmo texto, que estabelece a inexigibilidade pela seguradora, em caso de sinistro, de providências que possam "colocar em perigo interesses relevantes do segurado, do beneficiário ou de terceiros ou se implicarem sacrifício acima do razoável". Quanto à possibilidade de a seguradora recusar a renovação da apólice, tendo em vista a ocorrência de sinistro de longa duração, ou da possibilidade de sucessivos sinistros de mesma natureza, o primeiro ponto a considerar é que a nova apólice, em regra, não responde por sinistros cuja ocorrência se verificou ou se iniciou antes da renovação. Entende-se, por outro lado, que a seguradora não pode recusar a renovação se continua a operar no ramo ou modalidade do seguro e não há óbice técnico à renovação. Assim por exemplo, se não ocorreu uma alteração objetiva no estado de risco, como uma mudança geológica impeditiva, a recolocação do seguro não haveria de ser recusada, ainda que cobrando a seguradora um prêmio superior ao do período anterior, fundado numa taxa justificadamente agravada. Esta compreensão, que não tem amparo expresso no direito atual, também encontra guarida no referido PLC 29/17. Assim, por exemplo, o art. 51 estipula que a recusa da seguradora a uma proposta de seguro - e tanto mais uma de renovação do seguro - tem de ser justificada operacional e tecnicamente, sendo que "os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico e social, sendo vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial". Muitas vezes, no entanto, surgem conflitos sobre o tema em torno de cláusulas inseridas nas condições de determinados seguros pelas seguradoras. É o que se verifica, por vezes, em relação às coberturas de falta de suprimento de energia e de alagamento. Há apólices que estabelecem que se danos múltiplos e sucessivos ocorrerem no período de 72h, todo o conjunto será entendido como uma só ocorrência. Se a ocorrência ultrapassar 72 horas, será considerado um outro sinistro, diverso do anterior.1 Isto significa que a seguradora irá considerar incidentes duas ou mais franquias (a participação obrigatória do segurado em parte das perdas verificadas) em vez de computar o desconto, da indenização a ser paga por ela, de apenas uma franquia. As apólices que trazem essa previsão, aliás, não costumam estabelecer a reintegração automática da importância segurada ou do limite máximo de indenização, nessas situações. Assim, o valor do seguro poderá esgotar-se mais rapidamente. Sem adentrar na discussão da validade de cláusulas como essa, ou seja, no que tange ao tema da renovação do seguro, ora em pauta, poderão surgir conflitos entre segurado e seguradora quando a vigência da apólice em que se iniciou o sinistro terminar logo depois ao primeiro período de 72 horas. Persistindo as mesmas condições que deram causa aos prejuízos reclamados, a exemplo das chuvas excepcionais - ainda que elas parem e voltem -, a seguradora terá de responder por um sinistro, no âmbito da nova apólice, isto é, da apólice renovada, cuja ocorrência pode ser tida como certa. Presumindo-se que o segurado tenha, em tempo hábil, antes do término da vigência da apólice, proposto à seguradora sua renovação, não parece fazer sentido sua recusa, simplesmente em razão disto. Primeiro, porque o sinistro teve início na apólice a ser renovada - e a continuidade do sinistro ou o prolongamento das perdas dele resultantes, seriam por ela indenizáveis, até o limite ou importância máxima prevista, não fossem disposições como a citada. Segundo, porque a qualificação da ocorrência que perdurou por mais de 72 horas como um novo sinistro, ou daquela cujos efeitos continuam se manifestando para além dele, é meramente artificial, criada pela própria seguradora. Não tem o condão de implicar óbice técnico, à medida que, pela apólice original, o risco foi garantido normalmente. Nessas condições, frente ao artifício de dividir um mesmo sinistro em dois ou mais, sem que ele tenha de fato ocorrido mais de uma vez, não caberá a alegação de óbice técnico. Espera-se que a experiência haurida com eventos como o ora discutido, que infelizmente tendem a se reproduzir no futuro, possa impulsionar a realização de estudos técnicos voltados à garantia de interesses presentemente não cobertos pelo mercado segurador, o aperfeiçoamento das coberturas, com melhor redação de clausulados, e interpretações contratuais consentâneas com a função social do contrato, particularmente diante de um sinistro e, especialmente, de sinistro no seguro de responsabilidade civil, modalidade de seguro cuja importância, nas sociedades contemporâneas, se faz cada vez mais notória. ________ 1 A título de exemplo, trata-se de uma cláusula com redação semelhante a: "Todas as perdas seguradas que ocorram durante um período de 72 horas consecutivas, causadas por: a) terremoto, tremor de terra, maremoto, ou qualquer outro risco decorrente de atividade sísmica segurado sob esta apólice; b) erupção vulcânica; c) furacão, tufão, tornado, vendaval, água direcionada por vento ('wind driven water') ou qualquer outro risco de vento sob esta apólice; d) alagamento. Serão consideradas como única ocorrência de sinistro, para fins deste seguro. Qualquer um dos eventos acima relacionados que perdurem por mais do que 72 horas consecutivas, será considerado como duas ou mais ocorrências de sinistro. O segurado poderá eleger a data e hora do início de cada período de 72 horas, condicionado a que: I. essa data e hora não seja anterior à primeira perda registrada sofrida pelo segurado; II. a data de início esteja dentro do prazo de vigência deste seguro; III. não haja sobreposição de dois ou mais períodos de 72 horas."
O livro "Suporte Fático da Norma na Responsabilidade Civil" trata-se de uma obra dedicada aos estudiosos, profissionais do Direito, em especial da responsabilidade civil com atenção também ao processo civil. A existência de danos e sua discussão quanto à necessidade de reparação civil se conecta com vários ramos do direito privado. A reparação também está ligada umbilicalmente com o direito processual civil à luz da causa de pedir, pedido e ônus da prova, além da exigência da comprovação de que o dano que se busca ver reparado ou compensado se trata de um dano indenizável. Diante de uma série de fatos no cotidiano da sociedade aqueles podem ter conexão com a responsabilidade civil e os seus reflexos no direito processual civil, de sorte que após uma abordagem teórica sobre o suporte fático da norma e o direito processual civil selecionamos alguns temas que refletem um estudo das normas e sua aplicação prática no contexto da responsabilidade civil. Buscamos apresentar uma análise detalhada do suporte fático da norma, explorando as várias espécies de danos e suas implicações no direito brasileiro com a análise de casos concretos. O livro discute de forma criteriosa a causa de pedir e o pedido no processo civil, proporcionando uma visão mais abrangente e esclarecedora sobre a matéria. Este aspecto é especialmente relevante, pois oferece ao leitor uma compreensão mais ampla da fundamentação jurídica necessária para a elaboração de peças processuais eficazes. A obra se projeta pela análise do dano à luz da Constituição Federal, especificamente o art. 5º, inciso X, e dos arts. 186 e 927 do CC, dentre outros. Essa abordagem constitucional e civilista permite uma interpretação harmoniosa e integrada das normas, contribuindo para um melhor entendimento e aplicação das leis vigentes. Além disso, a linguagem acessível e a organização lógica do conteúdo busca facilitar a compreensão dos conceitos complexos envolvidos. A combinação de teoria e prática apresentada no livro tem como objetivo aprofundar os conhecimentos sobre a responsabilidade civil no âmbito do processo civil.
Instrumentos jurídicos de perícia constituem soft law? Um estudo precedido pelo Conseil d'État francês propôs uma definição droit souple (soft law), também conhecida como droit mou, ao mesmo tempo, três critérios cumulativos que permitem identificar os instrumentos jurídicos que se enquadram nesta categoria de Direito. A soft law é apresentada como todos os instrumentos que cumpram as três condições cumulativas seguintes1: 1ª condição: Estes instrumentos devem ter o propósito de modificar ou direcionar o comportamento de seus destinatários, incentivando, na medida do possível, sua adesão. Este é sem dúvida o caso dos instrumentos utilizados na perícia que conhecemos e da Association pour l'étude de la réparation du dommage corporel - AREDOC, cuja ideia é orientar os atores da compensação para uma melhor aplicação do princípio da reparação integral. A questão da adesão a esta base será examinada mais detalhadamente quando uma análise da natureza desejável ou indesejável do uso destes instrumentos. 2ª condição: Estas ferramentas não devem criar por si mesmas direitos ou obrigações dos seus destinatários. No que diz respeito à indenização por danos corporais, este assume, por exemplo, que a vítima não pode reivindicar com o juiz a utilização deste ou daquele barema de avaliação dos danos, assim como não pode exigir que lhe seja aplicada a base da AREDOC. 3ª condição: Para serem soft law, os instrumentos jurídicos devem finalmente apresentar, através do seu conteúdo e do seu método de desenvolvimento, um grau de formalização e estruturação que os relacione com as regras do direito. Encontramos esses aspectos perfeitamente estruturados nos diferentes instrumentos utilizados diariamente na perícia por especialistas em avaliação do dano corporal. No que diz respeito a estes três critérios cumulativos estabelecidos no do referido estudo do Conseil d'État, é possível concluir que a grande maioria dos instrumentos utilizados no âmbito da perícia se enquadra bem na categoria de soft law. Feita esta observação, e na sequência do estudo do Conseil d'État, é agora interessante perguntar se o recurso a estes instrumentos jurídicos se revela útil ou não. É desejável a utilização de instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais? Para orientar as partes interessadas na utilização de instrumentos de soft law, o Conseil d'État esforçou-se por identificar critérios para avaliar se é ou não prudente utilizar os instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais. Aqui são propostos três critérios cumulativos2: O instrumento jurídico deve, antes de mais, ser útil. Este é, sem dúvida, o caso dos diferentes instrumentos utilizados na avaliação dos danos corporais, necessitando de orientação dos peritos e dos assistentes técnicos para garantir uma maior equidade na indenização das vítimas. Assim, tendo obviamente em conta as especificidades das situações individuais, garantir um mínimo de harmonização na avaliação dos parâmetros de dano corporal. Este critério de utilidade encontra-se na base da AREDOC na medida em que tende a uma aplicação mais respeitosa do princípio da reparação integral. Além disso, deve permitir às vítimas obter uma indenização mais justa porque é mais adequada à realidade das suas necessidades de remuneração. Para que a utilização do instrumento de soft law seja considerada desejável, os instrumentos analisados também devem atender ao critério da efetividade. Para avaliar esta condição, o estudo do Conseil d'État fornece detalhes valiosos cuja aplicação pode ser verificada no que diz respeito à AREDOC. Segundo os autores deste estudo, um instrumento seria "eficaz" se "se constatar a probabilidade de uma dinâmica de adesão dos atores envolvidos e a capacidade dos instrumentos se tornarem um padrão de referência". Enfim, para que o recurso ao instrumento de soft law (direito/regra flexível) possa ser recomendado, deve finalmente poder ser considerado como "legítimo". A presença massiva do público nos painéis de avaliação do dano corporal na perícia médica, nos Congressos Brasileiros da Sociedade Brasileira de Medicina Legal e Perícias Médicas, parece um primeiro indicador desta dinâmica de adesão e ao longo da última década tornando-se uma "referência padrão". Para que o uso da ferramenta de soft law seja recomendado, ele deve finalmente ser considerado "legítimo". Essa legitimidade provavelmente dependerá principalmente avaliada através da legitimidade da própria instituição quem produziu o instrumento jurídico analisado. O instrumento proposto pela Association pour l'étude de la réparation du dommage corporel (AREDOC), cuja legitimidade é incontestável, emana do mundo dos seguros. Portanto, dos atores cuja imparcialidade também pode ser discutida sem que isso possa pôr em causa a legitimidade da utilização do instrumento jurídico que propõem. Esta rápida análise leva-nos a concluir que a base de dados AREDOC deverá ser capaz de cumprir os três critérios acima mencionados, uma vez que a sua eficácia seja estabelecida pela generalização do seu uso.3 O valor jurídico das normas técnicas utilizadas em perícia médica A perícia só adquire o seu sentido pleno através da sua ligação com a decisão, porque é esta que traz à tona a sua função. Mas é a complexidade de conhecer a "factualité" que a torna uma função "technique" inevitável cada vez que se trata de compensar danos corporais. Com efeito, esta complexidade exige o "know-how" de peritos especializados que são obrigados, em particular, a aplicar dados científicos e a utilizar ferramentas técnicas. Isso em um contexto distinto da ciência e da abstração induzindo a ideia de domínio pragmático dedicado a um propósito específico, que em última análise, fornecer informações úteis ao juiz. Com isso é possível observar que as normas técnicas têm diversas formas.4 Mais particularmente, no que diz respeito às normas técnicas avaliação de danos corporais, existem, em particular, escalas, guias e escalas de valores. Assim é possível citar: "le barème invalidité (dans la sphère professionnelle), le barème médico-légal des incapacités, les barèmes « droit commun » (en l'absence d'un barème « officiel »), les différents barèmes établis dans le cadre des assurances individuelles, le barème d'évaluation des taux d'incapacité des victimes d'accidents médicaux, d'affections iatrogènes ou d'infections nosocomiales, le guide barème européen d'évaluation des atteintes à l'intégrité physique et psychique".5 Algumas escalas possuem uma análise mais anatômica do sequelas, como a do Concours médical, e outros, mais funcionais, como le barème d'évaluation médico-légale ou le barème d'évaluation médicale des accidents médicaux. Sobre a variedade de denominações, não parece incomodar o Cour de Cassation, uma vez que tenta não retificar ou unificar as diversas formas pelas quais os promotores destes padrões indicativos os qualificaram. Assim, vários acórdãos utilizam os nomes de "barème", "référentiel", « nomenclature » e documentos técnicos podem ser designados como normas, coleção de práticas ou usos.6 Os demais baremas de valores médico-legais e de direito consuetudinário são essencialmente derivados da prática. Como tal, eles certamente podem ser qualificados como "normas", uma vez que servem referência na avaliação de danos corporais, mas sua legalidade é questionável. O que, no entanto, pode argumentar pelo caráter jurídico destas normas técnicas é sua finalidade: Os baremas médico-legais visam permitir a avaliação do dano corporal que se enquadre no âmbito da ordem jurídica. Além disso, estas normas técnicas são utilizadas e validadas pelos avaliadores (peritos) e juiz, na determinação da indenização, tendo assim em conta essas normas técnicas na esfera do direito. Mas, embora adquiram valor legal devido a sua contribuição para a decisão de compensar os danos corporais, eles não podem ser qualificados como "normas jurídicas" por causa de sua multiplicidade, sua falta de coerência e de sua origem.4 Esta reflexão sobre a qualificação jurídica das normas técnicas permaneceria incompletas se a questão do seu alcance não foi considerada. Com efeito, qual é a influência das normas técnicas sobre avaliação dos danos corporais?4 O papel das normas técnicas na avaliação dos danos corporais Segundo o epidemiologista M. Thuriaux "para agir é preciso compreender, para compreender é preciso saber; para saber, você tem que nomear e às vezes mensurar".4 Medir significa avaliar e determinar o valor ou estabelecer um número fixando a intensidade ou estado do objeto.7 Alguns autores acreditam que medir não é uma necessidade, como na Inglaterra que não existe um sistema de baremação.4 O legislador inglês optou por uma metodologia descritiva, cabendo ao perito descrever os efeitos posteriores e o seu impacto na vida da vítima do dano. Na França, por outro lado, os danos corporais são medidos pelo perito usando ferramentas periciais que se apresentam na forma de edital ou ficha técnica. Certamente, o advogado não é competente para realizar tal avaliação, mas ele não deve, no entanto, desviar sua atenção dessas ferramentas porque a perícia médica é uma fase crucial dentro do processo de indenização por danos corporais.4 O papel das normas técnicas pode, assim, ser entendido através das três perguntas a seguir4: 1) Em primeiro lugar, por que medir danos corporais com ajuda de ferramentas médico-legais? A avaliação médica dos danos corporais é uma pré-requisito essencial para avaliação jurídica (financeira) de dano corporal pelo julgador. Contudo, em princípio, para ser capaz de conceder à vítima uma indenização justa no respeito pelo princípio da reparação integral dos danos, o perito deve ser capaz de saber: Se isso for obviamente possível, o momento em que as lesões estabilizaram ou irão se estabilizar definitivamente, o que isso é chamado de "data de consolidação". Esta data é importante não só porque faz com que o prazo se esgote de prescrição, mas também e sobretudo porque permite distinguir itens de perdas extrapatrimoniais temporário e permanente. A extensão dos danos físicos e psicológicos à vítima, observe que este trabalho técnico acaba levando o perito a realizar uma "pré-qualificação" dos fatos que permitam reconhecer a existência de uma "contribuição normativa" perícia médica no procedimento de indenização do dano corporal. 2) Em seguida, como são mensurados os danos corporais? Esta questão diz respeito aos meios disponibilizados especialistas médicos para cumprir sua missão: tabelas/baremas médicos (avaliação em porcentagem/pontos do déficit funcional permanente - DFP), escalas em graus (de 1 a 7). 3) O que é medido exatamente usando as ferramentas médico-legais existentes? Por um lado, as escalas médicas visam avaliar as consequências da pessoa lesada e mais precisamente quantificar a seu "déficit" através de uma taxa. No entanto, a determinação do DFP - Déficit Funcional Permanente é mais complexo e não pode ser limitado a uma simples fixação de uma taxa em porcentagem ou pontos. Além disso, na prática há discussões acaloradas sobre estes parâmetros de dano extrapatrimonial (pós consolidação) devido à sua avaliação particularmente delicada. Na verdade, o DFP inclui aspectos que não estão incluídos no escalas (sofrimento permanente, distúrbios sentido nas condições de existência pessoal, familiar e social). Por outro lado, as escalas de 7 graus foram estabelecidas para permitir apreciação do sofrimento suportado (antes da consolidação) e danos estéticos temporários e permanentes. Mas novamente, na prática não há consenso sobre a metodologia por grau. Esta é a razão pela qual ele é fundamental que o grau escolhido seja complementado por uma descrição precisa das queixas da pessoa lesada tendo em conta não só o ambiente em torno do acidente, mas também o tempo de inatividade e qualquer outra informação útil para compreensão da parcela detida pelo médico perito. Conclusão A coluna de hoje ilustra perfeitamente a necessidade de organizar um verdadeiro debate contraditório - incluindo todas as partes interessadas - e multidisciplinar sobre a questão das normas técnicas de medição dos danos corporais, a fim de harmonizar a metodologia da perícia médica. Ademais, a variedade de fontes e alcance das normas técnicas em perícia médica não permite reconhecer uniformemente o seu valor jurídico. Na verdade, isto difere essencialmente dependendo do modo de produção destas normas e do quadro em que são solicitadas. _________ 1 Etude annuelle 2013 du Conseil d'État, Le droit souple. p. 61. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 2 Etude annuelle 2013 du Conseil d'État, Le droit souple. p. 136-9. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 3 MORLET-HAÏDARA Lydia. Réflexions sur la Valeur juridique des outils d'expertise et de la base ANADOC. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 4 GHOZIA Amel, La valeur juridique et le rôle des normes techniques en expertise, Journal du Droit de la Santé et de l'Assurance - Maladie (JDSAM), 2020/2 (N° 26), p. 16-23. DOI : 10.3917/jdsam.202.0016. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 5 Ce barème a vu le jour en 2003 et a été réalisé sous l'égide de la Conférence Européenne d'Experts en Évaluation et en Réparation du Dommage Corporel - CEREDOC. Il s'agissait d'harmoniser au sein de l'Union européenne les systèmes nationaux d'indemnisation du dommage corporel. 6 Cour de cassation. Le rôle normatif de la Cour de cassation. p. 197. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa) 7 Le Robert. Petit Robert: dicionário da língua francesa. Montreal: Le Robert; 1990. p.1582.
terça-feira, 13 de agosto de 2024

A reforma do Código Civil e o art. 931

Um dos dispositivos do Código Civil de 2002 que sempre gerou controvérsia doutrinária é o art. 931, que afirma: "Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação". Em verdade, por força da própria ressalva à existência de um regime especial, - a saber, a "responsabilidade pelo fato do produto" contida no CDC -, o dispositivo teve questionada a sua própria pertinência, sendo afirmado que "qualquer tentativa de salvar o dispositivo estaria fadada ao fracasso".1 Talvez por essa razão tenha, de fato, sido proposta a sua revogação pela primeira versão do anteprojeto de reforma do Código Civil submetida à votação dos membros da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal. Contudo, no "Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil", efetivamente entregue ao Senado Federal, o dispositivo constante do anteprojeto, anexo ao citado "Relatório"2, apresenta a seguinte redação: "Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, o fabricante responde independentemente de culpa pelos danos causados por defeitos nos produtos postos em circulação. Parágrafo único. O produto é considerado defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera no momento em que é posto em circulação."   O presente artigo, portanto, tem por escopo analisar as alterações propostas na redação do dispositivo acreditando, por certo, que o mesmo possa ser, ao final do longo processo legislativo, convertido em norma vigente. Nesse sentido, a primeira observação que deve ser feita é a substituição da referência aos "empresários individuais e as empresas" pela previsão da responsabilidade do "fabricante". A alteração não é meramente terminológica, mas acarreta importante repercussão prática. De fato, representa o reconhecimento de que o "verdadeiro introdutor da coisa perigosa no mercado é o fabricante e não o distribuidor".3 Ao mesmo tempo, afasta a possibilidade de responsabilização do "comerciante", o qual, por não ter nenhum controle sobre o produto, é igualmente surpreendido pela existência de um defeito no mesmo. Esta realidade já justificava o tratamento dado pelo CDC ao comerciante - o qual somente pode ser responsabilizado pelo "fato do produto" nos casos do art. 13 - e serve de fundamento para a alteração do Código Civil. Em consequência, passa a ser necessária uma leitura mais cuidadosa do enunciado 42 da "I Jornada de Direito Civil" na parte que se refere "à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos" (grifou-se). Esta "vinculação à circulação", com a nova redação proposta, não deve, de fato, ser capaz de gerar, pelas razões já apontadas, a responsabilidade do comerciante. Outra importante alteração é a referência expressa à existência de um "defeito" no produto como elemento deflagrador do dano, sendo o defeito entendido, na forma do parágrafo único da norma projetada, como violação da legítima expectativa de segurança existente ao tempo da entrada em circulação do produto. É inegável que a nova redação proposta para o dispositivo buscou inspiração no art. 12, § 1º, do CDC, mas não com o intuito de, simplesmente, repetir um sistema já consagrado em nosso ordenamento jurídico, - levando a uma duplicidade talvez inútil -, mas sim com o nobre intuito de evitar a "ruptura do sistema", afastando a possibilidade de se reconhecer uma responsabilidade sem excludentes do fabricante.4 De fato, a previsão, ainda em vigor, do Código Civil, imputando uma responsabilidade objetiva aos "empresários individuais e às empresas" sem qualquer excludente expressa, sempre foi motivo de grande apreensão doutrinária. Não foi por outra razão que, na VI Jornada de Direito Civil, foi aprovado o enunciado 5625, o qual é corroborado pelo enunciado 661, da IX Jornada de Direito Civil.6 O claro objetivo dos dois enunciados é evitar a possível interpretação de que o art. 931, indo além do sistema protetivo inaugurado pelo CDC, teria consagrado uma responsabilidade civil objetiva fundada no chamado "risco integral", isto é, sem excludentes. Assim, caminhou bem o reformador ao incluir o "defeito" como um pressuposto para a responsabilidade objetiva do fabricante.7 Claro que, além deste requisito, também é indispensável a existência de um vínculo de necessariedade entre o defeito e o dano verificado, de forma que as demais excludentes do nexo causal também poderão ser validamente invocadas pelo fabricante.8  Oportuno observar, porém, que, dentre estas excludentes, não se inclui aquela conhecida como "riscos do desenvolvimento". Ao contrário, a referência expressa ao "defeito" como requisito para a responsabilidade também no regime do Código Civil serve para confirmar que os riscos presentes no produto, desde o momento de sua entrada em "circulação", devem ser imputados ao fabricante, ainda que desconhecidos pelo mais avançado estado da ciência e da técnica então em vigor.9 Observa-se, assim, mais uma vez, uma aproximação entre o regime inaugurado pelo CDC e aquele constante do Código Civil.10    Considerando a (reforçada) proximidade entre os regimes da responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista pelo CDC, e o que se pretende estabelecer com a reforma do art. 931 do Código Civil, deve ser respondida uma pergunta final: Qual a utilidade da manutenção deste último dispositivo? Certo é que não são conhecidos precedentes, na jurisprudência do STJ, que tenham sido fundamentados exclusivamente no disposto no Código Civil.11 A resposta parece residir no fato de que o regime do CDC é caracterizado por sua capacidade expansiva, em especial se for recordado que, para fins do "fato do produto", consumidor não deve ser entendido somente como "destinatário final" (art. 2º, caput), e sim como qualquer "vítima do evento danoso" (art. 17), o chamado bystander (expectador).12 Assim, o espaço reservado à incidência do art. 931 apresenta-se, de fato, restrito, ficando reservado às hipóteses em que não se mostra possível a aplicação do regime especial.13 Mas parece inquestionável que a aplicação do Código Civil poderá ocorrer em situações em que não se consegue reconhecer a figura do "destinatário final", e tampouco a figura do bystander, uma vez que se considere inexistente prévia relação de consumo.14 Exemplo pode ser encontrado na venda de elevada quantidade de determinado produto (como, por exemplo, combustível) de um fabricante (pessoa jurídica) para ser utilizado como insumo pela pessoa jurídica adquirente, a qual é dotada de grande porte econômico. No ato da entrega do produto ocorre uma explosão destruindo os caminhões da empresa transportadora, sendo tal explosão decorrente de um defeito presente no produto transportado, o que foi confirmado por prova pericial.15 Para estas situações, ainda que, aparentemente, pouco numerosas, é sim recomendável a existência de norma específica consagradora de uma responsabilidade civil objetiva fundamentada na existência de um defeito no produto causador do dano. ________ 1 CARNAÚBA, Daniel Amaral. "Para que serve o art. 931 do Código Civil? Considerações críticas sobre um dispositivo inútil", in Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 7, n. 22, pp. 203-239, jan./mar. 2020. 2 As questões relativas à atuação da Comissão de Juristas, até a apresentação do "Relatório Final", podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: "CJCODCIVIL - Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil - Atividade Legislativa - Senado Federal", acesso em 28.06.2024. 3 Esta conhecida afirmação é de Fábio Konder COMPARATO, "A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico", in Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 491. No mesmo sentido pode ser recordada a doutrina de João Calvão da SILVA (Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, p. 24), segundo o qual é inegável que houve uma "desfuncionalização do comércio", a traduzir uma "alteração da função ou do papel do comerciante: de especialista e conselheiro do adquirente passa a simples distribuidor, a entreposto ou "estação intermédia", mero elo de ligação entre o produtor e o consumidor e cuja função principal, quase exclusiva, está na armazenagem e distribuição dos produtos". 4 O perigo da "ruptura do sistema" foi corretamente apontado por Gustavo TEPEDINO em "Editorial" intitulado "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto" publicado na Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, Forum, v. 22, pp. 11-13, out./dez. 2019. 5 Afirma o Enunciado 562: "Aos casos do art. 931 do Código Civil aplicam-se as excludentes da responsabilidade objetiva".   6 Eis o teor do Enunciado 661: "A aplicação do art. 931 do Código Civil para a responsabilização dos empresários individuais e das empresas pelos danos causados pelos produtos postos em circulação não prescinde da verificação da antijuridicidade do ato". Para um aprofundamento da "antijuridicidade" como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual pode ser vista a doutrina de PETTEFI DA SILVA, Rafael. "Antijuridicidade como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição", in Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, pp. 169-214. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2019.  7 Para uma defesa do "defeito" como requisito da responsabilidade objetiva também no regime do Código Civil seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, "O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento", in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA, v. 21, pp. 53-93, jan./mar. de 2005.      8 Esta afirmação foi precisamente sintetizada por Gustavo TEPEDINO, "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto", cit., p. 13, ao afirmar: "Por esse motivo, também em homenagem à coerência do sistema, as excludentes do dever de reparar previstas no Código de Defesa do Consumidor devem incidir na busca de causalidade necessária entre o dano e o defeito que o produziu". 9 Sobre o tema dos "riscos do desenvolvimento" seja consentido remeter a obra específica: CALIXTO, Marcelo Junqueira. A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004. Quanto ao tema, é oportuno recordar que, já na I Jornada de Direito Civil, foi elaborado o Enunciado 43 que afirma: "A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento".   10 Nesse sentido, deve ser recordado que a afirmação de que o CDC não reconhece os "riscos do desenvolvimento" como uma possível excludente da responsabilidade do fornecedor deixou de ser uma questão meramente doutrinária, mas ganhou a adesão judicial. De fato, ao julgar, em 05 de maio de 2020, o Recurso Especial 1.774.372/RS, a Min. Relatora (Nancy Andrighi), acompanhada pelos demais integrantes da Terceira Turma, asseverou, em seu voto, o seguinte: "Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno" (grifou-se). 11 De fato, o precedente "mais próximo' que se encontra na jurisprudência do STJ é relativo à contrafação de produtos em ação movida pelos titulares das marcas em face de "administradora de centro comercial" situado em área de comércio popular de São Paulo. No caso, a administradora foi solidariamente condenada por ser a locadora de "stands" e "boxes" nos quais eram comercializados os produtos considerados "violadores do direito de propriedade industrial" dos titulares das marcas (Recurso Especial 1.125.739/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 03 de março de 2011). A solução da controvérsia, em verdade, não parece encontrar fundamento no art. 931 do Código Civil, mas o dispositivo havia sido citado pelo TJSP, juntamente com o art. 927 do mesmo diploma, e não houve provimento do Recurso Especial, quanto ao ponto, por força do óbice da Súmula 7 do STJ.    12 Oportuno recordar os dispositivos do CDC: "Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final; Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". 13 Dessa forma, não se mostra correto o Enunciado 378 da IV Jornada de Direito Civil, que afirma: "Aplica-se o art. 931 do Código Civil, haja ou não relação de consumo". Como visto, o pressuposto para a aplicação do regime do Código Civil é que, efetivamente, inexista relação de consumo, pois, presente esta, o tratamento da controvérsia deve encontrar fundamento no previsto na lei especial. 14 O STJ, de fato, tem precedentes reconhecendo que a aplicação do art. 17 do CDC, reconhecendo o bystander como "vítima do evento danoso", exige a demonstração de "prévia relação de consumo". Assim, por exemplo, o taxista não é responsável, como fornecedor de serviços, se, no momento da colisão de seu carro com o de terceiro, não estivesse transportando nenhum passageiro. Este terceiro não será considerado "vítima" de um serviço defeituoso pelo fato de "inexistir prévia relação de consumo" (veja-se, nesse sentido, o julgamento do Recurso Especial 1.125.276/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28 de fevereiro de 2012).     15 Outro interessante exemplo é dado por Gustavo TEPEDINO, "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto", cit., p. 12, ao afirmar: "Em outras palavras, incide o art. 931, fora das relações de consumo, mas respondendo à mesma dinâmica objetiva de incidência, subordinada à presença de antijuridicidade estabelecida por vício de segurança que o legislador pretendeu coibir como um desvalor. Significa dizer que, em certa atividade lícita, há fato incidental que, independentemente de culpa ou de má utilização pelo destinatário, altera os efeitos legitimamente esperados do produto (imagine-se, a título ilustrativo, o vazamento de certo produto químico no ato de entrega à empresa destinatária)".  
No ano de 2012 tivemos a oportunidade de defender tese de doutoramento junto ao programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, intitulada "Responsabilidade Civil Preventiva". Na ocasião, afirmamos: "Aludir-se à responsabilidade civil preventiva pode parecer estranho, incomum, subversivo ou até mesmo equivocado, ao menos quando contrastada a referida designação com os fundamentos e objetivos tradicionalmente imputados ao instituto." Naquele momento, aludir-se à prevenção dentro da responsabilidade civil soava subversivo. Todavia, passados doze anos, é possível hoje sustentar com menor dificuldade que a prevenção está efetivamente inserida no cerne da responsabilidade civil contemporânea. Seguindo a tendência mundial de se repensar a própria razão de ser da responsabilidade civil, é indispensável revisar o sentido do que significa ser "responsável civilmente" no século XXI. O redimensionamento da responsabilidade civil como instrumento de tutela dos direitos inerentes à pessoa - e não apenas voltado à recomposição do patrimônio ou ao seu equivalente por meio da indenização -, constitui um dos grandes desafios que a realidade das relações sociais contemporâneas faz emergir. Nesse sentido, o anteprojeto de reforma ao Código Civil, visando acompanhar as grandes modificações sofridas pela responsabilidade civil ao longo do século XX, buscou reestruturá-la por via da implementação de um modelo aberto, e axiologicamente orientado pelo respeito à pessoa, 'valor-fonte' do Ordenamento, e por princípios dotados de elevada densidade ética, que visam tutelar aspectos atinentes a esse valor-fonte. De acordo com o relatório final da comissão redatora do anteprojeto, "Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, consideramos a necessidade de adequar a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido."1 Anote-se a pretensão de reforma inscrita no art. 927-A do anteprojeto do CC, que inaugura a refundamentação da responsabilidade civil sob o viés preventivo: Art. 927-A. Todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los. § 1º Toda pessoa tem o dever de adotar, de boa-fé e de acordo com as circunstâncias, medidas ao seu alcance para evitar a ocorrência de danos previsíveis que lhe seriam imputáveis, mitigar a sua extensão e não agravar o dano, caso este já tenha ocorrido. Como se percebe, a proposta de reforma refundamenta a responsabilidade civil sob perspectivas sensivelmente distintas daquelas até então observadas, abrindo caminho para a sua funcionalização preventiva. Trata-se de uma renovação teórica imprescindível, na medida em que não parece mais aceitável, diante de uma sociedade globalizada e hiperexposta a danos graves e irreversíveis, que a incidência do Direito da responsabilidade civil continue a se restringir exclusivamente à pretensão de reparação de danos. A proposta de reforma atende à inexorável lógica segundo a qual a prevenção deve, a um só tempo, fundamentar e funcionalizar a responsabilidade civil na atualidade, em todos os cenários possíveis. Como sustenta Nelson ROSENVALD, "a prevenção é o cerne da responsabilidade civil contemporânea"2, não sendo lógico nem razoável relegar um tal papel dissuasório da ilicitude e da lesividade individual e social exclusivamente ao Direito Público. O Direito Privado igualmente possui tal encargo. O Direito da responsabilidade civil não pode mais ser relegado a mero mecanismo a funcionar apenas ex post (após a ocorrência do evento danoso). Ele deve atuar, preferencialmente, ex ante (tendo como objetivo a inviolabilidade dos direitos e a prevenção de danos). A consagração da função preventiva da responsabilidade civil se deve, sobretudo, às necessidades impostas pela realidade social do século XXI. As novas características qualitativas e quantitativas dos danos suportados pelas pessoas - não só a título individual, mas também sob o prisma coletivo -, despertam a invocação dos princípios da solidariedade e da justiça social no intuito de amenizar a crise de efetividade do Direito da responsabilidade civil. A aprovação da proposta em análise, para muito além de instrumentalizar a responsabilidade civil em atenção às necessidades de tutela efetiva dos direitos no Estado Constitucional, acarretará profunda e bem-vinda alteração paradigmática neste que é, seguramente, um dos mais importantes temas de regulação das relações sociais.     Despesas preventivas Reassentando a lógica da prevenção na codificação civilista brasileira, o anteprojeto de reforma consagra a compensação das chamadas "despesas preventivas", instrumentalizando autêntica tutela inibitória material. Eis a proposta: § 2º Aquele que, em potencial estado de necessidade e sem dar causa à situação de risco, evita ou atenua suas consequências, tem direito a ser reembolsado das despesas que efetuou, desde que se revelem absolutamente urgentes e necessárias, e seu desembolso tenha sido providenciado pela forma menos gravosa para o patrimônio do responsável. Trata-se de importante autorização legislativa para que o próprio titular de um direito, seriamente ameaçado de lesão (daí a ideia de "potencial estado de necessidade"), possa agir pessoal e materialmente, objetivando sua preservação integral, creditando-se no direito de reparação dos custos arcados para a prevenção contra o responsável pela causação do risco de dano. A aprovação dessa proposta inauguraria hipótese bastante aberta do emprego de autotutela no ordenamento jurídico brasileiro. Perceba-se que, nessa hipótese, o emprego da tutela jurisdicional ficaria relegada a posteriori, não para garantir a tutela inibitória, mas sim para garantir eventuais pretensões de ressarcimento não apenas pelas perdas e danos suportados como também pelos custos gerados com a proteção preventiva. Vale dizer, preserva-se a incolumidade do Direito em essência, repassando-se ao agressor responsável pela injusta ameaça a responsabilidade de ressarcimento pelos custos da prevenção suportados pelo titular do direito - ou mesmo por terceiro - em sua defesa. Precisamente nesse sentido, o European Group on Tort Law3, ao enunciar quais seriam, sob a perspectiva de suas pesquisas, os princípios do Direito europeu de responsabilidade civil, já houvera propugnado pela adoção de uma nova categoria de danos indenizáveis, correspondentes justamente àqueles derivados das despesas havidas com a prevenção dos danos. Destaca-se a seguir o pertinente enunciado do princípio e sua correspondente justificação: Art. 2.104. Despesas preventivas: As despesas realizadas com vistas a prevenir uma ameaça de dano são consideradas dano ressarcível, desde que a realização dessas despesas se revele razoável (...).4 As chamadas "despesas preventivas" já estão incorporadas no Direito comunitário europeu, sendo especificamente previstas em matéria de proteção ambiental. A Diretiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de 21/4/04, definiu regras relativas à responsabilidade ambiental objetivando "estabelecer um quadro comum de prevenção e reparação de danos ambientais a custos razoáveis para a sociedade" que, se não podem ser suficientemente realizados pelos próprios Estados-membros, podem ser também alcançados em nível comunitário pela intervenção direta (ainda que subsidiária) dos órgãos executivos da União Europeia. A mesma tendência seguiu a importante reforma do Código Civil francês, vigente desde agosto de 2016, que estabeleceu (art. 1251) que, no campo dos danos ambientais, "As despesas realizadas para prevenir a realização iminente de um dano, para evitar seu agravamento ou para reduzir suas consequências constituem um dano reparável."5 Tutela inibitória processual x Tutela inibitória material Um dos grandes desafios que se abre na atualidade é não apenas (re)descobrir as possibilidades de se empreender uma eficiente prevenção da violação dos direitos a partir do próprio direito material (tutela inibitória material) mas, sobretudo, encontrar os meios adequados para que tal objetivo seja concretizável, dentro de um sistema jurídico conformado constitucionalmente tanto pelo princípio da máxima proteção dos direitos fundamentais como pela razoabilidade e proporcionalidade de sua concreta atuação. Nesse sentido, em consonância com o tratamento já dispensado ao tema pela legislação processual nacional, o anteprojeto consagra a tutela inibitória, a partir dos parágrafos 3° e 4°: § 3º Sem prejuízo do previsto na legislação especial, a tutela preventiva do ilícito é destinada a inibir a prática, a reiteração, a continuação ou o agravamento de uma ação ou omissão contrária ao direito, independentemente da concorrência do dano, ou da existência de culpa ou dolo. Verificado o ilícito, pode ainda o interessado pleitear a remoção de suas consequências e a indenização pelos danos causados. § 4º Para a tutela preventiva dos direitos são admissíveis todas as espécies de ações e de medidas processuais capazes de propiciar a sua adequada e efetiva proteção, observando-se os critérios da menor restrição possível e os meios mais adequados para garantir a sua eficácia. A proposta em análise pode ser considerada ainda tímida, na medida em que apenas enuncia e conceitua a já consagrada tutela inibitória a ser requerida ao Poder Judiciário por via do direito de ação. Contudo, em se agregando aos mencionados dispositivos a previsão das despesas preventivas, é possível afirmar a existência de autorização também para o emprego de tutela inibitória material nas hipóteses em que, havendo estado de necessidade, o titular do direito aja pessoal e materialmente para afastar o risco de dano a direito próprio.    A tutela inibitória - capaz de gerar uma autêntica proteção preventiva contra a violação dos direitos -, já vem sendo aplicada pela via jurisdicional em cumulação com as demais espécies de tutelas (tais como a de remoção do ilícito e a ressarcitória na forma específica), sempre no intuito de prestar a melhor forma de proteção aos jurisdicionados. A funcionalidade da tutela inibitória no Brasil, aliás, tem sido reconhecida crescente e amplamente em âmbito jurisprudencial, empregando-se-a atipicamente nas mais variadas pretensões de tutela de direitos individuais e transindividuais, sempre que demonstrados a plausibilidade da tese invocada e o perigo de ocorrência, reiteração ou continuidade da ilicitude. A tutela inibitória deve ser compreendida como forma preventiva de proteção dos direitos. Todavia, diante da ausência ou da insatisfatoriedade dos mecanismos inibitórios materiais, a tutela inibitória acaba sendo instrumentalizada quase exclusivamente por via de técnicas processuais atuadas pela função jurisdicional estatal. Isso não quer dizer, contudo, que a proteção inibitória dos direitos nasça somente a partir da invocação da intervenção estatal por via do direito constitucional da ação processual.   Muito ao contrário, a pretensão à tutela inibitória deve ser compreendida como inerente ao próprio direito subjetivo. A partir do momento em que o ordenamento passa a tutelar determinados direitos ou interesses, a prevenção contra sua violação nasce, à toda evidência, natural e conjuntamente.6 Daí a enorme relevância da previsão da compensabilidade das chamadas despesas preventivas, prevista no §2º do art. 927-A do anteprojeto. Para que se consiga compreender a natural correlação existente entre a tutela inibitória e o direito material é imprescindível que se diferencie claramente a "tutela dos direitos" da "tutela jurisdicional dos direitos", quase sempre confundidas ou tratadas indistintamente.7 Tal percepção revela-se extremamente importante, até mesmo para que seja possível afirmar o comprometimento do direito material com a tutela inibitória e, com isso, fundamentar a própria ideia de responsabilidade civil preventiva. Como se percebe, a ideia da prevenção inserida no campo do direito da responsabilidade civil demanda uma verificação prospectiva (futura) e não retrospectiva (passada). Essa perspectiva é levada em consideração pela responsabilidade civil preventiva no momento em que, quando da prática de um ilícito ou quando da iminência de sua prática (mas antes ainda de qualquer alusão à causação de um dano concreto), pretende-se tutelar a violação ou a continuidade da violação dos direitos. Não se pretende retirar de foco a possível e eventual vítima, mas, ao contrário, priorizar-se a sua tutela, viabilizada de forma a evitar que os titulares dos direitos passem à condição de "vítimas".8 Assim sendo, a responsabilidade civil, embora não seja obviamente reduzível a mero instrumento, deve implementar mecanismos predispostos a regular as condutas humanas, sobretudo comportamentos potencialmente causadores de danos graves e irreversíveis, tendo em vista a premissa fundamental de que "não há como reparar o irreparável".9 Como muito bem retratou a subcomissão de responsabilidade civil: "na sociedade contemporânea - plural e complexa -, danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e, por vezes, anônimos e irreparáveis (...).  A reforma do Código Civil é um momento apropriado para consolidar de forma madura e criteriosa as transformações da responsabilidade civil e preservar a sua centralidade no direito privado. (...) ".10 _________ 1 Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, p. 292. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 2 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3.ed. Saraiva. São Paulo. 2018, p. 96. 3 EGTL - European Group on Tort Law. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 4 Objetivo desse artigo: O artigo aborda uma subcategoria de dano ressarcível. Trata-se de despesas expendidas antes que um dano ocorra. O artigo também se aplica a despesas de prevenção se nenhum dano ocorreu, seja porque as precauções impediram a ocorrência do dano ou ameaça, seja porque o risco não se concretizou. Para todos estes casos o art. 2:104 dispõe que se as medidas financiadas pelos gastos eram razoavelmente aptas a impedir a ameaça de dano tais despesas são reembolsáveis. Se as precauções e as despesas respectivas foram razoavelmente idôneas, isso deve ser avaliado a partir de um ponto de vista objetivo de uma pessoa sensata e cuidadosa, que tem de pesar os riscos com antecedência. Portanto, as despesas de prevenção podem ser ressarcidas mesmo se o risco de danos não se materializou e uma retrospectiva revele que as precauções tomadas eram desnecessárias. E também quando a ameaça de dano finalmente se concretiza apesar de razoáveis precauções as despesas preventivas ainda remanescerão ressarcíveis. Todavia, nesses dois casos, deve ser particularmente julgado - por via de um ponto de vista ex ante - se as precauções tomadas e as despesas conformam-se ao standart de razoabilidade. European Group on Tort Law. Principles of european tort law. Austria: Springer Wien New York, 2005, p. 37-38. 5 "Article 1251 (version en vigueur depuis le 01 octobre 2016 - Création LOI n°2016-1087 du 8 août 2016) - Les dépenses exposées pour prévenir la réalisation imminente d'un dommage, pour éviter son aggravation ou pour en réduire les conséquences constituent un préjudice réparable. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 6 VINEY, Geneviéve. Traité de droit civil: Introduction à la responsabilité. 3 ed., Paris, L.G.D.J., 2008, p. 125.      7 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 82-83. 8 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros editores, 2014, p. 246 e seguintes. 9 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 134. THIBIERGE, Catherine. Libres propos sur l'évolution du droit de la responsabilité. Revue Trimestrielle de Droit Civil, n.º 3. julho/setembro. Paris, 1999, p. 561-584. 10 Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, p. 291-292. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024.
Existem vários níveis de automação dos veículos automotores, a tabela internacionalmente aceita é a elaborada pela Sociedade Internacional de Engenheiros Automotivos1, que elenca até seis níveis. Sendo que somente os níveis 4 e 5 dispensam a supervisão humana. Nos níveis de zero a 3, que são os carros atualmente disponibilizados no mercado, a supervisão humana é imprescindível para reassumir a condução do veículo automotor quando necessário a fim de evitar acidentes.2 Todavia, ignorando tais especificidades, os trágicos acidentes que envolveram carros com algum nível de automação acabaram por acentuar um temor que desencadeou no tratamento exacerbado da responsabilidade civil. No Brasil, cabe ao CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito, nos termos do art. 12 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, lei 9.503, de 23/9/97), regular e reconhecer os níveis de automação de veículos, o ideal é seguir um padrão universal, e.g. a classificação da Sociedade Internacional de Engenheiros Automotivos supra descrita, pois estas tecnologias são divulgadas em diversos países. Diante destes distintos níveis de automação, deve-se constatar suas diferentes aplicações. Portanto, carros automatizados ("driver assist cars" ou "automated cars") são aqueles que tem algum tipo de tecnologia para determinadas funções, tais como, o controle de velocidade (cruise control), sistema de freios automáticos de emergência, avisos de monitoramento ao estacionar com sensores e/ou câmeras. Em outras palavras, seriam os carros com nível zero, 1 e 2 de automação conforme à classificação da SAE.3 Outra categoria são os carros autônomos ("self-driving cars", "driverless cars", ou ainda, "fully driverless cars"), são aqueles identificados sendo do nível 3, 4 ou 5 conforme a classificação da SAE, isto é, o sistema pode assumir o controle da direção em situações pontuais (nível 3), o sistema permite a direção sem motorista em determinadas circunstâncias, ou seja, quando as vias estiverem preparadas para a direção autônoma do carro (nível 4), ou, ainda, quando os carros se dirigirem sem necessidade de supervisão humana (nível 5). Levando em consideração tais distinções, o que não foram consideradas no PL 2.338, de 2023, que discute a regulação da inteligência artificial no Brasil4, pois elencou indistintamente os carros autônomos na classificação de alto risco nos termos do inciso VIII do art. 17: "VIII - veículos autônomos, quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas". Todavia, há alguns problemas deste tipo de regulação sobre a qual precisa uma reflexão para evitar o ativismo judicial após a aprovação de uma lei que não leve em consideração essas nuances das tecnologias que usam inteligência artificial como o caso dos carros autônomos. Um dos problemas é o que foi destacado acima, há diversos níveis de automação que não foram levados em consideração, claro pois são questões específicas que justificam uma regulamentação setorial. Em consequência desta falta de acuidade ao tratar de um tema tão complexo, o próprio PL 02.338/23 traz dentre as excludentes do nexo de imputação previstas no art. 28, inc. II, a culpa exclusiva de terceiro ou do usuário. Ora nas hipóteses de automação de nível zero, 1, 2, 3, em até mesmo 4, quando o motorista (usuário) ou até mesmo uma pessoa que esteja sendo transportada (passageiro) que não retome a direção do veículo quando o sistema exigir tal conduta mediante um alarme para tanto, seria esta uma excludente nos termos da legislação proposta? Vale ressaltar que o próprio PL 2.338/23 menciona a correta aplicação do CDC quando os danos envolvendo inteligência artificial ocorrerem no contexto das relações de consumo (art. 29). Todavia, o próprio art. 12, § 3º, inc. III do CDC prevê igual excludente (culpa exclusiva do consumidor e de terceiro). Assim, se o consumidor não assumir a condução do veículo quando o sistema exigir tal conduta ou mesmo um passageiro que der algum comando inadequado, podem, em última análise excluir a responsabilidade civil do fornecedor dos carros autônomos, seja por aplicação do disposto no PL 2.338/23, seja pela aplicação da legislação consumerista. Neste contexto, importante destacar os danos não indenizáveis, o que demanda uma análise mais aprofundada sobre possíveis alternativas como sistemas de seguro ou a criação de um fundo para custear os danos não indenizáveis no contexto dos acidentes que envolvam o uso de inteligência artificial.5 Uma sugestão interessante feita por Matthew U. Scherer6,estabelece um sistema facultativo de registro ou certificação da tecnologia que empregue algum sistema de inteligência artificial que deve ser regulado e realizado pela "Agência para o Desenvolvimento de Inteligência Artificial" (órgão competente), mediante o pagamento de uma taxa. Os valores recebidos por esta agência constituiriam um fundo que seria utilizado para os casos de reparação civil em que o responsável legal seja insolvente ou quando não seja possível definir quem seja o responsável legal. Outrossim, a certificação, ressalvados os segredos industriais e comerciais, revelariam todas as funcionalidades do sistema efetivando o princípio da transparência e explicabilidade. Outro problema da falta de regulação setorial mais verticalizada para se definir a responsabilidade civil no contexto dos carros autônomos diz respeito à ressalva feita no próprio inciso VIII do art. 17 do PL 2.338, ou seja, "quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas". No cenário brasileiro, o relatório apresentado pelo Observatório Nacional de Segurança Viária7 indica que morreram, só em 2014, 43.790 pessoas em acidentes de trânsito, o que representa um prejuízo de 56 bilhões de reais, com indenizações, previdência, impacto na produção e etc., sendo que 90% destes acidentes podem ser atribuídos à falha humana (embriaguez ao volante, desatenção, excesso de velocidade, dentre outras); apenas 5% destes acidentes são decorrentes de falhas mecânicas e 5%, devido a problemas estruturais na pista (como buracos, sinalização deficiente e mal conservação). Portanto, os carros autônomos não estão suscetíveis à embriaguez, desatenção, excesso de velocidade, dentre outras, pois obedece rigorosamente aos inputs realizados no treinamento. E, se associado à infraestrutura viária no contexto da Internet das Coisas (os denominados "carros conectados"), será um meio de transporte muito mais seguro; porém não infalível. Assim, a redação do inciso VIII do art. 17 não é clara e até mesmo inócua se pensarmos que os carros autônomos tendem a aprimorar a segurança no trânsito. Aliás, qualquer desenvolvimento e aplicação de IA somente se justifica para a melhoria da qualidade da vida humana. Outro problema é a classificação e a possível reclassificação do risco que deve ser feita pelo órgão competente em cooperação com o órgão regulador do setor (parágrafo único do art. 17 do PL 2.338)8, no caso o CONTRAN. A Resolução 717, de 30/11/17 do CONTRAN, determinou a realização de estudos técnicos para o aprimoramento de alguns temas, no item 37 deste anexo, estão os veículos autônomos, com 48 meses para apresentar o relatório após a entrada em vigor da lei, que se deu em 30 dias de sua publicação, ou seja, o comitê técnico tem até dia 30/12/21 para apresentar o relatório.9 Por fim um derradeiro problema revela o efeito relacionado ao mito de Pigmalião10, ou seja, espera-se que os sistemas de IA sejam mais perfeitos que os seres humanos, daí a responsabilidade por acidentes de trânsito que é subjetiva, passa a ser objetiva nos termos do art. 27, inc. I do PL 2.338, que determina que os sistemas de IA classificados como risco elevado ensejam a responsabilidade objetiva. Assim, a melhor forma de regulação da IA no Brasil quanto à responsabilidade civil seria a lei estabelecer alguns princípios e diretrizes gerais, porém as regras específicas, seja na área da saúde, do agronegócio, de transporte, segurança pública e etc..., devem ser reguladas de maneira específica em colaboração pelo órgão competente, que deve ser criado no contexto específico da inteligência artificial, e respectivos órgãos reguladores de cada área específica. Em suma, o desenvolvimento tecnológico é veloz e o instrumento legislativo precisa acompanhar tais mudanças, o que não se coaduna com a necessidade de mudança na lei toda vez que houver necessidade de classificar novos riscos ou reclassificar os mencionados na lei. _________ 1 SHUTTLEWORTH, Jennifer. In: International Society of Automobilist Engineers - SAE Standards News: J3016 automated-driving graphic update (de 7 de janeiro de 2019). Disponível aqui. Acessado em 20 de março de 2020. 2 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de Lima. Sistema de Responsabilidade Civil para Carros Autônomos. Indaiatuba: Foco, 2023. 3 CRANE, Daniel A.; LOGUE, Kyle D.; PILZ, Bryce C. A Survey of Legal Issues Arising From The Deployment of Autonomous and Connected Vehicles. In: Michigan Telecommunications and Technology Law Review, vol. 23, pp.  191 - 320 (2017). Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. p. 202. 4 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2.338 de 2023. Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. 5 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Sistema de Responsabilidade Civil para Carros Autônomos. Indaiatuba: Foco, 2023. 6 Regulating Artificial Intelligence Systems: Risks, Challenges, Competencies and Strategies. In: Harvard Journal of Law & Technology. Cambridge: Harvard Law School. v. 29, n. 02, p. 353-400, Primavera, 2016. p. 393 e ss. 7 Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. 8 Parágrafo único. A atualização da lista mencionada no caput pela autoridade competente será precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e de audiência públicas e de análise de impacto regulatório 9 Este prazo pode ser suspenso em função de todas as restrições em virtude da pandemia pelo COVID-19. 10 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; QUINTILIANO, Leonardo David. O mito de Pigmalião e as tendências da responsabilidade civil por danos decorrentes do uso de Inteligência Artificial. In: Migalhas de IA e Proteção de Dados. Disponível aqui, publicado em 28 de junho de 2024.
Recentemente o mundo viveu um colapso dos serviços digitais1, impactando os serviços prestados em todos os segmentos, mas com especial atenção para o transporte aéreo2. Nos aeroportos do mundo todo, o apagão cibernético ficou ainda mais complicado: cancelamentos em massa de voos, atendentes desesperados, clientes que, sem saber o que fazer, estavam ainda mais desesperados tentando chegar ao seu destino, sem informações e com suas bagagens extraviadas. Em suma, caos. Como é de costume então, não tardará para que as ações indenizatórias comecem a aparecer nos Tribunais, que terão que enfrentar mais uma tormentosa dúvida: cabe às transportadoras aéreas a responsabilidade pelos danos decorrentes de atrasos e cancelamentos? Um operador do direito mais incauto poderia, imediatamente, reconhecer tal responsabilidade ao argumento de que é obrigação do transportador levar a pessoa e sua bagagem ao destino com segurança e presteza, ficando sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos (arts. 734, 735 e 737, todos do CC). Contudo, como os próprios dispositivos citados informam, "salvo motivo de força maior" e é aqui que a questão complica. Afinal, esse caos aéreo decorre de um motivo de força maior? O tema não é simples, pois envolve o debate acerca (i) do nexo de causalidade, (ii) do risco da atividade e (iii) da diferenciação entre fortuito interno e externo. Essa coluna já enfrentou todos esses temas diversas vezes3 e, ainda assim, permanecem inúmeras dúvidas, não havendo consenso. Tentar-se-á buscar esclarecer alguns aspectos metodológicos desse caso, para que se possa entender melhor os desdobramentos no juízo de reparação. O primeiro ponto a ser enfrentado é o desenvolvimento causal e como ele afeta os contratos desses prestadores de serviços. Poder-se-ia argumentar que o inadimplemento contratual por parte do transportador decorre do atraso e, consequentemente, o inadimplemento restaria caracterizado. Contudo, um olhar mais apurado nos faria considerar que o evento com relevância causal não é o atraso em si, mas, antes, um defeito em uma atualização de sistema da empresa Crowdstrike, que gerou um efeito dominó em todos os clientes que se valem de servidores Windows4. O atraso, portanto, teve como antecedente causal um software problemático da CrowdStrike, que impossibilitou que as companhias áreas pudessem acionar seus computadores. A se considerar esse evento como a causa, então, ela poderia ser suficiente para afastar a responsabilidade por fato de terceiro? Antes de responder, é preciso reconhecer que o nexo de causalidade, no campo do Direito, encontra um importante aspecto: ele deve ser analisado a partir de cada sistema e, nesse ponto, pode ser compreendido de acordo com o sistema sociojurídico em que emerge, desenvolve-se e interage. Embora a noção do liame naturalístico auxilie na análise jurídica, na medida em que é assente que todo efeito decorre de uma causa antecedente, não haverá necessariamente uma coincidência de conclusões no processo investigativo da causa entre uma investigação meramente naturalística e uma jurídica. O que se está a dizer é que no processo causal se impõe uma valoração das condições para que se possa saber qual delas é a causa em cada caso e, parece intuitivo, que tal valoração é exercida atendendo aos critérios propriamente jurídicos5. Assim, apesar da análise da causa envolver uma questão de fato, não se pode deixar de reconhecer que ela não é puramente factual, pois determinar ou refutar a atribuição de responsabilidade pressupõe a produção de um conhecimento detalhado: a noção de causa no campo do Direito é sempre uma noção normativa, embora haja, subjacente uma questão fática. Não há, portanto, uma separação absoluta entre causalidade de fato e causalidade jurídica como se fossem duas entidades independentes e autônomas, mas, antes, são categorias que "mutuamente se condicionam, pressupõem e remetem"6-7. Ou seja, o simples compreendimento de que o antecedente causal decorre de um terceiro não significa, por si só, a exoneração do transportador aéreo se houver algum critério normativo de imputação de responsabilidade - essa escolha, inclusive, foi feita expressamente pelo legislador no contrato de transporte, como se extrai do art. 735, do CC. Dito isto, considerado esse "fato de terceiro", no âmbito de uma atividade perigosa, como é o caso do transporte aéreo, há de se identificar se este evento se situa no risco da atividade, critério normativo de imputação de responsabilidade estabelecido em nosso ordenamento no art. 927, do CC. Sobre esse ponto, já se teve a oportunidade de discutir a necessidade de renovação do debate sobre risco nesta coluna8.Naquela ocasião, defendeu-se que as teorias sobre risco, embora louváveis, não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Ali afirmou-se que o risco no campo da responsabilidade civil deve ser tratado não apenas nas perspectivas tecnocientíficas, pautadas pelo aspecto objetivo das probabilidades, mas, especialmente, nas perspectivas socioculturais, que se valem do contexto social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado. O risco, portanto, não é um fato puro, desprovido de uma análise social; ele é reconhecido e discutido no meio social. Dito diversamente, os riscos são reais, embora permaneçam construções sociais9. Nesse sentido, pode-se afirmar que a assunção do risco com a consequente tomada de decisão decorre, também, de uma relação de confiança. Aquele que assume um determinado risco o faz baseado na sua percepção dos riscos quanto à tomada de decisão e na confiança despertada a partir do conhecimento científico construído na sociedade Assim a construção de um conceito de risco deve levar em consideração que: (i) existem determinados fatos no mundo que são objetivos, ainda que a relação de causa e efeito seja dotada de incerteza, mas cuja (ii) identificação, reconhecimento, entendimento, mensuração e tratamento são limitados pelas restrições sociais e cognitivas, isto é, o conhecimento (técnico e leigo), bem como a percepção existente ao tempo da tomada da decisão10 e a confiança tanto daquele que produz o risco como daqueles que o suportam, e (iii) o reconhecimento de que a partir dessa tomada de decisão vigora uma incerteza relativa e perene a alguma característica do mundo que afeta a realidade humana existente. Nesse sentido, propõe-se que o risco da atividade seja compreendido como uma situação ou um evento legitimamente esperado, atribuível a uma decisão humana, comissiva ou omissiva, em que um interesse juridicamente protegido se encontra sujeito a uma lesão potencial, mas cujo resultado concreto é incerto.11 A partir deste conceito, então, é possível propor um entendimento mais claro sobre o que seria o fortuito interno, inerente às atividades potencialmente lesivas desenvolvidas. Apesar de não haver consenso, costuma-se identificar até 6 (seis) requisitos para caracterização do caso fortuito e força maior, o que ajudará a diferenciar o fortuito interno do externo. São eles: (1) a não imputabilidade, (2) a inevitabilidade ou impossibilidade, (3) a atualidade, (4) a exterioridade. Parte da doutrina costuma acrescentar até mais dois, quais sejam (5) a imprevisibilidade e (6) a irresistibilidade. De todos, parece que os dois últimos requisitos não deveriam ser considerados, conforme se exporá. A não imputabilidade, também denominada não causalidade, é essencial à configuração do fortuito. Para que se opere essa excludente, torna-se necessário que a atuação do ofensor não tenha sido a causa da situação de caso fortuito. A inevitabilidade ou impossibilidade normalmente vem acompanhada da ideia de irresistibilidade. Note-se que se optou por não fazer alusão à ideia de irresistibilidade, pois esta não se apresenta como um requisito indispensável. Ela pode ou não estar presente. Explica-se. A noção de irresistibilidade prontamente leva à ideia de impossibilidade. Se um fato é irresistível, isso significaria que seria impossível qualquer atuação distinta. Mas não é verdade. Pode ocorrer que um evento seja irresistível e, mesmo assim, não torne impossível a atuação do suposto ofensor ou, também, pode ocorrer da atuação se tornar impossível, ainda que não fosse irresistível. Ademais, a expressão irresistibilidade, quando tomada num sentido absoluto, praticamente nega a força maior - nenhum fato é absolutamente irresistível - e, quando tomada em sentido relativo, leva à discussão de culpa: o fortuito se transformaria em investigar se o suposto ofensor foi diligente, isto é, se fez o que devia ter feito, o que significa investigar se agiu culposamente. O que caracteriza efetivamente o fortuito, no entanto, é a total impossibilidade de atuação distinta por parte do suposto ofensor. Deve-se compreender por inevitabilidade, portanto, a total impossibilidade de "evitar o próprio acontecimento, ou seus efeitos"12, o que afastaria essa noção de irresistibilidade, pois já estaria absorvida pela ideia de inevitabilidade. O terceiro requisito é a atualidade. Este requisito deve ser encarado no sentido de que o evento fortuito tem incidência atual e não meramente temporária. A exterioridade, por fim, consiste na concepção de que o evento, para ser considerado fortuito, deve estar situado fora da esfera em que o ofensor responde. Dito diversamente, o fato não pode ser atribuído à esfera jurídica de atuação do ofensor, não pode guardar qualquer grau de conexão com sua atuação ou atividade - tema que voltaremos. Mas e a imprevisibilidade? Ela deve ser encarada como sinônimo da exterioridade? Em caso negativo, deve ser um requisito autônomo? É comum encontrar autores que defendem que somente o fortuito imprevisível teria o condão de liberar o ofensor. Entende-se que a imprevisibilidade não deveria figurar como requisito - ela há de ser criticada, por ser um critério de extrema fragilidade, pois insere um elemento subjetivo numa discussão objetiva acerca de acontecimentos estranhos à atuação do suposto ofensor. O ponto mais sensível, em realidade, é que a imprevisibilidade é dispensável e pode estar presente ou não, pois, ainda que o evento seja previsível, ele pode se dar com uma força inelutável, de tal maneira que se torna inevitável13. Nesse sentido, a inevitabilidade acaba por absorver, por completo, a imprevisibilidade. Ora, se o evento é inevitável a ponto de afastar a responsabilidade, quer seja previsível ou não, então a imprevisibilidade não se apresenta como um requisito essencial. De fato, se o evento, ainda que previsível, for absolutamente inevitável, não parece haver razão para não se admitir a excludente14. Se esta conclusão se apresenta válida, então, a imprevisibilidade não é requisito essencial. Parece, portanto, que ela é inadequada para fins de atribuição da responsabilidade civil15. Nada obstante, a lei 14.034/2020, acabou por incluir o § 3º ao art. 256, da Lei 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), que enumerou as hipóteses de fortuito ou força maior, desde que "supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis". É de se indagar novamente: se é inevitável, de que importa a imprevisibilidade? Este fator já seria suficiente a afastar a responsabilidade. Em verdade, ao que tudo indica, a questão não é de previsibilidade ou não do fato, mas, antes, se o evento está de alguma forma inserido na esfera jurídica do suposto ofensor. O recurso à ideia de previsibilidade acaba por reconduzir à culpa e a uma responsabilização moral do agente, o que, de certa maneira, ainda que equivocada e por caminhos alheios às finalidades contemporâneas da reparação dos danos, pode atender, em alguma medida, aos anseios de reparação da vítima e "punição" do ofensor. Ocorre que a melhor solução que se apresenta é, na realidade, identificar o fato não como previsível, mas como interno, permanecendo na esfera jurídica daquele que cria um risco em razão de sua atuação. É justamente o critério da exterioridade que desempenhará o papel fundamental na adequada distribuição de riscos dentro da sociedade por intermédio da responsabilidade civil, identificando se o fato se insere no âmbito dos riscos criados pelo agente que explora a atividade perigosa. Trata-se, a toda evidência, de um critério extremamente difícil. Assim, propõe-se o abandono da ideia de imprevisibilidade com a consagração do critério da exterioridade, formulado dentro de parâmetros que permitam a identificação dos riscos criados. Propõe-se, também, que a análise da exterioridade deva ser tratada do ponto de vista da confiança. Esta é tida como elemento decisivo nas sociedades contemporâneas e em todas as formas de interações humanas. A aceitação de qualquer risco é mais dependente da confiança no gerenciamento do risco do que nas estimativas quantitativas das consequências e probabilidades. A confiança, portanto, desempenha um importante papel na redução de danos e perigos aos quais estão sujeitos determinados tipos de atividade, pois certos padrões de perigos são institucionalizados no interior da atividade, que passam a se colocar em estruturas abrangentes de confiança. A busca pela segurança, então, passará, necessariamente pelo equilíbrio entre risco e confiança, de tal maneira que seja legítimo esperar determinadas situações ou eventos danosos no desempenho de atividades específicas e, consequentemente, exigir comportamentos tendentes a minimizá-los. A questão da exterioridade, portanto, deve levar em conta a conjugação entre fatores técnicos, decorrente das ciências probabilísticas, e a confiança despertada a partir dos riscos legitimamente esperados para a atividade perigosa em si. A identificação do requisito da exterioridade dependerá, assim, da conjugação de três importantes elementos, a que se denomina critérios positivos do fortuito interno. São eles: (i) que o evento seja possível, (ii) que haja uma razoável probabilidade de sua ocorrência, (iii) que seja legitimamente esperado, o que nos leva a considerar que o fortuito interno deve ser compreendido "como a situação ou evento legitimamente esperado da atividade abstratamente considerada"16. Repare-se que não se deve confundir aquilo que é legitimamente esperado com os fatos que são previsíveis. A imprevisibilidade não se confunde com a confiança, muito embora, em alguns casos seja difícil diferenciá-los. É possível que um fato imprevisível não seja legitimamente esperado. Mas a recíproca não é verdadeira. O fato, mesmo previsível, poderá não ser legitimamente esperado. Um dos principais exemplos de distinção entre o que é legitimamente esperado e a sua imprevisibilidade pode ser extraída de um fato relativamente rotineiro no Brasil. Não é incomum em grandes metrópoles brasileiras a ocorrência de assaltos à mão armada em ônibus. O debate relativo a se esses assaltos consistiriam em um fortuito interno ou externo é, até hoje, objeto de controvérsias. Os defensores da imprevisibilidade argumentam que na medida em que ocorrem diversos assaltos, esse fato já se tornou previsível e, portanto, consistiria em um fortuito interno. Se, contudo, indagarmos se o assalto é um fato legitimamente esperado da atividade de transporte abstratamente considerada, parece que a resposta será negativa. Não é dado a ninguém acreditar que está inserido dentro da atividade de transporte a segurança do passageiro contra quadrilhas de assaltantes. Sem dúvida que a cláusula de incolumidade exige que o transportador garanta a incolumidade física dos passageiros, mas ela se limita aqueles eventos pertinentes à atividade em si, tais como, acidentes rodoviários, colisões com terceiros, mal funcionamento do veículo, etc. Mas certamente foge ao escopo do contrato de transporte a proteção contra quadrilhas armadas. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça Brasileiro fixou a tese de que se trata de um fortuito externo17, reconhecendo, a princípio, que a atividade, abstratamente considerada, não cria a legítima expectativa de que o assalto à mão armada está inserido no círculo de atividade do transportador rodoviário. Caminhando para uma conclusão, é possível argumentar que é a confiança objetivamente apreciada que caracteriza o fortuito interno. Dito diversamente, é a situação ou evento legitimamente esperado da atividade de risco que caracterizaria o fortuito interno. No caso em análise, o evento não é o atraso. O atraso é um desdobramento da cadeia de acontecimentos, ou seja, ele é a consequência decorrente da falha do sistema, que gerou o apagão cibernético. A pergunta, então, seria: essa falha do sistema é um evento legitimamente esperado na atividade de transporte aéreo? Essa resposta é o que nos indicaria se tratar de fortuito interno ou externo. Evidentemente que isso não afastaria uma possível ruptura do contrato de transporte pela inexecução involuntária, caso se entenda ser fortuito externo. Espera-se que esse exercício ajude a entender como metodologicamente se desenvolve a análise causal no âmbito da responsabilidade civil que, não obstante tenha uma questão de fato subjacente, atende a critérios normativos de imputação, em especial o debate do risco, que, muito longe de ser um dado objetivo, em verdade, decorre da percepção social, o que afeta decisivamente aquilo que a sociedade entende como risco da atividade. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 A título exemplificativo dos debates no Migalhas, confira as publicações: 1 acesse, 2 acesse, 3 acesse, 4 acesse, 5 acesse, 6 acesse, 7 acesse, 8 acesse, 9 acesse e 10 acesse. 4 Disponível aqui. 5 VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 89. 6 PEREIRA, Rui Soares. O nexo de causalidade na responsabilidade delitual - fundamento e limites do juízo de condicionalidade. Almedina, 2017, p. 522. 7 VIOLA, Rafael. Op. Cit., 2023, p 95. 8 Disponível aqui. 9 ROSA, Eugene A., et al. The risk society revisited. Social theory and governance. Philadelphia: Temple University Press, 2014, p. 2. 10 LUHMAN, Niklas. Risk: a sociological theory. New Jersey: Transaction Publishers, 2008, p. 22. 11 VIOLA, Rafael. Op. Cit., p 67. 12 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 141. 13 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Op. cit., 1943, p. 146. No mesmo sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., 2012, p. 399. 14 ROSENVALD, Nelson, et al. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015, p. 474. 15 ALPA, Guido. Op. cit., 2017, p. 215. 16 VIOLA, Rafael. Op. cit., 2023, p. 245. 17 REsp 726.371/RJ, j. 07.12.2006.
quinta-feira, 4 de julho de 2024

Direitos humanos digitais: O futuro é agora

Nascimento da Internet e do Ciberespaço A expansão rápida das tecnologias tem apresentado diversos dilemas desafiadores para a proteção dos Direitos Humanos no ambiente digital. Desde o início do desenvolvimento da Internet, no final dos anos 1960 com a ARPANET, e o surgimento das TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação, o mundo tem sido palco de uma inédita revolução tecnológica. A Internet e as TICs foram concebidas a partir de diversos propósitos interligados, que se complementam e moldam a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos nesse espaço virtual, ou seja, como uma ferramenta para comunicação e troca de informações. Com o passar do tempo, sua evolução e o seu impacto social, tornaram-se ferramentas de comunicação, participação política e mesmo defesa de direitos numa espécie de espaço de autogestão. No então denominado "ciberespaço" 1, de propagação de informações e conhecimento - que se vinculava à ideia de um ambiente inatural, com pleno controle de entrada e saída, para interconexão entre usuários e informações - não havia interferência governamental, na medida em que se formava "um conjunto de nós interconectados".2 Da Declaração de Dependência à Interdependência no Ciberespaço Essa noção de liberdade de regulação estatal exsurge na Declaração de Independência do Ciberespaço3 (1996), que fez com que John Perry Barlow, incorporando o espírito de muitos ciber-libertários, afirmasse aos governos que: "o ciberespaço não está dentro das suas fronteiras; não pense que você pode construí-lo, como se fosse uma obra pública". Pode-se dizer que um dos primeiros documentos que teve como objetivo estabelecer um quadro para uma visão comum acerca da Sociedade da Informação foi a Declaração de Princípios da World Summit on the Information Society4 (2003). Alguns anos mais tarde, a Declaração de Liberdade na Internet5 (2012) afirma categoricamente que os governantes não devem se intrometer, pois "a melhor resposta do governo é não fazer nada". Porém, no decorrer das seguintes décadas, e o surgimento de novas tecnologias, com o fortalecimento da inovação, houve um verdadeiro giro no discurso sobre qual deveria ser o papel do Estado diante desse ecossistema digital. Essa mudança de rumo é manifestada na Declaração da Interdependência do Ciberespaço6 (2013), que parte da concepção de que a intenção não seria uma Internet governada pelas nações do mundo, mas, de outro lado, também não se queria uma Internet totalmente divorciada do governo, devendo haver um certo equilíbrio. Essa Declaração reconhece que os Direitos Humanos são perfeitamente aplicáveis no mundo virtual e defende que "a Internet é regida, tal como todas as tecnologias, não apenas pelas normas e crenças dos seus utilizadores, mas também pelas leis e valores das sociedades". Emergiram algumas cartas/declarações de direitos humanos no contexto da internet, como a: Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet7 (2013) que interpreta e explica os direitos humanos sob a perspectiva da Internet, identificando os princípios que devem ser observados para o cumprimento desses direitos; Declaração Africana sobre Direitos e Liberdades na Internet8 (2014), que foi uma iniciativa pan-africana que visa a enfrentar o desafio urgente de proteger os direitos e liberdades humanos na era digital, especialmente no contexto africano; Declaração Italiana dos Direitos Digitais9 (2015) enfatiza a proteção dos direitos individuais na era digital, promovendo a liberdade, privacidade, accountability e transparência online para os italianos. Tim Berners-Lee - conhecido por ter inventado a World Wide Web - e diversos especialistas propõem, em 2019, o "Contrato para a Web" 10 para o fim de garantir um mundo digital seguro, capacitador e genuíno. Com uma compreensão acerca da necessidade da participação estatal e também de um posicionamento dos organismos internacionais em matéria de direitos humanos neste espaço digital, num mundo já hiperconectado, novamente percebe-se a eclosão de Cartas de Direitos Humanos na era digital. Mudança de perspectiva da ONU para a tutela dos Direitos Humanos na Era Digital No contexto de aplicabilidade dos Direitos Humanos, ganha força, inicialmente, para a tutela dos direitos humanos no ambiente digital, a defesa da aplicabilidade da DUDH -Declaração Universal dos Direitos Humanos11 (1948) - como marco fundamental histórico na defesa dos direitos humanos. A ONU realizou alguns debates com foco nos desafios impostos pelas novas tecnologias para os Direitos Humanos, durante a Conferência de Teerã (1968), e passou a adotar o paradigma da equivalência normativa de direitos, que se baseia na suposição dogmática de que as normas tradicionais de direitos humanos são suficientes para fornecer proteção aos indivíduos no domínio online.12 Os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos13 (2011), alguns anos depois, estabeleceram padrões para abordar os impactos das atividades comerciais sobre os direitos humanos. Eles se baseiam em três pilares: O dever do Estado de proteger os direitos humanos, a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos e a necessidade de acesso a recursos para as vítimas. Esses princípios orientam os Estados e as empresas na prevenção e no tratamento de abusos de direitos humanos. Essa teoria da equivalência normativa de direitos aparece no relatório sobre promoção e proteção do direito à liberdade de expressão (A/HRC/17/27)14, no qual o relator especial reconhece que o direito internacional dos Direitos Humanos é "igualmente aplicável às novas tecnologias de comunicação". Outro documento relevante, nesse sentido, é a Resolução 20/8 sobre promoção e proteção dos Direitos Humanos na Internet (A/HRC/RES/20/8)15, que alude que "os mesmos direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos online". A estratégia da ONU em matéria de Direitos Humanos no ambiente virtual concentrou-se principalmente na emissão de resoluções e relatórios sem força vinculante (soft law). Ao contrário da força obrigatória (hard law) dos tratados internacionais, os Estados signatários não ficam obrigados a adotarem estas recomendações. De modo que o cenário atual da tutela pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos frente às novas tecnologias depende exclusivamente da intencionalidade dos países signatários da Organização. Apesar disso, conforme diz Yilma: "o fato de o discurso em curso na ONU sobre os direitos humanos digitais se basear em resoluções não deve ser motivo para menosprezar o seu potencial de evoluir para uma resposta internacional de direitos humanos às tecnologias novas e emergentes". 16 Contudo, observa-se uma reconfiguração da perspectiva da ONU. No Relatório sobre o direito à privacidade (A/HRC/37/62)17, o relator especial refere que apesar de o direito internacional proteger o direito humano à privacidade, a legislação internacional carece de "um maior nível de detalhe, clareza, abrangência, salvaguardas e soluções" para os desafios que existem no ciberespaço. Bem mais recentemente, a ONU, em 21/3, aprovou a 1ª Resolução global sobre inteligência artificial18 com o objetivo de estimular as nações a preservar os direitos humanos, proteger informações pessoais e supervisionar a IA para possíveis riscos. Um ano após o lançamento de seu Informe sobre Integridade da Informação em Plataformas Digitais19, no dia 24/6/24 foi lançado os Princípios Globais das Nações Unidas para a Integridade da Informação20, com recomendações para Ações de Múltiplas Partes Interessadas. Assim, a ONU reconhece a insuficiência da DUDH para a proteção de direitos humanos no ambiente digital, visão que justifica o avanço de novos Direitos Humanos: Os Direitos Humanos Digitais. Esse movimento de expansão de novos Direitos Humanos voltados para o ambiente digital surgiu como resposta ao avanço das tecnologias, como: A IA - Inteligência Artificial, a RE -Realidade Estendida e, mais recentemente, as neurotecnologias e a IoT - Internet das Coisas. Tais tecnologias contribuem para a criação de um ambiente digital totalmente inovador como amplificação de Direitos Humanos, como a liberdade de opinião e expressão e, via por consequência, a emergência de novos direitos. As características dessas novas tecnologias são tão peculiares que sequer existiam na época da proclamação da DUDH, já que estes foram pensados num contexto social claramente dividido, no qual as principais tecnologias eram o rádio e a televisão. A demanda por novos direitos segue duas linhas de justificativas21: Diante da insuficiência das normas tradicionais de Direitos Humanos para proteção do ambiente virtual; Devido à extrema diferença entre o ambiente digital e o ambiente físico, que evidenciam o surgimento de novos valores e novas necessidades humanas essenciais. Nesse último caso, surgem situações nas quais não há nenhuma correspondência no mundo físico. Essa interseção entre Direitos Humanos e Tecnologias já lida há algum tempo com dilemas jurídicos de: Violações de direitos resultantes do uso de novas tecnologias; e Utilização de novas tecnologias para as quais ainda não existem previsão de direitos. A divisão entre esses mundos é cada vez mais invisível, pois os limites físicos (interfaces) que separam a vida real da vida virtual estão desaparecendo. Luciano Floridi refere que as nossas experiências já não são mais nem online, nem offline, mas Onlife.22 Uma simultaneidade entre o analógico e o digital, flutuando constantemente nos dois habitats que se imbricam num ambiente que ele denomina de Infosfera.23 Para Eduardo Celeste, "já não somos apenas carne e sangue, ou corpo e alma - como alguém pode pensar: Somos também o nosso eu digital". 24 Essa fusão impacta os Direitos Humanos de uma forma até então impensável e exige novas abordagens e reflexões para sua proteção. Os Direitos Humanos normalmente decorrem de movimentos responsivos ao passado, servindo como uma espécie de reação às experiências anteriores, como no caso dos direitos tradicionais da DUDH, que representaram uma resposta ao fim da Segunda Guerra Mundial.25 Porém, na contemporaneidade há necessidade de medidas de natureza preventiva26, servindo como atenção em face de potenciais ameaças e desafios que vão surgindo ao longo dos próximos anos. A criação de "novos" Direitos Humanos Digitais decorre da natureza flexível e expansiva do direito internacional, que deve responder às mudanças sociais. Mas os tempos mudaram. Recorrer constantemente à interpretação e ao alargamento dos Direitos Humanos "pode gerar distorções insustentáveis, afastando-se dos objetivos originais das estruturas jurídicas" 27 e gerar mesmo um contexto de insegurança jurídica. Esse ciclo de equivalência normativa que se mostra insustentável diante das aceleradas transformações sociais decorrentes da tecnologia necessita de uma reflexão, sobretudo a partir da adoção da Declaração de Direitos Digitais.28 Emergência das Cartas de Direitos Humanos na Era Digital Pensando nisso, novos direitos são propostos em observância aos avanços internacionais e alguns países elaboraram suas próprias cartas de direitos humanos da era digital. A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital29 (2021) é uma iniciativa inovadora no fomento e proteção dos usuários no ambiente digital que reconhece a equivalência normativa ao afirmar que "as normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço" (art. 2°, item 2). Reforçam elencando uma série de direitos já existentes que devem ser aplicados ao ambiente digital, como o direito à liberdade de expressão (art. 4°) e à privacidade (art. 8°). A Carta aplica a equivalência normativa de maneira não excludente, uma vez que também reconhece a necessidade de adoção de uma série de novos direitos digitais, como o direito de acesso ao ambiente digital (art. 3°), à neutralidade da Internet (art. 10°), ao desenvolvimento de competências digitais (art. 11°), à cibersegurança (art. 15°), à proteção contra geolocalização abusiva (art. 17°), ao testamento digital (art. 18°), etc. A Carta Espanhola de Direitos Digitais30 (2022) afirma expressamente que não pretende criar ou descobrir novos Direitos Humanos, mas apenas garantir a efetividade da aplicação dos direitos já existentes ou sua atualização/adaptação para o ambiente digital. Reconhece, apesar disso, a importância da flexibilidade do ordenamento jurídico internacional face aos novos desafios trazidos pelas tecnologias e elenca alguns direitos como: À cibersegurança (VI), à neutralidade da Internet (XIII), direito de acesso à Internet (IX), direito no uso de neurotecnologias (XXVI), etc. Merece destaque por ser inovador a Declaração sobre Direitos e Princípios para a Década Digital da Europa31 (2023), que tem por objetivo promover uma "transformação digital que dê prioridade às pessoas e aos seus direitos humanos universais em todo o mundo". O texto foi aprovado em conjunto pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão Europeia, tem natureza meramente declaratória e descritiva, visando servir como incentivo para reflexão crítica e como material de referência para as autoridades públicas e privadas em matéria de Direitos Humanos. A Declaração europeia também adota expressamente a equivalência normativa em seu preâmbulo quando reconhece que o que é ilegal offline, também é ilegal online, reforçando a aplicação dos direitos humanos no ambiente virtual ao prever como obrigação da União Europeia "definir a forma como os seus valores e direitos fundamentais que vigoram fora de linha devem ser aplicados no ambiente digital". Apesar da adoção expressa da equivalência normativa no texto da Declaração Europeia, o documento vai além e promove extensivamente os Direitos Humanos tradicionais elencando uma série de novos direitos aplicáveis ao ciberespaço, como o direito à inclusão digital (item 2), o direito à identidade digital (item 7), o direito à desconexão digital (item 6), etc. A Declaração Europeia tem um caráter transformador e progressivo. Estabelece um quadro com direitos e princípios não reconhecidos internacionalmente. Logo, "a Declaração se enquadra muito bem na nova agenda dos proponentes dos direitos digitais". 32 O modelo de equivalência normativa também pode ser inferido do preâmbulo da Declaração Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital, que declara no item 3 que a transformação digital não deve resultar na diminuição dos direitos "o que é ilegal fora de linha é também ilegal em linha". Mais recentemente, Susi propõe a teoria da não-coerência, que sugere que o significado e o escopo dos direitos humanos podem de fato mudar quando aplicados ao ambiente online. Refere que os direitos humanos digitais não formam um conjunto coeso e uniforme de direitos, mas são caracterizados pela falta de coesão e consistência. São frequentemente fragmentados, variando de acordo com contextos específicos, como culturais, políticos e tecnológicos, ocorrendo porque o mundo digital tem características exclusivas que podem limitar ou aprimorar determinados direitos em comparação com o mundo físico.33 Portanto, essas iniciativas demonstram uma mudança crescente no cenário internacional em direção ao reconhecimento dos Direitos Humanos Digitais. Diversos temas precisam de uma reflexão profunda, como o conceito de dignidade digital34, um conceito que precisa ser construído. Conclusão É preciso admitir que os Direitos Humanos tradicionais já não são mais suficientes para a tutela dos novos desafios que emergem das novas tecnologias no ambiente digital. O surgimento dessas discussões é o primeiro grande passo rumo à amplificação dos Direitos Humanos, como resposta à urgência e importância dessas novas necessidades humanas da sociedade da informação. É essencial uma perspectiva inovadora que reconheça a natureza transformadora do ambiente online em substituição do paradigma da equivalência normativa por um novo, o Paradigma de Interconexão Normativa. É fundamental a adoção de uma estratégia que avance para além da equivalência normativa dos Direitos Humanos tradicionais e permita uma ampliação dos novos Direitos Humanos Digitais, construídos a partir da participação e diálogo de todas as partes interessadas, para possibilitar a tutela dos direitos humanos no contexto da inovação, sem descuidar dos valores fundamentais.  ____________ 1 LEVÝ, Pierre. Cibercultura. Editora 34, tradução de Carlos Irineu da Costa: São Paulo, 1999, p. 32. 2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: do conhecimento à política. In: (org.) CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo. A sociedade em rede do conhecimento à acção política. Imprensa nacional - casa da moeda, p. 17-31: Centro Cultural de Belém, 2005, p. 566 3 BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Eletronic Frontier Foundation. 1996. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 4 BERRY, John W. The World Summit on the Information Society (WSIS): A global challenge in the new Millennium. 2006. 5 DECLARATION of Internet Freedom. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 6 CASTRO, Daniel. A Declaration of the Interdependence of Cyberspace. COMPUTERWORLD. 2013. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 7 INTERNET RIGHTS & PRINCIPLES COALITION. Charter of Human Rights and Principles for the Internet. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 8 AFRICAN Declaration on Internet Rights and Freedoms. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 9 COMMISSIONE PER I DIRITTI E I DOVERI IN INTERNET. Dichiarazione dei diritti in Internet. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 10 CONTRACT for the Web. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 11 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. 12 DROR-SHPOLIANSKY, D.; SHANY, Y. 'It's the End of the (Offline) World as We Know It: From Human Rights to Digital Human Rights - A Proposed Typology' (2021) 32 European Journal of International Law 1249-82. 13 UNITED NATIONS (UN). Guiding Principles on Business and Human Rights. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 14 UNITED NATIONS (UN). Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression (A/HRC/17/27). Human Rights Council. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 15 UNITED NATIONS (UN).  The promotion, protection and enjoyment of human rights of the Internet (A/HRC/RES/20/8). Human Rights Council. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 16 YILMA, Kinfe. Emerging Technologies and Human Rights at the United Nations. IEEE Technology and Society Magazine, v. 42, n. 1, p. 54-64, 2023. 17 UNITED NATIONS (UN). Report of the Special Rapporteur on the right to privacy (A/HRC/37/62). Human Rights Council. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 18 UNITED NATIONS (UN). Seizinf the opportunities of safe, secure and trustworthy artificil intelligence systems for sustainable development (A/78/L.49). Human Rights Council. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 19 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Informe de Política para a Nossa Agenda Comum: Integridade da Informação nas Plataformas Digitais. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 20 UNITED NATIONS (UN). United Nations Global Principles For Information Integrity: Recommendations for Multi-stakeholder Action. 2024. Disponível aqui. Aceso em: 08 jul. 2024. 21 COCITO, Cristina; DE HERT, Paul. The transformative nature of the EU Declaration on Digital Rights and Principles: Replacing the old paradigm (normative equivalency of rights). Computer Law & Security Review, v. 50, p. 105846, 2023. 22 FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford University Press, 2014, p. 1-3. 23 FLORIDI, Luciano. The online manifesto: being human in hyperconnected Era. Spring Open, 2009. 24 FLORIDI, Luciano. Pensare l'infosfera: la filosofia come desing concettuale. Raffaello Cortina Editore, 2020 25 CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019. 26 CUSTERS, Bart. New digital rights: Imagining additional fundamental rights for the digital era. Computer Law & Security Review, v. 44, p. 105636, 2022. 27 SHANY, Yuval. The Case for a New Right to a Human Decision Under International Human Rights Law (October 4, 2023). Available at SSRN. Disponível aqui. 28 CUSTERS, Bart. New digital rights: Imagining additional fundamental rights for the digital era. Computer Law & Security Review, v. 44, p. 105636, 2022. 29 PORTUGAL. Lei n° 27/2021, de 17 de maio de 2021. Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Diário da República, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 30 GOBIERNO DE ESPAÑA. Carta de Derechos Digitales. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 31 EUROPEAN COMMISSION. European Declaration on Digital Rights and Principles for the Digital Decade. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 08 jul. 2024. 32 COCITO, Cristina; DE HERT, Paul. The transformative nature of the EU Declaration on Digital Rights and Principles: Replacing the old paradigm (normative equivalency of rights). Computer Law & Security Review, v. 50, p. 105846, 2023. 33 SUSI, Mart. The Non-coherence Theory of Digital Human Rights. Cambridge University Press, 2024. 34 KHANNA, Ro. Dignity in a digital age: Making tech work for all of us. Simon and Schuster, 2022; MCCOURT, F. H. Our Biggest Fight: Reclaiming Liberty, Humanity, and Dignity in the Digital Age. 2024.
No recente acórdão proferido no Processo C-590/221, o TJUE - Tribunal de Justiça da União Europeia abordou importantes questões relacionadas à interpretação do art. 82.°, 1, do regulamento (UE) 2016/679, conhecido como Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD)2, ou GDPR - General Data Protection Regulation, em inglês. Esta decisão tem implicações significativas para a proteção dos dados pessoais e o direito à indenização decorrente de violações de dados pessoais a partir das definições do regulamento. Antes de comentar o precedente, convém lembrar que, no RGPD, a expressão "violação de dados pessoais" é definida no art. 4.º, 123, como qualquer incidente de segurança que resulte, acidentalmente ou de maneira ilícita, na destruição, perda, alteração, divulgação ou acesso não autorizados a dados pessoais que estão sendo transmitidos, armazenados ou sujeitos a qualquer outra forma de processamento. Esta definição abrange uma ampla gama de possíveis incidentes, desde falhas técnicas que levam à perda de informações até ataques cibernéticos que expõem dados pessoais. A amplitude da definição assegura que todas as formas de comprometimento da segurança dos dados pessoais sejam consideradas, independentemente de terem ocorrido por acidente ou por ação deliberada. A importância de uma definição tão abrangente reside na necessidade de garantir a integridade e a confidencialidade dos dados pessoais em todas as etapas do seu ciclo de vida. Uma violação de dados pode ter consequências significativas para os indivíduos afetados, incluindo riscos à sua privacidade e à sua segurança. Portanto, o RGPD impõe obrigações rigorosas aos responsáveis pelo tratamento de dados para prevenir tais violações e, em caso de ocorrência, exige a adoção de medidas imediatas para mitigar os danos, notificar as autoridades competentes e, se necessário, informar os titulares dos dados. Em publicação da coluna Migalhas de Proteção de Dados de setembro de 20214, tive a oportunidade de comparar o conceito europeu de violação de dados pessoais, conforme definido no art. 4.º, inciso 12, do RGPD, com a figura do incidente de segurança, prevista de forma tímida no art. 48 da LGPD brasileira, que define o dever de comunicação de tais incidentes, embora não o conceitue.5 Comparações à parte, entender claramente o conceito europeu de violação de dados pessoais é fundamental em matéria de responsabilidade civil, pois é preciso estabelecer os parâmetros pelos quais os danos sofridos pelos titulares dos dados pessoais são reconhecidos e compensados, especialmente para suplantar dúvidas interpretativas em relação ao tormentoso debate da natureza presumida ou "in re ipsa" do dano extrapatrimonial decorrente desses eventos. O entendimento firmado na União Europeia é crucial para determinar quando e como os responsáveis pelo tratamento de dados devem responder por falhas na segurança que causem prejuízos, sejam esses danos materiais ou imateriais. O precedente do TJUE no Processo C-590/22 é especialmente relevante, pois clarifica que a mera violação do RGPD não é suficiente para garantir uma indenização, exigindo-se a demonstração do dano e seu nexo causal com a violação. Esta decisão orienta tanto os titulares dos dados quanto os responsáveis pelo tratamento na correta aplicação do RGPD, promovendo maior segurança jurídica e assegurando que os direitos individuais sejam efetivamente protegidos, enquanto se evitam pretensões infundadas. Como dito, o TJUE firmou o entendimento de que a mera violação do RGPD não é suficiente, por si só, para fundamentar um direito de indenização. Para que tal direito seja reconhecido, o titular dos dados deve demonstrar a existência de um dano causado pela violação. Essa interpretação reforça a necessidade de que haja nexo de causalidade entre a violação de preceitos do regulamento ou da legislação doméstica que o internalizou em cada país-membro da União Europeia e o dano sofrido, embora não seja necessário que o dano atinja um grau de reprovabilidade específico. Adicionalmente, o TJUE esclareceu que o receio de que dados pessoais tenham sido divulgados a terceiros, devido a uma violação do RGPD, pode ser suficiente para fundamentar um direito de indenização. No entanto, é imprescindível que esse receio, juntamente com suas consequências negativas, seja devidamente comprovado. Esse aspecto da decisão destaca a importância de considerar os efeitos psicológicos das violações de dados, que são de difícil mensuração. No que diz respeito à determinação do montante da indenização, o TJUE decidiu que não se deve aplicar, "mutatis mutandis", os critérios de fixação do montante das multas previstos no art. 83.° do RGPD. Isso significa que os critérios utilizados para calcular sanções administrativas de natureza pecuniária, por violações do regulamento, não devem ser automaticamente aplicados para determinar o valor das indenizações por danos, sendo mister do juiz a adequada fixação do valor da indenização. Além disso, o TJUE rejeitou a ideia de que o direito à indenização deva ter uma função dissuasora. Segundo a Corte, o foco principal da indenização é a reparação dos danos sofridos pelo titular dos dados, e não a punição ou a dissuasão de futuras violações por parte dos responsáveis pelo tratamento dos dados. Outro ponto relevante é que, para determinar o montante da indenização, não se deve levar em consideração violações concomitantes de disposições nacionais que não especificam regras do RGPD. Esta interpretação evita a complexidade adicional que poderia surgir da aplicação de múltiplas normativas nacionais ao mesmo caso de violação de dados. A decisão do TJUE também sublinha a importância da prova adequada do dano e das consequências negativas alegadas pelo titular dos dados. Sem essa prova, o direito à indenização pode não ser reconhecido, mesmo que haja uma violação clara do RGPD. Isso enfatiza a necessidade de uma abordagem rigorosa na avaliação dos pedidos de natureza indenizatória. A meu sentir, o entendimento do TJUE reflete uma abordagem equilibrada, que protege os direitos dos titulares de dados sem impor uma carga excessiva sobre os responsáveis pelo tratamento de dados. A exigência de prova do dano garante que apenas os casos nos quais haja impacto real sobre os titulares de dados resultem em indenizações, evitando, assim, abusos do sistema de proteção de dados. Esta decisão também pode influenciar futuras interpretações do RGPD por parte dos tribunais nacionais dos países-membros da União Europeia, que deverão alinhar suas decisões com os princípios estabelecidos pelo TJUE. Isso contribuirá para uma aplicação mais uniforme do regulamento em toda a União Europeia, promovendo maior segurança jurídica. Em resumo, o acórdão do TJUE no Processo C-590/22 clarifica vários aspectos críticos do direito à indenização sob o RGPD, reforçando a necessidade de prova do dano e estabelecendo critérios claros para a determinação do montante das indenizações. Além disso, não se pode negar que tal decisão norteará novas e profícuas reflexões para a aplicação das regras de responsabilização civil a partir da LGPD brasileira. Apenas para fins de elucidação dos problemas interpretativos que ainda pairam no Brasil, em março de 2023, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do AREsp 2.130.6196, de relatoria do Excelentíssimo ministro Francisco Falcão, adotou um posicionamento peculiar ao negar indenização por danos extrapatrimoniais pelo vazamento de dados comuns (não sensíveis) de uma cliente idosa, argumentando que o simples fato de vazamento desses dados não gera, por si só, um dano moral indenizável. O Tribunal enfatizou a necessidade de prova concreta do dano decorrente da exposição das informações, destacando que o risco de potencial fraude ou importunações não é suficiente para configurar dano moral "in re ipsa". A decisão envolveu uma concessionária de serviço público (e, por isso, o precedente adveio da Terceira Turma), o que ensejou a aplicação da regra de responsabilização civil do Estado prevista no art. 37, § 6°, da Constituição da República. De todo modo, é importante frisar que não há, na LGPD, qualquer previsão que indique que, se dados pessoais sensíveis forem objeto de um "vazamento" se abrirá margem à admissão de dano moral "in re ipsa". 7 A exigência de prova de dano como requisito para indenização contribui para evitar abusos e garante que apenas casos com reflexos realmente danosos resultem em condenações. A decisão do TJUE no Processo C-590/22 não apenas harmoniza a aplicação do RGPD entre os Estados-membros da União Europeia, promovendo segurança jurídica, mas também serve de referência para futuras interpretações e aplicações da LGPD no Brasil. Inegavelmente, a convergência entre essas legislações poderá fortalecer a proteção de dados pessoais, oferecendo um caminho claro para a responsabilidade civil e estimulando novas reflexões sobre a aplicação das regras de responsabilização em contextos diversos. __________ 1 UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-590/22. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 2 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados - RGPD). Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 3 Eis o conceito: "Artigo 4.° (...) 12) «Violação de dados pessoais», uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação ou o acesso, não autorizados, a dados pessoais transmitidos, conservados ou sujeitos a qualquer outro tipo de tratamento". 4 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O que é, afinal, um vazamento de dados? Migalhas de Proteção de Dados, 17 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 5 Aliás, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) brasileira publicou, em abril de 2024, ato normativo que descreve os procedimentos a serem observados na comunicação de incidentes de segurança, cf. BRASIL. Agência Nacional de Proteção de Dados. Resolução CD/ANPD nº 15, de 24 de abril de 2024. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 2.130.619 - SP (2022/0152262-2). Relator: Ministro Francisco Falcão. Brasília, DF, 07 mar. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2024. 7 Sobre o caso, valiosa a reflexão de Flaviana Rampazzo Soares: "No julgamento do AREsp n. 2.130.6195, referiu que uma concessionária de energia elétrica que vazou dados de uma cliente idosa (nome completo, RG, gênero, data de nascimento, idade, números de telefone  fixo  e  de  celular,  endereço  e  dados  do  contrato  de  fornecimento firmado) não  deveria indenizá-la, sob o argumento de que o vazamento dedados de natureza comum (aqueles pessoais mas  não  íntimos,  passíveis  apenas  de  identificação  da  pessoa  natural  não  classificados  como sensíveis), "a despeito de se tratar de falha indesejável no tratamento de dados de pessoa natural por pessoa jurídica, não tem o condão, por si só, de gerar dano moral indenizável" e, nesse sentido, "o dano moral não é presumido, sendo necessário que o titular dos dados comprove eventual dano decorrente da exposição dessas informações". SOARES, Flaviana Rampazzo. Dano presumido e dano 'in re ipsa' - distinções necessárias. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. IV-X, 2023, p. V.
A questão atinente ao sistema de responsabilidade civil decorrente da LGPD ainda não está clara no ordenamento jurídico brasileiro, motivo de grande divergência doutrinária. A incerteza sobre o sistema de responsabilização, por sua vez, não pode ensejar prejuízos aos titulares de dados, como também não pode ensejar a inviabilidade do exercício profissional de quem exerce suas atividades de forma autônoma. Neste cenário, a proposta de adoção de um sistema escalonado de responsabilidades, coerente com a realidade brasileira e sustentável frente a disciplina jurídica da responsabilidade civil parece um caminho adequado. A LGPD ao estabelecer que a proteção de dados pessoais se aplica tanto às pessoas físicas, quanto às jurídicas, não faz distinção em relação à responsabilidade de cada uma delas. Seja na redação do caput do art. 42, no qual "o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo." Seja no segundo critério de imputação trazido pela LGPD, no parágrafo único do art. 44, quando estabelece que "responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta lei, der causa ao dano". Em nenhum dos dispositivos há referência à modalidade de responsabilidade adotada, muitas interpretações são sustentáveis por esta razão. De forma objetiva, entende-se que há um novo regime de responsabilidade civil trazido pela LGPD. Isso porque, a noção de responsabilidade não deve se limitar à reparação dos danos, uma vez que a referência legislativa diz respeito a boas práticas e a um dever geral de segurança. Observa-se, assim, a opção legislativa de fomentar a prevenção dos danos a partir de determinados tipos de comportamentos, o que pode ser observado pelos diversos dispositivos que estabelecem condutas para os agentes de tratamento, balizando de forma ética comportamentos e níveis de segurança. No entanto, o entendimento aqui proposto traz, de forma específica, novas balizas para esta compreensão da responsabilidade civil e delimita sua incidência, distinguindo agentes de grande e pequeno porte.1 Nesta breve e importante consideração sobre o mote legislativo e os rumos pretendidos, de não engessar a responsabilidade civil em sua função reparatória/compensatória, cumpre, ainda assim, enfrentar a polêmica relacionada à natureza jurídica da responsabilidade civil com mais detalhes. Tal enfrentamento, revela-se imprescindível, haja vista que, quando há violação da norma, exsurge o dever de reparar e, nesse momento, será necessário definir se a responsabilização se fundamentará na culpa ou se ela poderá ser desconsiderada, nos casos em que ocorrer danos aos titulares de dados, em virtude do tratamento. Em uma hipótese ou outra, o desafio persiste, uma vez que a construção dos pressupostos também não se afigura pacífica. Propõe-se, assim, um sistema escalonado de responsabilidades, que leva em consideração a natureza do agente de tratamento de dados, bem como os diferentes critérios de imputação trazidos pela LGPD, capazes de deflagrar a responsabilidade civil. Dessa forma, parece desarrazoado defender que a responsabilização de um profissional liberal, por exemplo, ocorra nos mesmos moldes de responsabilização de um grande grupo econômico, ou que as exigências de governança, investimento em tecnologia e segurança da informação para proteção de dados possam ser pensadas nos mesmos parâmetros. Ao menos não é essa a lógica que se extrai do sistema de responsabilidades previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Para apresentar os contornos dessa responsabilidade especial aqui defendida, foram adotados os seguintes critérios de escalonamento: Se a hipótese for de violação de norma, nos termos dos arts. 422 e 443 da LGDP, será necessário verificar a natureza jurídica do agente de tratamento de dados, se de grande ou de pequeno porte, para determinar o sistema de responsabilidade civil aplicado a cada um. Se, no entanto, o nexo de imputação for a violação do dever geral de segurança, arts. 444e 465 da LGPD, será outro o sistema de responsabilidade. Para alcançar a racionalização dos critérios pretendidos, passa-se à análise de cada um dos sistemas de responsabilidade a partir do escalonamento sugerido. 1.1 Responsabilidade Civil do Agente de Tratamento por Violação da Norma 1.1.1 Quando o Agente de Tratamento é de Grande Porte A ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, ao estabelecer diretrizes para os agentes de tratamento, define que, quando se trata de uma pessoa jurídica, a organização é o controlador para os fins da LGPD. De modo que esta assume a responsabilidade pelos atos praticados em seu nome, por ser quem estabelece as regras para o tratamento de dados pessoais a serem executadas por seus representantes ou prepostos.6 Indo além, a ANPD publicou a resolução CD/ANPD 02, aprovando o regulamento de aplicação da LGPD para agentes de tratamento de pequeno porte.7 Tal regulamento, de forma bastante objetiva, estabelece critérios para diferenciar agentes de pequeno e grande porte e, consequentemente, a aplicação diferenciada da lei nestas hipóteses. Muito embora a regulamentação não tenha feito referência expressa à responsabilização civil, entende-se que o tratamento diferenciado proposto pela ANPD para o cumprimento das normas afeta a compreensão e imputação de responsabilidade. De tal sorte que a responsabilidade escalonada, a partir desses critérios, condiz com o escopo normativo trazido pela ANPD e é condizente com as várias funções que a responsabilidade pode e deve assumir. Assim, para atingir este escopo, entende-se que quando o agente de tratamento de dados é de grande porte8 e comete um dano ao titular dos dados, sua responsabilidade se encontra no âmbito da teoria objetiva, fundada no risco da atividade e, portanto, prescinde de culpa. A atividade de tratamento de dados é, por excelência, uma atividade que traz riscos de danos para seus titulares, seja em razão de incidente de segurança ou "situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito". 9 A imputação da obrigação objetiva, portanto, decorrerá do risco no tratamento de dados pessoais e servirá como substrato de densidade normativa a ser alcançado pela LGPD, especialmente o art. 42. Assim, poderá justificar a obrigação de indenizar do agente de tratamento, independentemente de culpa. Essa perspectiva de imputação objetiva com lastro no risco deve considerar, portanto, não apenas a natureza ou o volume das operações, mas o grau de risco10 e a própria qualificação do agente de tratamento.  1.1.2 Quando o Agente de Tratamento é de Pequeno Porte Noutro giro, há que se verificar a tormentosa situação do profissional liberal quando atua como agente de tratamento. Assim, quando há violação da norma por parte de um profissional liberal que atua como controlador, causando dano ao seu cliente, a responsabilização deve ser lastreada na culpa e, portanto, em sua configuração subjetiva. O raciocínio aqui empregado se pauta no fundamento de que, se até quando incide o CDC (que tem como regra a teoria objetiva) os danos causados por profissionais liberais enquadram-se no sistema de responsabilidade subjetiva, com mais razão de ser, demanda-se culpa quando se está fora do CDC. Assim, os profissionais liberais, ainda que não estejam em uma relação de consumo respondem subjetivamente. Ademais, ainda que o intérprete não se convença da necessidade de demonstrar culpa para responsabilizar o profissional liberal, utilizando a lógica do CDC, a interpretação dada em recente regulamento sobre a flexibilização das normas de proteção de dados para agentes de tratamento de pequeno porte, indica a necessidade de aplicação de um sistema diferenciado de responsabilidade civil. A insistência pela manutenção do elemento culpa visa a minimizar uma desproporcional medida de responsabilização para o agente de tratamento de pequeno porte, que faz o tratamento de dados de forma artesanal, que não manipula muitos dados, que não tem capacidade econômica para fazer todos os investimentos de segurança trazidos pela legislação e que também não teria condições de arcar com indenização oriunda de imputação objetiva, na maior parte dos casos. A conformação da responsabilidade civil subjetiva, nos termos apresentados, revela-se condizente com a proteção dos dados pessoais de titulares e, ao mesmo tempo, não inviabiliza a atuação dos profissionais liberais.           1.2 Responsabilidade Civil do Agente de Tratamento por Descumprimento do Dever Geral de Segurança O último espectro do escalonamento de responsabilidade civil advém da política adotada pela LGPD, que, de forma bastante incisiva, elenca inúmeras medidas a serem seguidas pelos agentes de tratamento na tentativa de inibir práticas que tragam riscos aos titulares de dados.11 Assim, verifica-se que a inobservância de tais práticas acarreta responsabilidade. De tal forma que responderá pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o agente de tratamento que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 da LGPD, der causa ao dano.12 Dessa forma, entende-se que a tentativa de coibir condutas que comprometam a segurança dos dados denota uma preocupação do legislador com os riscos potenciais do tratamento de dados, elucidando a função precaucional há muito defendida por Nelson Rosenvald13, que na LGPD pode ser identificada pelo fomento às boas práticas. Dentro da seara da responsabilidade escalonada proposta, a imputação de responsabilidade, por este último critério, não faz distinção entre agente de tratamento enquanto de grande ou de pequeno porte em relação ao nexo de imputação, que será vinculado ao dever de segurança. Há, todavia, diferença em relação ao nível de segurança a ser perseguido. Isso porque, os requisitos e exigências de segurança serão mais brandos para os agentes de tratamento de pequeno porte, que poderão estabelecer uma política simplificada de segurança da informação. Tal política deve levar em consideração os custos de implementação, bem como a estrutura, a escala e o volume das operações do agente de tratamento de pequeno porte.14 Portanto, o que se observa é que o regulamento estabelece uma nítida diferença de tratamento e exigências quando se trata de agentes de pequeno porte, até porque não seria razoável tratar de forma igual realidades tão distintas.15 Assim, desapegando do sistema clássico de responsabilidades e acatando a perspectiva de um novo regime trazido por relevante doutrina16, a proposta de responsabilidade escalonada, racionalizada na presente investigação, sugere a imputação objetiva para agentes de tratamento de grande porte, com fundamento na teoria do risco; defende a responsabilidade subjetiva para os agentes de tratamento de pequeno porte, com o aproveitamento das definições trazidas pelo regulamento publicado pela ANPD e, por fim, reforça o entendimento de uma imputação objetiva oriunda da quebra do dever geral de segurança, com as especificações e ressalvas trazidas ao longo do texto. _________ 1 Art. 2º Para efeitos deste regulamento são adotadas as seguintes definições: I - agentes de tratamento de pequeno porte: microempresas, empresas de pequeno porte, startups, pessoas jurídicas de direito privado, inclusive sem fins lucrativos, nos termos da legislação vigente, bem como pessoas naturais e entes privados despersonalizados que realizam tratamento de dados pessoais, assumindo obrigações típicas de controlador ou de operador. BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cd/anpd-n-2-de-27-de-janeiro-de-2022-376562019.. 2 Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. 3 Art. 44. O tratamento de dados pessoais será irregular quando deixar de observar a legislação (...) 4 Art. 44. O tratamento de dados pessoais será irregular quando (...) não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar, consideradas as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo pelo qual é realizado; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - as técnicas de tratamento de dados pessoais disponíveis à época em que foi realizado. Parágrafo único. Responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta Lei, der causa ao dano. 5 Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. 6 AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Guia Orientativo para Definições dos Agentes de Tratamento de Dados Pessoais e do Encarregado. Brasil, 2022.  Versão 2.0. Disponível aqui. 7 BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. Disponível aqui. Acesso em: 20 jul. 2022. 8 A definição de agentes de grande porte não é feita pelo regulamento, motivo pelo qual sua definição é elaborada por exclusão, a partir da definição do que são agentes de pequeno porte. 9 Artigo 46, LGPD. 10 Art. 4º Para fins deste regulamento, e sem prejuízo do disposto no art. 16, será considerado de alto risco o tratamento de dados pessoais que atender cumulativamente a pelo menos um critério geral e um critério específico, dentre os a seguir indicados: I - critérios gerais: a) tratamento de dados pessoais em larga escala; ou b) tratamento de dados pessoais que possa afetar significativamente interesses e direitos fundamentais dos titulares; II - critérios específicos: a) uso de tecnologias emergentes ou inovadoras; b) vigilância ou controle de zonas acessíveis ao público; c) decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais, inclusive aquelas destinadas a definir o perfil pessoal, profissional, de saúde, de consumo e de crédito ou os aspectos da personalidade do titular; ou d) utilização de dados pessoais sensíveis ou de dados pessoais de crianças, de adolescentes e de idosos. § 1º O tratamento de dados pessoais em larga escala será caracterizado quando abranger número significativo de titulares, considerando-se, ainda, o volume de dados envolvidos, bem como a duração, a frequência e a extensão geográfica do tratamento realizado. § 2º O tratamento de dados pessoais que possa afetar significativamente interesses e direitos fundamentais será caracterizado, dentre outras situações, naquelas em que a atividade de tratamento puder impedir o exercício de direitos ou a utilização de um serviço, assim como ocasionar danos materiais ou morais aos titulares, tais como discriminação, violação à integridade física, ao direito à imagem e à reputação, fraudes financeiras ou roubo de identidade. BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cd/anpd-n-2-de-27-de-janeiro-de-2022-376562019. Acesso em: 20 jul. 2022. 11 "Os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem ser estruturados de forma a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança e aos princípios gerais previstos nesta Lei e às demais normas regulamentares." Artigo 49 da LGPD. 12 Artigo 44, parágrafo único, da LGPD. 13 ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 14 Art. 13. Os agentes de tratamento de pequeno porte podem estabelecer política simplificada de segurança da informação, que contemple requisitos essenciais e necessários para o tratamento de dados pessoais, com o objetivo de protegê-los de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. § 1º A política simplificada de segurança da informação deve levar em consideração os custos de implementação, bem como a estrutura, a escala e o volume das operações do agente de tratamento de pequeno porte. 15 Art. 12. Os agentes de tratamento de pequeno porte devem adotar medidas administrativas e técnicas essenciais e necessárias, com base em requisitos mínimos de segurança da informação para proteção dos dados pessoais, considerando, ainda, o nível de risco à privacidade dos titulares de dados e a realidade do agente de tratamento. BRASIL. RESOLUÇÃO CD/ANPD Nº 2, DE 27 DE JANEIRO DE 2022. Aprova o Regulamento de aplicação da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para agentes de tratamento de pequeno porte. 16 DRESCH, Rafael de Freitas Valle; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Reflexões sobre a responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). In: ROSENVALD, Nelson; DRESCH, Rafael de Freitas Valle; WESENDONCK, Tula. (Org.). Responsabilidade civil: novos riscos. 1ed.Indaiatuba: Foco, 2019.
Uma das diversas inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do Código Civil1 diz respeito ao conceito de dano para a responsabilidade civil. "A indenização será concedida", explicita o art. 944-C do texto, "se os danos forem certos, ainda que diretos, indiretos, atuais ou futuros". Como fica evidente, a proposta eleva a certeza ao patamar de elemento central da noção de dano reparável. Afinal, se são reparáveis os danos diretos ou indiretos; atuais ou futuros, isso significa que esses valores não são relevantes para a delimitação do que é dano. Trata-se apenas de critérios de classificação desse conceito. O único elemento trazido pelo art. 944-C e que efetivamente compõe a estrutura conceitual do dano é a certeza. Nesse aspecto, o anteprojeto acompanha o entendimento da literatura jurídica, que com frequência afirma que a certeza é ao elemento mais importante do dano2. E as razões desta proeminência são facilmente compreensíveis. A responsabilidade é um instrumento para a reparação de danos sofridos. Ora, a reparação de um dano incerto poderia levar ao enriquecimento da vítima, em detrimento do indivíduo condenado a indenizá-la. A exigência da certeza do dano é uma garantia contra a reparação excessiva, evitando que a função reparatória da responsabilidade civil seja corrompida. Elemento consensual, a certeza do dano nem por isso é uma ideia menos misteriosa. Pelo contrário; sem recorrer a tautologias, é extremamente difícil desmembrar ou explicar um conceito tão elementar quanto a certeza. Certeza, interesse e reparação integral Uma pista para se construir um conceito de "certeza" pode ser encontrada na ideia de interesse. Tradicionalmente, o dano é definido como uma lesão a um interesse da vítima3. Por se reportar diretamente a esta noção, a certeza de dano pode ser analisada como um elemento da lesão a um interesse. A lesão a um interesse é certa quando o fato imputado ao responsável provoca a redução de uma utilidade que favorecia a vítima. Este é o caso quando a vítima perdeu de valores monetários, ou teve um de seus bens deteriorado. Há igualmente uma lesão certa nos casos de violação imaterial aos seus sentimentos ou aos seus direitos da personalidade. Nestas hipóteses, a perda basta para que esteja configurada a lesão a um interesse da vítima: ela possuía um bem, material ou imaterial, e este desapareceu ou foi deteriorado após o incidente. Aqui, a certeza da lesão foi constatada a partir da depreciação do status quo ante. Há um dano certo, pois a situação anterior da vítima foi degradada pela conduta. Definir a certeza como uma decadência em relação ao status quo ante seria, contudo, uma conclusão prematura. Em primeiro lugar, nem toda deterioração implica uma lesão a um interesse de um indivíduo. Le Tourneau nos fornece um exemplo interessante: um caminhão em alta velocidade derrapa na pista, atingindo um edifício... em vias de demolição4. Temos aí uma perda, mas nem por isso uma lesão a um interesse do proprietário do prédio. Outro exemplo: o para-choque de um carro foi amassado após uma pequena colisão em um semáforo, a qual não trouxe maiores consequências. Algumas horas depois, e sem que houvesse tempo para o retoque na lataria, o veículo se incendeia, em razão de um problema elétrico que não guarda qualquer relação com o incidente anterior. Ora, nenhum proprietário honesto poderia sustentar ter interesse na integridade do veículo doravante inexistente. Tal como o carro, a lesão ao interesse foi consumida pelas chamas. O que se nota nestes dois casos é que a perda provocada pela conduta do demandado foi neutralizada por outra perda, pela qual ele não é responsável. Não há lesão ao interesse do proprietário do veículo ou do imóvel visto que, para eles, a situação resultante do fato danoso não é diferente da situação que seria produzida na ausência deste fato. No mais, é possível que a vítima seja atingida em um de seus interesses, sem que haja uma depreciação equivalente de seu status quo ante. É assim quando a vítima se queixa de que a conduta do responsável o teria impedido de auferir lucros, ou de obter outra vantagem qualquer - os chamados lucros cessantes. Nesse sentido, a Corte de Cassação francesa5 em diversas ocasiões reconheceu que as perdas de rendimentos sofridas pelos dependentes da vítima de um acidente fatal são reparáveis ainda que, depois do acidente (e, muitas vezes, em razão dele), estes dependentes tenham iniciado uma profissão, evitando que sua situação econômica fosse rebaixada. Por certo, agora assalariada, a viúva não teve seu sustento reduzido, mas com a ajuda de seu marido ela se encontraria em uma situação ainda mais confortável. Nestas hipóteses, não há degradação em relação ao status quo ante. A lesão torna-se abstrata, desvencilhando-se das amarras primitivas do dano físico, para se aproximar de uma concepção econômica de perda. É o chamado de custo de oportunidade: a não obtenção de uma vantagem também é uma lesão certa. A partir destas observações é possível concluir que a lesão a um interesse é certa todas as vezes que a vítima se encontraria em uma situação mais vantajosa, sem o evento imputável ao responsável6. Pouco importa se há ou não uma depreciação em relação ao passado da vítima, bastando simplesmente que a situação decorrente do evento danoso lhe seja desfavorável, se comparada à situação hipotética na qual essa vítima se encontraria. Esta diferença entre a situação hipotética e a realidade é uma condição necessária, mas também suficiente, à constatação de uma lesão certa a um interesse da vítima. O elemento certeza existe se e somente se este desvio é constatado. A certeza do dano decorre, assim, do desnível entre estes dois parâmetros: o primeiro, a situação real, na qual se encontra a vítima após o dano. O segundo, a situação hipotética, na qual se encontraria a vítima sem este dano. Em outras palavras, a certeza é obtida a partir do confronte das situações, fatual e contrafatual. É por essa razão que acreditamos que a redação do art. 947 do anteprojeto, que trata da reparação integral do dano, deveria ser revista. Segundo esse dispositivo, "a reparação dos danos deve ser integral com a finalidade de restituir o lesado ao estado anterior ao fato danoso". Na verdade, reparação só será verdadeiramente integral se seu objetivo for recolocar a vítima na situação em que ela se encontraria sem o fato danoso, e não na situação em que ela se encontrava antes deste. Reduzida ao reequilíbrio da situação anterior ao acidente, a reparação não incluiria diversas espécies de danos que não implicam a depreciação do status quo ante, como, por exemplo, os lucros cessantes ou a privação do uso de um bem. Certeza e perda de uma chance Questão correlata ao tema da certeza do dano é a reparação da perda de uma chance. Não por acaso, o anteprojeto aborda a perda de uma chance nos dois primeiros parágrafos do art. 944-C: "§ 1º A perda de uma chance, desde que séria e real, constitui dano reparável; §2º A indenização relativa à perda de uma chance deve ser calculada levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada, de acordo com as probabilidades envolvidas". Esse texto nos é bastante familiar. Por intermédio do professor Nelson Rosenvald, tivemos a honra de encaminhar o esboço de sua redação à subcomissão de Responsabilidade Civil7. O que há de peculiar aos casos de perda de uma chance é que eles dizem respeito a situações em que o interesse vítima versava sobre um evento aleatório. A vítima tinha uma expectativa, incerta, de obter uma determinada vantagem ou de evitar um mal maior. E essa expectativa foi frustrada ou dificultada em razão fato imputável ao responsável. Os exemplos já analisados pelos nossos tribunais são bastante conhecidos: o advogado que perdeu um prazo processual é acionado judicialmente por seu antigo cliente, que requer a reparação dos prejuízos decorrentes de sua falha8. Em razão do erro médico, o paciente foi privado de um tratamento adequado, que poderia eventualmente ter evitado sua morte. Por este motivo, a família da vítima ajuíza demanda reparatória em face do profissional negligente ou do hospital9. Impedido de participar de um concurso ou competição, o candidato volta-se contra o responsável pela exclusão injusta10. Nesses casos, o critério da certeza do dano se revela particularmente problemático, pois é impossível determinar qual é a situação em que vítima estaria sem o ato imputado ao responsável. Como o interesse em questão é aleatório, o litígio comporta uma dúvida irredutível sobre a sorte da vítima. Não fosse pelo incidente, teria ela alcançado o resultado desejado? O paciente estaria curado? O jurisdicionado ou o candidato saíram vitoriosos? Não se sabe e nunca se saberá. Essa dúvida impede que se estabeleça um parâmetro contrafatual e, consequentemente, afasta a certeza do dano. Recusar a reparação à vítima seria, todavia, uma solução injusta. A despeito de seu caráter aleatório, esses interesses podem se revestir de grande relevância para a vítima. Quem seria capaz de negar, por exemplo, que o tratamento que ofereceria 30% de chances de sobrevida a um paciente com câncer representava o seu bem mais valioso em meio a um prognóstico sombrio? Que, a apesar da incerteza do resultado, realizar o exame vestibular era algo de extrema importância para a estudante que vinha se preparando ele ao longo do ano? Para resolver esse empasse, forjou-se uma solução tanto mais engenhosa quanto evidente, a saber, a reparação das chances perdidas. Nesse tipo de situação, não é o resultado aleatório que deve ser reparado pelo responsável, mas sim a chance de obtê-lo. Existe uma certeza em todos esses conflitos; a certeza de que a vítima tinha uma chance de alcançar o resultado que desejava, e que essa oportunidade desapareceu, em razão do fato imputável ao responsável. O montante da reparação não corresponderá ao valor da vantagem desejada, mas a uma porcentagem desta, de acordo com as probabilidades efetivamente perdidas pela vítima. Essa técnica para resolver os conflitos que envolvem a lesão a interesses aleatórios é hoje amplamente aceita no Direito brasileiro, principalmente após a célebre decisão do caso Show do Milhão, proferida pelo STJ em 200511. A proposta encampada pelo anteprojeto de reforma visa consolidar esse conceito, assentando três questões relevantes sobre ele. Em primeiro lugar, o texto ressalta que a chance, para ser reparável, deve ostentar um mínimo de importância. Recorrendo a uma expressão já consagrada na literatura, a chance passível de indenização precisa ser "real e séria". O requisito é de grande relevância para barrar o abuso do conceito de perda de uma chance. A chance é um objeto abstrato; ela não tem uma dimensão material. Por essa razão, sua reparação constitui uma porta aberta aos pedidos oportunistas, pois a vítima pode, sempre, inventar supostas chances perdidas em razão de um acidente. Ao condicionar a reparação das chances ao seu caráter "real e sério", a proposta evidencia que a reparação de chances não pode ser vulgarizada. Nesse aspecto, o texto conscientemente não impõe um parâmetro rígido para a determinação do que constitui uma chance real e séria, recusando, em especial, o critério matemático segundo o qual a chance seria relevante apenas se atingisse um patamar mínimo de probabilidades12. Delimitar o que constitui uma chance real e séria é uma questão que há de ser resolvida pela jurisprudência e pela doutrina13. Em segundo lugar, a redação proposta consolida a forma de calcular da indenização das chances perdidas, a qual leva em conta dois elementos: as probabilidades representadas pela chance e o valor do interesse que essa chance proporcionaria, caso concretizada. O valor da chance perdida nada mais é do que a expectativa matemática representada por essa chance; que grosso modo envolve a multiplicação desses dois fatores. Esse método de cálculo tem uma implicação importante, a saber, o fato de que o montante da indenização concedida à vítima em razão da chance perdida será sempre menor do que o valor vantagem aleatória que ela desejava. Trata-se de uma exigência lógica: a chance de obter uma vantagem jamais poderia ter o mesmo valor que a própria vantagem. É exatamente o que ocorreu no já mencionado precedente do Show do Milhão, no qual o STJ concedeu à vítima uma indenização de R$ 125.000,00, por ter sido injustamente impedida de responder à pergunta final em uma competição de um programa televisivo. Esse montante inferior ao valor do prêmio almejado por ela, equivalente a R$ 500.00,00, pois o tribunal considerou que a concorrente tinha apenas ¼ de se sagrar vitoriosa. Existe, com relação a esse ponto, um problema de redação do texto do anteprojeto, mais precisamente no trecho em que afirma que a indenização da chance deve ser calculada "levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada". Na verdade, se a chance fosse concretizada, ela não proporcionaria fração alguma: a vítima teria então obtido a própria vantagem aleatória que pretendia14. O esboço do texto, encaminhado à subcomissão, previa que a "chance deve ser calculada 'como' fração dos interesses", enfatizando que o valor da indenização representará apenas uma parcela da vantagem aleatória pretendida pela vítima. Um terceiro aspecto do texto projetado diz respeito à natureza, patrimonial ou extrapatrimonial, do dano representado pela chance perdida. Ao mencionar que a chance deve ser entendida como uma "fração" da vantagem aleatória que a vítima pretendia obter, o texto ressalta a ligação estreita existente entre esses dois interesses. É por essa razão que a chance se reveste da mesma natureza dessa vantagem aleatória. Assim, por exemplo, se a vítima foi privada da chance de obter um prêmio em dinheiro, essa chance a ser reparada terá natureza de dano patrimonial. Por outro lado, se o concurso em questão tinha caráter puramente honorífico, o dano terá natureza extrapatrimonial. E há hipóteses em que a chance ostentará natureza dúplice. Basta analisar os casos de perda de uma chance médica, em que o paciente foi impedido de receber um tratamento adequado para a sua doença. O interesse do paciente na eventual cura envolve tanto questões patrimoniais quanto extrapatrimoniais, o que se reflete também na chance a ser reparada. Esse elemento do texto é grande importância para uniformizar o entendimento sobre a perda da chance. Evita-se uma confusão encontrada na jurisprudência, que por vezes trata a perda da chance simplesmente como uma nova espécie de dano moral. __________ 1 Faz-se referência ao relatório final da Comissão de Reforma, entregue ao Senado. 2 Cf.  SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 164. 3 Por todos: SILVA, Rafael Peteffi da. Conceito normativo de dano: em busca de um conteúdo eficacial próprio. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 38, 2024, p. 33-107. 4 LE TOURNEAU, Philippe ; Droit de la Responsabilité et des Contrats. 6. ed. Paris: Dalloz, 2006, n° 1305, p. 364. 5 Crim., 3 março 1993, RTD civ. 1995, p. 128, nota P. Jourdain; Civ. 2a, 2 nov. 1994, RTD civ. 1995, p. 128, nota P. Jourdain; Crim., 13 dez. 1995, Bull. crim. 1995, n° 377, p. 1101. 6 "Ao exigir que o prejuízo seja certo, quer-se afirmar simplesmente que ele não deve ser hipotético, eventual. É necessário que o juiz tenha a convicção de que o demandante estaria em uma situação melhor se o réu não tivesse praticado o fato que lhe é imputado", MAZEAUD, Henry; MAZEAUD, Léon; e TUNC, André, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile. 6. ed. t. I. Paris: Montchéstien, 1965, n° 216, p. 268. 7 Cf. também nossa monografia sobre o tema: CARNAÚBA, Daniel. Responsabilidade civil pela perda de uma chance: a álea e a técnica. Rio de Janeiro: GenMétodo, 2013. 8 STJ, AgInt no AREsp 1.737.042/RJ, 3ª Turma, 09/05/2022. 9 STJ, AgInt no AREsp 2.397.705/SP, 2ª Turma, 27/05/2024. 10 STJ, AgRg no REsp. 1.220.911/RS, 2ª Turma, 17/03/2011. 11 STJ, REsp 788.459/BA, 4ª Turma, 08/11/2005. 12 Cf. Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil: A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos. 13 Para uma análise aprofundada do conceito de chance "real e séria": HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 82-103. 14 O problema já havia sido apontado por Rafael Peteffi: Responsabilidade civil por fato da coisa na alteração do Código Civil.
Um dos males na aprendizagem e na reflexão jurídica é saber sobre a fotografia que se vê, mas não saber em que condições ela foi tirada e em que momento estava o contexto em que ocorreu o fato fotografado. Isso prejudica tanto o acadêmico quanto o profissional jurídico, pois passamos a lidar com algo como se fosse uma verdade dada e não construída historicamente na formação de instituições. Isso ocorre com o princípio da territorialidade e seus influxos nas dimensões da responsabilidade civil, segundo o qual as normas brasileiras e jurisdição nacional devem ser aplicadas no Brasil ou em espaço de soberania brasileira, podendo variar em cada contorno de ramo jurídico. O ponto aqui levantado para reflexão é a dimensão histórica de danos e responsabilidade contratual e extracontratual no Brasil, mas que por envolver cidadão ou interesse ingleses ficavam excluídos da jurisdição ordinária brasileira. Sim, uma época em que a responsabilidade civil no Brasil possuía uma jurisdição específica (dita conservadora inglesa) em virtude do lesante ou lesado, assim como em virtude do objeto ou interesse envolvido. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é um ponto inicial. Há uma série de regras relativas à aplicação ou não das normas brasileiras, independentemente da nacionalidade dos envolvidos. O artigo 12 da Lei afirma que é competente a autoridade judiciária brasileira quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação. Igualmente, determina que só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil. Lembremos aqui que a redação original é de 1942. Já o Código Penal, que é originalmente de 1940, afirma que se aplica a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. Mas por que há tanta preocupação nacional com a territorialidade? Por que o Brasil se envolveu tanto em proclamar algo que para os viventes do século XXI é tão óbvio? Talvez porque o óbvio nada mais é do que uma construção cultural e histórica que precedeu à formação de nossa compreensão de realidade jurídica atual. Não faltaram conflitos no passado quanto ao tema, inclusive relativos ao mito de que teria sido o pós-independência do Brasil um momento pacífico. Nessa linha é preciso descortinar. Nem sempre a análise da responsabilidade civil por danos ocorridos no Brasil esteve sujeita à jurisdição ordinária brasileira. As primeiras décadas do século XIX são marcadas por conflitos entre brasileiros e ingleses no âmbito privado, embora fundados em acordos e fixações forjados entre os dois países. Esses conflitos envolviam interesses e situações de responsabilização contratual e extracontratual. Aqui se destaca o Tratado entre Brasil e Inglaterra de 1810, firmado logo após a vinda da família real. Seguiram-se a ele outros Tratados, como o de 1826, relativo à independência e seu reconhecimento. Interligada a esses tratados, advém a Constituição do Império. A Constituição de 1824, em seu artigo 179, possuía dois incisos diretamente afetos ao tema da competência de julgamento. O inciso XVII designava que à exceção das causas que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá foro privilegiado, nem Comissões especiais nas causas cíveis ou criminais. Já o inciso XXV determinou a abolição das Corporações de Ofícios, seus Juízes, Escrivães e Mestres. Havia assim, Juízes próprios das Corporações ou Juízes privados. Entretanto, em relação à Inglaterra, a situação não se procedeu integralmente, ou seja, não houve uma plena assunção de jurisdição relativa a conflitos envolvendo interesses ou cidadãos ingleses. Após a independência, Brasil e Inglaterra firmaram o "Treaty of Amity and Commerce between Great Britain and Brazil", ratificado em Londres em 1827. O Tratado, em razão da extinção das jurisdições particulares, manteve por vias transversas uma jurisdição privativa inglesa, nominada para ser ocupada pelos denominados Juízes Conservadores da Nação Inglesa. O artigo VI do Tratado assim dispunha:  VI. Tendo a Constituição do Império abolido todas as jurisdições particulares, convém-se em que o lugar de Juiz Conservador da Nação Inglesa subsistirá só até que se estabeleça algum substituto satisfatório em lugar d'aquela jurisdição, que possa assegurar igualmente proteção às pessoas e à propriedade dos súditos de Sua Majestade Britânica. (British and Foreing: State Papers. 1826-1827. Great Britain and Brazil. London, Harrison and son, Lancaster Court, Strand, 1828, p. 1013. Access in: 23 fev. 2022)  Estabeleceu-se, em fato, jurisdição inglesa em território brasileiro, sob o verniz de se tratar de jurisdição sob acordo do Império brasileiro. O Tratado excepcionou a Constituição da República até que, um dia, viesse a ser dito que haveria um "substituto satisfatório" para a jurisdição inglesa. Se de um lado há o ditado popular "para inglês ver", de outro deveria haver o ditado popular "para brasileiro esperar". A sociedade brasileira passou a conviver com situações esdrúxulas. O Juiz Conservador inglês arrogava-se a decidir inclusive conflitos entre bêbados ingleses e cidadãos brasileiros. Celeumas e conflitos de responsabilidade civil afetos a interesses ingleses ou cidadão inglês possuíam jurisdição própria, provocando verdadeiro paralelismo normativo. Não se tratou bem de uma invenção nacional. Em verdade, o Brasil herdou o instituto já existente em Portugal e, também, na Espanha. As causas e sentenças relativas aos ingleses eram firmadas a partir de estrutura paralela à jurisdição e às normas brasileiras. Portanto, se um dano ou violação de contrato ocorresse, o juízo competente variaria segundo os envolvidos. Os conflitos no Brasil foram intensos, com uma aversão nacional aos ingleses no século XIX. Há obra belíssima do Ministro Athos Gusmão Carneiro sobre o tema, nomeada "O Juiz conservador da Nação Britânica". Vale aqui a referência:  Anota Dias da Mota, entretanto, que em 1839 o governo inglês teria conseguido que seus súditos, residentes no Brasil, 'que até então iam responder ao júri, tivessem um privilégio para não serem julgados senão pelo seu tribunal especial e não pelo júri' (Atitudes Inglesas na História do Brasil, 1941, ed. Labor, p. 53) (Carneiro, Athos Gusmão. O juiz conservador da Nação Britânica. In: Revista Inf. Legisl., Brasília, vol. 14, n. 56, out/dez. 1977, p. 245)  O Brasil manteve os Juízes Conservadores até 1844. Os efeitos e traumas sociais e culturais perseveraram durante décadas. O estabelecimento da prevalência das normas e jurisdição do Brasil não é, portanto, um evento fortuito no cenário jurídico, a desaguar no princípio da territorialidade. Talvez, inconscientemente, ainda tenhamos presente o cenário contextual no qual Tratados e interesses paralelos excepcionavam a própria Constituição Brasileira. A jurisdição brasileira somente galgou ser efetivamente competente para julgar matérias de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, dentre outras, após vinte anos da primeira Constituição pátria.
No mercado financeiro, há um número crescente de investidores/aplicadores pessoas físicas. Existem hoje mais de 5 milhões de pessoas físicas investindo na bolsa de valores. Em 2018 apenas 700.000 pessoas físicas investiam na bolsa de valores. Em busca de maiores ganhos esses investidores apostam em um mercado de renda variável, onde não é garantido o capital investido e muito menos as rendas subjetivamente esperadas por ele. Este mercado envolve diversos instrumentos financeiros complexos, como derivativos, opções, swaps, onde o risco de perdas está sempre presente; ao contrário do mercado conservador de renda fixa, onde, embora os ganhos esperados sejam menores; tanto capital como a remuneração são assegurados; e contam também, diferentemente do mercado de renda variável de produtos financeiros complexos, com a cobertura do fundo garantidor de natureza privada para cada indivíduo e instituição financeira até R$250.000,00 em caso de eventual liquidação da instituição financeira. Assim, o investidor pode contratar produtos financeiros complexos, entendidos como aqueles em que há alto risco de perdas, sem garantia de qualquer rendimento ou retorno do capital aplicado, que associam sua performance, em um único instrumento contratual, a dois ou mais ativos de natureza financeira. Considerados estes riscos, a lei portuguesa chega inclusive a obrigar que tais produtos sejam identificados expressamente junto aos investidores como produtos financeiros complexos.1 Como se tratam de produtos financeiros complexos emerge naturalmente o problema de como informar adequadamente este investidor, independentemente de ser o mesmo qualificado ou não como consumidor para que possa tomar uma decisão esclarecida quanto a contratá-los ou não. O importante, nessa seara, é a informação quanto aos riscos de perda financeira inerentes a produtos dessa natureza, pois como a doutrina tenho defendido  defendido exaustivamente, o que é tutelado nesses casos é a liberdade de escolha.2 Dai que para o exercício dessa liberdade a informação adequada, inclusive, na forma de recomendações e advertências passa a ser fundamental. A questão que se coloca aqui é saber se existe para esses investidores pessoas físicas que 'consomem' esses produtos financeiros complexos a proteção do CDC e responsabilidade civil das instituições financeiras ante a perdas econômicas nesses investimentos. A jurisprudência do STJ tem caminhado na direção de não socorrer esse investidor no caso de perdas de produtos financeiros complexos, sustentando que 'no caso de aplicação em fundo de investimentos de alto risco, por investidores qualificados, experientes em aplicações financeiras, não há que se reconhecer direito a serem imunes a rendimentos significativamente menores em período de perdas gerais no setor, à invocação do dever de informar . sob a alegação de contradição entre os prospectos (...) e os regulamentos do fundo de investimentos'.3 Em outro julgado, o STJ entendeu que "o consumidor buscou aplicar recursos em fundo agressivo, objetivando ganhos muito maiores do que os de investimentos conservadores, sendo razoável entender-se que conhecia plenamente os altos riscos envolvidos em tais negócios especulativos, mormente quando se sabe que o perfil médio do consumidor brasileiro é o de aplicação em caderneta de poupança, de menor rentabilidade e maior segurança".4 Suitability e direito à informação dos investidores: Não obstante, esses investidores não merecerem a tutela do CDC, o mercado financeiro, sobretudo, a partir da crise econômica mundial de 2008 tem evoluído em direção a maior disponibilidade de informações em prol da proteção dos interesses dos investidores. Essa evolução tem como marca a busca constante por maior transparência nas operações entre as instituições financeiras, corretoras de valores mobiliários e os investidores em geral, independente das suas qualificações, diferenciando-os do investidor qualificado e profissional.   Atualmente a CVM, através da instrução normativa 30/21, é clara ao determinar uma avaliação pormenorizada do perfil do cliente, inclusive, se este "dispõe de conhecimento necessário para compreender os riscos da operação". Tais determinações, se violadas, podem resultar claramente na responsabilização civil do agente/corretora em caso de perdas financeiras ocasionadas ao cliente em face da desídia no cumprimento do dever de transparência. Nessas situações de descumprimento do dever de transparência, a própria Bolsa de Valores tem "condenado" esses agentes que acabam por induzir em erro os investidores, que tomam decisões equivocadas, tendo como consequência graves perdas. Foi o que ocorreu no julgamento de uma representação em face de um banco e de uma DTVM - Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários que, não obstante tenham informado, que o investidor poderia sair do investimento a qualquer tempo, enquanto no instrumento de subscrição, esse resgaste a qualquer tempo era vedado; o que importou em graves perdas financeiras para os investidores.5 A instrução normativa 30/21 da CVM veda expressamente que seja recomendado qualquer produto financeiro ao cliente que seja inadequado ao seu perfil. Neste sentido passa a ser fundamental que o perfil de investidor, que também é chamado pelas instituições financeiras de Suitability, seja identificado  a partir de um questionário, que capta informações sobre grau de tolerância ao risco do cliente. Neste sentido, são 3 os perfis de investidor: Conservador, aquele que não quer correr risco de perder o dinheiro aplicado, prefere menor rentabilidade a ganhos maiores; Moderado, não abre mão da segurança; aplica maior parte dos seus recursos em aplicações de baixo risco; e coloca uma pequena parte em investimentos de risco em  busca de maior rentabilidade; Agressivo, está sempre em busca de maior rentabilidade, por isso aceita correr maiores riscos. O art. 2º da resolução CVM 30/21 determina claramente que as Instituições financeiras devem se abster de recomendar investimentos em desacordo com o perfil do cliente.6 O art. 3º da mesma resolução impõe expressamente que os agentes do mercado mobiliário verifiquem:  O produto, serviço ou operação é adequado aos objetivos de investimento do cliente; A situação financeira do cliente é compatível com o produto, serviço ou operação;  O cliente possui conhecimento necessário para compreender os riscos relacionados ao produto, serviço ou operação.7 Existe, nos termos desta instrução normativa, não apenas um dever simples  de informação, mas um dever de aconselhamento8 ao cliente com emissão de um juízo de valor, no sentido de protegê-lo contra assumir  riscos totalmente  em desacordo com o seu perfil. Verificada uma perda do cliente com um produto financeiro complexo, a primeira questão que deverá ser observada é se o investimento oferecido ao cliente está em sintonia com o seu perfil, com o questionário que e próprio respondeu. Se se trata de um cliente de perfil conservador e suas perdas ocorreram em um produto de grandes riscos, fica evidente o descumprimento das regras de suitability e a instituição financeira pode sim ser responsabilizada a recompor as perdas. A questão do perfil do cliente torna-se fundamental para os chamados investidores do varejo, nos termos da instrução normativa 30 da CVM; já que para os investidores qualificados (aqueles com investimentos acima de R$1 milhão) e profissional (com investimentos acima de R$10 milhões) as instituições financeiras são dispensadas de colher o perfil dos mesmos ante a presunção que tem são experientes e tem informações suficientes dos riscos das operações. Com relação aos investidores qualificado pessoa física ou jurídica, no próprio texto das minutas contratuais, que tem por objeto produtos financeiros complexos, já é deixado claro cláusulas  que atestam que "o cliente é experiente e tem pleno conhecimento do risco da operação"; ou que, "tem conhecimento do grau alto de complexidade da operação contratada"; ou ainda "que está familiarizada com as operações que são objeto deste contrato e possuem conhecimento amplo e específico sobre as regras vigentes no mercado." A própria Anbima reconhece essa maior assimetria de informações e, portanto, vulnerabilidade,  em relação ao investidor de varejo e recomenda maior cautela dos agentes financeiros na operação com os mesmos: "é notável que o grau de assimetria informacional incorrido pelos participantes de mercado não é uniforme. Por exemplo, investidores institucionais, que operam regularmente nos mercados e cuja capacidade técnica é avaliada por autoridades de regulação e supervisão, tem, via de regra, maior capacidade de avaliar eventuais assimetrias e conflitos de interesses que investidores individuais de varejo." 9 Na perspectiva dos tribunais, pode-se dizer, a partir dos próprios julgados do STJ, tem se feito uma separação entre investidores do varejo, e investidores qualificados e profissionais. Quando se trata destes últimos, tem-se entendido que "são experientes em aplicações"; ou que é "razoável entender se conhece plenamente os altos riscos envolvidos nos negócios especulativos." Os casos de perdas que podem envolver a aplicação do CDC e responsabilização civil das instituições financeiras estão mais relacionados ao investidor de varejo. Neste particular, o STJ tem levado muito em consideração o cumprimento do dever de informação da instituição financeira: "A gestão fraudulenta e a omissão do dever de informação por parte da recorrente, considerando como fator determinante para a causação do prejuízo o descumprimento do dever da correta informação na hipótese em exame, ultrapassa a razoabilidade prevista no art. 14, §1º, inciso II, do CDC, a justificar a excludente do nexo de causalidade, ainda que se trate de aplicação de risco." 10 Em outro caso, o STJ responsabilizou civilmente a instituição financeira a indenizar todos as perdas sofridas pelo  consumidor, que, confiando no banco, com o qual mantinha longa relação, aplicou recursos em fundo de renda variável, ao invés de renda fixa, conforme seu perfil conservador sugeria: "A manutenção da relação bancária entre a data da aplicação e a manifestação da insurgência do correntista não supre seu déficit informacional sobre os riscos da operação financeira realizada a sua revelia. Ainda que indignado com a utilização indevida do seu patrimônio, o consumidor (mal informado) poderia confiar, durante anos, na expertise dos prepostos responsáveis pela administração de seus recursos, crendo que, assim como ocorria com o CDB, não teria nada a perder ou, até mesmo, que só teria a ganhar. A aparente resignação do correntista com o investimento financeiro realizado a sua revelia não pode, assim, ser interpretada como ciência em relação aos riscos da operação. Tal informação ostenta relevância fundamental, cuja incumbência cabia ao banco, que, no caso concreto, não demonstrou ter agido com a devida." 11 Quanto a gestão dos recursos do investidor por parte das instituições financeiras, o entendimento jurisprudencial aponta no sentido que a obrigação do gestor é de meio e não de resultado. Entretanto, em caso de manifesta e comprovada má gestão dos recursos do investidor, por parte da instituição financeira, esta pode ser obrigada a indenizar as perdas experimentadas por aquele: "O administrador de fundo de investimento não se compromete a entregar ao investidor uma rentabilidade contratada, mas de apenas de empregar os melhores esforços - portanto, uma obrigação de meio - no sentido de obter os melhores ganhos possíveis frente a outras possibilidades de investimento existentes no mercado. No entanto, o STJ afirma que a má-gestão, consubstanciada pelas arriscadas e temerárias operações com o capital do investidor, ou a existência de fraudes torna o administrador responsável por eventuais prejuízos." 12 Já em relação ao investidor qualificado13 e o profissional14 assim o são exatamente por aplicarem maiores somas no mercado; e, sobretudo, por deterem mais conhecimento para avaliarem por si próprios os riscos envolvidos. Mesmo assim não basta ser investidor de varejo para se qualificar como consumidor; se ele investe abaixo de R$1 milhão, mas o faz com habitualidade ele "perde" a condição de "consumidor" exatamente por buscar de forma continua lucros nessas operações, motivo pelo qual presume que  ele conheça razoavelmente os riscos de perdas envolvidos nessas operações. Diferente é o investidor de varejo eventual, não habitual; que não tem o costume de realizar esses investimentos e o faz muito raramente. Neste caso, poderá ser qualificado perfeitamente como o consumidor destinatário final do art. 2º do CDC, exatamente por conta da falta da habitualidade na busca desses ganhos financeiros. Neste caso, esse investidor eventual é consumidor e deve merecer, portanto, maior atenção tanto do gerente do banco quanto das corretor de valores mobiliários, sobretudo, no tocante ao direito à informação, nos termos do art. 6º, III, do CDC que determina deixá-lo bem informado em linguagem clara e adequada sobre os riscos envolvidos na operação. Conclusão: A partir da crise econômica de 2008 e posteriores regulamentações da CVM, sobretudo, a consolidada através da instrução normativa 30/21, pode-se dizer que as instituições financeiras devem agir sempre com máxima cautela em relação aos investidores do varejo, ainda na hipótese que estes possam não ser qualificados como consumidores, nos termos do art. 2º da lei 8078/90. A regra de ouro da suitability  vem  exatamente nesta direção, determinando-se não só um maior grau de transparência e informações nas operações envolvendo o investidor do varejo, como também com um dever claro de aconselhamento a não contratar operações que estejam em desacordo com o perfil do investidor. Ao aceitar a contratação de produtos financeiros complexos, sem se atentar para o perfil desse investidor, a instituição financeira pode sim responder por todas as perdas financeiras do cliente. Entretanto, se o investidor pessoa física opera com valores acima de R$1 milhão, poderá ser tratado como investidor qualificado ou profissional, onde se presume o seu conhecimento e experiência para contratar produtos financeiros complexos, isentando-se, nestes casos, a instituição financeira de responsabilização por perdas em face da natureza das operações, que são sempre de alto risco. __________ 1 Portugal, Decreto-Lei 211/A/2008 de 3 de novembro, 1 - Os instrumentos financeiros que, embora assumindo a forma jurídica de um instrumento financeiro já existente, têm características que não são directamente identificáveis com as desse instrumento, em virtude de terem associados outros instrumentos de cuja evolução depende, total ou parcialmente, a sua rendibilidade, têm que ser identificados na informação prestada aos aforradores e investidores e nas mensagens publicitárias como produtos financeiros complexos 2 KHOURI, Paulo R. R A. O Direito do Consumidor na Sociedade da Informação, Almedina, Coimbra, 2022, p. 132. 3 STJ, REsp 1.214.318/RJ, rel. min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 12/6/2012, DJe de 18/9/2012. 4 REsp 799.241/RJ , relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/8/2012, DJe de 26/2/2013. 5 "os cotistas teriam sido induzidos a acreditar que seria possível o resgate das cotas dos fundos [mas] a informação sobre a impossibilidade de resgate teria sido devidamente introduzida no instrumento de subscrição de cotas assinado por eles. Sobre esse ponto, o boletim de subscrição de fato vedava o resgate de cotas, mas é incontroverso nos autos e admitido pela própria defesa dos [controladores da DTVM e do Banco], o uso da palavra "resgate" em seu sentido comum no processo de distribuição das cotas, tendo como objetivo informar aos potenciais subscritores a possibilidade de "sair do investimento" por meio do mecanismo de liquidez oferecido. Este procedimento, de induzir o investidor a acreditar que teria garantido o direito de saída de um investimento em um fundo fechado a qualquer momento, é justamente o que configura o ardil utilizado pelos acusados para induzir o investidor ao erro e não o fato das cotas terem sido ou não resgatadas" CVM, Processo Administrativo Sancionador n. RJ 2014/12081, voto do Relator em 18.06.2019. 6 Art. 2º As pessoas habilitadas a atuar como integrantes do sistema de distribuição e os consultores de valores mobiliários não podem recomendar produtos, realizar operações ou prestar serviços sem que verifiquem sua adequação ao perfil do cliente. 7 Artigo 3º. Resolução CVM 30/2021 8 Neste sentido, KHOURI, Paulo R. R A. O Direito do Consumidor na Sociedade da Informação, Almedina, Coimbra, 2022, p. 124 9 Disponível aqui. 10 STJ, AgRg no Ag n. 1.140.811/RJ, rel. min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 23/2/2016, DJe de 26/2/2016. 11 STJ,  REsp n. 1.326.592/GO, rel. min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 7/5/2019, DJe de 6/8/2019. 12 REsp n. 1.724.722/RJ 13 Ssão os agentes autônomos de investimentos, administradores de carteira, analistas e consultores de valores imobiliários, com certificados aprovados e pela CVM ou investidores com mais de R$1milhão em aplicações financeiras, que assim se declarem.  14 Bancos, corretoras, seguradoras, fundos de pensão, fundos patrimoniais, fundos de Investimentos de acordo com a classificação da CVM, são investidores institucionais/profissionais, assim como pessoas com mais de R$10milhões em aplicações financeiras que assim se declarem. 
Os avanços científicos nas áreas da Oncologia e da Genética culminaram na consolidação do aconselhamento oncogenético como importante estratégia personalizada de rastreamento e prevenção diante da possibilidade de surgimento da doença oncológica. Como premissa dessa consolidação, recomenda-se que tal aconselhamento deva ser realizado por um especialista, tendo em vista que ele é o mais capaz tecnicamente de solicitar o teste genético mais adequado e interpretar os resultados advindos da leitura do conteúdo de natureza genética. O aconselhamento genético em Oncologia é, antes de tudo, uma revisão criteriosa do histórico familiar e pessoal de câncer de cada paciente. O primeiro passo do aconselhamento consiste na construção do heredograma (representação gráfica capaz de detalhar o histórico familiar), que, através da descoberta de padrões de acometimento de câncer, permite identificar aqueles indivíduos que necessitam de testagem genética1. Esses padrões, como o diagnóstico de câncer em idade mais precoce que a habitual e a identificação de diversos casos da mesma neoplasia em parentes próximos, sugerem predisposição hereditária a esta doença.3 Caso seja recomendado seguir com a testagem, o seu resultado pode identificar variantes genéticas, também conhecidas como mutações, que colocam o aconselhado em um patamar de risco mais elevado para desenvolver determinadas neoplasias, o que afetaria sobremaneira a sua saúde.2 Assim, algumas pessoas com mutações podem ter benefícios significativos com o aconselhamento e a testagem genética, uma vez que se tornam candidatas a protocolos personalizados de rastreamento e prevenção de câncer que, em última análise, podem reduzir drasticamente (90% em alguns cenários) o desenvolvimento de determinadas neoplasias ao longo da vida.4 É importante salientar que os testes permitem a identificação de mutações genéticas relacionadas a um aumento da probabilidade do aparecimento da doença neoplásica e motivam a elaboração de estratégias adequadas a cada caso. É justamente essa característica hereditária do câncer, alcançada pela avaliação feita pelo especialista, que pode justificar a opção por estratégicas profiláticas ou de prevenção, como cirurgias para retirada de órgãos ou uso de medicamentos redutores de risco, além de exames apropriados mais precoces e mais frequentes para fins de rastreamento.3 A popularização dos testes genéticos (voltados para Oncologia e para outras finalidades) é cada vez mais identificada como um fenômeno global, de modo que, em alguns países, pessoas buscam sua realização sem qualquer tipo de orientação especializada. Esse cenário conduz à uma reflexão sobre as consequências (pessoais e sociais) que o acesso desorientado à informação genética pode trazer. No Brasil, não contamos com lei específica disciplinando criteriosamente o acesso, o uso e o manejo desse tipo de informação, em especial, com foco no problema da discriminação genética. A lei 13.709/18 (LGPD) estipulou regras sobre uso, proteção e transferência de dados pessoais, o que abrange, também, os dados genéticos, categorizados como sensíveis. A norma estabeleceu que o uso de dados dessa natureza está condicionado à chamada autodeterminação informativa, ou seja, à autorização expressa do seu titular, mas não trouxe disposições específicas sobre a informação genética. As motivações para o aumento do interesse social pelos testes genéticos parecem ser a incessante busca do ser humano por desvendar o que não conhece; o medo de ser surpreendido pelo que possa não ter controle e, ainda, a possibilidade real de ter acesso a mecanismos que possam prever/conter o desenvolvimento de doenças no futuro. Não há, de fato, nenhum problema nessas motivações. Compete mesmo à ciência propiciar alternativas para o alargamento e a qualidade de vida, buscando promover a saúde e o bem-estar de todas as pessoas.   As questões que ascendem a esse contexto estão, na verdade, na forma com que essa possibilidade pode ser manejada, já que o acesso e o uso não cuidadosos desse tipo de conhecimento podem criar leituras equivocadas, sentimentos de medo, desespero e vulnerabilidade quanto à proteção sobre as informações sensíveis do ser humano. O aconselhamento genético também está submetido a regras éticas e jurídicas, ainda que no país não exista legislação especializada, mas previsões normativas pertinentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a não discriminação genética é disciplinada por lei, que definiu as diversas situações em que a informação genética pode ser solicitada, acessada ou integrada a determinadas relações contratuais, como as de seguro, trabalho, prestação de serviços de saúde e outras.5 O direito à não discriminação genética no Brasil é advindo do sistema de proteção a garantias e direitos fundamentais, alicerçado pela dignidade da pessoa humana. Disso resulta que o processo de aconselhamento oncogenético (como em todas áreas do aconselhamento) é conduta especializada que deve ser guiada pela ética e pela responsabilidade, já que, se feito inadequadamente, pode causar dano ao paciente aconselhado. Alguns desafios nesse cenário merecem destaque. São poucos profissionais habilitados a fazer aconselhamento genético no Brasil (e também em outras partes do mundo), de modo que a maioria trabalha em clínicas de Oncologia ou hospitais que tenham a especialidade e consultórios privados. Há alguns centros no SUS, normalmente, conectados a serviços prestados por universidades públicas. Recentemente, a permissão do uso da telemedicina possibilitou relevante mudança na forma de se poder realizar o aconselhamento genético. Isso tem propiciado o aumento do acesso ao aconselhamento por muitos pacientes, tendo em vista que a maioria dos especialistas está concentrada nos grandes centros urbanos. Se houver opção pela teleconsulta, será possível encaminhar o teste genético pelo correio para que o paciente possa fazer a coleta da saliva. A coleta é feita em casa pelo próprio paciente, que vai encaminhar de volta o recipiente com a saliva coletada para que o teste seja realizado.6 O uso da telemedicina é orientado pela perspectiva da ética e da responsabilidade do profissional, o que faz com que a teleconsulta para aconselhamento genético também deva ser guiada pelos mesmos cuidados que toda relação médico-paciente demanda. A consulta de aconselhamento deve contar com o máximo possível de informações relacionadas ao histórico oncológico, tais como: Se já houve diagnóstico de câncer, o resultado da biópsia, o laudo anatomopatológico, o laudo da imuno-histoquímica e, se realizados, os exames genéticos, além das informações sobre os parentes. As informações mais importantes dos familiares se referem ao órgão acometido pela doença oncológica incialmente e, ainda que a doença tenha se espalhado, é importante informar onde ela começou, além de apontar, também, aproximadamente, a idade com que esse parente teve o diagnóstico.1 A obtenção do consentimento informado, assim como em toda relação médico-paciente, é parte integrante do aconselhamento genético. Compete ao aconselhador preservar as informações genéticas do aconselhado, resguardando sua privacidade, e conduzindo a consulta cuidadosamente, em especial, para acolher o indivíduo que possua diagnóstico de predisposição hereditária a câncer. O manejo da informação obtida por meio do aconselhamento está diretamente relacionado à necessária garantia do cuidado, apregoado pelas conhecidas diretrizes da matriz bioética principialista.7 Lidar com o acesso ao conteúdo do DNA no processo de aconselhamento oncogenético é também não esquecer que a identidade de cada pessoa não pode ser, exclusivamente, contingenciada pelo conteúdo do seu código genético. No âmbito da responsabilidade, cabe a observação sobre a natureza da obrigação envolvida. Estamos diante de uma obrigação de meio e não de resultado, já que a genética dialoga com o espectro das probabilidades, não se podendo, na maioria das situações, estabelecer um cálculo exato ou uma garantia inequívoca de que a doença vai se manifestar no futuro. Essa premissa deve ser expressamente esclarecida, pelo profissional aconselhador, durante a obtenção do consentimento. Em casos de violação (não justificada por previsão legal ou decisão judicial) da confidencialidade e da privacidade da informação acessada, é possível falar em responsabilidade do profissional. Dados genéticos são dados pessoais sensíveis e não podem ser cedidos a terceiros, mantendo-se, conforme a LGPD, a regra da autodeterminação informativa. Atualmente, indivíduos podem ter acesso aos testes genéticos desenvolvidos para investigar predisposição hereditária a câncer em 2 contextos distintos: contexto clínico  - durante uma consulta médica na qual se deseja realizar o diagnóstico de alguma síndrome genética de predisposição a neoplasias, demandando, portanto, um pedido médico; contexto recreativo - através da realização de um teste desenvolvido diretamente ao consumidor, que dispensa a solicitação por um profissional médico, já que está disponível para compra em farmácias e supermercados. Os testes utilizados dentro do contexto clínico são, em sua maioria, realizados dentro de laboratórios de análises clínicas com certificações nacionais e internacionais de qualidade. Neles, os testes são desenvolvidos seguindo protocolos rigorosos de validação clínico-laboratoriais, avaliando genes que sabidamente estão associados ao risco de desenvolvimento de câncer e os resultados são reportados com base em diretrizes internacionais de classificação de variantes genéticas. Portanto, os laudos são padronizados e permite a reprodutibilidade e compreensão dos achados genéticos em qualquer parte do mundo, trazendo informações valiosas para a cuidado dos pacientes e seus familiares.   Por outro lado, a maioria dos testes diretos ao consumidor tem objetivo recreativo, analisando de forma superficial diversas características do indivíduo, como ancestralidade, metabolismo e predisposição a determinadas doenças, incluindo o câncer. Em geral, não realizam o sequenciamento completo de todos os genes envolvidos na predisposição hereditária ao câncer e, portanto, não podem ser utilizados como substitutos dos testes realizados dentro do contexto clínico. Por fim, reitera-se que o aconselhamento genético em Oncologia é estratégia essencial para o contexto familiar e pessoal de determinados pacientes, cabendo sempre ao profissional aconselhador agir com ética, atentando-se aos cuidados que devem ser direcionados a cada caso concreto; alteridade, guiando-se pelo sentimento de empatia; e responsabilidade, mantendo-se alinhado à construção adequada da relação médico-paciente. __________ 1 Guindalini, R. Como é a consulta de aconselhamento genético? Vídeo. Youtube. 2 Meirelles, AT; Guindalini R. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: a relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: Freire de Sá MF; Meirelles AT; Souza IA; Nogueira RHP; Naves BTO, editores. Direito e medicina: interseções científicas. Belo Horizonte: Conhecimento; 2021. p.155-178. 3 Meirelles, AT; Guindalini R. Oncogenética e Estatuto da Pessoa com Câncer: fundamentos bioético-jurídicos. Revista Bioética, v.30 n.4 Brasília Out./Dez. 2022. 4 Dancey JE; Bedard PL; Onetto N; Hudson TJ. The genetic basis for cancer treatment decisions. Cell. 2012 148(3):409-20. DOI: 10.1016/j.cell.2012.01.014. 5 United States. The genetic information nondiscrimination act of 2008. U.S. Equal Employment Opportunity Commission. 2008 Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2024. 6 Guindalini, R. Onde encontro um profissional para realizar aconselhamento genético? Vídeo. Youtube. 7 Beauchamp TL; Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 1979.
terça-feira, 11 de junho de 2024

Da erosão do elemento nexo causal

O esforço feito quando se inicia a análise do "entremado mundo del nexo causal" 1 decorre não apenas da complexidade do tema mas igualmente pelo fato de a doutrina não ter encontrado, no Judiciário, ouvintes atentos, pois o que está havendo é uma oscilação entre as diversas concepções da relação causal, ao sabor do que parece mais adequado ao caso concreto, o que compõe um cenário de fluidez na aferição do nexo causal - é o que Andrea Violante2 denomina de "causalidade flexível". O nexo causal é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão, e o dano; em outras palavras, é o vínculo entre dois eventos, apresentando-se um como consequência do outro. Dupla função tem o nexo causal: Permite determinar a quem se deve atribuir um resultado danoso; também, é indispensável para verificar a extensão do dano, pois serve como medida da indenização. Como já foi asseverado, a prova da culpa, em outros tempos, freava o impulso das demandas de reparação; uma vez demonstrada a culpa, as Cortes consideravam presentes os elementos necessários à responsabilização, sendo a prova do nexo, portanto, mera formalização, por vezes solucionada de forma empírica no próprio caso concreto. A responsabilidade objetiva, contudo, veio alterar o posicionamento do Judiciário, exigindo atenção especial no que concerne ao nexo causal, porquanto a interrupção deste consiste em um dos únicos caminhos para o réu não precisar indenizar. Desta forma, não apenas a culpa teve a erosão de seu filtro como ainda, nas ações que envolvem a responsabilidade objetiva, os olhares voltaram-se para o nexo causal. Tanto é verdade, que a responsabilização, nos casos de responsabilidade objetiva, "acaba por traduzir-se no juízo sobre a existência de nexo de causalidade entre fato e dano", decidindo o Judiciário, com certa ampliação, que "o nexo causal é a primeira questão a ser enfrentada na solução de demandas envolvendo responsabilidade civil e sua comprovação exige absoluta segurança quanto ao vínculo entre determinado comportamento e o evento danoso". 3 Embora se reconheça a erosão do nexo causal, à semelhança do que ocorreu com o exame da culpa, não se pode tratar daquele sem mencionar as teorias que o revelam ou que assim o deveriam fazer. A primeira a se tratar é a da equivalência das condições; é, pois, a mais antiga e a mais elementar. Segundo essa teoria, o dano não teria existido se cada uma das condições não se tivesse verificado; dito de outro modo, a equivalência das condições "aceita qualquer das causas como eficiente. A sua equivalência resulta que, suprimida uma delas, o dano não se verifica" 4; também é chamada de conditio sine qua non. Aplicada no Direito Penal (art. 13 do Código Penal brasileiro), em que não se verificam os efeitos expansionistas dessa teoria, uma vez que, se faltar tipicidade da conduta, não haverá crime; no entanto, é inaplicável na esfera da responsabilidade civil, porque, como já foi ponderado, conduziria a uma linha infindável de responsáveis já que é inexistente, na órbita civil, o princípio da tipicidade. A segunda teoria é a da causalidade adequada, criada por Von Bar, mas desenvolvida por Von Kries, na qual a causa5 de evento é aquela que teve uma interferência decisiva na produção do dano. Preocupa-se, neste sentido, com a causa mais apta a produzir o resultado. A causalidade adequada parte "da observação daquilo que comumente acontece na vida e afirma que uma condição deve ser considerada causa de um dano quando, segundo o curso normal das coisas, poderia produzi-lo. Esta condição seria a causa adequada do dano, as demais condições seriam circunstâncias não-causais".6 Em outras palavras, é preciso que o fato violador da personalidade alheia tenha atuado como condição concreta do dano e que em abstrato o fato seja uma causa adequada desse dano; isto é, o autor do dano só resta obrigado a reparar danos que não teriam ocorrido sem essa violação e que, se se abstraísse a referida violação, seria de se prever que não se teria produzido o dano.7 A causalidade adequada leva em conta uma situação abstrata e pautada em um princípio de normalidade; dito de outro modo, só serão imputadas ao agente as consequências que, em um determinado momento histórico, e segundo o estado da ciência e da técnica, são identificadas como consequências normais do comportamento do réu.8 A fim de constatar se a causa é efeito normal do dano, deve-se questionar se a relação de causa e efeito sempre existiu em casos daquela espécie ou se foi a resposta apenas naquele caso, por força de circunstâncias específicas. Apenas na primeira hipótese é que se entende a causa como adequada para produzir o dano.9 Por certo não faltaram críticas a essa teoria, pelo fato de existir uma incerteza inerente para as avaliações de normalidade e de probabilidade, uma vez que "probabilidade não é certeza".10 Em outras palavras, não basta, então, que um fato seja condição de um evento: é preciso que se trate de uma condição tal que, normal ou regularmente, provoque o mesmo resultado - isso é chamado de juízo de probabilidade. Para Mário Júlio de Almeida Costa11, o critério preferível neste prognóstico de adequação abstrata é o que atende às circunstâncias conhecidas à data da produção do fato, por uma pessoa normal, como àquelas conhecidas do agente. Por exemplo, João agride Pedro com um pequeno encontrão, e Pedro acaba morrendo, pois teve uma grave lesão craniana. A agressão de João não é, em princípio, adequada para colocar em perigo a vida de Pedro; no entanto, se a deficiência de Pedro era conhecida de João ou se João tinha a obrigação de conhecê-la, já existirá um nexo de causalidade adequada entre a agressão e o óbito. Tal teoria afirma que somente poderão ser levadas em consideração aquelas consequências, não completamente estranhas, que, segundo a experiência, podem ser consideradas como possíveis de semelhante feito. Não interessa o conhecimento ou a previsão pessoal do responsável do dano, mas sim, a apreciação feita segundo a experiência média de um julgador ou de um observador perspicaz, para que, no momento de ocorrer o fato gerador da responsabilidade, sejam conhecidas todas as circunstâncias, e não apenas as notórias (prognóstico objetivo ulterior).12 Paulo de Tarso Sanseverino13 comenta que, na prática, o conceito de causa adequada gera dificuldades, ainda mais quando o fato apresenta uma multiplicidade de causas, restando difícil afirmar qual destas seria a causa mais adequada; opta a doutrina pelo conceito negativo, ao estabelecer a causa inadequada. A terceira teoria é a da causalidade eficiente para a qual as condições que concorrem para um resultado não são equivalentes, existindo sempre um antecedente que, em virtude de um intrínseco poder qualitativo ou quantitativo, é eleito como a causa do evento. Para essa teoria, o juízo da causalidade não se daria em abstrato, mas em concreto, reconhecendo-se qual, dentre as causas, foi a mais eficiente na produção do dano. Defendiam essa teoria Birkmeyer, Stoppato e Köhler, porém nunca chegaram a um acordo acerca do que representava, com uma margem de certeza, critérios mais ou menos objetivos que permitissem selecionar, entre as diversas causas do dano, aquela que teve o poder intrínseco de produzi-lo no caso concreto.14 Em meio às críticas, alcançou papel de destaque a quarta teoria que é a da causalidade direta ou imediata, a qual considera como causa jurídica apenas o evento que se vincula diretamente ao dano, sem a interferência de outra condição sucessiva. Todavia, ela suscita ainda mais discussões intrínsecas, pois há quem defenda que é esta a adotada pelo Código Civil brasileiro, mas há quem a refute. Anderson Schreiber15 identifica no art. 403 do Código Civil brasileiro a expressa previsão da teoria da causa direta e imediata, uma vez que esse artigo refere que: "Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual". (Grifou-se). O autor ainda comenta que, a despeito do termo inexecução vir expresso no artigo, esta teoria também se estende à responsabilidade extracontratual.16 Da mesma forma pensa Agostinho Alvim17, para quem a escola que melhor explica o dano direto e imediato é a que julga importante a necessariedade da causa. Ocorre que o legislador, no art. 403 do CC, recusou-se a sujeitar o autor do dano a todas as consequências do seu ato, principalmente quando já não ligadas diretamente àquele. Para Agostinho Alvim18, o legislador está certo, pois não é justo que o autor do primeiro dano responda de forma ilimitada. Em contrapartida, Paulo de Tarso Sanseverino19 afirma que: "ao contrário do Código Penal, que, expressamente, adotou a teoria da equivalência dos antecedentes, o Código Civil brasileiro de 1916, seja no art. 159 (CC/2002, art. 186), seja no art. 1.060 (CC/02, art. 403), não se inclinou por nenhuma das teorias. Aliás, a maioria das legislações opta por não se filiar a nenhuma teoria especial". Sanseverino, de encontro com o pensamento de Schreiber, pontifica que "na doutrina brasileira, predomina o entendimento de que, no plano da responsabilidade civil, a teoria da causalidade adequada é a que melhor se aplica. (...) O STJ20 já teve oportunidade de apreciar, em diferentes julgamentos, casos envolvendo a relação de causalidade, tendo manifestado sua preferência pela teoria da causalidade adequada". Raimundo Gomes de Barros21 igualmente entende que a teoria da causalidade adequada, seja a responsabilidade subjetiva ou objetiva, é a que melhor soluciona os problemas em matéria de responsabilidade civil. Sérgio Cavalieri Filho22 também defende tal posicionamento quando aduz que "em sede de responsabilidade civil, nem todas as condições que concorrem para o resultado são equivalentes (como no caso da responsabilidade penal), mas somente aquela que foi a mais adequada a produzir concretamente o resultado". E, sobre o atual art. 403 do CC de 2002, antigo art. 1.060 do CC de 1916, o referido autor destaca: "com base no art. 1.060 do Código de 1916, nossos melhores autores - a começar por Aguiar Dias - sustentam que a teoria da causalidade adequada prevalece na esfera civil". Comenta que: A expressão 'efeito direto e imediato' não indica a causa cronologicamente mais ligada ao evento, temporalmente mais próxima, mas sim aquela que foi a mais direta, a mais determinante segundo o curso natural e ordinário das coisas. Com frequência a causa temporalmente mais próxima do evento não é a mais determinante, caso em que deverá ser desconsiderada. O problema da causalidade, então, não restou resolvido, porquanto a teoria da causa direta e imediata se apresentou excessivamente restritiva - não se pode negar que há uma responsabilidade também por danos causados de forma indireta e mediata. Pense-se no caso de uma pessoa atropelada que tem os seus pertences furtados: Por certo que o lesante deverá ressarcir o valor dos pertences, ainda que causa indireta do ato ilícito. Da mesma forma assegura Fernando Noronha23 para quem a causalidade necessária (causa direta e imediata) restringe demais a obrigação de indenizar, porque significa muito rigor exigir que uma condição seja não só necessária, mas também suficiente para juridicamente ser considerada causa. A causa direta e imediata era um potente filtro de ressarcibilidade, mas ocasionava injustiças, sendo necessário desenvolver, portanto, no âmbito da própria teoria, a subteoria da necessariedade causal, demonstrando que o dano direto e imediato quer, a bem da verdade, revelar um liame de necessariedade, e não de simples proximidade entre a causa e o efeito. O dever de indenizar vai surgir, assim, quando o evento danoso for o efeito necessário de determinada causa. Deste modo, danos indiretos passam a ser indenizados, desde que sejam consequência necessária da conduta tomada como causa. De acordo com o pensamento de Gustavo Tepedino24, a melhor doutrina é aquela que defende que a necessariedade consiste no verdadeiro núcleo da teoria da causa direta e imediata, não se excluindo a ressarcibilidade de danos indiretos, quando derivados necessariamente da causa posta em julgamento. Cabe também salientar que "em que pese a inegável importância do debate acadêmico em torno das diversas teorias da causalidade, em nenhuma parte alcançou-se um consenso significativo em torno da matéria". 25 Como já constatado, a indefinição quanto à adoção desta ou daquela teoria tem servido, é verdade, para garantir e para justificar reparação às vítimas.26 O que ocorre é que as Cortes não têm dado à prova do nexo causal igual tratamento rigoroso que, em outras épocas, alcançavam à culpa, preferindo, outrossim, amplas opções teóricas diante de uma legislação lacunosa acerca do tema, dando importância, apenas, para a motivação que inspira as decisões. A importância do nexo causal também se deve ao fato de este servir como um sistema de distribuição do prejuízo. Em outras palavras, cada um dos agentes deverá suportar o dano à medida que o tenha produzido, à proporção que a sua conduta interferiu no evento danoso, porque o agente que atuou com maior grau de culpa nem sempre é o que teve maior participação no dano. De fato, a extensão do dano deve ser aferida a partir do nexo causal, e não da culpa.27 Semelhante é a ideia de Pontes de Miranda28: "para se pensar em extensão do dano tem-se de partir do nexo causal. (...) Tem-se de considerar o prejuízo que o ofendido sofreu, ou sofreu e ainda vai sofrer, e o que pode haver lucrado, bem como sua participação nas causas do dano ou no aumento desse". Este sistema de distribuição do prejuízo ainda traz como vantagem o fato de poder ser utilizado tanto diante da responsabilidade subjetiva como da objetiva. O que se pretende demonstrar é que, com a erosão do filtro nexo causal, a liberdade que o Judiciário tem para tratar da questão acaba por estimular pedidos de reparação, fundados mais na desgraça da vítima do que em uma justa possibilidade jurídica de imputação dos danos ao pretenso lesante, chegando-se à vitimização social ou blame culture29 - uma via, portanto, totalmente inconsistente.30 E enquanto não se efetiva a necessária revisão dessa dogmática, vive-se um momento de perplexidade com a corrosão de uma das bases da responsabilidade civil, trazendo como consequência uma expansão do dano ressarcível. _________ ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 2001. ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1980. ATIYAH, Patrick. The damages lottery. Oxford: Hart, 1997. BARROS, Raimundo Gomes de. Relação de causalidade e o dever de indenizar. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 27, jul./set. 1998. 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Sergio Cavalieri Filho, j. 4.8.2004. 4 ALVIM, 1980, op. cit., p. 345. 5 Paulo de Tarso Sanseverino explica: "A causa é aquela condição que demonstrar melhor aptidão ou idoneidade para causação de um resultado lesivo. Nessa perspectiva, causa adequada é aquela que apresenta como consequência normal e efeito provável a ocorrência de outro fato". SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira.  Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 240. 6 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 600. 7 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 461. 8 PERLINGIERI, Pietro. Manuale di Diritto Civile. Nápoles: Edizione Scientifiche Italiane, 2003. p. 614-615. 9 ALVIM, 1980, op. cit., p. 345. 10 SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 79. 11 ALMEIDA COSTA, 2001, op. cit., p. 675. 12 LARENZ, Karln Derecho de Obligaciones. Trae. de Jaime Santos Briz. t. 1. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959. p. 201. 13 SANSEVERINO, 2002, op. cit., p.240. 14 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 55. 15 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 56. 16 Deve-se ressaltar que o art. 403 do CC está mal localizado, pois, se ele é aplicado tanto para responsabilidade contratual como para a extracontratual, não deveria, portanto, constar no título referente ao inadimplemento das obrigações (título IV), mas sim, na parte dos capítulos relativos à responsabilidade civil (título IX). 17 ALVIM, 1980, op. cit., p. 371-372. 18 ALVIM, 1980, op. cit., p. 398. 19 SANSEVERINO, 2002, op. cit., p. 242-243. 20 Recurso Especial 197677/MG, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 25.10.1999, DJ 17.12.1999, p. 356. Também STJ, 4ª T, REsp 326971/AL, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 11.06.2002, v.m., DJ 30.09.2002, p. 264; TJRJ, 8ª Câm. Cív., AC 2000.001.01843, Rel. Des. Letícia Sardas, j. 08.08.2000, data de registro: 25.09.2000. 21 BARROS, Raimundo Gomes de. Relação de causalidade e o dever de indenizar. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 27, p. 38, jul./set. 1998. 22 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 50-52. 23 NORONHA, 2003, op. cit., p. 597-598. 24 TEPEDINO, 2001, op. cit., p. 111. 25 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 59. 26 É o chamado imperativo social da reparação, o que não é sinônimo de Justiça. FLOUR, Yvonne. Faute et responsabilité civile: déclin ou renaissance? Droits - Revue Française de Théorie Juridique, Paris n. 5, p. 39, 1987. 27 CRUZ, 2005, op. cit., p. 333. 28 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. 22. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, p. 206. 29 ATIYAH, Patrick. The damages lottery. Oxford: Hart, 1997, p. 138. 30 O conceito de nexo causal é flexibilizado a fim de se permitir a efetivação do princípio da reparação integral. CRUZ, 2005, op. cit., p. 17.
O sentimento da insuficiência do Direito Civil para regular os danos oriundos da violação dos direitos de personalidade é o argumento para quem defende que os institutos de que dispõe até o momento o Direito Civil não conseguiram coibir nem reduzir a prática de novos ilícitos. Muito se resolve quando se aceita que a questão radica no fato de que a Constituição Federal tem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado. O decisivo é saber qual é o modo mais seguro de garantir a aplicação e a efetividade da ação de reparação de danos, em especial dos imateriais, e se um olhar verdadeiramente constitucional sobre o tema não muda a problemática. À medida que a sociedade fica mais complexa e só fazem aumentar as violações às pessoas, novas situações passam a exigir proteção jurídica adequada, pertinente, eficaz e condizente com os direitos tutelados. Outrossim, o reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais e a consagração da tutela de interesses existenciais, conquistas da ciência contemporânea, ampliaram o objeto protegido pelo Direito em face da atuação lesiva, o que conduz ao pensamento de que a violação de direitos constitucionalmente protegidos merece uma verdadeira proteção constitucional. Os direitos de personalidade, que têm origem no Direito Civil, foram elevados à dimensão constitucional, porém a tarefa do Código Civil de 2002 era a de codificá-los, proporcionando uma adequada regulação da matéria, mas este objetivo ainda segue sem implementação plena no âmbito do Direito Civil brasileiro codificado. Em outras palavras: A matéria dos Direitos da personalidade ainda recebe uma disciplina tópica e pontual. A realidade é que se surgem novos direitos de personalidade, igualmente aparecem novos danos imateriais e, com estes, a urgência da respectiva reparação. O instrumento do ressarcimento dos danos e da responsabilidade civil, embora adaptado às exigências da vida moderna, demostra-se, frequentemente, inidôneo, impõe-se, portanto, uma revisão nos próprios fundamentos da responsabilidade civil tradicional, que não oferece solução adequada aos inúmeros problemas trazidos pela sociedade moderna. O que se denota, portanto, é que resta expressa a insatisfação da responsabilidade civil como posta hoje, de forma a tutelar os direitos de personalidade, razão mais do que suficiente para se apostar em uma mudança, nem que seja a começar pela mudança de pensamento. O sentimento da insuficiência do Direito Civil para regular os danos oriundos da violação dos direitos de personalidade é o argumento de muitos, para quem os institutos de que dispõe até o momento o Direito Civil não conseguiram coibir nem reduzir a prática de novos ilícitos; assim, o Direito, que deve servir à vida e ter uma utilidade prática, já que feito por pessoas e para pessoas, deve amoldar-se às novas necessidades, para solver os conflitos oriundos de uma nova ordem social. Muito se resolve quando se aceita que a questão radica no fato de os direitos fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo. Verifica-se uma inadequação das técnicas de proteção da pessoa humana elaboradas pelo Direito Privado, consubstanciadas na doutrina dos chamados direitos da personalidade, pois os mecanismos de proteção apresentam-se aquém das inúmeras e crescentes demandas da pessoa humana, inseridas em situações que se multiplicam e se diversificam ao sabor dos avanços tecnológicos, sendo insuscetíveis de se ajustarem à rígida previsão normativa, muito embora merecedoras de tutela pelo ordenamento jurídico. Percebe-se, portanto, que na seara do Direito Civil-Constitucional é notável a insuficiência de seus institutos, mormente da responsabilidade civil, no seu âmbito de atuação, para um verdadeiro apaziguamento social por suas tradicionais funções. A inserção dos direitos de personalidade no Direito Civil resta ainda justificada, pelo fato de que tal Direito é o depositário dos princípios gerais do Direito, e toda a matéria comum às várias disciplinas é deixada para o Direito Civil, mas, principalmente, por ser atribuição dessa disciplina jurídica o estudo da pessoa e da personalidade, e pelo fato de a responsabilidade civil do ofensor aos direitos da personalidade do ofendido ser, também, tutelada pelo Direito Civil. A pergunta que urge nesse momento é: Precisa continuar sendo assim para sempre, sendo que a própria Constituição prevê a reparação dos danos por lesões a esses direitos? Não seria bastante razoável que juntamente com os direitos que são tutelados aparecessem as normas que permitem e, mais do que isso, que exigem a sua reparação? Por que deixar parte para o Direito Civil e parte para a lei maior, se tudo pode estar engrenado, tratado unido e de forma sistemática? Se os direitos de personalidade, ausentes no Código Civil de 1916, e parcialmente presentes no Código Civil de 2002, foram assim admitidos no Brasil por força de construções doutrinárias embasadas em leis especiais e na Constituição, então porque não admitir que são aqueles previstos na lei maior e que isso basta, da mesma forma que a previsão da reparação na Lex Mater, igualmente é o que faz sentido? O que o texto busca é apresentar respostas a esses questionamentos. A lei fundamental de um país expressa as relações de poder nele dominantes, como é o caso do poder militar, representado pelas Forças Armadas, do poder econômico, representado pela grande indústria e pelo capital, e do poder intelectual, representado pela consciência e pela cultura gerais. Assim, "as relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem, tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de Poder. Esses fatores reais de Poder formam a Constituição real do país". 1 Deve-se levar em conta que "o Direito mudou": Se, antes, o Direito servia apenas de mecanismo de contenção, de controle e de conservação, hoje, ele também exerce uma "função promocional". 2 Os primeiros direitos de personalidade surgiram da oposição entre indivíduo e Estado, que são os direitos à vida, à liberdade e à integridade física. No entanto, com o aumento populacional das cidades, com o crescimento dos meios de comunicação, com o avanço tecnológico, outras expressões do direito de personalidade emergiram, mas, agora, para proteger o indivíduo da intervenção lesiva de outros particulares. Não se pode negar que a evolução do Direito Positivo e da doutrina conduzem ao reconhecimento, a cada dia, de novos direitos de personalidade. Cediço concluir, portanto, que, se surgem novos direitos de personalidade, igualmente aparecem novos danos imateriais - com estes, a urgência da respectiva reparação. Para Paulo de Tarso Sanseverino3, "a reparação do dano injustamente causado constitui uma exigência de Justiça comutativa, como já fora vislumbrado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, devendo ser a mais completa possível, o que se chama, modernamente, de princípio da reparação integral do dano". À medida que a sociedade fica mais complexa e só fazem aumentar as violações às pessoas, novas situações passam a exigir proteção jurídica adequada, pertinente, eficaz e condizente com os direitos tutelados. Outrossim, o reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais e a consagração da tutela de interesses existenciais, conquistas da ciência contemporânea, ampliaram o objeto protegido pelo Direito em face da atuação lesiva, o que mais uma vez conduz ao pensamento de que a tutela aquiliana necessita ter a mesma natureza do direito violado - isto é, a violação de direitos constitucionalmente protegidos merece uma proteção constitucional. André Tunc4 alerta que a responsabilidade civil está em um "estado de crise", expressão que denota desequilíbrio da responsabilidade civil que vive, atualmente, patologias inesperadas, imprevisíveis, cujos remédios são ainda desconhecidos e talvez inexistentes. Humberto Ávila5 assevera que "o importante não é saber qual a denominação mais correta desse ou daquele princípio. O decisivo, mesmo, é saber qual é o modo mais seguro de garantir a sua aplicação e sua efetividade", que é o objetivo do presente estudo com o princípio do direito à reparação de danos imateriais, admitido como verdadeiro corolário constitucional. Fundamentos jurídicos e legais A lei maior é a grande expressão de força de um ordenamento, razão pela qual se entende que é o lugar para constar, formal ou materialmente, a reparação de danos imateriais, uma vez que é instrumento de tutela de bens de valor precípuo na vida das pessoas. De acordo com Konrad Hesse6: "A Constituição não configura, portanto, apenas a expressão de um ser, mas também de um dever-ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sociopolíticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas. Para que exista uma estabilidade entre o Direito, a Justiça e as Pessoas, faz-se necessário dar a estas um direito seguro e estável de reparação, visto que são eles que alcançam a esfera subjetiva de todos". Já durante o século XX o objetivo da lei maior deixou de ser, exclusivamente, o de estabelecer o estado de direito e o de limitar o poder político: Tomou contornos de uma moldura dos direitos dos particulares, fenômeno que se chamou de publicização do privado e que conduziu a uma tensão dialética entre o Direito Público e o Privado. No entanto, a Constituição não tinha o escopo de exaurir a matéria acerca dos direitos fundamentais, cabendo, então, a pergunta se o Código Civil "atendeu à necessidade de o Direito brasileiro ser dotado com uma disciplina específica da matéria". Há quem defenda, como Fábio S. Andrade, que "o Código Civil de 2002 não atende a estes objetivos", não alcançando, minimamente ao juiz, elementos de ponderação, objetivos e seguros, no sentido de propiciar a tutela dos direitos de personalidade, nem coordenando os temas ligados a tais direitos, porque ainda estão espalhados em leis especiais, sem nenhuma ampla norma centralizadora por parte do Código Civil.7 Os direitos de personalidade, que têm origem no Direito Civil, foram elevados à dimensão constitucional, porém a tarefa do Código Civil de 2002 era a de codificá-los, proporcionando "uma adequada regulação da matéria, que tivesse a ratio e o telos da Constituição"; a despeito disso, "este objetivo ainda segue sem implementação plena no âmbito do Direito Civil brasileiro codificado". Em outras palavras: "A matéria dos Direitos da Personalidade ainda recebe uma disciplina tópica e pontual". 8 Aos poucos o Direito Positivo foi sendo moldado pela consideração de que a pessoa é o bem superlativo; dito de outro modo, o sistema jurídico tem saído do patrimonialismo e retomado a máxima romana que dizia "hominun causa omne jus constitum est" - todo o Direito é constituído para as causas do homem. Assim, considerar a pessoa eixo do Direito pode até parecer truísmo; contudo, o legislador constituinte, de forma exaustiva, tornou a proteção à pessoa um princípio fundamental, querendo sepultar a época da ditadura. Ao dispor, logo no início da lei maior, sobre os Direitos e sobre as garantias fundamentais, quis o legislador deixar fora de dúvida a importância da pessoa para o Direito. Reforçando esta ideia, Carlos Alberto Bittar9 afirma que a natureza do dano imaterial "reveste-se de caráter atentatório à personalidade, de vez que se configura através de lesões a elementos essenciais da individualidade", o que demonstra a necessidade de proteção desses direitos por meio de uma ação igualmente constitucionalmente protegida. É certo que mecanismos como o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data, a ação popular e a ação civil pública10 resguardam direitos das pessoas, mas apenas contra atos de autoridades, com exceção da lei da ação civil pública; em outras palavras, sobra um resquício que não satisfaz a sociedade como um todo, pois nem sempre o dano injusto é praticado por uma autoridade, uma vez que o particular igualmente vai de encontro à Constituição. Devem ser compensadas lesões a direitos fundamentais, à dignidade humana, que acabam por abalar, verdadeiramente, o aspecto psicológico das pessoas. A reparação é, portanto, indefectível, já que o sujeito não pode ficar à mercê de outrem que insulta a dignidade e a igualdade jurídica que deve estar sempre presente. Trazer a reparação de danos para dentro da lei maior é tutelar o remédio da mesma forma que protege os direitos em questão, ou seja, é colocar em igual patamar a doença e a droga que permite a cura. Não é nada animadora a anárquica variedade de entendimentos e de interpretações que permeiam a responsabilidade civil, gerando, não raras vezes, soluções díspares para hipóteses idênticas, pois, ao contrário das regras seguras e estáveis que viriam sugeridas pela utilidade da responsabilidade civil, "o que se tem é um terreno movediço, caracterizado pela incerteza e pela mutabilidade", sendo que "neste solo instável, proliferam pedidos de indenização". 11 Sem dúvida, isso está longe de ser o ideal almejado quando se trata da reparação de danos tão relevantes. Acaba sendo imprescindível, portanto, que o intérprete una axiologicamente o corpo codificado e a lei maior para conseguir alcançar um valor uniforme às cláusulas gerais, sempre à luz dos princípios constitucionais que têm por escopo reunificar o Direito Privado diante das inúmeras fontes normativas e da constante e progressiva perda de centralidade interpretativa do Código Civil.12 O que se pode constatar é "uma profunda intromissão da Constituição em setores anteriormente regidos pelo Código Civil. De modo que tudo levaria a crer que a Constituição - e, por via de consequência, o Direito Público - passaram a ter total predominância", mas, ao mesmo tempo, comenta Fábio S. de Andrade, fazendo um contraponto, "aponta-se uma decadência da importância constitucional". Dito de outro modo, apesar de todo o poderio aparente das normas constitucionais, a lei maior, segundo o autor, não é capaz de substituir o primado do Código Civil, e a razão está no fato de "a realização de uma Constituição democrática exigir o consenso". O que Fábio S. de Andrade pontua com firmeza, no entanto, é que "a Constituição assume um papel de centralidade para instituir princípios ao sistema do Direito Privado".13 Assim, se há a necessidade da consolidação dos direitos de personalidade na lei maior, necessidade também há da consolidação da reparação dos danos causados a tais direitos, ainda que isso se dê pela inclusão material desses direitos na Constituição. A reparação de danos reconhecida como um direito fundamental se aproxima das noções de respeito à essência da pessoa humana, às características e aos sentimentos da pessoa humana, à distinção da pessoa humana em relação aos demais seres. Em outras palavras, o conteúdo da reparação de danos não tem como vir total e cabalmente delimitado pelo Direito, porque dependerá muito, e também, das circunstâncias sociais e do sentimento de dignidade que cada pessoa tem a respeito de si mesma. Se com os direitos à personalidade se protege o que é próprio da pessoa, como a vida, a integridade física e psíquica, o direito ao corpo, à intimidade, da mesma forma a reparação desses direitos merece especial atenção, significado e colocação jurídica adequada, ou seja, a sua inserção na lei maior; afinal, "não há negócio jurídico ou espaço de liberdade privada que não tenha seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional". 14 Antonio Baldassare15 defende que os direitos fundamentais não precisam de uma previsão específica, porque considera que os direitos de personalidade são paradigmas gerais que englobam várias possibilidades. Há, no entanto, quem sustente uma concepção fechada e taxativa16 (previsão legal específica) do rol dos direitos de personalidade, como Pietro Perlingieri.17 A personalidade humana é, antes de tudo, um valor jurídico, ou seja, é insuscetível de redução a uma situação jurídica-tipo ou a um elenco de direitos subjetivos típicos; assim, o modelo tipificado será sempre insuficiente para atender às situações em que a personalidade humana exige proteção.18 Em um primeiro momento, a inserção dos direitos de personalidade no Direito Civil resta justificada pelo fato de que tal Direito é o depositário dos princípios gerais do Direito e, no dizer de Oliveira Ascensão19, "toda a matéria comum às várias disciplinas, tendencialmente a todas, é deixada para o Direito Civil, mas, principalmente, por ser atribuição dessa disciplina jurídica o estudo da pessoa e da personalidade e pelo fato de a responsabilidade civil do ofensor aos direitos da personalidade do ofendido ser, também, tutelada pelo Direito Civil". A pergunta que urge nesse momento é: precisa continuar sendo assim para sempre, sendo possível que a própria Constituição preveja a reparação dos danos por lesões a esses direitos? Não seria bastante razoável que juntamente com os direitos que são tutelados aparecessem as normas que permitem e, mais do que isso, que exigem a sua reparação? Por que deixar parte para o Direito Civil e parte para a lei maior, se tudo pode estar engrenado, tratado unido e de forma sistemática? Se os direitos de personalidade, ausentes no Código Civil de 1916, e parcialmente presentes no Código Civil de 2002, foram assim admitidos no Brasil por força de construções doutrinárias embasadas em leis especiais e na Constituição, então porque não admitir que são aqueles previstos na lei maior e que isso basta, da mesma forma que a previsão da reparação na Lex Mater, igualmente faria sentido? Todas estas respostas foram e continuam sendo dadas ao longo deste texto. Na seara do Direito Civil-Constitucional, é notável a insuficiência de seus institutos, "mormente da responsabilidade civil, no seu âmbito de atuação, para um verdadeiro apaziguamento social por suas tradicionais funções". 20 É, igualmente, da Constituição que se pode inferir a afirmação da validade das disciplinas do Direito que devem se subordinar aos princípios do Direito Constitucional, não podendo, de forma alguma, ser incompatíveis com os mesmos. Nesse sentido afirma Kelsen ser a lei maior a norma fundamental de um país, por ser a fonte de validade das demais normas e que, contrariadas ou conflitantes, são inconstitucionais. Para o autor austríaco, a inserção de um rol de garantias fundamentais do indivíduo nas Constituições tem por objetivo não permitir que o legislador crie leis que causem danos aos direitos da pessoa humana, podendo ser essas leis violadoras de natureza civil ou penal.21 O que não se pode olvidar, todavia, é que "law is tied to life", ou seja, "o direito está ligado à vida", como declara Stephen Breyer.22 Já Judith Martins-Costa23, ao contrário, defende que "o novo Código Civil constitui uma estrutura receptora do sistema geral de proteção à pessoa humana, com lugar especial à rede de bens da personalidade"; para a autora, não há a necessidade de a Constituição Federal prever a reparação de danos, porque isso já está estabelecido, e, segundo Martins-Costa, suficientemente, no Código Civil. Para Judith, "a relação entre a dignidade humana, a tutela à pessoa e os direitos de personalidade não é visualizada como uma pirâmide - descendendo da Constituição - mas como uma rede, harmoniosa e articulada" (Grifo do autor). A autora afirma que o Código Civil atual não tem mais o caráter constitucional que tinha o Código de 1916, mas que cumpre a função de garantia, assumindo a responsabilidade de unificar e de harmonizar o caos irracional dos microssistemas, promovendo, no campo dos direitos de personalidade, a comunicação, racionalmente ordenada, entre os direitos fundamentais e as normas infraconstitucionais; de acordo com a referida autora, basta o Código Civil para garantir um efetivo direito de reparação de danos imateriais.24 Fábio S. de Andrade aduz que: "A codificação, hoje colocada numa situação de crise, dificilmente poderá ser substituída ou superada. Isto porque ela representa uma categoria altamente representativa que, por estar associada ao princípio da continuidade, sempre estará a (co)ordenar o Direito Privado". 25 Igualmente Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo P. Ruzyk26 sustentam que "os direitos fundamentais não são tutelados apenas por conta de sua positivação constitucional (...). O direito é instrumento para uma racionalidade que o antecede: A que enfatiza a necessidade de servir à produção e à reprodução da vida e a dignidade. Antecede o jurídico uma dimensão ética, a ele indissociável, que lhe dá fundamento" (Grifo do autor). Nesse ponto concorda-se com a ideia do autor, porquanto se acredita que a ética vem antes de tudo e que ela sempre deverá estar presente como baliza mestra, não sendo, no entanto, suficiente. Bruno Miragem27, por seu turno, comenta que "atualmente, entretanto, um eventual paralelismo entre as tutelas civil e penal da personalidade cede espaço para o influxo de um segundo fenômeno de aproximação e relação entre o Direito Privado e o Direito Constitucional. Em outros termos, à expressão que já referimos, a publicização ou constitucionalização do Direito Privado". 28 (Grifo do autor) No mesmo caminho, Yussef Said Cahali29 comenta que: "Sob o pálio agora das normas constitucionais, a tutela no plano civil do direito de personalidade, por via da reparação do dano moral, traz latente o interesse público na preservação dos valores tutelados, de resto também protegidos na esfera do Direito Penal". (Grifou-se) André Andrade30 traz à baila a preocupação explicitada ao longo deste estudo quando assevera que: "A dimensão do princípio da dignidade humana e a forma mais adequada de protegê-lo são questões ainda em aberto, as quais, pela sua importância, devem ser objeto de reflexão dos juristas e dos operadores do Direito em geral", ponderando, ainda, que cabe aos primeiros determinar o alcance da proteção que a Constituição dá à dignidade humana, o que "não é tarefa fácil ou isenta de controvérsias. Todavia, algumas premissas fundamentais podem e devem ser estabelecidas" (Grifou-se). Levanta o autor, como primeira premissa, o fato de toda a pessoa, em virtude da sua condição de ser humano, ter direito à indenização por danos imateriais, não se devendo levar em conta se é uma criança, um doente mental, uma pessoa em estado de inconsciência, pois a falta de consciência não exclui a humanidade que é inerente a cada um. Outrossim, a lesão à dignidade humana abrange tanto as ofensas à pessoa individual como social, sendo mais do que aquilo que afeta o mínimo existencial, pois a dignidade pode ser violada em diversos níveis. Pietro Perlingieri31 traz, textualmente, que: "O instrumento do ressarcimento dos danos e da responsabilidade civil, embora adaptado às exigências da vida moderna, demostra-se, frequentemente, inidôneo". André Andrade32 complementa: "Impõe-se, portanto, uma revisão nos próprios fundamentos da responsabilidade civil tradicional, que não oferece solução adequada aos inúmeros problemas trazidos pela sociedade moderna". O que se denota, portanto, é que resta expressa a insatisfação da responsabilidade civil como forma de tutelar, principalmente, os direitos de personalidade, razão mais do que suficiente para se apostar em uma mudança. O sentimento da insuficiência do Direito Civil para regular os danos oriundos da violação dos direitos de personalidade também é o argumento de Caroline Vaz33, para quem "os institutos de que dispõe até o momento o Direito Civil não conseguiram coibir nem reduzir a prática de novos ilícitos, o Direito, que deve servir à vida e ter uma utilidade prática, já que feito por homens para homens, deve amoldar-se às novas necessidades, para solver os conflitos oriundos de uma nova ordem social". Outrossim, muito se resolve quando se aceita que a questão "radica no fato de os direitos fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo". 34 Igual é o sentimento de Gustavo Tepedino35 quando afirma que: "Verifica-se a inadequação das técnicas de proteção da pessoa humana elaboradas pelo Direito Privado, consubstanciadas na doutrina dos chamados direitos da personalidade". De acordo com o autor, os mecanismos de proteção apresentam-se "aquém das inúmeras e crescentes demandas da pessoa humana, inseridas em situações que se multiplicam e se diversificam ao sabor dos avanços tecnológicos, sendo insuscetíveis de se ajustarem à rígida previsão normativa, muito embora merecedoras de tutela pelo ordenamento jurídico". Markesinis, Deakin e Johnston36 trazem, ao longo de sua obra, Tort Law, alguns avisos gerais para os novos advogados que trabalham com a responsabilidade civil, pontuando que eles devem estar atentos aos seguintes pontos: "1. O que interessa aos advogados acadêmicos nem sempre tem importância semelhante para os profissionais e litigantes; 2. O Direito Civil está usando velhas ferramentas para atender às necessidades sociais de uma nova e diferente era". Tal conselho é um bom argumento para chamar a atenção para as ferramentas que se têm para trabalhar com os danos causados aos direitos de personalidade até o presente momento, porque, se a responsabilidade civil, por si só, não está solucionando satisfatoriamente os casos concretos, talvez seja pelo fato de, atualmente, os danos terem um alcance nunca antes imaginado, tanto que os autores ponderam que: "A longevidade de alguns conceitos e leis civis é tão admirável quanto notável. Assim, neste país, em vários casos, muito do que fazemos e da forma como pensamos hoje pode remontar à Idade Média. (.) Em grande parte, essa sobrevivência deve-se ao conteúdo flexível, senão amorfo, de alguns desses conceitos; 3. O Direito Civil precisa de uma reforma, mas esta não parece estar próxima; 4. O Direito Civil é, na prática, frequentemente inacessível à vítima comum.5. Doutrina Desordenada". São, enfim, ideias que não podem ser desprezadas.  _______ ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação - crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre a tutela dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e Teoria Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. BALDASSARE, Antonio. Diritti della Persona e valori costituzionalli. Torino: G. Giappichelli. s.d. BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. BREYER, Stephen. Active Liberty - interpreting our Democratic Constitution. New York: Vintage Books, 2005. CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. CANARIS, Claus-Wilhelm. 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Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. _______ 1 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. De Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 9. 2 FACCHINI NETO, Eugênio. Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efetivação dos Direitos da Criança e do Adolescente. Juizado da Infância e Juventude. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Coordenadoria-Geral da Justiça, Porto Alegre, n.2, 2004, p. 25. 3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral - Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 34. 4 TUNC, André. La responsabilité civile. Paris: Economica, 1989, p. 6. "Le droit de la responsabilité civile est donc dans un état de crise". Tradução: "O direito da responsabilidade civil está, pois, em um estado de crise". 5 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 22. 6 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. De Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 15. 7 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre a tutela dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 103, 118. 8 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre a tutela dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 118. 9 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 53. 10 Eugênio Facchini Neto disserta: "No caso brasileiro, a ação popular constitui exemplo emblemático de exercício de uma democracia participativa. Por meio dela se confere legitimidade a qualquer cidadão para pleitear 'a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista', além de outros órgãos onde haja participação pública, sendo que a noção de patrimônio público abrange, para tal efeito, 'os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico' (art. 1º e §1º, da Lei n. 4.7171/65). Igualmente a ação civil pública e, em certos casos, o mandado de segurança coletivo poderão representar canais adequados para que membros da sociedade civil possam controlar ações ou omissões estatais". FACCHINI NETO, Eugênio. O judiciário no mundo contemporâneo. Juris Plenun, ano V, n.26, 2009, p. 49. 11 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. Da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 3. 12 TEPEDINO, Gustavo. Crise nas fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 364, nov. /dez. 2002, p. 115. 13 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação - crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 126-127, 135. 14 TEPEDINO, Gustavo. Crise nas fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 364, nov. /dez. 2002, p. 119. 15 BALDASSARE, Antonio. Diritti della Persona e valori costituzionalli. Torino: G. Giappichelli. s.d. p. 57. 16 Os que optam pela taxatividade aduzem que apenas os direitos de personalidade previstos no Código Civil, na Constituição ou em leis especiais devem ser admitidos como tais, a menos que surja lei dispondo a respeito de um novo direito de personalidade. Essa concepção, no entanto, não é consentânea com a realidade, pois a previsão será sempre insuficiente para proteger a dignidade da pessoa humana na sociedade atual. 17 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 154. 18 TEPEDINO, Gustavo. Crise nas fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 364, nov. /dez. 2002, p. 117. 19 ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e Teoria Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. p. 291. 20 VAZ, Caroline. Funções da responsabilidade civil - da reparação à punição e dissuasão - os punitive damages no Direito Comparado e brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 95. 21 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do Direito. Trad. de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 310. 22 BREYER, Stephen. Active Liberty - interpreting our Democratic Constitution. New York: Vintage Books, 2005, p. 100. 23 MARTINS-COSTA, Judith H. Pessoa, Personalidade, Dignidade - ensaio de uma qualificação. Tese de Livre Docência em Direito Civil apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003, p. 103. 24 MARTINS-COSTA, Judith H. Pessoa, Personalidade, Dignidade - ensaio de uma qualificação. Tese de Livre Docência em Direito Civil apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003, p. 255. 25 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação - crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 173. 26 FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo P. Direitos Fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 103. 27 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil da imprensa por dano à honra: o novo Código Civil e a Lei de Imprensa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 90. 28 A constitucionalização do Direito Civil refletiu-se também na responsabilidade civil - e de forma notável. Acerca disso, referência fundamental é TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In: ___. (Coord.). Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1-22. 29 CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 60. 30 CORRÊA DE ANDRADE, André Gustavo. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência da Common Law e na perspectiva do Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 28-29. 31 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. De Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro, 1999, p. 32. 32 CORRÊA DE ANDRADE, André Gustavo. Dano moral e indenização punitiva: os punitive damages na experiência da Common Law e na perspectiva do Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 229. 33 VAZ, Caroline. Funções da responsabilidade civil - da reparação à punição e dissuasão - os punitive damages no Direito Comparado e brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 138. 34 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 225. 35 TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos Direitos Fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas. Revista Jurídica, n. 341, ano 54, mar. 2006, p. 13. 36 MARKESINIS B. S.; DEAKIN, Simon; JOHNSTON, Angus. Tort Law. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 54-64.
Como consequência da erosão da culpa e do nexo causal, houve um aumento significativo do número de indenizações, o que acarretou provimentos mais favoráveis em virtude de uma manipulação mais flexível destes pressupostos tradicionais da responsabilidade civil. Referida flexibilização traz à baila a valorização da função compensatória pelo desejo de garantir à vítima algum tipo de ressarcimento. Culpa e nexo causal ficam em segundo plano, para que, no primeiro, esteja o dano - objeto e razão de ser das indenizações -, elemento capaz de atrair a atuação do Judiciário em prol das vítimas das mais variadas lesões. Carlos Alberto Bittar1 ressalta que o dano é "qualquer lesão injusta a componentes do complexo de valores protegidos pelo Direito, incluído, pois, o de caráter moral". O aumento do número de reparação de danos propostas também se deve pelo acesso facilitado à Justiça, seja em razão da criação dos juizados especiais, seja pela gratuidade de acesso ao Judiciário, seja pelo trabalho da Defensoria Pública, seja pelo crescente recurso às ações coletivas. Igualmente, além do crescimento quantitativo, houve um crescimento qualitativo do número de ações, porque novos interesses, atinentes aos interesses existenciais da pessoa humana, também passam a ser examinados. O dano tem uma dupla acepção: Em um sentido amplo, identifica-se como sendo uma lesão de um direito ou de um bem jurídico qualquer. Em uma segunda acepção, apresenta um significado mais preciso e limitado, sendo considerado como um menoscabo de valores econômicos ou patrimoniais, em certas condições, ou "la lesión al honor o a las afecciones legítimas". 2 Os danos imateriais são aqueles que atingem os sentimentos, a dignidade, a estima social ou a saúde física ou psíquica, ou seja, alcançam o que se pode denominar de direitos de personalidade ou extrapatrimoniais. A reparação dos danos extrapatrimoniais experimentou um grande progresso, pois em outros tempos eram muitos os juristas que o rechaçavam por entender que os bens morais não admitiam uma valoração pecuniária ou que esta seria sempre insuficiente ou arbitrária. Outros consideravam que os bens de personalidade são tão dignos que repugna a simples ideia de traduzi-los em termos materiais. Algumas legislações seguem uma via intermediária entre a negação e o pleno reconhecimento desses danos, como é o caso do Código Civil alemão, que admite a indenização do dano não-patrimonial, porém apenas nos casos taxativamente previstos na lei, como a lesão corporal, o dano à saúde, à privação da liberdade e o delito contra a moral da mulher. Afora isso, ter havido dano moral não exclui a possibilidade de, embora de modo indireto, também ter ocorrido dano material, e ambos podem ser perfeitamente delimitados, ainda que possam ser objeto de uma valoração unitária. É o caso, por exemplo, de um comerciante, vítima de ofensa à honra, o que afeta tanto a sua estima social como o desenvolvimento do seu negócio.3 Cabe agora destacar o fato de o dano imaterial ser impropriamente chamado de dano moral, espécie do gênero imaterial ou extrapatrimonial. A referida denominação é a que parece ter sido imposta pela doutrina e pela legislação, mas é oportuno assinalar a sua impropriedade, pois não se trata, a rigor, de um prejuízo que afete o menoscabo moral de uma pessoa, muito menos que trate de uma lesão aos princípios morais ou de consciência. Acaso assim fosse, estar-se-ia tratando de um dano estranho ao Direito, metajurídico. A resistência em se admitir o dano imaterial existe, segundo Viney e Jourdain, tanto pelo fato de se aceitar uma compensação econômica para um dano não-patrimonial como pela dificuldade na valoração de tal dano; entretanto, afirmam que isso não pode mais ser obstáculo à reparação de danos extrapatrimoniais, acabando por se render à jurisprudência e à doutrina francesa que largamente aceitam essa possibilidade. No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, que, em seu art. 5º, incisos V e X, trouxe previsão expressa para a reparação desses danos, infrutífera resta a discussão, a despeito de, antes mesmo de a lei maior tratar do assunto, já existirem leis esparsas que o continham, como, por exemplo, o Código Brasileiro de Telecomunicações e a extinta lei de imprensa. Cumpre ainda indagar se, no século XIX, quando o paradigma dominante era o homem e as suas riquezas materiais, fazia sentido falar em danos não-patrimoniais? Antes de se aceitar a relevância da saúde psíquica, da vida sexual e afetiva, cogitar-se-ia a estruturação, a efetivação e a reparação de dano psíquico, o dano à vida efetiva, o dano à realização sexual? Antes da Internet, como imaginar determinados danos à vida privada, à intimidade? No Brasil, vale frisar que "seja pelo significativo desenvolvimento dos direitos da personalidade, seja pelas vicissitudes inerentes a um instituto que só recentemente tem recebido aplicação mais intensa, a doutrina vem apontando uma extensa ampliação do rol de hipóteses de dano moral, reconhecidas jurisprudencialmente".4 Sobre isso, Giovanni Comande5 acentua que "a prescindir de qualquer ênfase descritiva, o efetivo alargamento da área do dano ressarcível é um dado fático presente nas últimas décadas em todas as experiências ocidentais". A caracterização dos danos à pessoa e a forma como se revelam denotam a necessidade de um modelo aberto cujo conteúdo será preenchido jurisprudencialmente, de acordo com a evolução da sociedade, o que conduz ao pensamento de que é a ideia de pessoa humana, no tempo histórico e na sua comunidade, que perfazem a configuração dos referidos danos. O dano será, a partir de agora, o centro das atenções. Liga-se, como já foi referido, historicamente, ao valor que é dado à pessoa e às suas relações com os bens da vida. O axioma, presente no Direito francês, que inspirou a Codificação brasileira de 1916, não tem, ainda hoje, o seu conceito previsto em lei. Do mesmo modo, não há dúvida de que o dano imaterial transcende o ilícito, uma vez que a responsabilidade objetiva eliminou o peso atribuído à ilicitude, tendo de se cogitar, nesses casos, apenas, do dano propriamente dito. O dano pode ser considerado como a lesão a um interesse juridicamente tutelado; por esse conceito, o foco das atenções é o objeto atingido, ou seja, o interesse lesado, e não as consequências econômicas ou emocionais desse dano sobre um sujeito.6 Outros argumentam que a diferença entre um dano imaterial e um dano patrimonial "diz respeito ao plano das consequências da lesão, não ao plano do tipo de objeto do ilícito".7(grifo nosso) Esse é também o raciocínio de Carlos Alberto Bittar8 quando destaca: "realçam-se, desse modo, os efeitos ou reflexos sentidos na esfera lesada, tomando-se, por conseguinte, os danos em si e em suas consequências, e, não, em razão da natureza dos direitos violados". De outra banda, alguns sustentam que depender o dano imaterial de um momento consequencial, como dor, sofrimento, "equivale a lançá-lo em um limbo inacessível de sensações pessoais, íntimas e eventuais". E declarar que ele é todo o prejuízo economicamente incalculável faz desse dano "figura receptora de todos os anseios, dotada de uma vastidão tecnicamente insustentável". 9 O que se pode então observar é que, para fins de distinção entre danos materiais e imateriais, existe: Um conceito de dano imaterial por exclusão; Uma noção que atenta ao interesse comprometido; Uma noção que atende à natureza dos direitos lesados. Para a primeira destas correntes - conceito por exclusão -, o dano imaterial é o menoscabo ou a perda de um bem, em sentido amplo, que causa uma lesão a um interesse amparado pelo Direito de natureza extrapatrimonial; em outras palavras, o dano moral é uma lesão de caráter não-patrimonial, consequência de um ato contrário ao Direito. Essa corrente encontra um bom número de adeptos e se inspirou nos ensinamentos de Josserand e Mazeud, da doutrina francesa, bastante influente entre nós. É, a bem da verdade, uma contraposição bastante simplista, que, todavia, não resiste a um exame mais atento, pois uma definição negativa, além de ser pouco segura, pode ser admitida apenas quando entre fenômenos homogêneos - como se sabe, os danos patrimoniais e imateriais são fenômenos distintos. E, para a terceira corrente - conceito que atende à natureza dos direitos lesados -, o dano imaterial é aquele que se infere da lesão a direitos personalíssimos e que protegem como bens jurídicos os atributos ou os pressupostos da personalidade da pessoa, como a paz, a vida íntima, a liberdade individual, a integridade física - ou seja, tudo o que se pode resumir no conceito de segurança pessoal. Aqueles que defendem esta orientação falam de dano em sentido amplo e atentam, portanto, mais à lesão do direito do que às consequências ou aos efeitos desta lesão.10 Por este viés denota-se que nem todo o dano imaterial causa mal-estar, dor, sofrimento ou sentimento negativo, porquanto a necessidade de associar um dano imaterial a referidos sentimentos deixaria várias lesões a direitos de personalidade sem reparação. Deve-se levar em consideração, em especial, os doentes mentais e as pessoas em estado vegetativo ou comatoso; as crianças; o nascituro; as pessoas jurídicas; as situações de dano moral difuso ou coletivo; o chamado direito à paternidade de obras literárias, artísticas ou científicas, previsto no art. 24, incisos I e II, da lei de direito autoral (lei 9.610/98), sendo suficiente a violação do referido direito autoral; o direito ao inédito, previsto no art. 24, inciso III, da lei de direito autoral, que prevê ser direito moral do autor "o de conservar a obra inédita" e que, se violado, caracterizado estará o dano moral independentemente de sofrimento ao autor; o fato de a Constituição Federal trazer, no art. 5º, inciso X, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada que, se consumada, independentemente de sofrimento, acarretará a configuração de dano imaterial.11 Constata-se, desta forma, que as reações íntimas ou internas não se confundem necessariamente com o dano imaterial, porque "a circunstância de que o dano moral não seja identificado com o 'sentir dor' permite que seja reclamado por incapazes, que antes não tinham essa possibilidade, ou a alternativa de que as pessoas jurídicas possam ter essa legitimação".12 Anderson Schreiber13 comenta que o dano não pode se identificar com uma lesão abstrata a um determinado interesse, pois, neste caso, estar-se-á diante de um conceito muito amplo, que era respaldado quando o dever de indenizar dependia da severa análise da culpa e do nexo causal - estes hoje bastante fragilizados -, como já se comentou aqui. Por isso, sugere-se conceituar dano como uma lesão concreta, isto é, como a violação de uma regra que, indo além da regulação abstrata de um interesse, estabeleça relações com outros interesses também tutelados. Maria Celina Bodin de Moraes14 ainda salienta que não é todo e qualquer sofrimento que dá ensejo a danos imateriais, porém somente situações tão graves que terminem por afetar a dignidade. É imprescindível mencionar, ainda que não seja objeto deste estudo, que, se o destaque for a relação da pessoa com os seus bens da vida materiais, estar-se-á diante de danos patrimoniais, apreciáveis, quase que imediatamente, economicamente. Assim, todo aquele que sofre um dano no seu patrimônio tem direito à reparação. Por outro lado, se, no primeiro plano, está a pessoa humana, valorada por si só - pelo fato de ser uma pessoa, dotada de subjetividade e de dignidade -, e titular de bens e de interesses não-mensuráveis - de pronto, economicamente -, está-se diante dos danos imateriais. O critério predominante na distinção entre danos patrimoniais e imateriais é o da avaliabilidade ou não em dinheiro, sendo que os regimes jurídicos também são distintos, como distintas são as subespécies. Os direitos sobre coisas corpóreas são patrimoniais; já os direitos sobre coisas incorpóreas como "direitos que têm por objecto a obra na sua forma ideal, na sua concepção intelectual", que são o direito do autor e o direito de propriedade industrial, têm uma estrutura mais complexa. Devem-se distinguir, nesses casos, os direitos morais de autoria das obras artísticas, literárias, científicas, intelectuais, invenções, modelos, desenhos e marcas industriais, que são direitos de personalidade, dos direitos patrimoniais de autor ou dos direitos patrimoniais de propriedade industrial, que apresentam um valor patrimonial autônomo e que são direitos reais, embora sujeitos a regime especial.15 De fato, o dano imaterial pode atingir a dignidade da pessoa. Salienta-se, como fez Bernard Edelman16, que, a despeito de o termo dignidade já ser conhecido há muito tempo - a ideia de uma dignidade própria ao homem remete à filosofia de Kant -, a noção de uma proteção jurídica dessa dignidade liga-se a um duplo fenômeno: À barbárie nazista (a ideia de crimes contra a humanidade, no Tribunal de Nuremberg) e à biomedicina. O problema é, no momento, que a dignidade da pessoa humana não se limita a interesse existenciais comuns, pois o seu conteúdo abraça os mais variados aspectos da pessoa humana que "vem se enriquecendo, articulando e diferenciando sempre mais" 17; abre-se, assim, o "grande mar" da existencialidade18, em um alcance tendencialmente infinito. Com a Constituição Federal de 1988, de acordo com o já exposto ao longo deste texto, houve uma mudança importante no núcleo do sistema do Direito Civil, uma vez que a proteção da dignidade humana se tornou prioridade absoluta; deste modo, a solução para os casos não podia mais ser encontrada, levando-se em conta apenas o dispositivo de lei que parecia resolvê-la, mas sim, todo o ordenamento jurídico e, em particular, os princípios fundamentais. As normas constitucionais passaram a ser estendidas às relações privadas, e o Código Civil foi perdendo a centralidade de outros tempos, o que, por certo, reforça a proposta do presente estudo, no sentido de, efetivamente, decorrer da Constituição Federal o direito à reparação de danos imateriais, uma vez que os assuntos ligados aos danos imateriais já estão sob a alçada da lei maior. Dissiparam-se as resistências da incidência da Constituição nas relações de Direito Privado, não tendo mais os civilistas como negar a eficácia normativa da lei maior para, ao menos indiretamente, auxiliar a interpretação construtiva da norma infraconstitucional. Todavia, quatro são as objeções comuns à aplicação direta da Constituição nas relações de Direito Civil: Diz respeito à vocação da Constituição para a organização dos poderes estatais sendo normas destinadas ao legislador e não a particulares, e "a regulação da autonomia privada, neste sentido, só poderia se dar por uma instância mais próxima da realidade dos negócios, no âmbito da legislação ordinária", e ao juiz não caberia passar por cima do legislador na definição de regras de conduta; Quer significar a baixa densidade normativa dos princípios constitucionais, referindo que a aplicação direta às relações privadas acabaria por ocasionar uma excessiva discricionariedade do juiz na solução de lides concretas; Invoca a estabilidade milenar do Direito Civil que terminaria abalada pela instabilidade do jogo político, acaso as opções constitucionais não fossem mediadas pelo legislador ordinário; Refere que o controle axiológico das relações privadas acarretaria desmesurada ingerência na vida dos particulares; isto é, "reduziriam-se dessa forma, autoritariamente, os espaços de liberdade dos particulares. Afinal, a liberdade é inerente ao homem, anterior ao ordenamento jurídico que, no máximo, poderá limitá-la, estabelecendo os limites do ilícito" (grifo do autor). Cabe contrapor, no entanto, que "essas quatro críticas, embora respeitáveis, relacionam-se com uma realidade inteiramente obsoleta, pressupondo o cenário característico da codificação do século XIX, marcado por uma clara dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado, este destinado à sublimação da autonomia da vontade". 19 O dano à pessoa humana passa a ser, sem sombra de dúvida, reparável, e isso é o que assinala o civilista peruano Carlos Fernandez Sessariego20, um pioneiro na América Latina, por destacar a proteção jurídica à pessoa humana. Sessariego define os danos à pessoa como os incidentes em qualquer aspecto do ser humano, considerado em sua integridade psicossomática e existencial, abarcando o que tem sido chamado, em outros ordenamentos, de dano biológico, dano à saúde, dano ao projeto de vida e dano moral em um aspecto estrito, podendo, todavia, ter reflexos na esfera patrimonial do sujeito.21 Entrando no contexto e complementando o sentido, Josaphat Marinho22 aduz que: "o homem, por suas qualidades essenciais, e não propriamente o dado econômico, torna-se o centro da ordem jurídica". Abrindo espaço para que, embora de forma sucinta, se possa tratar do dano existencial, ainda pouco estudado no Brasil23, e oriundo da doutrina italiana, deve-se mencionar que se trata de uma mudança muito grande na vida das pessoas, como noites em claro, sacrifícios, renúncias, pensionamento, fins de semana perdidos, diminuição do horizonte, entre outros tipos de consequência.24 Não se confundindo nem com o dano material, nem com o imaterial, o dano existencial é um dano a toda a gama de relações que fazem parte do desenvolvimento normal de uma pessoa, tanto pessoal como socialmente. É algo que a pessoa não pode mais fazer, porém era parte de sua rotina. Em outras palavras, é um "ter que agir de outra forma" ou um "não poder fazer mais como antes" tanto relativo a uma pessoa física como jurídica, abrangendo, inclusive, aquelas atividades que, razoavelmente, a pessoa poderia desenvolver, segundo regras de experiência. Diferenciando-o do dano moral puro, observa-se que o dano moral faz referência a um sentimento; o dano existencial diz respeito a um não conseguir mais viver como antes; outrossim, o dano moral normalmente ocorre junto com o evento lesivo; o dano existencial, em momento posterior, pois é decorrente de uma sequência de atos. São considerados como fatos potencialmente ensejadores de dano existencial: "a transmissão de doenças, barulhos intensos, a discriminação sexual ou religiosa, a incitação à prostituição, o abuso sexual, os acidentes de trabalho, a lesão ao direito de privacidade e à honra, desastres ambientais"; enfim, "os sacrifícios, as renúncias, a abnegação, a clausura, o exílio, o prejuízo do cotidiano, uma interação menos rica do lesado com outras pessoas, coisas e interesses, provisórias ou definitivas" - tudo isso são ingredientes que formam o dano existencial.25 Há, todavia, argumentos contrários à reparação do dano existencial, quais sejam: Essa categoria de dano é um "modismo", não acrescentando nada de inovador ao dano imaterial já existente; Pode ensejar reparações em valores bastante altos, com um representativo prejuízo e problema à sociedade; Não existe um valor padrão, o que pode facilitar abusos; É difícil visualizá-lo, uma vez que cada pessoa tem um tipo de reação diferente para situações semelhantes; Há o perigo do colapso da responsabilidade civil extracontratual, visto que dissabores podem permitir uma indenização, desprestigiando o instituto da reparação e ocasionando um aumento no número de ações propostas; Se a responsabilidade civil está, em regra, baseada na culpa, responsabilizar uma pessoa sem que ela tenha podido prevenir ou evitar o dano, não teria cabimento.26 Acerca da prova do dano existencial deve-se, primeiramente, decidir qual é a sua natureza jurídica: Se consequencialista ou se considerado dano evento. No primeiro caso, a prova do dano será a efetiva alteração do quotidiano do lesado, como fonte do ilícito tanto contratual como extracontratual, diferenciando-se, nesse particular, acerca do ônus da prova. Se considerado dano evento, basta a lesão a um bem constitucional, ou seja, deve-se provar o fato lesivo propriamente dito, sem importar a consequência.27 Voltando ao dano imaterial, a responsabilidade civil por danos imateriais vem regulada em diversos artigos, tais como: art. 1º, III e art. 5º, V e X da CF/88; art. 6º, VI e VII do CDC; art. 17, combinado com o art. 201, V, VIII e IX do ECA; art. 946 e art. 186 combinado com 927, todos do Código Civil de 2002, como regras gerais; casuisticamente, os arts. 948, 949, 953, 954, todos do Código Civil de 2002. A preocupação é, pois, com a chamada "indústria do dano moral". Esta acaba sendo estimulada pelo fato de: O valor da causa em uma ação de reparação de danos pode ser o valor de alçada, isto é, pagam-se as custas com base neste valor; A parte pode pleitear assistência judiciária gratuita, portanto, não terá gastos com o processo; A Súmula 326 do STJ garante que não há sucumbência recíproca, ou seja, o autor só será o sucumbente quando o seu pedido for julgado improcedente, sendo óbvio, desta forma, que aquele que move ação de reparação por danos imateriais pode não ter nada a perder, vendo em qualquer situação a hipótese de pleito de dano imaterial. Uma possível sugestão de solução para o recém referido problema seria excluir a ressarcibilidade de muitas das imaginadas modalidades de dano, propagando-se a ideia de que o dano, para ser ressarcido, deve dizer respeito a interesses que realmente mereçam proteção e reparação. O que se pode constatar é que, com a erosão do filtro nexo causal, e, em se tratando de responsabilidade objetiva, o único filtro capaz de funcionar é o dano, por isso a preocupação com a sua constatação. Schreiber28 contempla como proposta para o desincentivo de demandas frívolas a reparação não-pecuniária dos danos extrapatrimoniais, sugestão com a qual não se concorda, pois o sujeito só sente que fez algo errado quando é obrigado a dispender, mas que por uma questão de honestidade traz-se os argumentos. O pagamento de uma soma em dinheiro, por danos não-patrimoniais, faz crescer sentimentos mercenários29, e pode levar à conclusão de que a pessoa está autorizada a lesar, desde que tenha dinheiro para pagar, ou seja, desde que possa arcar com o "preço" correspondente. Sugere, também, a retratação pública, não necessariamente para substituir ou para eliminar a compensação em dinheiro, mas para ser associado a ela. Comenta o autor que, nos ordenamentos do Civil Law, o valor das indenizações por dano imaterial tem-se mantido baixo e que esta insuficiência igualmente é frustrante para a vítima. Defendendo, também, a reparação in natura, Rabindranath de Souza30 esclarece que "a obrigação da indenização deve, em princípio, revestir o modo de reconstituição natural ou de indenização em espécie, por ser esta a forma mais perfeita de reparação dos danos concretos ou reais e que melhor garante a integridade das pessoas e dos bens"; dito de outra maneira, o lesante deve restar obrigado a "reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento (violador da personalidade) que obriga à reparação". Desta forma, em caso de furto ou de detenção ilícita de manuscritos, deve-se devolvê-los; se alguém indevidamente gravou conversa alheia, deve destruir os registros; quem ofendeu outra pessoa deverá destruir a corporização da ofensa e retratar-se. Em contrapartida, sustenta-se que o dano, mesmo imaterial, deve ser ressarcido de forma pecuniária, sem que isso traga consigo o caráter pejorativo da mercantilização. É, sim, uma visão utilitarista, mas ela está sempre presente nas mais diversas relações privadas - é inerente a estas relações. Igualmente, concorda-se que a retratação ou o desagravo sejam formas cumuláveis com a soma a ser despendida pelo cometimento de um dano imaterial, porque nem todos que leram a notícia vexatória, por exemplo, vão ler o desagravo, sendo apenas este, desta forma, insuficiente. E sobre o argumento de os valores destas reparações serem baixos, a solução é efetivamente se alcançar um caráter punitivo ao dano, elevando-se, substancialmente, os valores a serem pagos às vítimas. Observa-se, então, que a reparação in natura, como já foi salientado, traz consigo fortes limitações, havendo a necessidade, no mais das vezes, de complementá-la ou de substituí-la por dinheiro. Deve-se, pois, ter em mente que: A reconstituição natural pode não mais ser possível ou ter-se tornado impossível, tanto material como juridicamente, como no caso da morte, no caso da destruição de manuscritos que não têm como ser recompostos; A reconstituição pode não reparar integralmente os danos, devendo ser complementada com pagamentos em dinheiro, como no caso da injúria, em que só a retratação não repara, uma vez que nem todos que ouviram a injúria ouvirão as desculpas; A reconstituição natural pode não ser exigível quando for excessivamente onerosa para o devedor, assim "se algumas cenas de um filme industrializado contiverem referências inexatas ou não verdadeiras acerca da identidade da personalidade de certa pessoa mas forem essenciais à compreensão da perspectiva fílmica do realizador, não haverá lugar à destruição do filme e respectivas cópias, nem ao corte das cenas", cabendo, eventualmente, uma indenização em dinheiro.31 Como no dano imaterial a dificuldade é o arbitramento do seu valor, tendo em vista o grau de subjetividade que permeia o assunto, há quem defenda32 que o ideal seria estabelecer "grupos de casos típicos" de acordo com o interesse extrapatrimonial concretamente lesado. Assim, vão-se construindo, por meio da jurisprudência, alguns tópicos ou parâmetros que possam atuar, pela pesquisa do precedente, como "amarras à excessiva flutuação do entendimento jurisprudencial". Certamente, pode-se dizer que: "A reparação dos danos extrapatrimoniais, especialmente a quantificação da indenização, constitui o problema mais delicado da prática forense na atualidade, em face da dificuldade de fixação de critérios objetivos para o seu arbitramento". 33 Cumpre observar, outrossim, que a jurisprudência34 e a doutrina já traçaram alguns requisitos a serem examinados pelo julgador quando do momento do arbitramento do dano imaterial, sem, todavia, haver regras legais expressas sobre o assunto. O fato é que exigir do legislador a elaboração dessas regras não traria, salvo melhor juízo, a justiça esperada, porque, como cada caso é único, com as suas especificidades, melhor não há do que deixar ao prudente e razoável arbítrio do juiz a decisão do valor no caso concreto, embora tendo por base dados bastante subjetivos. Resta ao inconformado, no entanto, o seu direito de recorrer da decisão. Carlos Roberto Gonçalves35 enumera um apanhado dos critérios a serem analisados pelo juiz no momento do arbitramento: "a) a condição social, educacional, profissional e econômica do lesado; b) a intensidade de seu sofrimento; c) a situação econômica do ofensor e os benefícios que obteve com o ilícito; d) a intensidade do dolo ou o grau da culpa; e) a gravidade e a repercussão da ofensa; f) as peculiaridades e circunstâncias que envolveram o caso, atentando-se para o caráter antissocial da conduta lesiva". Carlos Alberto Bittar36 igualmente recorda que há fatores subjetivos e objetivos relacionados às pessoas e que acabam influindo no espírito do julgador, como, por exemplo, a análise do grau da culpa do lesante, a eventual participação do lesado na produção do dano, a situação patrimonial e pessoal das partes e o proveito obtido com o ilícito. Quanto ao Direito português, comenta Rabindranath de Souza que o valor dos danos imateriais será fixado equitativamente pelo tribunal, devendo-se levar em conta o grau da culpabilidade do agente, a situação econômica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso; assim, se A mata ou injuria B, o tribunal fixará equitativamente em dinheiro a compensação pelo dano morte ou pela violação da honra, tomando por conta a intensidade do dolo ou a mera culpa de A, a sua situação econômica e a de B, a idade e a saúde de B, em especial no caso de morte, a reputação social de B, a gravidade e a publicidade da ofensa caso se trate de injúria, e outras circunstâncias importantes para o caso em concreto.37 No Direito francês, há uma escala de critérios a fim de avaliar o dano sofrido: Muito leve, leve, moderada, média, suficientemente importante, importante e muito importante. Essa qualificação é aproximativa, porém ajuda o médico responsável a enxergar a extensão do dano, cabendo ao juiz determinar a conversão do dano em compensação, sem, repisa-se, valer-se de critérios objetivos. Já o prejuízo estético, compara o autor, pode ser facilmente verificável, mas se continua sem critérios para reparar esses danos - cada juiz tem o arbítrio de achar a própria indenização. Fará o juiz uma comparação daquilo que o lesado podia fazer antes do dano e do que ele pode fazer após o dano - apreciação, esta, extremamente subjetiva.38 Em sentido contrário, ou seja, criticando os referidos critérios, Anderson Schreiber39 defende que "as Cortes empregam critérios equivocados como a prova da dor, vexame, sofrimento ou humilhação - consequências eventuais e subjetivas do dano, que nada dizem com a sua ontologia -; ou ainda a gravidade da ofensa - critério que, consagrado sob a fórmula de que 'o mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral 40'". Alega o autor que a aplicação desses critérios é uma verdadeira inversão na axiologia constitucional, em que qualquer prejuízo suscita reparação; ainda complementa, afirmando que "na já pressentida inadequação de tais critérios seletivos, muitos Tribunais renunciam à tarefa, caindo em uma reparação indiscriminada, guiada tão-somente pela proteção à vítima". Igualmente contrária ao uso dos critérios mencionados, Maria Celina Bodin de Moraes41 pontua que estes não devem ser utilizados, pois são próprios do juízo de punição, como as condições econômicas do ofensor e a gravidade da culpa. A autora sustenta que tais elementos dizem respeito ao dano causado, e não ao dano sofrido, e que há outros critérios irrelevantes, pois também se referem à conduta propriamente dita, como a proporcionalidade entre a vantagem de quem praticou o dano e o prejuízo causado a terceiro, a presença ou a ausência de intenção, a previsibilidade ou a boa-fé, o interesse de quem causou o dano ou a intenção de prejudicar outrem. A reparação do dano imaterial, conforme já foi referido, deve ser encarada não como um pagamento pela dor causada, mas como uma compensação que se possa dar à vítima, com o objetivo de lhe alcançar um lenitivo para o seu abalo. Fala-se, deste modo, não em pretium doloris (preço da dor), mas em compensatio doloris (compensação para a dor), com o que se concorda, sob o argumento de que é melhor isso a deixar a lesante sem reprimenda. Outra dificuldade do dano imaterial é a sua prova. De fato, a prova de um dano imaterial não tem como ser feita da mesma forma que a de um dano patrimonial, pois não se tem como provar dor, sofrimento, humilhação, por documentos ou testemunhas; deste modo, há quem defenda que o dano imaterial existe in re ipsa, ou seja, ele é ínsito à própria ofensa, bastando a prova desta última para que se tenha aquele como existente. Por exemplo, no caso de alguém difamado em uma revista, basta a prova da notícia difamatória nessa revista para que dessa ofensa decorra uma presunção natural de dano, sentimento inerente a qualquer pessoa. Carlos Alberto Bittar42 igualmente expressa que, no que toca à constatação do dano, a responsabilidade do agente decorre, quanto aos danos imateriais, "do simples fato da violação, tornando-se, portanto, desnecessária a prova do reflexo no âmbito do lesado, ademais, nem sempre realizável"; dito de outra maneira, o sistema contenta-se com a simples causação, pela consciência que se tem de que alguns fatos afetam a moralidade tanto individual como coletiva, lesionando-a. Ressalva o autor que "não se cogita, mais, pois, de prova de prejuízo moral". Sobre o tema, mas contestando essa forma consagrada, Anderson Schreiber disserta que "na impossibilidade de prova matemática do dano moral, concluem, sem ulterior reflexão, que 'não é preciso que se demonstre a existência do dano extrapatrimonial. Acha-se ele in re ipsa, ou seja, decorre dos próprios fatos que deram origem à propositura da ação43'". (Grifou-se) E continua o autor, afirmando, sem o acompanhamento de doutrina e de jurisprudência majoritárias, que a prova da dor deve ser dispensada, mas não porque é inerente à ofensa, e, sim, porque o dano imaterial independe da dor, consistindo este na própria lesão, e não nas suas consequências. Neste sentido, "como se vê, a pretendida dispensa da prova abarca tão-somente as consequências da lesão sobre a sensibilidade da vítima, não já a lesão em si".44 Para Schreiber, deve-se reconhecer no dano imaterial a lesão a um interesse não- patrimonial concretamente, e não abstratamente, merecedor de tutela. Defende, portanto, que a lesão ocorre objetivamente e que a sua verificação deve dar-se de forma desvinculada da repercussão no estado de espírito da vítima. Outrossim, cumpre recordar que o STJ editou a Súmula 227 que preceitua: "a pessoa jurídica pode sofrer dano moral", até porque é forçoso concluir que a pessoa jurídica também titulariza alguns direitos especiais de personalidade, tais como o nome, a imagem, a reputação, o sigilo; ou seja, pessoa jurídica tem honra objetiva. O STJ, no recurso especial 60.033.2-MG, encampou essa tese, declarando que: "a honra objetiva da pessoa jurídica pode ser ofendida pelo protesto indevido de título cambial, cabendo indenização pelo dano extrapatrimonial daí decorrente". O desdobramento da honra, para fins de se tornar a pessoa jurídica sujeito passivo de dano imaterial, diz respeito ao conceito e ao crédito que ela desfruta na comunidade, em decorrência da eficiência de um mister ou da qualidade de um produto destinado ao público. Esta proteção refere-se às ofensas ao bom nome, cuja natureza é estendida às pessoas jurídicas, mas não sem críticas a isso. Não se pode ainda esquecer que o CDC (lei 8.078/90), no art. 6º, inciso VI, seguindo esta linha de raciocínio, previu a concessão de reparação destes danos à pessoa jurídica, tanto ao estatuir a reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos como pelo fato de que no art. 2º conceitua consumidor como toda a pessoa física ou jurídica, deixando claro que tanto uma quanto outra pode sofrer danos imateriais. A despeito desse entendimento, Maria Celina Bodin de Moraes45 destaca, no entanto, que a pessoa jurídica não seria passível de reparação por dano moral: "a propósito, não se pode deixar de assinalar a enorme incongruência da jurisprudência nacional, seguida pela doutrina majoritária, no sentido, de um lado, de insistir que o dano moral deve ser definido como dor, vexame, tristeza e humilhação e, de outro lado, de defender a ideia de que as pessoas jurídicas são passíveis de sofrer dano moral". Cumpre salientar, por outro lado, que há danos contra os quais as pessoas não são protegidas, pela simples razão de representarem o procedimento normal e necessário do exercício de um direito subjetivo determinado, como é o caso do direito à concorrência comercial (que é o poder dado a todo o empresário de atrair para si, por meios legais, a clientela de outro); a liberdade de crítica (que é o direito de emitir apreciações desfavoráveis sobre uma obra literária ou artística); o direito de greve (que é um cessar o trabalho de forma organizada e geral). Todos são exemplos de danos lícitos, ou seja, o desenvolver necessário e normal do exercício de um direito ou de uma liberdade, uma vez que o direito à segurança desaparece: A própria lei autoriza a execução do dano, caso em que não é o ato somente que é lícito - é o próprio dano que é autorizado. São, pois, casos em que a liberdade de ação ganha da segurança. Há casos, ainda, em que o conteúdo dos direitos subjetivos ou das liberdades individuais é impreciso e variável de acordo com as circunstâncias de tempo, de espaço, de pessoa, como, por exemplo, o direito de exprimir o seu pensamento que pode causar danos à reputação. Contudo, em outras situações, haverá o dever de reparar pelo fato de se ter violado um direito fundamental da pessoa. Igualmente fazendo alusão à liberdade, Carlos Alberto Bittar46 assinala que "a teoria da responsabilidade civil encontra suas raízes no princípio fundamental do neminem laedere, justificando-se diante da liberdade e da racionalidade humanas, como imposição, portanto, da própria natureza das coisas", e o autor ainda complementa que: "Ao escolher as vias pelas quais atua na sociedade, a pessoa assume os ônus correspondentes, apresentando-se a noção de responsabilidade como corolário de sua condição de ser inteligente e livre". O que se busca, em verdade, é uma proteção que possibilite a reparação de danos que atingem o que não tem preço, mas tem valor. ________ BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BUSNELLI, Francesco Donato. Il danno alla persona al giro di boa. Danno e Responsabilità, ano 8, 2003. CAPELO DE SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. CASSANO, Giuseppe. La Giurisprudenza del danno esistenziale. Piacenza: Casa Editrice La Tribuna, 2002. CENDON, Paolo. Il danno esistenziale. In: CENDON, Paolo; ZIVIZ, Patrizia (orgs.). Il danno esistenziale. Una nuova categoria della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2000. COMANDÉ, Giovanni. Risarcimento del danno alla persona e alternative istituzionali. Studio di Diritto Comparato. Torino: G. 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Milano: Giuffrè, 1999. p. 665. 8 BITTAR, 1994, op. cit., p. 29-30, 34.. 9 SCHREIBER, 2007, op. cit., p.101-102. 10 ITURRASPE, 1999, op. cit., p. 113-117. 11 CORRÊA DE ANDRADE, 2009, op. cit., p. 63. 12 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 457. 13 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 182. 14 BODIN DE MORAES, 2003, op. cit., p. 188. 15 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 577-578. 16 EDELMAN, 1999, op. cit., p. 505. 17 TOMASINI, Raffaele. Soggetti e area del danno risarcibile: l'evoluzione del sistema. Turim: G. Giappichelli Editore, 2001. p. 4. 18 Expressão de BUSNELLI, Francesco Donato. Il danno alla persona al giro di boa. Danno e Responsabilità, ano 8, p. 243, 2003. 19 TEPEDINO, 2004, op. cit., p. 22. 20 SESSARIEGO, Carlos Fernandez. Protección a la persona humana. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 56, p. 87-88, 1992. 21 Súmula n. 37 do STJ: "São cumuláveis as indenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato". 22 MARINHO, Josaphat. Os Direitos da Personalidade no Projeto do novo Código Civil brasileiro. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. 40, 2000. 23 Cumpre ressaltar a pertinente obra da autora brasileira, Flaviana Rampazzo Soares, que resolveu aclarar o tema, com base em suficiente e pertinente doutrina italiana, para fins de auxiliar o intérprete brasileiro, acenando com a novidade, no sentido de uma possível aplicação do dano existencial no ordenamento brasileiro. SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 24 CENDON, 2000, op. cit., p. 8-9. 25 SOARES, 2009, op. cit., p. 44-47. 26 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 62-63. 27 CASSANO, Giuseppe. La Giurisprudenza del danno esistenziale. Piacenza: Casa Editrice La Tribuna, 2002. p. 86-87. 28 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 187 e ss. 29 MARELLA, Maria Rosaria. La riparazione del danno in forma specifica. Pádua: Cedam, 2000. p. 290. 30 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 463. 31 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 464. 32 MARTINS-COSTA, 2002, op. cit., p. 439. 33 SANSEVERINO, 2010, op. cit., p. 275. 34 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível 2007. 001.02811, j. 28.2.2007. 35 GONÇALVES, 2010, op. cit., p. 577. 36 BITTAR, 1994, op. cit., p. 209. 37 CAPELO DE SOUZA, 1995, op. cit., p. 466. 38 VINEY, 1988, op. cit., p. 203. 39 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 6. 40 STJ, Recurso Especial 403.919/MG, j. 15.5.2003. 41 BODIN DE MORAES, 2003, op. cit., p. 332. 42 BITTAR, 1994, op. cit., p. 199. 43 STJ, Recurso Especial 880.035/PR, j. 21.11.2006. 44 SCHREIBER, 2007, op. cit., p. 6, 193, 195.
Introdução  O direito de danos como o nome revela por si só cuida especialmente do estudo dos mais diversos danos que o nosso ordenamento prevê: danos materiais, extrapatrimoniais e suas espécies, claro, dentre outros temas que cercam a responsabilidade civil. O Código de Defesa do Consumidor1 e o Código Civil apresentam disposições sobre a necessidade de reparação integral dos danos.2 A legislação civil a título de exemplos apresenta os danos morais,3 perdas e danos,4 danos emergentes e lucros cessantes5 e a consequente obrigação de indenizar.6 Com o passar do tempo foi ganhando força em nosso Direito a aplicação da denominada teoria da perda de uma chance, ou perda da chance. No estágio atual sua discussão ganha força eis que o Projeto de reforma do Código Civil inseriu a previsão daquela teoria expressamente por força do art. 944-B como a seguir iremos trazer.  Perda de uma chance  Tivemos a oportunidade de analisar a teoria da perda de uma chance à luz de alguns casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.7 Na ocasião a nossa pesquisa demonstrou que os pressupostos da responsabilidade civil também se aplicam à teoria da perda de uma chance, esta, no entanto, que deve ser séria, real, no sentido de impossibilidade de se obter uma vantagem ou de se evitar um prejuízo8 à luz dos interesses do lesado. Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto aprofundando o tema ponderam se tratar a perda de uma chance de um dano autônomo na condição de bem imaterial justamente pela supressão da chance que o dano vem a ocasionar.9 De sorte que "[...] o valor econômico dessa chance será indenizado como uma espécie de dano emergente [...]", pois de fato a vítima perdeu determinada chance.  A previsão no anteprojeto Eis a redação que consta no Anteprojeto:  Art. 944-B. A indenização será concedida, se os danos forem certos, sejam eles diretos, indiretos, atuais ou futuros. § 1º A perda de uma chance, desde que séria e real, constitui dano reparável. § 2º A indenização relativa à perda de uma chance deve ser calculada levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada, de acordo com as probabilidades envolvidas.10  Como dito na introdução destas linhas percebemos que o parágrafo primeiro e segundo, do art. 944-B acima transcrito é inédito no tocante à previsão da expressão da teoria da perda da chance.  Conclusão Em bom momento surge a proposta de positivação expressa da teoria da perda de uma chance e com os critérios La estabelecidos, pois, entendemos que sua inserção se assim se confirmar vai de encontro à Constituição Federal11 no sentido de um catálogo aberto dos danos a ser objeto de reparação justamente em atenção à dignidade da pessoa humana.12 O alerta que fica é o de que assim como a doutrina e a jurisprudência já vinham firmado bases é o de que não se trata de qualquer chance perdida que será objeto de indenização, e sim aquela séria, real, inclusive agora reforçada pelo parágrafo primeiro do art. 944-B, do Anteprojeto, de sorte a se constituir como suporte fático da regra sugerida na reforma.  Referências  ALMEIDA, Felipe Cunha de. Questões controvertidas em responsabilidade civil à luz do entendimento do STJ. 1 ed. Porto Alegre: Paixão Editores, 2018.  BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui.  BRASIL. Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. DF, 11 de setembro de 1990. Disponível aqui.  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui.  ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024. __________ 1 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:   VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; 2 Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. 3 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 4 Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. 5 Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. 6 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 7 Atualizando: Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPETIÇÃO AUTOMOBILÍSTICA. ACIDENTE ENVOLVENDO PILOTO. OMISSÃO DE SOCORRO. AUSÊNCIA DE ENVIO DE AMBULÂNCIA E EQUIPE MÉDICA PRESENTES NO LOCAL. FALTA COM DEVER DE CUIDADO. NEGLIGÊNCIA. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. APLICABILIDADE. 1. Ação de indenização por danos morais, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 17/7/2023 e concluso ao gabinete em 16/11/2023. 2. O propósito recursal é decidir se há responsabilidade civil da empresa organizadora de competição automobilística por deixar de prestar socorro a piloto que sofreu acidente durante o percurso e morreu afogado, após certo período submerso. 3. A organizadora de competição automobilística, que dispõe de ambulâncias com equipe médica e deixa de enviá-las para socorrer piloto participante que sofreu acidente durante o percurso, pratica ato ilícito pela falta do dever de cuidado esperado, resultando em dano moral, ao frustrar a legítima expectativa de assistência e causar profundo sofrimento e desamparo. 4. De acordo com a teoria da perda de uma chance, a expectativa ou a chance de alcançar um resultado ou de evitar um prejuízo é um bem que merece proteção jurídica e deve, por isso, ser indenizado. Assim, a simples privação indevida da chance de cura ou sobrevivência é passível de ser reparada. Precedentes. 5. O nexo causal que autoriza a responsabilidade pela aplicação da teoria da perda de uma chance é aquele entre a conduta omissiva ou comissiva do agente e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final. Precedentes. 6. Hipótese em que existia chance séria e concreta de que a recorrida, se tivesse enviado a ambulância ao local do acidente de forma imediata, teria conseguido promover o resgate em menor tempo e prestar assistência médica, aumentando significativamente as chances de sobrevida do piloto (marido da recorrente). 7. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para julgar parcialmente procedente o pedido formulado na inicial e condenar a recorrida a pagar à recorrente o valor de R$ 30.000,00, a título de danos morais. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.108.182/MG. Rel. Min: Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em: 16/04/2024. Disponível aqui. Acesso em: 22 mai. 2024). 8 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Questões controvertidas em responsabilidade civil à luz do entendimento do STJ. 1 ed. Porto Alegre: Paixão Editores, 2018, p. 65. 9 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 606. 10 Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. In: Atividade legislativa. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2024. 11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 12 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;
A comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto de lei para revisão e atualização do Código Civil de 2002, instituída pelo ato do presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, em setembro de 2023, apresentou seu relatório final. Entre as mudanças propostas, estão presentes alterações pontuais na cláusula geral de enriquecimento sem causa e evidente inovação legislativa quanto à positivação da pretensão ao lucro da intervenção. Nesse contexto, este sintético trabalho visa trazer críticas respeitosas e construtivas às temáticas do enriquecimento sem causa e do lucro da intervenção.  1.  A cláusula geral de enriquecimento sem causa Art. 884. Aquele que, sem justa causa, enriquecer-se à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido. § 1º Também se justifica a pretensão restitutória quando a causa do enriquecimento deixar de existir, for ilícita ou não se verificar; §2 º A obrigação de restituir o lucro da intervenção, assim entendida como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou de direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa e rege-se pelas normas deste capítulo. A partir da leitura do caput do artigo proposto, percebe-se que a comissão manteve inalterada a cláusula geral de enriquecimento sem causa, retirando apenas a frase "feita a atualização dos valores monetários". 1 Isso significa que os pressupostos do instituto, caracterizadores do dever de restituir no âmbito nacional, foram preservados: a) enriquecimento de um sujeito; que ocorreu b) às custas de outrem; e c) sem justa causa. Entende-se que a comissão quis manter as clássicas e atentas interpretações doutrinárias em sede de enriquecimento sem causa. Aqui são necessárias rápidas observações em relação às expressões "enriquecimento", "às custas de outrem" e "sem justa causa" na tradição jurídica brasileira. O pressuposto "enriquecimento", desde os primeiros escritos, vem sendo interpretado de forma ampla e indeterminada, incluindo o aumento do patrimônio, a diminuição do passivo ou o próprio evitar despesas. 2 A expressão "à custa de outrem", embora objeto de divergências doutrinárias nos idos da consagração da cláusula geral, passou a ser entendida como um vínculo existente entre o enriquecimento e um direito alheio. 3 O "enriquecer à custa de outrem" significa, pois, que uma vantagem econômica foi auferida a partir de direitos subjetivos absolutos ou de posições jurídicas análogas pertencentes a outrem, podendo ocorrer tanto transferências patrimoniais, quanto acréscimos derivados de direitos alheios. Já o requisito "sem justa causa", em que pese a "causa" seja um conceito jurídico polissêmico, é entendido como a inexistência de um motivo que justifique a atribuição patrimonial. Logo, o requisito é usualmente associado à ausência de um título jurídico idôneo a justificar o enriquecimento auferido.4 Tal interpretação permanece inalterada mesmo após a leitura do § 1º do art. 884. Isso pois a redação proposta pela comissão apenas engloba o conteúdo do art. 885 do Código Civil de 2002 - reconhecendo que a atribuição patrimonial originalmente com justa causa pode se tornar sem justa causa por razões supervenientes - e soma as locuções "for ilícita" e "não se verificar". Entre estas últimas, salienta-se apenas que a civilística sempre considerou o "enriquecimento ilícito" como uma espécie do gênero enriquecimento sem causa. Pontua-se que, embora a antijuridicidade (ilicitude objetiva5) não seja uma condição necessária para o deflagrar o enriquecimento sem causa na tradição nacional, nada impede que a conduta antijurídica, em algumas situações, seja uma condição suficiente para tal deflagração. Nota-se que, por vezes, podem ocorrer enriquecimentos ilícitos e, por outras, podem ocorrer enriquecimentos sem ilícitos. Fato é que a conduta antijurídica não é propriamente determinante para a configuração do enriquecimento sem causa, uma vez que o instituto depende, antes, da ausência de causa de atribuição patrimonial para o enriquecimento auferido. Por outro lado, o § 2º do art. 884 traz consigo evidente inovação legislativa, positivando o que a doutrina e a jurisprudência nacionais vêm chamando de lucro da intervenção nos últimos anos no Brasil. Por isso, passa-se a analisar com maior cuidado este parágrafo no próprio subtítulo. 2. A positivação da pretensão ao lucro da intervenção Dispõe o §2º do art. 884 que "a obrigação de restituir o lucro da intervenção, assim entendida como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou de direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa e rege-se pelas normas deste capítulo". Em boa hora e superando as lacunas em termos de enriquecimento sem causa evidenciadas nos últimos anos pela civilística, percebe-se que a Comissão propõe a positivação das conclusões do enunciado 620 das VIII Jornada de Direito Civil,6 reconhecendo a possibilidade de restituição do lucro da intervenção nos quadros do enriquecimento sem causa no Brasil. Tal proposta demonstra não só um verdadeiro avanço no plano legislativo, como também retira qualquer dúvida do enquadramento dogmático da restituição do lucro da intervenção na sistemática nacional, mormente diante das interpretações doutrinárias sobre seu enquadramento em um dos institutos obrigacionais: Enriquecimento sem causa e responsabilidade civil.7 Salienta-se, por oportuno, que a função específica do enriquecimento sem causa é a restauração de um equilíbrio rompido, a partir da restituição de um "enriquecimento" situado no patrimônio de uma pessoa sem causa jurídica que o justifique. Todas as vantagens auferidas sem uma causa de atribuição (justificadora) não podem permanecer no patrimônio enriquecido, passando ao enriquecimento sem causa o dever de restituí-las. O que não é diferente nos casos de lucro da intervenção, já que estes nada mais são do que o resultado lucrativo de uma intervenção não autorizada em um direito alheio. A título ilustrativo, imagine-se que uma empresa utiliza, sem autorização, a imagem de uma atriz em uma campanha publicitária de divulgação de um cosmético. Agindo assim, a empresa acaba poupando os valores que seriam estabelecimentos contratualmente para o uso da imagem da atriz (o cachê), mas também poderá obter lucros (líquidos) a partir da vinculação da imagem da atriz ao produto divulgado.8 Diante da proposta do §2º do art. 884, poderá a atriz requerer a restituição dos valores que normalmente seriam contratados para o uso de sua imagem, bem como os lucros auferidos pela empresa a partir de sua imagem e de acordo com sua extensão. Não se pode olvidar que a cláusula geral de enriquecimento sem causa sempre foi dotada de amplitude hermenêutica e a civilística sempre interpretou de forma alargada os requisitos "enriquecimento" e "às custas de outrem". Por isso, acredita-se que a Comissão bem localizou a pretensão ao lucro da intervenção nos quadros do enriquecimento sem causa. Todavia, dois pontos críticos são encontrados em termos de lucro da intervenção no relatório final e que trarão enorme insegurança jurídica aos casos crescentes na casuística nacional, assim como colocarão o titular do direito violado em posição de flagrante desvantagem. O primeiro deles é que a Comissão sugeriu a seguinte redação para o §3º do novo art. 885: "Se o enriquecido tiver agido de má-fé, o valor da restituição será considerado o maior entre o benefício por ele auferido e o valor de mercado do bem". Nota-se aqui que a proposta está levando em consideração os conceitos de "enriquecimento real" (valores de mercado) e "enriquecimento patrimonial" (benefício por ele auferido) para a delimitação do objeto a ser restituído em casos de má-fé do agente. Todavia, esta diferenciação é um falso problema porque se torna relevante apenas a análise global do enriquecimento obtido, considerando o atributo da patrimonialidade do locupletamento. Isso significa que a restituição não deve estar vinculada ao "maior valor" encontrado entre o "benefício auferido" e o "valor de mercado", mas sim à extensão do conteúdo de destinação do direito subjetivo violado e sua relação com o pressuposto "à custa de outrem", sendo os "valores de mercado" o mínimo a ser restituído em casos de má-fé. Isto é, inexiste alternatividade entre "valores de mercado" e "benefício auferido". A título de exemplo, no caso em que o interventor se locupletou na medida em que poupou os valores com os alugueres da casa de praia alheia, o interventor só terá que restituir o valor dos alugueres (valores de mercado). Por outro lado, aquele que usa a imagem de pessoa notória sem autorização para fins comerciais, além de poupar as despesas com o cachê (valores de mercado), poderá auferir lucros e a valoração desde locupletamento será dinâmica. Assim, o objeto a ser restituído também compreenderá o "benefício auferido". Diferentemente seria, pois, se o agente agisse de boa-fé, quando não sabe que estava dispondo de coisa alheia. Nesses casos, haverá apenas a restituição dos valores de mercado e não dos benefícios auferidos. Por oportuno, acredita-se que as regras quantitativas em termos de lucro da intervenção ainda devem ser paulatinamente construídas na casuística, entre doutrina e jurisprudência nacionais, para só então se considerar (se realmente necessário) a positivação de critérios claros e uniformes. Não se pode esquecer que o abatimento das despesas obtidas pelo agente interventor e o grau de contribuição de cada uma das partes para a obtenção dos lucros são, por exemplo, regras indispensáveis em termos quantitativos.9 O segundo ponto crítico encontrado, por sua vez, diz respeito à redação proposta para o §2º do novo art. 944, veja-se: § 2º Em alternativa à reparação de danos patrimoniais, a critério do lesado, a indenização compreenderá um montante razoável correspondente à violação de um direito ou, quando necessário, a remoção dos lucros ou vantagens auferidos pelo lesante em conexão com a prática do ilícito. Nota-se que o parágrafo faz menção expressa à "remoção dos lucros ou vantagens auferidos pelo lesante em conexão com a prática do ilícito" enquanto uma alternativa indenizatória à reparação dos danos patrimoniais, o que gera enorme preocupação e insegurança jurídica, cabendo aqui algumas críticas respeitosas e construtivas sobre a temática envolvida. Em termos de enquadramento dogmático, a doutrina majoritária nacional10 e o STJ entendem que "o dever de restituição do denominado lucro da intervenção encontra fundamento no instituto do enriquecimento sem causa11", haja vista que é a presença do dano que faz nascer o dever de indenizar, sendo este piso e teto indenizatório, nos termos do princípio da reparação integral dos prejuízos (caput do art. 944). A par deste entendimento e ao se ler as justificativas apresentadas no primeiro parecer divulgado pela subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa, percebe-se que a subcomissão não desconhece que a proposta do § 2º do art. 944 é contrária ao entendimento majoritário e, mesmo assim, justifica a inserção de remédios restituitórios no interno da responsabilidade civil sob quatro argumentos: O enriquecimento sem causa é modelo obrigacional independente da aferição da existência ou não de um ato ilícito e, em contrapartida, na responsabilidade civil a antijuridicidade é pressuposto fundamental; A doutrina da atribuição apenas proporciona à restituição dos valores de mercado e não dos lucros da intervenção; O enriquecimento sem causa seria um terreno residual; O princípio da reparação integral merece ressignificação, dado que se o ofensor obteve um lucro ilícito ou economizou despesas com a violação de uma certa posição jurídica, naturalmente a "melhor indenização" terá que incluir dentre os critérios alternativos a restituição ou o resgate de benefícios econômicos. Essas justificativas se tornam, porém, evidentemente contraditórias não só frente ao núcleo da teoria geral da responsabilidade civil e a mantença da redação do caput do art. 944 do Código Civil de 2002, como também por todas as questões aqui já desenvolvidas em termos de enriquecimento sem causa, com destaque ao fato de que a cláusula geral de enriquecimento sem causa sempre foi dotada de amplitude hermenêutica na tradição nacional. Destaca-se que a defesa da restituição dos lucros da intervenção como uma consequência própria da ilicitude não justifica a aderência da responsabilidade civil e o afastamento do enriquecimento sem causa, pois a antijuridicidade não é exclusiva do primeiro instituto, como a própria comissão reconheceu ao tratar da causa ilícita no dever de restituir (§1º do art. 884). Um exemplo, citado por Pontes de Miranda, que bem evidencia a existência da antijuridicidade sem deflagrar a responsabilidade civil é justamente o uso sem autorização da casa alheia: "O fato pode ser fato ilícito absoluto sem causar dano. Entrou B na casa de A, sem permissão, mas nenhum prejuízo patrimonial ou não-patrimonial resultou do seu ato imprudente12". Todavia, o fato de inexistir dano não quer dizer que o interesse do proprietário em gozar do seu bem com exclusividade ficará sem tutela frente à conduta antijurídica. O caso citado é tutelado pelo enriquecimento sem causa que, independentemente da existência de um dano, será capaz de harmonizar a distribuição natural das riquezas, porque a ordem jurídica assegura o legítimo interesse do proprietário e o reserva o aproveitamento econômico deste direito, expresso nas vantagens provenientes do seu uso, fruição ou alienação. A verdade é que o enquadramento do lucro da intervenção é muito mais uma questão de extensão da pretensão restituitória do que uma impossibilidade proveniente de uma incompatibilidade deste com o perfil funcional do enriquecimento sem causa. Inexiste, pois, entraves legislativos como querem crer os defensores da restituição do lucro da intervenção nos quadros da responsabilidade civil, nem mesmo no que tange à subsidiariedade do enriquecimento sem causa (art. 886, mantido em sua redação original). Salienta-se que a regra da subsidiariedade não possui um alcance absoluto e sua aplicação não pode ser feita em abstrato, podendo a ação de enriquecimento concorrer com outras ações, principalmente porque o caráter subsidiário se firmou com o objetivo de evitar que a lei seja fraudada.13   A regra da subsidiariedade, assim, não obsta o reconhecimento do lucro da intervenção nos quadros do enriquecimento sem causa no Brasil e não proíbe a cumulação das pretensões indenizatória e restituitória nos casos de intervenções não autorizadas nos direitos subjetivos absolutos alheios. Por intermédio da responsabilidade civil, o titular do direito obterá a compensação pelos eventuais danos sofridos e por meio do enriquecimento sem causa obterá a restituição dos lucros da intervenção e do enriquecimento clássico.   A par destas reflexões, percebe-se que o intuito da comissão é importar institutos próprios da common law para justificar a restituição dos lucros da intervenção no interno da responsabilidade civil, incorporando-se o disgorgement of profits.14 Ocorre que a figura do disgorgement of profits, além de ser estranha à família romano-germânica15, sendo construída na common law, acaba trazendo uma desvitalização da natureza da responsabilidade civil e coloca o titular do direito em evidente desvantagem na sistemática nacional. Isso porque, se preservado o §2º do art. 944 proposto pela comissão, não haverá a restauração de todo o equilíbrio rompido, pois como está grafada na proposta o titular do direito violado terá que escolher, em alterativa aos danos patrimoniais, os lucros auferidos pelo agente interventor. Aqui é importante ressalvar que a proposta nem mesmo diferencia danos emergentes e lucros cessantes, tratando genericamente de danos patrimoniais. Logo, o que antes era possível ser cumulado - danos emergentes, lucros cessantes e lucro da intervenção - passa a ser alternativo, cabendo ao titular do direito violado escolher apenas uma das pretensões. Por essas razões, entende-se que o §2ª do art. 944 proposto pela comissão reclama revisão muito cuidadosa, realizada com o tempo necessário e após amplo debate com a comunidade jurídica brasileira, mormente para excluir de sua redação a menção expressa aos lucros da intervenção. _________ 1 Tal questão passaria a ser tratada no caput do artigo 885: "Art. 885. O valor da restituição será atualizado, monetariamente, desde o enriquecimento e acrescido de juros de mora, desde a citação. § 1º Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restitui-la. § 2º Caso a coisa a ser restituída não mais exista, a restituição se fará pelo valor que tinha à época em que exigida sua devolução. § 3º Se o enriquecido tiver agido de má-fé, o valor da restituição será considerado o maior entre o benefício por ele auferido e o valor de mercado do bem. § 4º Também é obrigado à restituição o terceiro que receber gratuitamente o bem objeto do enriquecimento ou, tendo agido de má-fé, recebe-o onerosamente". 2 Para maiores considerações, ler: JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina. O tratamento de dados pessoais no Brasil:  uma análise da possibilidade de restituir o lucro da intervenção. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2023, p. 108 e ss. 3 Como elucida o Enunciado nº 35 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: " A expressão 'se enriquecer à custa de outrem' do art. 884 do novo Código Civil não significa, necessariamente, que deverá haver empobrecimento". 4 KONDER, Carlos Nelson. Enriquecimento sem causa e pagamento indevido. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, p. 369-398, 2005, p. 390.   5 Para conhecimento das acepções do termo ilicitude, ler: PETEFFI DA SILVA, Rafael. Antijuridicidade como requisito da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 18, p. 169-214, 2019. 6 Como elucida o Enunciado n. 620 das VIII Jornada de Direito Civil " A obrigação de restituir o lucro da intervenção, entendido como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa.". 7 Em essência, é possível identificar três posições doutrinárias sobre o enquadramento do lucro da intervenção no Brasil: (i) aqueles que o defendem nos quadros do enriquecimento sem causa; (ii) outros advogam que a solução se dá pela responsabilidade civil; e (iii) aqueles que entendem pela impossibilidade de uma abordagem unitária da pretensão. A primeira corrente é, pois, majoritária e deu origem ao enunciado citado. Para maiores considerações, ler: JIUKOSKI DA SILVA, 2023. Destaca-se que a única "exceção" seria os casos de propriedade industrial, já que o legislador nacional reconheceu a possibilidade de restituição dos lucros da intervenção como lucros cessantes presumidos no artigo 210 da Lei de Propriedade Industrial. 8 Trata-se do leading case sobre o lucro da intervenção no Brasil (BRASIL. STJ. Terceira Turma. REsp 1698701/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Brasília, 02 de outubro de 2018). 9 Para maiores considerações, ler: JIUKOSKI DA SILVA, 2023, p. 253. Eu botaria outros autores junto contigo, para demonstrar que é uma opinião de muitos e não apenas tua. 10 Nesse sentido, entre outros: NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem causa. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo: RT, v. 56, p. 51-78, abr./jun., 1991; MICHELON JR., Claudio. Direito restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007; SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa: o lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012; GUIA SILVA, Rodrigo da. Enriquecimento sem causa: as obrigações restituitórias no Direito Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018; LINS, Thiago. O lucro da intervenção e o direito à imagem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016; SCHREIBER, Anderson; GUIA SILVA, Rodrigo da. Lucro da Intervenção: perspectivas de qualificação e quantificação. Direito Civil: Estudos - Coletânea do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa - IBDCIVIL. São Paulo: Blucher, p. 175-206, 2018; MORAES, Renato Duarte Franco de. Enriquecimento sem causa e o enriquecimento por intervenção. São Paulo: Almedina, 2021; e JIUKOSKI DA SILVA, 2023. Defendendo a impossibilidade do tratamento unitário do lucro da intervenção estão TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Revisitando o lucro da intervenção: novas reflexões para antigos problemas. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, 2021; e KONDER, Carlos Nelson. Dificuldades de uma abordagem unitária do lucro da intervenção. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 13. ano 4., 2017. Porém, os autores claramente admitem que o instituto que melhor desempenha a função de restituir os lucros da intervenção é o enriquecimento sem causa.  11 BRASIL. STJ. Terceira Turma. REsp 1698701/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Brasília, 02 de outubro de 2018. 12 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo LIII. Atualizado por Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 262. 13 Vide:  NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004. Faltou a página   14 A figura do disgorgement of profits está inserida nos gain-based damages, os quais nasceram como remédios para sancionar ganhos indevidamente obtidos pelo agente na common law. "No interno do gênero gain-based damages surgem duas espécies: os institutos do disgorgement of profits e do restitutionary damages. [...] Enquanto em restitutionary damages há reversão da transferência patrimonial entre as partes, no disgorgement há supressão da vantagem adquirida pelo réu com independência de qualquer translação de bens pelo autor." (ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo: o disgorgement e a indenização restituitória. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 64-65).  15 Destaca-se que nos países de tradição romano-germânica, a exemplo da Alemanha, Espanha e Portugal, apenas existe a positivação da restituição do lucro da intervenção nos quadros da responsabilidade civil ao tratar das leis específicas de propriedade industrial e intelectual. Isso porque houve a transposição da Diretiva 2004/48 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004. De acordo com art. 13.1 da Diretiva, em caso de violação de direitos de propriedade intelectual o montante das indenizações por perdas e danos deve ter em conta todos os "aspectos relevantes", incluindo "qualquer lucro injusto obtido pelo infrator" (UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual. Cons. nº 1. 2004. Disponível aqui. 
A classificação dos estágios de desenvolvimento do Direito Societário da atual União Europeia, proposta por Stefan Grundmann, nos é útil para a compreensão do contexto em que é aprovada a Diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade e de Direitos Humanos. O professor da Humboldt-Universitat identifica três estágios para o seu desenvolvimento: a Black-box, a Red-box e a Green-box. Cada um desses estágios será tratado brevemente, seguindo algum comentário sobre a nova Diretiva e suas potenciais repercussões para os empresários brasileiros (especialmente as sociedades subsidiárias de controladoras europeias e as sociedades fornecedoras de sociedades europeias). No primeiro estágio - Black-box - relativo às décadas de 1970 a 1990 -, a harmonização do Direito da União Europeia (à época Comunidade Europeia), no que se refere ao Direito Societário, em sentido amplo, concentrou-se na construção de medidas para garantir informações necessárias para que as pessoas que não participam do controle superassem a assimetria de informações existente entre os que participam do controle e aqueles outros investidores que não participam. Essa assimetria de informações, em relação ao regime jurídico que rege o caso, é particularmente forte quando os respectivos Direitos dos Estados-membros da União divergem em relação a alguns parâmetros centrais (não harmonizados), especificamente aqueles relacionados à confiabilidade jurídica e econômica das estruturas que acomodam o investimento. Em tal abordagem, o interior da empresa não é uma preocupação especial - daí a denominação Black-box; tudo gira em torno da confiabilidade externa. Os outsiders, nesse contexto, são principalmente credores e investidores, inclusive investidores em ações não integrantes do bloco de controle. Por credores e investidores compreende-se aqueles que concedem crédito de longo prazo, muitas vezes de grande porte, a seus parceiros em transações e dependem particularmente de uma base confiável para essa relação credor-devedor.1 Durante os anos de transição, ou seja, na década de 1990, tanto o foco no Mercado Interno como a principal meta da União, quanto o respectivo ator racional e o modelo de informação foram questionados, modificados e, de certa forma, substituídos.2 Esses anos também trouxeram uma grande facilitação do movimento intracomunitário ou da União, maior fluidez e melhores instrumentos e mercados para instrumentos financeiros, especialmente ações. Isso sustenta uma atitude diferente em relação ao empoderamento de grandes círculos de atores, com uma variedade de origens, bem como tipos variados de possibilidades de troca dentro da União. Em outras palavras, os anos de transição prepararam o terreno para uma abordagem Red-box, cujo desenvolvimento jurídico principal ocorreu na década de 2000.3 Alguns desses desenvolvimentos na década de 1990 se destacam. Por exemplo, o foco no Mercado Interno como o principal objetivo da Comunidade foi substituído pelo objetivo da Comunidade de se tornar uma União política, que, por sua vez, foi decididamente realizado com o Tratado de Maastricht (1992). Entre os elementos consagrados nesse Tratado, destacam-se a concepção e os critérios para a introdução e a admissão de uma moeda comum em 1999/2002. Outros desenvolvimentos fundamentais incluem a Política Externa e de Segurança Comum, incluindo a Defesa (2º pilar) e a Cooperação nas áreas de Justiça e Assuntos Internos (3º pilar).4 Com esse terreno preparado, a década de 2000 (Red-box) apresentou movimento legiferante em nível da União Europeia visando o empoderamento dos tomadores de decisão, em vários níveis, e tornando-o o impulso central do desenvolvimento do Direito Societário da UE. Esse conceito foi fundamentado em três aspectos principais: (i) a participação dos acionistas; (ii) a participação em vários níveis foi incentivada, incluindo a capacitação dos acionistas no momento das aquisições e dos trabalhadores para participarem da tomada de decisões com relação ao ambiente de trabalho; (iii) o terceiro, mais relacionado ao cenário institucional, se deve à capacitação da voz multifacetada que passa a ser vista em nível da UE e é sustentada por normas que facilitam e aprimoram a base de informações para a tomada de decisões adequadas.5 O momento do atual desenvolvimento do direito societário da União Europeia é classificado por Stefan Grundmann como sendo o da Green-box. O conceito central proposto pelo professor da Humboldt-Universitat baseia-se na ideia de que a responsabilidade para com a coletividade e entre gerações é primordial, tanto nas atividades econômicas como no direito societário. O professor menciona três exemplos claros dessa visão identificados nos megaprojetos do direito das sociedades da EU, os quais estão presentes na última década: (i) não externalização dos efeitos adversos da ação privada para a coletividade; (ii) proteção proativa dos valores fundamentais, quando a economia europeia é a fonte de riscos para esses valores; e (iii) apelos aos mais importantes decisores para que partilhem as suas estratégias, as tornem visíveis, as submetam à crítica e, além disso, se abstenham de injustiças.6 Situada nesse derradeiro estágio, a nova Diretiva adota uma estratégia de regulação, atendendo aos valores europeus fundamentais e impondo obrigações às empresas constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que preencham os requisitos previstos em seu art. 2.º. Com essa estratégia, visa à proteção dos Direitos Humanos e da Sustentabilidade Ambiental em três eixos: o das próprias operações da sociedade (medidas de controle interno da gestão); o das operações das filiais (medidas de controle das subsidiárias); e o das operações das sociedades integrantes da cadeia de valor (medidas de controle externo). Para cumprirem as obrigações em matéria de direitos humanos e de ambiente, as empresas hão de observar o dever de diligência. O conteúdo desse dever é explicitado nos cinco artigos da Diretiva (4.º a 8. º). No essencial, tal dever traduz-se na adoção de procedimentos e medidas adequados para identificar os efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos e no ambiente relacionados com as operações da sociedade, de suas filiais (subsidiárias) e/ou das sociedades integrantes das respectivas cadeias de valor, prevenir ou atenuar os efeitos negativos potenciais e fazer cessar ou minimizar os efeitos negativos reais.7 A violação do dever de diligência pode levar à aplicação de sanções de natureza administrativa (art. 20) e de responsabilidade civil (art. 22). Essa responsabilidade civil pressupõe o fato ilícito e culposo (doloso ou negligente) advindo da quebra do dever de prevenir e/ou atenuar efeitos negativos potenciais ou de fazer cessar/minimizar efeitos negativos reais; um dano ou prejuízo (patrimonial ou não patrimonial) sofrido por pessoas protegidas; e o nexo de causalidade entre aquele fato e o dano.8 Dos três eixos componentes da estratégia regulatória da Diretiva, os dois últimos possuem o potencial de impactarem em sociedades sediadas no Brasil: o das operações das filiais (medidas de controle das subsidiárias); e o das operações das sociedades integrantes da cadeia de valor (medidas de controle externo). Cuidamos de início das operações das filiais: Coutinho de Abreu adverte que, neste eixo regulatório, a Diretiva provoca um alargamento considerável na harmonização comunitário-europeia do direito dos grupos empresariais. Por um lado, consagra-se o dever de diligência ou de cuidado das sociedades controladoras em matéria de direitos humanos e meio-ambiente para com partes interessadas das sociedades subsidiárias e a responsabilidade correspondente. Mas também se consagra, por outo lado, e em contrapartida, o direito (o poder-dever) de as sociedades controladoras darem instruções vinculantes às controladas nessas matérias.9 Sobre o último aspecto, destacamos que no Direito Societário brasileiro não há a denominada reserva de matéria para a gestão na generalidade das sociedades, cabendo, desde que lícitas, as instruções vinculativas da assembleia ou reunião de sócios - dominadas pelo controlador - para os administradores. Sobreleva dizer que, em sede deste breve comentário, a regulação europeia atinge o plano material da formação da vontade social, isto é, dos critérios que parametrizam a responsabilidade dos gestores - em contraste com medidas alternativas que impactariam na composição e atribuição dos órgãos responsáveis pela formação da vontade social (plano formal). A razão disso, perspectivando pelos fundamentos, é a de que o nexus contratual, como afirmava Oliver Williamson, não é neutro.10 Há discricionariedade dos administradores e controlares (inclusive da sociedade controladora) na tomada de decisões que manifestam, em última análise, o comando hierárquico que, numa abordagem coaseana, caracteriza a empresa: identificar esse comando nas estruturas societárias componentes do grupo e parametrizá-la, via responsabilização, parece-nos ter sido a opção do legislador europeu de 2024. Por fim, tendo em conta a cadeia de valor ("as atividades relacionadas com a produção de bens ou a prestação de serviços por uma empresa, incluindo o desenvolvimento do produto ou do serviço e a utilização e eliminação do produto, bem como as atividades conexas das relações empresariais estabelecidas a montante e a jusante da empresa") - parece-nos - indica a potencial caracterização do conhecido controle externo entre o potencial contratante europeu e as potenciais sociedades (mas não só) fornecedoras brasileiras: há diversas medidas previstas pela Lei europeia que repercutem virtualmente no controle e no funcionamento de eventuais contratadas: ilustrativamente, citamos o dever que incide sobre as empresas contratantes de "[p]rocurar obter garantias contratuais dos parceiros diretos com os quais tenham uma relação empresarial estabelecida de que se comprometem a assegurar o cumprimento do código de conduta e, se necessário, do plano de medidas corretivas, nomeadamente procurando obter garantias contratuais correspondentes junto dos seus parceiros, na medida em que façam parte da cadeia de valor (contratação em cascata)" (alínea c do número 3 do art. 8 º da Diretiva). __________ 1 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 2 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 3 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 4 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 5 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 6 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 7 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Governação societária e sustentabilidade no direito europeu. Direito das Sociedades em Revista, Lisboa, Ano 16, V. 31, Março de 2024. 8 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Governação societária e sustentabilidade no direito europeu. Direito das Sociedades em Revista, Lisboa, Ano 16, V. 31, Março de 2024. 9 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Governação societária e sustentabilidade no direito europeu. Direito das Sociedades em Revista, Lisboa, Ano 16, V. 31, Março de 2024. 10 WILLIAMSON, Oliver E. The mechanisms of governance. Oxford university press, 1996.
1. Notas introdutórias: Panorama jurídico da responsabilidade civil médica por violação ao dever de informação Nestas breves reflexões, propõe-se um panorama geral do atual entendimento doutrinário e jurisprudencial brasileiro sobre responsabilidade civil médica por violação ao dever de informação, levando em consideração as peculiaridades e a dinâmica envolvida no consentimento de pacientes oncológicos. As ponderações aqui expostas foram apresentadas quando da minha participação, no dia 10 de abril de 2024, em reunião com membros fundadores do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN) - Direito Médico e da Saúde, para debater sobre aspectos ético-jurídicos em oncologia, ao lado dos doutores Vanderson Rocha (professor titular USP) e Gabriel Massote (diretor IMKN). Para que se caracterize a responsabilidade civil do médico pela falha na obtenção do consentimento, deve-se estabelecer uma relação clara entre a falta (ou incorreta) de informação e o prejuízo final. Assim, afirma Miguel Kfouri Neto que 'o dano deve ser consequência da informação falha ou inexistente; esta se liga àquele por nexo de causalidade'.i Será imputável ao profissional o dano moral, por 'não ter advertido o paciente quanto àquele risco, que acabou por se concretizar'. Indeniza-se o dano moral gerado por privar o enfermo de sua autodeterminação. Mais recentemente, no Direito Médico, a doutrina do consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido) tem ganhado novos contornos e, neste cenário, doutrinaii e jurisprudênciaiii brasileiras vêm se firmando no sentido de que não será considerado válido o consentimento genérico (blanket consent) ou por meio de formulário padronizado, necessitando ser claramente individualizado. O dever de informação assumido pelo médico restará cumprido a partir da análise do 'critério do paciente concreto',iv ou seja, a explicação do profissional deve ser extensa e adaptada às características do enfermo (idade, condição médica, grau de instrução, nível intelectual e cultural etc.). Ademais, informações genéricas constantes no TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido não representam informação qualificada e, por isso, não são suficientes para permitir decisões refletidas ou compreensão adequada do paciente sobre diagnóstico, prognóstico e/ou benefícios e riscos do tratamento proposto. Vale, ainda, um destaque: Mesmo que a assinatura de um documento (TCLE) seja importante para a comprovação da conduta médica diligente, conforme leciona André Pereira, o consentimento do paciente não pode mais se confundir com a efetiva prestação da obrigação do médico de informar, pois 'a informação é apenas um aspecto do consentimento esclarecido'.v Apesar de não ser proibida a utilização de formulário com estipulações gerais e padronizadas - cujo conteúdo é predisposto unilateral e antecipadamente para uma generalidade de pacientes-aderentes em uma condição semelhante de atendimento -, na atividade interpretativa, como leciona Flaviana Rampazzo Soaresvi, para aferir se ocorreu o consentimento esclarecido do paciente, incide a lógica do art. 46 do CDC. Assim, o TCLE é anulável caso o seu emitente não tenha prévio conhecimento de seu conteúdo ou se a sua redação for tal que impeça a sua real compreensão. Deve-se verificar a cognoscibilidade do paciente, com a oportunidade de passagem por uma adequada fase prévia informativa e um efetivo processo decisório. Nesse sentido, Paulo Nalin é categórico: 'a informação, vale frisar, não basta existir e ser suficiente, deve, sobretudo, ser clara (...) particularizando a informação, de modo compreensível e acessível, ao destinatário ou aderente'.vii Conforme explicam Maria de Fátima Freire de Sá e Iara Antunes de Souza, a resolução do CNS 466/12 impõe fases de um processo de diálogo entre o médico e o paciente, a fim de se obter um consentimento livre e esclarecido: 'a primeira fase do processo é de esclarecimento, segunda é de leitura do termo quando escrito e, por fim, após devidamente esclarecido, o paciente/sujeito da pesquisa manifesta sua anuência à prática médica ou científica'. viii Atualmente, compreende-se a substancial alteração da relação médico-paciente, partindo-se de um esquema autoritário e vertical para um modelo democrático e horizontal, dando-se maior atenção às competências de comunicação clínica, sendo esta compreendida como o processo contínuo de interação entre o profissional da saúde e o enfermo, em um contexto no qual as características e os valores individuais de cada paciente são devidamente considerados.ix Desse modo, a releitura da doutrina do consentimento do paciente demanda, cada vez mais, que o consentimento seja compreendido como um processo e não um ato isoladamente considerado, devendo ocorrer real passagem prévia e contínua pelo devido processo informativo-decisório.x Tendo em vista que a base do processo de consentimento se assenta num relacionamento bilateral, exige-se a troca de informações e o diálogo entre as partes, a fim de que seja efetivamente obtido um consentimento válido e eficaz sob o ponto de vista jurídico. Por fim, vale destacar que, na prática, o mais dificultoso será determinar a exata medida da informação devida sobre os riscos a serem objeto da informação prestada. Diante disso, é essencial a ponderação sobre o escalonamento de riscos e os níveis de complexidade do atendimento no contexto do consentimento à atuação médica. Em geral, tanto no Brasil como em Portugal, a doutrina e a jurisprudência vêm defendendo a obrigação do médico comunicar os riscos significativos, ou seja, aqueles que o profissional da medicina sabe ou deveria saber que são importantes e pertinentes, para o homem médio colocado nas mesmas circunstâncias daquele paciente. Trata-se da denominada "Teoria dos Riscos Significativos", segundo a qual o risco será considerado significativo em razão de quatro (4) critérios, como sustenta André Pereiraxi: necessidade terapêutica da intervenção; em razão da sua frequência (estatística); de acordo com a sua gravidade; de acordo com as características/comportamento do paciente. Nessa linha, Flaviana Rampazzo Soares, no livro "Consentimento do paciente no direito médico", afirma que os riscos com frequência significativa devem ser informados ao paciente, mas nos de ocorrência insignificante, o dever de informação pode ser atenuado.xii Por outro lado, a autora explica que, mesmo quando os riscos forem estatisticamente insignificantes, devem ser informados ao paciente quando: possuem natureza grave e forem específicos de uma intervenção ou tratamento, a exemplo do risco de tetraplegia em cirurgia de coluna ou o risco de reversão espontânea de dutos após uma vasectomia; ou, ainda, quando a ocorrência do risco puder causar elevado prejuízo ao paciente, em suas diferentes dimensões (psíquicas, físicas, sociais, familiares, religiosas, laborais etc.). xiii Então, observa-se a importância da ponderação sobre a frequência e gravidade do risco, para o fim de determinar o conteúdo da informação a ser recebida/compreendida pelo paciente. Além disso, outro fator importante na análise do conteúdo mínimo do consentimento, como já sustentamos na obra 'Responsabilidade Civil Médica e Inteligência Artificial', xiv é a novidade do tratamento, pois quanto mais recente for um procedimento terapêutico, maior rigor deverá presidir à informação dada ao paciente. Nesse cenário, pode-se tomar como exemplo novas tecnologias utilizadas nos cuidados de saúde, como cirurgias assistidas por robôs, sistemas decisionais automatizados (IA) para apoiar decisões clínicas ou, ainda, tratamentos inovadores como o Car-T Cell, que será objeto de investigação no presente artigo. 2. Peculiaridades e dinamicidade do consentimento de pacientes oncológicos submetidos ao Car-T Cell O processo de consentimento informado em oncologia é especialmente complexo. Há um protocolo chamado Spikes,xv que orienta os profissionais da saúde sobre algumas etapas do processo de consentimento do paciente e a forma de comunicação de notícias difíceis/complexas, particularmente quando há a necessidade de uma abordagem mais delicada sobre diagnóstico de câncer, recidiva da enfermidade ou início de tratamento paliativo. Antes de compartilhar as informações, o profissional deve avaliar o que o paciente já sabe sobre sua condição clínica, ajustando o nível de detalhe e a abordagem da conversa com base nesta percepção. Além disso, o enfermo deve ser convidado a expressar quão detalhada ele deseja que a informação seja repassada, respeitando seu direito de saber e, eventualmente, também o seu direito de não saber. A informação deve ser transmitida de forma honesta, clara e em linguagem acessível, evitando na medida do possível, os termos técnicos, com uma ênfase especial em explicar o diagnóstico, prognóstico e o tratamento. Ainda, o protocolo Spikes indica a importância de, na consulta, o médico concluir a conversa com uma síntese das informações compartilhadas, com a confirmação da sua compreensão, e discussão dos próximos passos do tratamento ou estratégias a serem seguidas. Além disso, pacientes com câncer frequentemente experimentam um estado de hipervulnerabilidade devido ao impacto emocional do diagnóstico. Os médicos devem avaliar cuidadosamente como as informações são recebidas, verificando a compreensão do enfermo e ajustando a comunicação conforme necessário. Eventualmente, na consulta seguinte, confirmar se o paciente compreendeu aquelas informações que foram repassadas na consulta anterior. Outro ponto importante a se considerar é que, conforme já afirmado, a tomada de decisão nos cuidados de saúde deve ser compartilhada, isto é, trata-se de um processo colaborativo, que envolve médico e paciente (e, muitas vezes, familiares) na discussão das opções de tratamento, considerando as preferências e valores do paciente. Além disso, as condições e preferências do enfermo podem mudar ao longo do tempo, assim como as informações sobre novos tratamentos ou mudanças no prognóstico da doença. Por isso, é essencial que haja uma reavaliação regular sobre a informação prestada, especialmente em pontos críticos do cuidado do paciente. Em outras palavras, como já ressaltamos, o consentimento a ser colhido pela equipe médica não é um evento único, mas sim processual, por meio de um processo contínuo de comunicação e reavaliação. Nesse sentido, sustenta Alessandro Nilo: '[o consentimento] difere-se no tempo ao longo do tratamento e renova-se de acordo com a evolução do caso. Em nenhuma outra prestação de serviços o acordo consensual estabelecido entre as partes é tão renovado, passo a passo ao longo do tempo, como ocorre no contrato de tratamento'.xvi Ao trazer o presente debate para o contexto de pacientes oncológicos submetidos a um tratamento denominado Car-T Cell, verifica-se que a vulnerabilidade é agravada em razão dos efeitos emocionais decorrentes da gravidade da doença e, ainda, pela publicidade feita sobre a tecnologia inovadora como única e última hipótese curativa para salvar sua vida. A terapia CAR-T - Receptor de Antígeno Quimérico em Células T é uma forma avançada de imunoterapia usada para tratar malignidades hematológicas, como alguns tipos de leucemia e linfomas que não responderam a outras terapias. Neste tratamento, células T do próprio paciente são geneticamente modificadas em laboratório para produzir receptores artificiais na sua superfície, conhecidos como receptores de antígeno quimérico. Estes receptores permitem que as células T reconheçam e ataquem células cancerígenas de forma mais efetiva. A terapia Car-T é especialmente recomendada como terceira linha de tratamento, em casos de câncer recidivado ou refratário, oferecendo uma nova esperança para pacientes cujas opções de tratamento prévias foram esgotadas. Informar um paciente oncológico sobre a possibilidade de cura, especialmente através de tecnologias inovadoras como a terapia com células Car-T, requer sensibilidade, precisão e clareza. Há alguns fatores a serem ponderados para que os enfermos tenham uma compreensão clara do seu diagnóstico, opções de tratamento (alternativas terapêuticas existentes ou não), e os riscos e benefícios associados à tecnologia, permitindo-lhes tomar decisões informadas sobre o seu tratamento. Em janeiro de 2024, foi publicada uma pesquisa realizada no Massachusetts General Hospital, nos Estados Unidos, para investigar o perfil da comunicação entre oncologistas e pacientes (e seus familiares), no contexto específico do Car-T Cell.xvii Constatou-se que, em geral, médicos discutem os aspectos novos e eficazes da terapia com os enfermos, mas raramente abordam os riscos específicos, a possibilidade (mesmo que pequena) de falha do tratamento e o planejamento de cuidados avançados. Os profissionais da Medicina preferencialmente enfatizam os resultados positivos da tecnologia - o que ressaltamos ser algo muito adequado e importante. Todavia, há uma questão a ser ponderada: como lidar com a situação de que, muitos pacientes acabam com lacunas significativas de conhecimento, a respeito de resultados negativos e riscos, possibilidade de falha do tratamento, possíveis toxicidades e outros efeitos colaterais. Como qualquer tratamento de saúde, aqui não é diferente, pois há sempre riscos e a álea terapêutica envolvida. Para um mesmo tipo de tratamento, cada organismo pode reagir de maneira diversa. A FDA - Food and Drug Administration, nos Estados Unidos, emitiu em fevereiro de 2024 um alerta sobre o risco de cânceres secundários desenvolvidos depois de alguns anos, em pacientes tratados com o Car-T. xviii Por isso, a agência recomenda que os pacientes recebendo essa terapia celular sejam monitorados por toda a vida, para verificar qualquer nova malignidade. Todavia, a FDA constatou que o desenvolvimento destes cânceres secundários ocorreu em uma porcentagem baixíssima, cerca de 1% dos pacientes. Além disso, apesar desse risco, a própria agência enfatiza que os benefícios gerais desta tecnologia continuam a superar muito os seus possíveis riscos. Diante deste cenário, podem ser levantados alguns questionamentos: o que o médico deve informar ao paciente que será submetido ao Car-T Cell? Ou, ainda, como devem ser trazidas estas informações? E, por fim, quais as consequências jurídicas de não informar ou informar inadequadamente? Antes de considerar a terapia Car-T, os médicos devem fornecer aos pacientes uma visão clara do seu quadro clínico atual, incluindo o estágio da doença, prognóstico e inexistência de outras opções de tratamento. Deve ser explicado o porquê deste tratamento estar sendo considerado (por exemplo, devido à refratariedade ou recidiva após tratamentos anteriores). Ou seja, o médico, durante a consulta, inicia a conversa estabelecendo um contexto claro sobre a situação atual do paciente, incluindo o tipo e estágio do câncer, tratamentos anteriores e como esses tratamentos afetaram a doença. Isso ajuda a situar a conversa dentro da jornada de tratamento específica do paciente. Uma explicação da terapia Car-T deve ser fornecida, incluindo como funciona, por que é considerada inovadora e para quais tipos de câncer é atualmente aprovada, incluindo o caso específico do paciente em questão. Isso ajudará a estabelecer uma base de conhecimento para que o enfermo possa entender melhor os benefícios e riscos associados. Ademais, atualmente, os profissionais da saúde devem se comprometer com uma comunicação contínua, permitindo que os enfermos façam perguntas, expressem suas preocupações e revisitem suas decisões à medida que o tratamento evolui, as circunstâncias mudam e/ou novas informações se tornam necessárias. Por exemplo, o médico informa: 'Sr. Manoel, uma opção de tratamento que estamos considerando, a partir deste momento, é denominado terapia com células Car-T. É um tipo de tratamento onde usamos o próprio sistema imunológico do seu corpo para combater o câncer. Isso é feito modificando geneticamente algumas de suas células de defesa, para que elas possam reconhecer e atacar as células cancerígenas mais efetivamente'. Ou seja, neste momento, o médico introduz à conversa a terapia com células Car-T, explicando o que ela é e como funciona de maneira simplificada, mas precisa. Outro ponto essencial para fazer parte o processo de consentimento do paciente engloba uma discussão sobre os riscos e efeitos colaterais - ao menos abordar os mais frequentes e específicos ao tratamento proposto. Isso inclui, por exemplo, a CRS - Síndrome da Liberação de Citocinas, neurotoxicidade, infecções, citopenias, possibilidade de toxicidade em órgãos não-alvo etc. Os pacientes submetidos à terapia Car-T geralmente são monitorados de perto em um ambiente hospitalar, especialmente nos primeiros 10 dias após a infusão, para que qualquer problema possa ser rapidamente identificado e tratado. Os enfermos devem ser informados sobre os sinais de alerta desses efeitos colaterais, e como eles serão monitorados e gerenciados. Por fim, é essencial trazer o debate a respeito do gerenciamento de expectativas, o que, na verdade, aplica-se para qualquer inovação tecnológica na Medicina. Embora os profissionais da saúde não garantam o sucesso de 100% do tratamento com o Car-T Cell, muitas vezes há uma superexpectativa do paciente com a tecnologia e, mais do que isso, vislumbra-se uma complexidade maior de assimilar informações repassadas pelo médico. Em que pese a terapia Car-T oferecer uma promessa bastante significativa e revolucionária no tratamento de certos cânceres hematológicos, particularmente aqueles que não responderam a tratamentos anteriores, a percepção pública e as expectativas podem, às vezes, ultrapassar a realidade dos resultados possíveis. A mídia frequentemente destaca histórias de sucesso de tratamentos inovadores, como a terapia Car-T, enfatizando os casos de curas ou remissões completas. Embora tais histórias sejam verdadeiras e forneçam esperança, elas podem não representar a experiência de todos os pacientes. A superexpectativa em relação a novas tecnologias médicas, como a terapia com células Car-T, é um questão complexa para o médico gerenciar. Pacientes com câncer, especialmente aqueles em estágios avançados ou que esgotaram outras opções de tratamento, podem se apegar demasiadamente à esperança de uma 'cura certa e milagrosa'. É importante ressaltarmos novamente que a Medicina não é uma ciência exata e a álea terapêutica estará sempre presente. Para um mesmo tipo de tratamento, cada paciente pode reagir de maneira distinta. Sem dúvidas, é muito importante manter a positividade de um paciente oncológico, dizendo que há grandes chances de que ele se enquadre na grande maioria dos casos de enfermos que obtiveram a cura daquela patologia, por meio de um determinado tratamento. Contudo, cabe ao médico saber gerenciar adequadamente estas superexpectativas. Inclusive, sustentamos isso no intuito de que estes nobres profissionais se protejam de, eventualmente, uma demanda judicial relacionada à responsabilidade civil por violação ao dever de informação. Vale a ressalva de que a ressignificação do direito à informação de pacientes oncológicos, nos moldes apresentados, engloba uma espécie de 'padrão ouro no tratamento', razão pela qual é importante considerar as peculiaridades da situação concreta, para aferir a possibilidade de exigir do médico determinada conduta diante de eventual condição precária de trabalho ou, ainda, outras questões relacionadas à própria estrutura da entidade hospitalar onde ocorreu o atendimento. 3. Considerações finais A terapia Car-T Cell representa uma evolução significativa no tratamento das malignidades hematológicas, oferecendo novas esperanças e possibilidades onde, anteriormente, as opções eram limitadas ou ineficazes. Ao abordarmos o consentimento para o tratamento com esta tecnologia, lidamos com muito mais do que aspectos técnicos ou clínicos; estamos navegando por questões profundamente sensíveis da experiência do câncer. Todo o debate proposto nestas breves reflexões teve como foco o Direito Médico preventivo, no intuito de evitar demandas judiciais sobre responsabilidade civil médica por violação ao dever de informação. Nesse cenário, além de ser considerada a complexidade da tecnologia e a hipervulnerabilidade de pacientes oncológicos, é necessário reconhecer que cada enfermo traz sua própria história, esperanças, medos e expectativas. Portanto, é crucial que o consentimento seja adaptado para atender às características individuais do enfermo, garantindo um processo de diálogo para que informações importantes sejam compreendidas. Isso inclui uma discussão aberta sobre os potenciais benefícios e riscos, possíveis efeitos colaterais e os cenários de sucesso e fracasso do tratamento. ____________ i KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 41; 48 ii Em decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça em 2018,  decidiu-se que há efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso concreto do paciente e, neste sentido, não será considerado válido o consentimento genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado (STJ, REsp 1540580/DF, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 02/08/2018.) iii FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil.  4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1318. iv PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 556. v PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 74. vi SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 227-228. vii NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional). 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 149. viii SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Termo de consentimento livre e esclarecido e responsabilidade civil do médico e do hospital. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezzerra de; DADALTO, Luciana (Coord.) Responsabilidade civil e medicina. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 57-76. ix NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Thomson Reuters Brasil - Revista dos Tribunais, 2023, p. 81 e ss. x VASCONCELOS, Camila. Direito médico e bioética: história da judicialização da relação médico-paciente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 193 e ss. DANTAS, Eduardo. Direito Médico. 6. ed. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 129 e ss. xi PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 394-416. xii SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021. xiii SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021. xiv NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Thomson Reuters Brasil - Revista dos Tribunais, 2023, p. 265. xv PORTAL Oncologia do Brasil. Protocolo SPIKES: conheça estratégias necessárias para comunicar más notícias. Editorial, 6 dez. 2021. Disponível em: https://www.oncologicadobrasil.com.br/blog/protocolo-spikes/. Acesso em 26 abr. 2024. xvi NILO, Alessandro Timbó. Direito médico: o contrato de tratamento no direito brasileiro. Curitiba: Juruá, 2020, p. 145-146. xvii DHAWALE, Tejaswini et al. Communication about chimeric antigen receptor T-Cell (Car-T) Therapy. Transplantation and Cellular Therapy, n. 30, v. 4, abr. 2024. xviii URAN, Melissa. FDA Adds Boxed Warning to CAR T-Cell Therapies, but Says Benefits Outweigh Risks of Secondary Cancers. The Journal of the American Medical Association (JAMA), n. 331, v. 10, p. 818-820, fev. 2024.
Tendo em vista o anteprojeto de lei em tramitação no Senado, que visa atualizar dispositivos do Código Civil (Lei n. 10.406/2002), torna-se importante apresentar para a comunidade jurídica o significado das novidades trazidas na parte da responsabilidade civil. Tive a felicidade de, em conjunto com o Prof. Nelson Rosenvald, desenvolver e cunhar o art. 944-A da referida proposta, resultado de ideias próprias e de pesquisadores que já se dedicaram sobre o tema[1], o qual discorre sobre a quantificação do dano moral, estando assim disposto:  Art. 944-A. A indenização compreende também todas as consequências da violação da esfera moral da pessoa natural ou jurídica. § 1º Na quantificação do dano extrapatrimonial, o juiz observará os seguintes critérios, sem prejuízo de outros: I - quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes; II - quanto à extensão do dano, as peculiaridades do caso concreto, em confronto com outros julgamentos que possam justificar a majoração ou a redução do valor da indenização. § 2º No caso do inciso II do parágrafo anterior, podem ser observados os seguintes parâmetros: I - nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar ou social; II - grau de reversibilidade do dano; e III - grau de ofensa ao bem jurídico.  Antes de discorrer sobre os parágrafos e incisos acima, salutar destacar que tanto a CF/88 (art. 5º, V e X) quanto o CC/2002 (art. 944) não possui parâmetros para a quantificação do dano moral, se limitando a aduzir "extensão do dano", no caso do diploma civil. Nesta senda, a reforma trabalhista, em seu art. 223-G, foi o diploma legal que mais se aproximou da tentativa de definir balizas. Contudo, enfrentou algumas críticas por parte da doutrina civilista, embora tenha sido louvável a inclusão de algumas molduras, como a avaliação da "natureza do bem jurídico tutelado", dos "reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão", da "a intensidade do sofrimento ou da humilhação", da "extensão e a duração dos efeitos da ofensa", do "grau de publicidade da ofensa" e da "possibilidade de superação física ou psicológica".  Os incisos mais problemáticos foram o "grau de culpabilidade e da capacidade econômica do ofensor", a "ocorrência de retratação espontânea", o "esforço efetivo para minimizar a ofensa" e o "perdão, tácito ou expresso", visto que a perspectiva eminentemente compensatória olha apenas para a vítima e o seu menoscabo e o elemento nuclear do direito de danos é a recomposição do equilíbrio - de forma perfeita ou aproximada - da vida da vítima, em nada tendo importância a capacidade econômica do ofensor ou tentativas de minimizar a ofensa. Ou seja, se o dano foi consumado, o juiz precisa se debruçar sobre todas as nuances do dano injusto para fixar uma indenização proporcional.  Neste aspecto, a mensuração do quantum indenizatório deve ter harmonia com a magnitude do dano sofrido pela vítima, de modo a realizar a justiça corretiva propugnada pela responsabilidade civil, eliminando o dano imerecido, tarefa esta que no dano material corresponde ao desfalque patrimonial e não demanda maiores digressões, mas em se tratando de dano moral a "anulação" da perda imerecida se dá de modo aproximativo, compensando-a.  Contudo, em se tratando do dano moral, tal tarefa se mostra muito discricionária e subjetiva se os únicos parâmetros que o julgador tiver forem os valores abstratos da chamada "extensão do dano", sendo imperiosa a sedimentação de bases (mínimas e não máximas) para que o valor da indenização por dano moral cumpra com maior grau de justiça o papel de eliminar o dano injusto, para, inclusive, viabilizar o controle a nível recursal e acadêmico do des (acerto) da mensuração, prestigiando o contraditório, a fundamentação das decisões judiciais e a segurança jurídica.  Assim, o estabelecimento de alguns critérios para tal tarefa envolve a investigação da gravidade, intensidade, duração do dano e a compreensão da efetiva repercussão do dano dentro dos complexos projetos, valores e relacionamentos de cada pessoa, pelo que o STJ já teve oportunidade de perfilar que a tarifação pré-fabricada de quantificação do dano moral é ilegal (súmula 281). O fato é que nunca pode ser perder de vista que a tarefa de arbitrar a indenização por dano moral deve ser um trabalho individualizado para a vida da vítima, haja vista que cada pessoa é um ser único e irrepetível, e as intercorrências danosas reverberam de forma particularizada.  Por esta razão, caminhou bem a virtuosa teoria do método bifásico, desenvolvida na tese de doutoramento (UFRG) do saudoso professor e Ministro Paulo de Tarso Sanseverino e encampada majoritariamente nas turmas do STJ, no sentido de buscar equilíbrio entre o interesse jurídico lesado e a média de indenizações fixadas em casos semelhantes com as especificidades do caso concreto:  Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo à determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz (Resp 1152541/RS)  Outro aspecto inarredável, antes de adentrar nas justificativas do art. 944-A, diz respeito a cumulação entre dano moral e estético. Em que pese a súmula 387 do Superior Tribunal de Justiça estabelecer que são cumuláveis o dano moral e o dano estético, a proposta busca superar tal proposição, visto que o interesse na integridade física externa ou interna, ligada à anatomia ou à saúde, é apenas mais um dos inúmeros aspectos que possibilitam avaliar a magnitude danosa. Assim, tendo em vista que o dano estético possui outros desdobramentos danosos, o dano estético pode ser compensado sob a alcunha de moral porque é uma espécie do gênero dano moral, como explica Antônio Jeová Santos:  Em mais de 25 anos de exercício da magistratura, o autor deste trabalho jamais conseguiu estremar as causas do dano moral e do estético, nem viu em algum caso sob julgamento ser possível a apuração dessas causas de forma autônoma. Pense-se em caso grave, qual seja, a amputação de ambas as pernas. Para efeitos de indenização, o dano é moral e material tão somente. Basta que o juiz aumente o valor da indenização, dada a gravidade da lesão, e fixe o montante indenizatório em valor alto, a título de dano moral, para a questão ser solucionada, sem que seja necessária a indesejada repetição (SANTOS, ANTÔNIO JEOVÁ. Dano moral indenizável. 5º ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 363).  Se, por exemplo, a vítima de um acidente de trânsito perde sua perna direita, deve ser relevado para fins de quantificação do dano moral a privação do membro em si (de parte do corpo); a vergonha que afligirá a vítima em suas relações sociais; a dor e o sofrimento que o ofendido sentiu no momento do acidente e posteriormente; as complicações de medicamentos e cirurgias advindas do evento danos, dentre outros. Ou seja, a questão puramente estética/anatômica/saúde, em si mesma, é talvez o mais importante parâmetro para quantificar a indenização nestes casos, mas que se soma a outros fatores para uma quantificação justa. Além do mais, do ponto de vista teórico nenhuma diferença conceitual existe entre os outros interesses extrapatrimoniais (afetação nos projetos de vida, prejuízo aos afazeres domésticos) e o direito à integridade física. Todos, neste ínterim, são dimensões danosas que representam o menoscabo sofrido pela vítima.  Diante da multiplicidade de bens jurídicos envolvidos no cabimento do dano moral e das infinitas hipóteses distintas de configuração do mesmo, é inequívoco que não existe e jamais vai existir um rol de parâmetros fechados para que o jurista possa refletir sobre qual o valor adequado para compensar o dano sofrido pela vítima. Contudo, a proposta legislativa buscou algumas balizas de modo a não abandonar a tentativa de imprimir maior racionalidade e menos subjetividade na quantificação do dano moral, pelo que logo no parágrafo 1º prevê a possibilidade de o juiz desbravar outras dimensões danosas, com a expressão "sem prejuízo de outros".  O inciso "I" tem por objetivo prestigiar a isonomia, ou seja, o direito de o jurisdicionado ser tratado de igual forma pelo Poder Judiciário: "quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes", na esteira do método bifásico. Portanto, a vida, a integridade física, a integridade psíquica, a privacidade, a honra, a imagem, etecetera, possuem, dentro dos diversos ramos do direito, uma média de quantificação (atraso na entrega do imóvel, extravio de bagagem, calúnia em redes sociais, morte de ente querido, acidentes, assédio moral), a qual deve servir de ponto de partida.  Essa média de casos semelhantes, para que não fulmine a individualização da magnitude danosa, precisa, para atender o espírito da responsabilidade civil particularizada, adentrar nas peculiaridades do caso concreto, podendo, nessa seara, o valor indenizatório aumentar ou diminuir, conforme o inciso "II" do art. 944-A, tendo em vista as situações do parágrafo 2º:  I - nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar ou social; II - grau de reversibilidade do dano; e III - grau de ofensa ao bem jurídico.  Em outras palavras, a perda dos dedos para um professor ou locutor pode representar uma magnitude danosa menor do que o mesmo dano para um pianista ou um pedreiro que necessita cuidar de um filho com deficiência (inciso I), visto que nesses últimos há um atingimento agigantado dos níveis familiares, sociais e de trabalho, por exemplo.  Nessa linha, a própria CLT possui disposição semelhante com os "reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão", a "extensão e a duração dos efeitos da ofensa" e o "grau de publicidade da ofensa".  De igual modo, a violação da honra em um grupo de WhatsApp pode representar uma magnitude danosa inferior ao descalabro da reputação a nível regional ou nacional, sendo, neste último caso, mais irreversível; o estupro de uma mulher é mais irreversível do que pequenas escoriações em acidente de consumo ou trabalho; um corte profundo com cicatriz permanente no rosto é mais irreversível do que pequenas escoriações (inciso II). Assim, a possibilidade de superação da vítima deve servir de critério para uma mensuração justa. A CLT também prevê parâmetro semelhante: "possibilidade de superação física ou psicológica".  Deve-se ter em vista também o grau de ofensa ao bem jurídico (inciso III), posto que todos os bens extrapatrimoniais juridicamente protegidos (nome, imagem, honra, integridade física, integridade psíquica, liberdade, igualdade, privacidade, dentre outros - cláusula aberta de tutela da pessoa humana) podem ser lesados em diferentes intensidades e graus. Ou seja, o extravio de bagagem atinge a integridade psíquica em nível menos do que o bullying ou assédio moral; a prisão ilegal viola a liberdade em grau mais intenso do que a detenção por alguns minutos de consumidor em restaurante que não pagou a conta; a transgressão à privacidade com divulgação de número de telefone é diminuta se comparada ao vazamento de dados de saúde.  Em todas essas balizas constantes nos incisos supracitados, viabiliza-se que o julgador aumente ou diminua o valor indenizatório tendo em vista as nuances do caso concreto, mergulhando de forma séria e comprometida nas camadas danosas que atingiram a vítima. Com a proposta legislativa, tentou-se escapar dos deslizes de alguns incisos da reforma trabalhista, congregando o que houve de acerto dela, com a necessidade definir critérios mínimos para a quantificação do dano moral, permitindo a busca aproximativa do desequilíbrio injusto, abrindo margem para que o Judiciário analise a magnitude danosa em todo o seu plexo, porém com menos subjetivismo e aleatoriedade.   __________ 1 COUTO, Igor Costa; SILVA, Isaura Salgado. Os critérios quantitativos do dano moral segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Orientação da Prof. Maria Celina Bodin de Moraes. Departamento de Direito da PUC/RJ, 2011; SANTANA, Héctor Valverde. A fixação do valor da indenização por dano moral Revista da Informação Legislativa. Brasília a. 44 n. 175 jul./set. 2007; SANTOS, ANTÔNIO JEOVÁ. Dano moral indenizável. 5º ed. Salvador: JusPodivm, 2015; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Critérios para a fixação da indenização por dano moral; Bolesina, Iuri. Danos: um guia sobre a tipologia dos danos em responsabilidade civil. 1ª edição. Editora FI, 2020; SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.
Notas introdutórias É de fácil constatação a crescente demanda reparatória decorrente dos contratos de trabalho. Só em 2023, as ações de indenizações por dano moral têm ocupado lugar de destaque no ranking dos vinte assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho.1 Vivemos na era dos danos, e o ambiente laboral se revela como um cenário favorável para isso. Lesões à saúde, à integridade psicofísica e ao tempo livre2, são alguns dos mais diversos exemplos de hipóteses lesivas às quais os empregados são submetidos diariamente. Metas inatingíveis, extensas jornadas de trabalho, exposição a constantes situações de estresse, medo de não ser promovido, de ser demitido, situações de assédio, e tantas outras que têm destruído a saúde mental das pessoas, levando-as a um desgaste emocional maior do que a capacidade para suportá-lo e geri-lo. Os quadros de esgotamento profissional são cada vez mais corriqueiros, não podendo mais os operadores do Direito virarem as costas para a necessidade de se criar claros critérios para frear condutas ilícitas nas relações de trabalho. Eis a Síndrome de Burnout, a "doença do século" que tem acometido inúmeros trabalhadores. Uma reação de esgotamento físico e mental experimentada por diversos profissionais que são, na grande maioria dos casos, submetidos a ambientes de trabalho insalubres e desumanos. Em outras palavras, é uma resposta ao estresse laboral crônico, de causa multifatórial e efeitos devastadores no cotidiano daqueles que são acometidos pela doença. Estudos apontam que o Brasil é o segundo país do mundo em número de diagnósticos, atrás apenas do Japão, onde 70% da população é afetada pelo problema. Conforme dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), cerca de 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome, o que tem reclamado do direito, sobretudo civil, disciplina jurídica apta a regulamentar suas vicissitudes, criando mecanismos para frear condutas ilícitas e reparar danos.3 Desde abril de 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da CID11, tornou o Burnout uma doença ocupacional, resultante das específicas condições do ambiente de trabalho ao qual os empregados são submetidos e não do indivíduo em si. A constatação da grande quantidade de diagnósticos no país gera questionamentos sobre a necessidade de tratar este como um problema de saúde pública, não só em razão das consequências negativas para a saúde dos trabalhadores, mas também em razão das consequências socioeconômicas, tais como absenteísmo, rotatividade, aumento de gastos, entre outras, que a referida síndrome traz. Neste cenário de causação de danos, a disciplina da responsabilidade civil passa a ocupar papel de destaque na tentativa de garantir aos trabalhadores a reparação integral pelos danos sofridos. A despeito da Jurisdição Trabalhista ser a competente para julgar as ações de reparação decorrentes da relação laboral, a matéria de fundo que as permeia é eminentemente civil, daí a importância de estudar o tema dentro do Direito Civil. Saúde e boa-fé objetiva A relação entre saúde mental e direito no contexto dos ambientes de trabalho é um tema de crescente importância e relevância na sociedade contemporânea. A saúde mental dos trabalhadores é um componente vital para o bem-estar geral e o funcionamento eficaz das organizações. No entanto, a pressão constante, as demandas excessivas e um ambiente de trabalho adverso podem contribuir significativamente para o surgimento de problemas de saúde mental, como estresse, ansiedade e a cada vez mais corriqueira síndrome de Burnout. Se por um longo período as doenças mentais foram associadas à errônea noção de indolência, hoje, estudos dos mais diversos saberes demonstram os severos riscos de não tratar as doenças mentais como uma questão de saúde pública, que merece ser amplamente combatida. Nesse cenário, diversos países tem reconhecido a importância de proteger a saúde mental dos trabalhadores por meio do estabelecimento de diretrizes para garantir ambientes de trabalho seguros e saudáveis. Tendo por base a compreensão da síndrome de burnout como um dano passível de reparação, é possível entender a configuração da dita patologia como, a um só tempo, uma lesão à saúde do trabalhador e à boa-fé objetiva que incide nas relações contratuais de trabalho, impondo a ambas as partes um dever de proteção aos recíprocos interesses. A constatação da existência de nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o acometimento da doença tem suscitado discussões sobre o dever de reparar os danos deste fenômeno, que interfere de maneira abrupta no cotidiano da vítima. Compete ao empregador, como detentor do poder diretivo, promover um ambiente laboral saudável e seguro, reduzindo os riscos inerentes ao trabalho. A bem da verdade, o dever de promover um ambiente de trabalho salubre parece ter dois fundamentos. O primeiro deles, de matriz constitucional, refere-se ao direito fundamental à saúde que, em razão da sua eficácia horizontal, aplica-se diretamente às relações privadas, o que inclui as relações de trabalho, marcadas pela vulnerabilidade do empregado, impondo ao empregador um dever de introduzir, fiscalizar e fazer cumprir as normas de medicina do trabalho. O segundo, refere-se à incidência da boa-fé objetiva no contrato de trabalho que, entre outros deveres, impõe às partes a obrigação de observância de deveres anexos, dentre os quais se destaca o dever de cooperação e proteção dos recíprocos interesses. Como a relação contratual se volta ao adimplemento, incorre em inadimplemento o empregador que, por ato comissivo ou omissivo, direto ou indireto, lesiona a saúde de seu empregado, falhando no dever imposto pela boa-fé objetiva de dedicar todos os esforços necessários para protegê-la. Configurada a lesão à saúde e à boa-fé objetiva, deflagra-se o dever de reparar que ensejará a adequada análise dos pressupostos da responsabilidade civil e dos critérios para quantificação dos danos.4 Todavia, merece destaque o fato de ser possível, em matéria de nexo causal, constatar que não só na Justiça Comum, mas na Justiça do Trabalho, é corriqueira a confusão dos conceitos de causalidade e culpabilidade.5 Assim, a despeito da responsabilidade objetiva do empregador, ou sua presunção de culpa - discussão para outro momento -, não se exime o magistrado do dever de analisar o nexo causal, verificando qual a causa que contribuiu direta e necessariamente com o resultado danoso. A respeito do burnout, deve o julgador, por meio da análise dos autos, perquirir se o acometimento da doença é efeito necessário da conduta do empregador. Embora a Síndrome do Esgotamento, na maior parte dos casos, seja resultado do comportamento comissivo ou omissivo do patrão, é possível vislumbrar hipóteses em que se verifica o rompimento do nexo causal, não devendo este responder pelo ocorrido. Mesmo no ambiente assistencialista da Justiça do Trabalho, havendo a interrupção do nexo, deve esta ser reconhecida, ainda que se opere contra os interesses do empregado, pois não há dever de reparar sem vínculo de causalidade. Um caminho a trilhar Na atual sociedade, tornamo-nos escravos do trabalho. Conforme descrevem Byung-Chul Han, a sociedade do trabalho e desempenho não é livre. Ela gera novas coerções. Nessa sociedade coercitiva carregamos conosco nosso campo de trabalho. Somos ao mesmo tempo prisioneiros e vigia, vítima e agressor. Mesmo sem senhorio, acabamos explorando a nós mesmos.6 Não que o trabalho não seja importante, mas não podemos deixar que ele nos tire a vida em seu sentido mais amplo. Deve-se ter claro que, de longe, não se busca depreciar o valor do trabalho. Reconhece-se que o trabalho é fundamental a todo ser humano, e, mais ainda, à dinâmica da vida em sociedade. É o trabalho humano que nos possibilita alcançarmos e termos as coisas que hoje existem. O que se busca, na verdade, é reconhecer que ao lado deste há outros valores importantes, e que uma combinação harmônica entre eles é fundamental à garantia e à plena manifestação da dignidade humana, norte da Constituição da República. É preciso repensar a forma como o trabalho é organizado, nos mecanismos de operacionalização da rotina e no manejo dos recursos humanos. O caminho é longo, árduo e como qualquer mudança requer paciência. Entretanto, é necessário que se comece hoje para que, nos próximos anos, diagnósticos de burnout tornem-se coisa rara e a saúde mental deixe ser hipótese de exceção.  Referências DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. rev., atual. e ampl. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Lesão ao tempo do consumidor no direito brasileiro. Revista de Direito da Responsabilidade, a. 2, 2020, p. 158-176. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 1-25, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024. SILVA JUNIOR, Anderson Luis Motta da. A reparação da lesão ao tempo para além das relações de consumo: o burnout como resultado de uma lesão ao tempo livre do trabalhador. In: MOTTA, Anderson; MOUTINHO, Carla; CABRAL, Marcelo Marques (Orgs.).Responsabilidade civil e seus rumos contemporâneos: estudos em homenagem ao Professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Indaiatuba: Foco, 2024. SILVA JUNIOR, Anderson Luis Motta da. A responsabilidade civil pela Síndrome de Burnout: critérios para reparação de danos nos contratos de trabalho. 2023. Dissertação de Mestrado em Direito - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974. SÍNDROME de Burnout: Brasil é o segundo país com mais casos diagnosticados. Estado de Minas, Belo Horizonte, 26 mai. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024. __________ 1 Assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho até setembro de 2023: 1º - Horas Extras (326.061 processos); 2º - Multa de 40% do FGTS (315.464 processos); 3º - Adicional de insalubridade (285.527 processos); 4º - Multa do Artigo 477 da CLT (238.137 processos); 5º - Verbas Rescisórias (249.55 processos); 6º - Aviso Prévio (238.137 processos); 7º - Horas Extras / Adicional de Horas Extras (238.240 processos); 8º - Multa do Artigo 467 da CLT (215.201 processos); 9º - Intervalo Intrajornada (209.877 processos); 10º - Férias proporcionais (199.248 processos); 11º - FGTS (191.609 processos); 12º - Honorário na Justiça do Trabalho (185.361 processos); 13º - Indenização por Dano Moral (182.519 processos); 14º - Verbas Rescisórias / 13º Salário (178.604 processos); 15º - Rescisão Indireta (173.442 processos); 16º - Reconhecimento de Relação de Emprego (152.550 processos); 17º - Horas Extras / Reflexos (120.302 processos); 18º - Saldo de Salário (114.736 processos); 19º - Horas Extras / Reflexos Intervalo Intrajornada / Adicional de Hora Extra (109.300 processos); 20º - Adicional de Periculosidade (104.088 processos) (TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Assuntos na Justiça do Trabalho: ranking de assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho até novembro de 2023. [S.l.]: TST, [2023]. Disponível aqui. Acesso em: 21 dez. 2023 2 Sobre a temática da lesão ao tempo, consultar: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Lesão ao tempo do consumidor no direito brasileiro. Revista de Direito da Responsabilidade, a. 2, 2020, p. 158-176. Disponível aqui. Ver também: SILVA JUNIOR, Anderson Luis Motta da. A reparação da lesão ao tempo para além das relações de consumo: o burnout como resultado de uma lesão ao tempo livre do trabalhador. In: MOTTA, Anderson; MOUTINHO, Carla; CABRAL, Marcelo Marques (Orgs.). Responsabilidade civil e seus rumos contemporâneos: estudos em homenagem ao Professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Indaiatuba: Foco, 2024. 3 Síndrome de Burnout: Brasil é o segundo país com mais casos diagnosticados. Estado de Minas, Belo Horizonte, 26 mai. 2023. Disponível aqui. 4 Sobre o princípio da reparação integral destaca Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho que, "a reparação  integral, objetivo central  da responsabilidade civil  contemporânea,  traduz conquista  recente  do  direito  brasileiro.  Para  tanto, concorreram avanços nas três dimensões de  seus  pilares  clássicos:  dano,  nexo  de  causalidade  e  culpa.  Mesmo descrevendo trajetória não linear, o fato é que, após décadas de desencontros, pode-se identificar um sentido evidente para o qual aponta a evolução da matéria: garantir a cada vítima  o  correspondente  ressarcimento,  capaz  de  cobrir toda  a  extensão  dos  efeitos danosos sofridos, e nada além disso" (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 1-25, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024). 5 Sobre o tema destaca Wilson Melo da Silva que, "causalidade não se confunde com culpabilidade. (§) A causalidade seria um elemento comum tanto na doutrina da responsabilidade por culpa como na responsabilidade meramente objetiva. (§) E, por isso mesmo, estaria sujeito o problema do nexo causal, lá e cá, às mesmas regras, às mesmas críticas e às mesmas vicissitudes" (SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 132). No mesmo sentido de não ser a culpabilidade, mas sim a causalidade, o melhor critério para determinar a obrigação de indenizar, destaca Aguiar Dias que, "não é o grau de culpa, mas o grau de participação na produção do evento danoso (...) que deve indicar a quem toca contribuir com cota maior ou até com toda a indenização" (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. rev., atual. e ampl. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 47). 6 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 25.
terça-feira, 7 de maio de 2024

Caso Joca: Transporte áereo de bagagem?

Há alguns dias estamos sendo bombardeados pela mídia com as tristes imagens de Joca desfalecido em uma gaiola. A notícia é acompanhada da explicação de que se trata do resultado fatal do descumprimento de um contrato de transporte aéreo. Para muitos de nós, contudo, é bem mais que isso. É o resumo da perda de um membro da família1. Exagero? Não acredito. Joca era um cão Golden Retriever de 4 anos. A expectativa de vida desta raça de cães é de, aproximadamente, de 10 anos. Ele, então, já seria um adulto  alcançando sua meia-idade. Se a ele perguntássemos, provavelmente nos diria que seu tutor era seu pai, já que pesquisas recentes2 indicam que os cães nos enxergam como líderes de sua matilha. Aliás, os cães são nossos companheiros nesta jornada terráquea há pelo menos 11 mil anos3, embora exista quem sustente serem companheiros ainda mais antigos4. São o exemplo mais ancestral de animal doméstico conhecido. Há vestígios arqueológicos, inclusive, de práticas funerárias de seus restos5. A raça de Joca, em especial, é fruto de uma série de cruzamentos e seleção genética que resultaram em um cão inteligente e dócil. Fato é que nós, humanos, os fizemos assim. Talvez por isso mesmo é que insistamos em encará-los, os cães e outros animais domésticos, como coisas e sujeitá-los a regimes de posse e propriedade. São os semoventes, no juridiquês que neutraliza o sentimento. Curiosamente a palavra "animal" aparece uma única vez no Código Civil brasileiro, para definir a responsabilidade objetiva de seu dono ou detentor (art. 936). A legislação brasileira, diga-se, vem sendo transformada por notícias como estas. Nada fácil, aliás, em um país carente de tudo, inclusive de empatia e respeito aos direitos humanos. Mas, ainda assim já criminalizamos os maus tratos e as condutas cruéis; assim como exigimos a garantia constitucional de sua vedação; disciplinamos o seu uso científico e criamos uma política pública de controle de natalidade de cães e gatos e de manejo de animais de granja. Há notícia, ainda, de inúmeros projetos legislativos que visam reconhecê-los como seres sencientes (por exemplo, PL 6.054/20196), assim como teriam feito outros países. Isso tudo é suficiente? Provavelmente não. Isso porque persistimos na matriz patrimonial. Razão pela qual tem se intensificado o debate em torno da existência de um "Direito Animal"7 e a revisão do status legal dos animais como, apenas, bens. Passo importante é o anteprojeto de reforma do Código Civil recentemente apresentado ao Senado Federal. O Anteprojeto não deixa de abordar o tema também pelo viés patrimonial: eles continuam como bens passíveis de apropriação que podem ser objeto de proteção proprietária (art. 1.313, III) e servir de garantia (art. 1.445 e 1.447). Do texto apresentado pela Comissão de Juristas, contudo, alguns outros destaques devem ser feitos. Em primeiro lugar, a nova redação8 do art. 19 do Código Civil, no capítulo dos direitos de personalidade, para reconhecer o cuidado e proteção de animais de estimação como expressão da afetividade humana. De forma inteligente, buscou-se a projeção humana (e sua proteção) para esta 'relação', ainda que aos animais não se tenha reconhecido a personalidade. Assim, ao invés do complexo debate acerca da personalidade, se pode concluir - ao menos - pela proteção indireta daqueles seres, como destinatários de afeto. Também convém lembrar, que a doutrina e a jurisprudência brasileiras são firmes em reconhecer o afeto como importante eixo do Direito de família. Podemos esperar, talvez, desdobramentos futuros deste reconhecimento, não abordado - por enquanto - no anteprojeto. Além disso, o anteprojeto propõe um novo artigo 91-A9, no Capítulo sobre bens, para conceituar os animais como seres "vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial". Considerando a existência do debate legislativo já instaurado, adequadamente a Comissão de Juristas deixa a discussão sobre a transformação do status legal dos animais para legislação específica e legitimação democrática ampla que o tema merece. Cria, contudo uma verdadeira regra de transição em seus parágrafos: até que exista a lei, devem receber proteção como seres vivos. A esta altura do Século XXI parece óbvio reconhecê-los como seres vivos dignos de proteção especial; a questão toda, contudo, é que alteração do Código Civil seria apenas um dos primeiros passos e seus desdobramentos muitos, em diferentes áreas. Em termos processuais, por exemplo, já existe precedente para lhes reconhece personalidade judiciária10. No Brasil, a verdade é que, mesmo como forma de deboche eleitoral, até o mosquito da dengue (Vitória, 1987) e um macaco (Tião, Rio de Janeiro, 1988) já elegemos prefeitos e um rinoceronte (Cacareco, São Paulo, 1959) e um bode (Ioiô, Fortaleza, 1922), vereadores. E como isso tudo se liga ao Joca? Bem, atualmente o transporte de animais de estimação e assistência emocional, ao contrário do cão guia (Decreto n° 5.904/2006), é uma opção das Companhias aéreas (art. 3º da Portaria ANAC n° 12.307/2023)11. O cão, em razão de suas características (como porte, por exemplo), pode vir a ser transportado na cabine ou no porão de cargas, o que exige uma série de cuidados para que ele não sufoque ou congele. A questão, contudo, é que as condições deste transporte e as medidas para que o animal não sofra ou que lhe seja dado um mínimo de conforto não estão dispostos naquela Portaria; nem as Companhias costumam informar de forma clara, prévia e ostensiva. A legislação se resume a tratar o tema do despacho (separado) e mencionar (art. 11) que nos casos de dano ao animal, o tratamento seria o mesmo dado ao extravio e perda de bagagem! (Resolução ANAC n° 400/2016)12. Para se ter ideia da inadequação, em caso de extravio de bagagem a Companhia aérea deve restituir a bagagem em até 7 dias para voos nacionais (art. 32, §2º) e, em caso de dano, caso o item seja "frágil" pode até mesmo se recusar a indenizar, nos termos do contrato de transporte (art. 34). Não se cogita, é claro, que a Companhia área opere voos exclusivos para os animais (tal como se anunciou recentemente nos EUA, serviço oferecido pela Bark)13, mas que, para além de uma relação de consumo e transporte de "bagagem", lembremos que estão sendo transportados seres vivos, importantes para alguém. __________ 1 Pesquisa realizada em 2021 revela uma tendência neste sentido, inclusive como substituição de prole. Vide aqui, acesso em 30/04/2024. 2 Disponívrel aqui, acesso em 30/04/2024. 3 Disponível aqui, acesso em 30/04/2024. 4 Disponível aqui, acesso em 30/04/2024. 5 Disponível aqui, acesso em 30/004/2024. 6 Disponível aqui. 7 Como menciona o PL 815/2023 para tornar seu ensino obrigatório. Vide aqui. 8 "Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa." 9 "Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial. § 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais. § 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade." 10 Tribunal de Justiça do Paraná, 7ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n° 0059204-56.2020.8.16.0000,  Relator: Juiz Subst. 2ºGrau Marcel Guimarães Rotoli de Macedo, julgado em 14 de setembro de 2021. 11 Vide aqui, acesso 30/04/2024. 12 Vide aqui, acesso 30/04/2024. 13 Disponível aqui, acesso 30/04/2024.
A Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei 10.406/02 (Código Civil) apresentou relatório final, contendo várias propostas de alterações e sistematização do estatuto civil brasileiro. Dentre tais propostas de alteração, consta no Título que sistematiza as normas da Responsabilidade Civil, o seguinte artigo: Art. 933-A. A pessoa jurídica é responsável por danos causados por aqueles que a dirigem ou administram no exercício de suas funções. Parágrafo único. O administrador responde regressivamente nos casos em que agir: no exercício de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; em violação legal ou estatutária. Essa sugestão traz como pano de fundo aspecto da dogmática do Direito Privado que pode ser elucidado por intermédio da Teoria Orgânica (ou organicismo), que fornece um quadro jurídico mais apropriado para explicar e normatizar as relações jurídicas existentes entre os membros dos órgãos sociais, o ente coletivo e terceiros.1 Os entes coletivos atuam por meio de órgãos.2 Ou de outra forma, atuam por intermédio de centros institucionalizados de poderes funcionais com o objetivo de formar e/ou exprimir vontade juridicamente a eles imputável.3 A distinção dos órgãos sociais pode se dá segundo a competência. Tratando especificamente das sociedades, os órgãos de formação de vontade ou deliberativos-internos (tomam decisões expressando a vontade social, mas quase nunca a manifestam para o exterior - não tratam com terceiros: a assembleia de sócios é um exemplo), órgãos de administração e representação (gerem as atividades sociais e presentam as sociedades perante terceiros, a quem fazem e de quem recebem declarações de vontade (a Diretoria, nas companhias, o Administrador, nas Ltdas., são órgãos de representação social. A gestão interna cabe a eles e, quando houver, ao Conselho de Administração) e órgãos de fiscalização ou controle (fiscalizam sobretudo a atuação dos membros do órgão de administração - o Conselho Fiscal).4 Partindo-se da compreensão da pessoa jurídica como realidade jurídica, compreende-se que a administração é exercida pelos órgãos competentes. Esses órgãos não representariam a sociedade, mas a presentariam. Nas palavras de Pontes de Miranda, a pessoa jurídica tem capacidade de direito. Pois que não precisa de representação. Há nestas passagens uma contraposição à Teoria da Representação Legal e Voluntária da pessoa jurídica (mais apropriadas às Teorias da Ficção): quem pratica os atos são os órgãos componentes da estrutura da pessoa jurídica. Órgão é órgão, não é representante voluntário, nem legal.5 Esse pensamento do positivismo jurídico fundamenta a posição majoritária existente na doutrina brasileira que adota o organicismo. No entanto, Pontes de Miranda, também, afirmava se a pessoa ou pessoas que compõem o órgão atuam fora dos limites da competência, o ato não é ato do órgão; portanto, não é ato da pessoa jurídica.6 Essa afirmação poderia nos conduzir em matéria de responsabilidade à defesa da doutrina Ultra Vires Societatis, eximindo a pessoa jurídica de responsabilidade nos casos de gestão fora do seu objeto social. E, aqui, o problema se agravaria: a questão da responsabilidade das pessoas jurídicas pelos atos de seus administradores que causam prejuízos a seus membros ou a terceiros é de fundamental importância, posto que, muito comumente, os gestores não podem suportar os ônus financeiros decorrentes de sua responsabilidade civil, tornando-a, assim, ineficaz.7 Portanto, a teoria organicista é mitigada: considerando que em sede extracontratual a lesão prescinde de um contato prévio entre as partes e que desse modo, as características individuais do lesante são desconhecidas no trafego jurídico, as especificidades da conduta do agente constituem em regra fatos inoponíveis ao lesado, pois "todo indivíduo deve assumir na gestão de sua vivência em sociedade - onde o risco de gerar perigos é constrangedor - a assumpção de uma atitude de cautela, ponderação e razoabilidade".8 tendo-se em mira que o contato prévio ocorre na relação havida entre a sociedade e os seus gestores, em que o elemento fidúcia9 é presente (a nomenclatura dos deveres fiduciários devidos pelos administradores deve-se à analogia histórica entre os Trusts e as sociedades), o dispositivo tratado neste texto e presente na reforma do Código Civil vem para regular as situações em que os gestores praticam atos com violação da lei ou dos atos constitutivos das pessoas jurídicas, eliminando do Direito Privado brasileiro oportunidades para a defesa da Teoria dos Atos Ultra Vires. Nota-se que, em que pese a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do Código Civil pela lei 14.195, de 26/8/21, há intensa discussão, principalmente no Direito das Companhias, sobre a possibilidade ou não de responsabilização da sociedade por atos ilegais praticados por seus gestores. Argumentos contrários à responsabilização das S/As por atos não autorizados por Lei ou estatutos podem ser sintetizados assim: a) numa perspectiva teórica, o gestor que assim o fizesse não atuaria como órgão da companhia; b) terceiros não poderiam invocar o argumento da ignorância da ilicitude do ato do administrador, em virtude do regime de publicidade dos atos constitutivos e posteriores alterações.10 Entretanto, o dispositivo legal proposto pela Comissão de reforma tutela a aparência nas relações e a boa-fé. O ônus da prova da má-fé do terceiro caberá à pessoa jurídica que pretende se eximir da responsabilização. A segurança jurídica é modulada para preservar os interesses da vítima, desse modo. Esse percurso justifica a mitigação do organicismo na reforma do Código Civil, bem como explica a estruturação da cabeça do dispositivo legal. Contudo, o seu parágrafo único merece alguma reflexão. Os órgãos não se confundem com os seus membros orgânicos. A nomenclatura pode até ser coincidente, como ocorre no caso das Sociedades Limitadas. Há o órgão Administrador e há o membro orgânico a ele correlato: o Administrador. Nas companhias, não há essa coincidência nas nomenclaturas: há a Diretoria e há os Diretores. Os últimos, membros orgânicos. Pois, o parágrafo único do dispositivo legal cuida da ação de regresso da pessoa jurídica contra os membros orgânicos. Essa ação é justificada nos casos em que o gestor, utilizando-se de sua discricionariedade, viola, formalmente, disposições legais ou normas privadas constantes dos atos constitutivos dos entes coletivos, ou, em relação ao conteúdo, ofende o objeto ou os interesses sociais. __________ 1 DA ROCHA, Glauco. A teoria do órgão de fato e sua aplicação ao Direito brasileiro. Editora Dialética, 2023. p. 20. 2 Os entes coletivos se valem de órgãos para superar sua incapacidade psíquico-biológica de formar, manifestar, administrar ou fiscalizar sua própria vontade. In DA ROCHA, Glauco. A teoria do órgão de fato e sua aplicação ao Direito brasileiro. Editora Dialética, 2023. p. 20. 3 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de direito comercial. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2024. p. 72. 4 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de direito comercial. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2024. p. 72. 5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. P. 280-286. 6 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. P. 290. 7 EIZIRIK, Nelson, et al. Mercado de capitais: regime jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 645. 8 Rosenvald, Nelson; Netto, Felipe Braga. Responsabilidade Civil Teoria Geral (Portuguese Edition) (p. 810). Editora Foco. Edição do Kindle. 9 Existem deveres fiduciários e obrigações orgânicas próprias, decorrentes de uma relação de confiança (...). In DA ROCHA, Glauco. A teoria do órgão de fato e sua aplicação ao Direito brasileiro. Editora Dialética, 2023. p. 22. 10 EIZIRIK, Nelson, et al. Mercado de capitais: regime jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 645. O diretor só é órgão da sociedade na medida em que atua como tal, ou seja, subordinado ao equacionamento de suas atribuições, dentro dos limites de representação que dimanam da literalidade do objeto social estatutário, e sob o enfoque finalístico do interesse social. E ainda mais. Os poderes concretos para a prática de atos determinados devem ser aferidos por referência às disposições estatutárias, que os graduam e hierarquizam, consoante um ordenamento específico. In GURREIRO, José Alexandre Tavares. Responsabilidade dos Administradores de Sociedades Anônimas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 42 abr-jun.1981, p. 76.
Introdução Tema de atualidade persistente e de difícil solução diz respeito à quantificação dos danos morais, já que pela natureza inestimável de tais danos é impossível a identificação de valores objetivos: Quanto vale um olho perdido, o abalo da honra, a dor pela perda de um ente querido? O presente texto refere como alguns países europeus - França, Itália, Inglaterra, Alemanha - tratam do tema e sua influência em nosso Direito, a partir da adoção do método bifásico. Nesse contexto, o papel do juiz é de primeira linha. As tabelas referenciais - que não se confundem com tabelamentos legislativos - que cada vez mais vêm sendo utilizadas, ou se baseiam em precedentes jurisprudenciais, ou concedem ao juiz um papel preponderante na fixação final da compensação devida.1 A exposição é dividida em duas partes: A primeira identificará a metodologia utilizada para a fixação da compensação por danos extrapatrimoniais em alguns países, circunscrita, porém, aos danos corporais. A segunda parte focará na experiência brasileira. 1. A questão da compensação dos danos corporais no direito comparado Tanto quanto no Brasil, no direito comparado o princípio maior que rege a indenização de danos é o da reparação integral, preconizando-se a reparação/compensação de todo o dano sofrido pela vítima - e nada mais do que o dano -, observando-se todas as peculiaridades do caso concreto. No que concerne aos danos corporais, contudo, a dificuldade consiste na impossibilidade de se afirmar que com uma determinada quantia estaria devidamente compensada a perda de um olho ou a fratura de uma perna. Além disso, deve-se buscar a maior homogeneidade possível frente a outras vítimas de danos semelhantes, pois o sentimento básico de justiça preconiza que a reparação seja justa e completa, mas também que seja igual para todas as vítimas que se encontrem em uma idêntica situação.2 Visando observar essa base principiológica, alguns países adotam um procedimento desdobrado em duas etapas: a primeira é feita mediante a aplicação de uma tabela, elaborada a partir das informações fornecidas pela perícia médica; a segunda exige a subsequente intervenção corretiva do juiz. A primeira visa garantir que situações iguais sejam resolvidas de forma semelhante, enquanto a segunda fase observa a personalização da indenização, à luz das peculiaridades que distinguem o caso individual.3 Sugarman4 denomina horizontal equity a primeira etapa e vertical equity a segunda, mas adverte que nenhuma das duas é de fácil aplicação. A primeira noção indica que danos iguais devem ser compensados de forma igual. Todavia, o autor questiona se a perda da perna tem o mesmo valor para quem é um corredor amador e para quem leva um estilo sedentário de vida, ou a perda de uma mão para quem adora tocar piano comparada com a de quem apenas assiste TV nas horas vagas. Indaga adicionalmente se a forma como o incidente ocorreu (a gravidade da culpa, por exemplo) pode justificar valores diversos para duas pessoas que sofreram as mesmas perdas anatômicas. Na sequência, refere que também a vertical equity, segundo a qual quem sofreu danos mais graves deve receber valores mais elevados, por vezes desperta algumas inquietações: A paraplegia é pior do que a cegueira; perder um braço é pior do que perder uma perna? Entendendo-se que uma tetraplegia é pior do que uma cegueira total, a questão que se coloca é quanto mais? Exposto o panorama geral dos desafios que envolvem o tema no direito estrangeiro, passa-se a analisar a situação de alguns países a respeito da quantificação dos danos corporais, iniciando-se com o direito francês.  1.1 A valoração dos danos corporais no direito francês  O princípio da reparação integral, no direito francês, costuma vir expresso em três axiomas: (i) "tous les préjudices", (ii) "rien que les préjudices", (iii) "les préjudices in concreto" 5, entre nós divulgados por Sanseverino como (I) função compensatória (o dano deve ser integralmente ressarcido), (II) função indenitária (nada mais do que o dano deve ser ressarcido), e (III) função concretizadora (o dano concretamente sofrido pela vítima em particular, com todas as suas peculiaridades, deve ser levado em consideração).6 Para o arbitramento dos danos corporais, o sistema francês adota um procedimento em duas etapas. A primeira envolve a área médica, que identifica o percentual de incapacidade física da vítima. A segunda etapa consiste no arbitramento judicial do valor monetário correspondente àqueles percentuais fixados na primeira. Este cálculo é geralmente feito por meio de um método específico (le calcul au point), consistente em multiplicar a taxa de incapacidade pelo valor do 'ponto' correspondente. O valor de um ponto é variável, aumentando de forma diretamente proporcional ao grau de invalidez e diminuindo à medida que aumenta a idade da vítima.7 As tabelas acima referidas não são obrigatórias nem oficiais, mas são reconhecidas pela comunidade científica8 e pela Cour de Cassation. 1.2 A valoração dos danos corporais no direito italiano O método francês influenciou o modelo italiano, tendo este, porém, aperfeiçoado aquele.9 Também aqui o grau de comprometimento da integridade psicofísica da vítima é medido inicialmente em termos percentuais. Os pontos de incapacidade permanente, graduados de 1 a 100, são então relacionados a valores monetários correspondentes a cada ponto de incapacidade. Esses valores são identificados com base em precedentes jurisprudenciais, aumentando à medida que se eleva o percentual de incapacidade e diminuindo conforme o avanço da idade da vítima. Uma vez estabelecido pelo perito médico o percentual de incapacidade, o juiz - por meio da tabela - consegue obter uma primeira indicação do valor correspondente ao dano corporal. Tal montante poderá, então, ser modificado pelo julgador, atento às circunstâncias particulares do caso concreto.10 Para objetivar tais parâmetros, a jurisprudência italiana acabou dando origem a verdadeiras tabelas de reparação, que são adotadas pelos magistrados de determinadas regiões (a mais difundida é a de Milão, mas também são conhecidas as de Pisa, Gênova e Roma). Nessas tabelas, levam-se em conta os danos biológicos mais recorrentes, combinados com a idade da vítima, além de outros fatores, levados conjuntamente em conta para a quantificação do valor da indenização. 1.3 A valoração dos danos corporais no direito inglês Em 1992, o então Judicial Studies Board, atualmente Judicial College, elaborou um Guidelines for the assessement of general damages in personal injury cases (diretrizes para a avaliação de danos corporais). Trata-se de uma obra de sistematização da jurisprudência que serve de guia para a quantificação dos danos corporais. Identificaram-se os mais diversos tipos de danos, as quantias fixadas e as particularidades do caso que foram levadas em consideração. Os guidelines são periodicamente atualizados e efetivamente orientam os juízes. 1.4 A valoração dos danos corporais no direito alemão Os juízes alemães desfrutam de grande discricionariedade no arbitramento de compensação por danos corporais11, embora a exigência de consideração de casos semelhantes.12 Para facilitar a equidade horizontal, desde o final da década de 1950, a doutrina vem elaborando tabelas, informando os valores e circunstâncias dos casos decididos (chamadas Schmerzensgeldtabellen13). Percebe-se, assim, que enquanto franceses e italianos recorrem a uma metodologia que exige a participação de peritos médicos, em uma primeira fase, assumindo o julgador o protagonismo apenas na segunda fase, os juízes alemães e ingleses não recorrem a perícias médicas para arbitrar o valor indenizatório de lesões corporais14, utilizando-se preferencialmente de tabelas de valores jurisprudenciais envolvendo lesões semelhantes. Passa-se agora a expor a situação brasileira, especialmente quanto ao método bifásico. 2. A valoração dos danos corporais no direito brasileiro. Embora alguns dispositivos do Código Civil forneçam critérios para a fixação dos danos patrimoniais (danos emergentes e lucros cessantes), como é o caso dos arts. 948, 949 e 950, prevendo também o arbitramento de danos imateriais, fato é que o legislador não forneceu critérios para sua fixação, ao contrário do código civil de 1916, que para casos de danos à honra e ofensa à liberdade pessoal previa uma espécie de tarifamento legal indenizatório, ao permitir sua  fixação no dobro do grau máximo da multa criminal correspondente. Além disso, havia algumas situações de tarifamento previstas em leis especiais, como a lei de imprensa (arts. 51 e 52 da lei 5.250/67). O entendimento jurisprudencial atual é no sentido da inconstitucionalidade de normas legais que fixem tetos indenizatórios para os danos imateriais (REsp 877.138/SP), ainda que se admita a sugestão de parâmetros legais, entre valores mínimos e máximos, como ocorreu com a reforma trabalhista de 201715. A partir de 2010, com o início da atuação do min. Paulo Sanseverino no STJ, iniciou-se uma mudança no paradigma do arbitramento das indenizações por danos imateriais. Tendo abordado o tema em sua tese doutoral, Sanseverino sustentou que o sistema do arbitramento da indenização precisava ser uniforme e razoavelmente previsível, embora devendo sopesar as peculiaridades de cada caso concretamente considerado. Sanseverino sugeriu então o arbitramento das indenizações por danos extrapatrimoniais em duas etapas. A etapa inicial teria em vista os montantes estabelecidos em precedentes de casos similares, para preservar o ideal da igualdade de tratamento. Na etapa subsequente, "procede-se à fixação definitiva da indenização, ajustando-se o seu montante às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias". Nessa segunda fase, elementos objetivos e subjetivos de concreção deveriam ser levados em conta pelo julgador, como "gravidade do fato em si e suas consequências para a vítima"; "intensidade do dolo ou grau de culpa do agente"; "eventual participação culposa do ofendido"; "condição econômica do ofensor" e "condições pessoais da vítima".16 Embora a min. Nancy Andrighi, em acórdão proferido em 2006 (REsp 710.879/MG), tenha empregado a lógica desse método, em pleito relacionado a danos morais decorrentes do falecimento de um passageiro de transporte coletivo, foi em 2011 que Sanseverino relatou alguns recursos envolvendo responsabilidade civil por morte da vítima, nos quais aplicou o método bifásico, de forma sistematizada. Posteriormente, aplicou o método em inúmeros outros casos de danos imateriais.17 Esse entendimento foi incorporado à Jurisprudência em teses do STJ (125/19): "A fixação do valor devido a título de indenização por danos morais deve considerar o método bifásico, que conjuga os critérios da valorização das circunstâncias do caso e do interesse jurídico lesado e minimiza eventual arbitrariedade ao se adotar critérios unicamente subjetivos do julgador além de afastar eventual tarifação do dano". A partir do método bifásico, paulatinamente acolhido em outros tribunais brasileiros, algumas ideias de aprimoramento surgem como, por exemplo, a elaboração de uma tabela flexível de indenizações por dano moral, tendo como base decisões antecedentes, como aquela realizada pelo Núcleo de Inovação e Administração Judiciária (ligado à Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul/Ajuris), no ano de 2020. Os dados indicam o tipo de dano, as diversas peculiaridades dos casos, os montantes mínimos e máximos arbitrados, bem como a média e a mediana, permitindo que o julgador compare os precedentes com as peculiaridades do caso sob a sua análise e possa identificar um montante adequado para primeira etapa do método bifásico18. O problema dessa tabela é que ela não é atualizada automaticamente. Para remediar esse problema, já foi proposta a utilização de sistemas informatizados que possam fazer varredura no repertório jurisprudencial, de forma a permitir a permanente atualização da tabela.19 Considerações finais Há consenso no sentido da inviabilidade de um sistema legal que preveja o tarifamento para danos imateriais, especialmente os corporais, porque a uniformidade absoluta é um ideal inalcançável, pois cada situação apresenta suas particularidades. Na legislação brasileira, na ausência de critérios operacionais para o arbitramento dos danos imateriais no Código Civil, o que de melhor temos a esse respeito são os fatores sugeridos pela CLT, art. 223-G, com a redação dada pela reforma de 2017. No projeto de reforma do Código Civil, a redação sugerida para os artigos 944-A e 944-B menciona vários fatores a serem levados em consideração pelo magistrado, inclusive com menção ao método bifásico (art. 944-A, §1º, I e II). Atende-se, assim, o princípio da equidade horizontal na primeira fase do método, a partir dos valores alcançados em casos assemelhados. A segunda fase considera as particularidades do caso concreto, que poderá fazer variar, para mais ou para menos, os valores identificados na etapa prévia. Trata-se, nessa fase, de se respeitar o princípio da equidade vertical, ou seja, a estimação do valor justo e adequado para a fixação dos danos daquela vítima em particular. Ainda que se possa apontar algumas insuficiências do método bifásico,20 que poderá sofrer aprimoramentos pelo trabalho conjunto da doutrina e jurisprudência, certo é que o referido método já trouxe grande contribuição para a tormentosa questão da valoração de danos imateriais, especialmente para permitir uma maior consideração da chamada equidade horizontal, sem descuido das particularidades do caso concreto. __________ 1 LIGÜERRE, Carlos Gómez. Concepto de daño moral. In: POMAR, Fernando Gómez; GARCÍA, Ignacio Marín (Dir.). El daño moral y su cuantificación. 2ª. Ed. Barcelona: Wolters Kluwer, 2017. p.  58/59. 2 DINTILHAC, Jean-Pierre. Préface de la 19e. édition. LE ROY, Max; LE ROY, Jacques-Denis; BIBAL, Frédéric. L'évatuation du prejudice corporel. 20ª ed. Paris: LexisNexis, 2015. p. XIII. 3 ZIVIZ, Patrizia. Il dano non patrimoniale. Evoluzione del sistema risarcitorio. Milano: Giuffrè Editore, 2011. p.  416. 4 SUGARMAN, Stephen D. Tort damages for non-economic losses: Personal injury. In: BUSSANI, Mauro; SEBOK, Anthony J. (Ed.). Comparative Tort Law. Global Perspectives. Cheltenham/UK: Edward Elgar Publ., 2015. p.  332/333. 5 FAIVRE, Yonne Lambert. L'indemnisation des victimes de préjudices non économiques. Les Cahiers de droit. Volume 39. Number 2-3, 1998. p. 540. Viney sintetiza tais axiomas no brocardo "tout le dommage, mais rien que le dommage" - VINEY, Geneviève. Les obligations : la responsabilité, effets. Paris: LGDJ, 1988 (Traité de droit civil, v. 5). p.  81. 6 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Ed. Saraiva. p.  2010. p.  57. 7 GALAND-CARVAL, Suzanne. France. In: MAGNUS, Ulrich (ed.). Unification of Tort Law: Damages. The Hague/Holanda: Kluwer Law International, 2001. p.  90. 8 COMANDÉ, Giovanni. Towards a global model for adjudicating personal injury damages: bridging Europe and the United States. Temple International & Comparative Law Journal. Vol. 19, n. 2, January 2006. p.  286. Disponível aqui . 9 COMANDÉ, Giovanni. Towards a global model for adjudicating personal injury damages: bridging Europe and the United States. Temple International & Comparative Law Journal. Vol. 19, n. 2, January 2006. p.  289. Disponível aqui. 10 COMANDÉ, Giovanni. Doing Away with Inequality in Loss of Enjoyment of Life. Opinio Juris in Comparationis. Vol. 1/2009, paper n. 2. p.  11, bem como MONATERI, Píer Giuseppe. La Responsabilità Civile. Vol. 3 do Trattato di Diritto Civile (Org. por Rodolfo Sacco),  Le Fonti delle Obbligazioni.  Torino: Utet, 1998. p.  486/487. 11 COMANDÉ, Giovanni. Towards a global model for adjudicating personal injury damages: bridging Europe and the United States. Temple International & Comparative Law Journal. Vol. 19, n. 2, January 2006. p.  285. 12 MAGNUS, Ulrich; FEDTKE, Jörg. Non-Pecuniary Loss Under German Law. In: ROGERS, W. V. Horton (ed.). Damages for Non-Pecuniary Loss in a Comparative Perspective. Wien: Springer-Verlag, 2001. p.  117. 13 Como aquela elaborada por Hacks, Wellner, Häcker e Offenloch - Schmerzensgeldbeträge -, que atingiu a 41ª edição em 2023. Ou, ainda, a tabela elaborada por Andreas Slizyk, publicada em obra intitulada Schmerzensgeld-Tabelle, cuja 17ª ed. foi publicada em 2021. Quando um juiz se afasta de tais parâmetros, chama para si um ônus argumentativo maior, para justificar esse afastamento, como afirmou o Bundesgerichtshof (BGH), em decisão citada por MARKESINIS, Basil; COESTER, Michael; ALPA, Guido; ULLSTEIN, Augustus. Compensation for Personal Injury in English, German and Italian Law. A Comparative Outline. Cambridge: Cambridge Un. Press, 2005. p.  67. No mesmo sentido, NEUNER, Jörg. Das Schmerzensgeld. Juristiche Schulung, 2013. p.  577, apud LIGÜERRE, Carlos Gómez. Concepto de daño moral. In: POMAR, Fernando Gómez; GARCÍA, Ignacio Marín (Dir.). El daño moral y su cuantificación. 2ª. Ed. Barcelona: Wolters Kluwer, 2017. p.  59, n. 53. 14 MARTÍN-CASALS, Miquel. Conceptos perjudiciales (heads of damage) en la indemnización por muerte y por lesiones personales en Europa. InDret. Revista para el análisis del derecho. Vol. 2, 2013. p.  8. 15 O STF, ao julgar a ADI n. 6.082/DF, em junho de 2023, fixou o entendimento que "os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e §1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superior aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade." 16 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 283 e 289. 17 STJ, 3a T., REsp 1.152.541/RS, Rel. Min. Paulo Sanseverino, j. 13/9/2011. DJe 21/09/2011 e STJ, 3a T., REsp 1.243.632/RS, Rel. Min. Paulo Sanseverino, j. 11/9/2012. Para outras aplicações, v. REsp n. 1.794.157-SP, j. em em 29/11/2021, AgInt no REsp n. 1.836.086, j. em 25/10/21, e AgInt no Agravo em REsp. n. 1.897.338-DF, j. em 10/08/2020. 18 FACCHINI NETO, Eugênio. O uso da tecnologia para o arbitramento de danos morais: a recente inovação gaúcha. 19 Em 2023, por exemplo, Guilherme A. Pinto da Silva defendeu sua tese de doutoramento (PUC/RS), sob minha orientação, com o título "Iguais, mas diferentes: o uso de tabelas jurisprudenciais desenvolvidas por inteligência artificial para compensação pecuniária dos danos corporais no direito brasileiro", propondo utilizar mecanismos de IA para coletar e incorporar informações aos grupos de caso, por meio de pesquisa jurisprudencial em tempo real. 20 A respeito, v. FAMPA, Daniel Silva; PENNA E SILVA, João Vitor. A quantificação das indenizações por danos morais e o método bifásico na jurisprudência do STJ. In: LEAL, Pastora do Socorro Teixeira; SANTANA, Ágatha Gonçalves. (Orgs.). Responsabilidade Civil no Século XXI e a construção do Direito de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 133-154.
Na coluna anterior, discorremos sobre o conceito de dano econômico puro e afirmamos a importância de se refletir sobre a abrangência da responsabilidade pré-contratual, a operabilidade da eficácia externa de contratos e o âmbito de concretude da boa-fé objetiva e do abuso do direito.  Cremos que os contornos anteriormente firmados também vale para o direito brasileiro a indagação sobre em qual extensão os danos econômicos puros merecem proteção. Em homenagem ao princípio da reparação integral, estudamos com afinco as categorias dos danos emergentes e lucros cessantes, porém essa dicotomia faz muito mais sentido se avançarmos para a compreensão de quais dentre esses danos são verdadeiramente indenizáveis, sem precisarmos recorrer a fluidez da distinção entre vítimas diretas e reflexas (por ricochete).  Um bom exemplo desta zona cinzenta é extraído de decisão do Superior Tribunal de Justiça de 2022, deliberando que o terceiro ofensor está sujeito à eficácia transubjetiva das obrigações, tendo em vista que seu comportamento não pode interferir indevidamente na relação negocial e, com isso, perturbar o normal desempenho da prestação do contrato pelas partes, sob pena de se responsabilizar pelos danos decorrentes de sua conduta. Com esse entendimento, confirmou indenização de R$ 50 mil a um atleta por danos morais.  A indenização deve ser paga por terceiro ofensor que enviou carta desabonadora à empresa patrocinadora do jogador, relatando suposta conduta criminosa do atleta patrocinado, com caráter difamatório e vingativo. Para o Relator, Ministro Bellize "A responsabilização de um terceiro, alheio à relação contratual, decorre da sua não funcionalização sob a perspectiva social da autonomia contratual, incorporando como razão prática a confiança e o desenvolvimento social na conduta daqueles que exercem sua liberdade", acrescentou. Ou seja, há uma ponderação que aparentemente legitimaria a reparação de um dano patrimonial puro. Todavia, temos aqui uma hipótese de violação de direitos da personalidade em face do atleta, por parte do terceiro ofensor. A conduta do terceiro não pode ser caracterizada como exercício de sua liberdade de expressão e sim o exercício abusivo de um direito.1  A despeito da omissão de nosso legislador, nada impede que a doutrina invista nas possibilidades de autocontenção ao próprio pressuposto do dano, em vez de se servir de elementos externos a ele. Aliás, no mínimo em um viés doutrinário, temos uma escala valorativa de tutela às situações existenciais, partindo de um nível máximo (ofensa à vida) até alcançarmos situações mais singelas (ofensa ao nome em cadastros), sem que, contudo, mesmo as que se encontrem na superfície sejam simplesmente desconsideradas aprioristicamente. Todavia, nada se discute sobre uma escala de danos patrimoniais, sobre as quais haja um ônus argumentativo variável conforme se tratem de danos à propriedade ou danos puramente patrimoniais. Por conseguinte, cabe a nossa doutrina sopesar critérios objetivos para a sua admissibilidade, assim como já o faz, para valorar as excludentes da ilicitude (causas de justificação) dignas de proteção.  No particular, do PETL (Principles of European Tort Law) no Art. 2:102, extrai-se que: "Interesses protegidos. (1) O alcance da proteção de um interesse depende de sua natureza; quanto maior seu valor, a precisão de sua definição e sua obviedade, mais extensa é sua proteção. (2) A vida, a integridade física ou mental, a dignidade humana e a liberdade gozam da mais ampla proteção. (3) Ampla proteção é concedida aos direitos de propriedade, incluindo aqueles sobre bens intangíveis". (4) A proteção de interesses económicos puros pode ter um alcance mais limitado. Nesses casos, deve-se atentar especialmente para a proximidade entre o agente e a pessoa ameaçada, ou para o fato de que o agente está ciente do fato de que causará dano, ainda que seus interesses sejam necessariamente valorizados abaixo dos interesses da vítima". Trata-se de uma norma que defere uma escada valorativa não apenas a interesses existenciais, como também aos patrimoniais, lançando o dano econômico puro a uma posição subalterna.  Aliás, em sede do "all or nothing principle", como a própria doutrina abalizada alemã reconhece, é compreensível que a rígida distinção que o BGB realize entre interesses absolutos e interesses desprotegidos não encontre suporte no sistema francês (e também no nosso), pois não existem bens completa e irrestritamente protegidos, assim como inexistem interesses que absolutamente não gozem de qualquer proteção, ou seja, mesmo interesses econômicos puros merecem proteção. Por outro lado, e aqui surge a crítica, parece autoevidente que todo sistema deve contar com uma hierarquia de interesses reconhecidos e protegidos. Se isto é o que normalmente resulta nos direitos fundamentais e no direito penal, o mesmo compete a qualquer ordem privada.2 Para além do exemplo do carro sem combustível que acarreta prejuízos a outros condutores, podemos ilustrar danos econômicos puros com outras situações já aventadas pela doutrina comparatista. C é atleta da equipe de basquete D. Alguns dias antes do final do campeonato, C é atropelado e ferido por um veículo, ficando impossibilitado de jogar por três meses. Na ausência de seu melhor jogador a equipe que estava na liderança do torneio cai para a 4. Colocação. Tal representa um grande prejuízo para a equipe D. Pode ela obter indenização do condutor? A resposta seria positiva se o atropelamento fosse proposital, porém, tratando-se de um episódio de culpa por negligência, a única possibilidade aberta seria aplicar a teoria da eficácia externa das , considerando o atropelador um terceiro ofensor que violou o crédito da equipe perante o jogador. Porém mesmo esta tese teria dificuldades para se impor, pois significaria que o interesse do credor à prestação do devedor sempre prevaleceria sobre a liberdade de atuação do terceiro, que apenas sofreria restrição em sua autonomia para a salvaguarda de posições jurídicas absolutamente protegidas.3  Este exemplo remete ao direito italiano, especificamente ao famoso caso Meroni decidido pela corte di cassazione em 1974, que desempenhou um papel decisivo na interpretação do já referido conceito de "Danos injustos" por responsabilidade extracontratual (artigo 2043 do Código Civil). A história é a de Luigi Meroni e seu acidente em outubro de 1967, a segunda tragédia da história da equipe Turim.4 A sociedade Torino ajuizou ação contra o responsável pelo acidente, pleiteando lesão ao direito de crédito, já que não pode mais exercer o "direito de atuação" do jogador. Ao contrário do que aconteceu no "caso Superga", o Tribunal de Cassação concedeu a equipe uma indenização, alterando a interpretação da lei, estendendo à "injustiça do dano" todo evento em que se infrinja um Interesse que o ordenamento jurídico julgue digno de proteção, independentemente de se tratar de direito absoluto ou relativo.  Episódios semelhante provavelmente teriam o mesmo desfecho no direito francês, sobremodo diante da regra do art. 1.200 na versão em vigor após 2016, segundo a qual "Os terceiros devem respeitar a situação jurídica criada pelo contrato".5 A normatização de um dever genérico e erga omnes de respeito ao crédito alheio, sob pena de responsabilidade extracontratual por danos, traduz compreensão bem diversa a dos ordenamentos da Alemanha e Portugal.  Como já enfatizado, na cláusula geral do art. 186 do Código Civil Brasil, a expressão "violar direito e causar dano a outrem" daria alguma consistência à tutela aquiliana do crédito, na medida em que a elasticidade da previsão normativa não distingue entre direitos absolutos e posições creditícias, mesmo de terceiros.6  Um terceiro grupo de casos em que os danos econômicos puros são controversos, concerne à interrupção do fornecimento de energia, água, comunicações ou outro bem essencial a uma empresa, negligentemente causada por entidades diversas do respectivo fornecedor contratual (v.g. empreiteiro que acidentalmente corte um cabo de alimentação existente sobre a via pública).7 Diante da inexistência de relação contratual entre lesante e lesado caberia responsabilidade extracontratual?  Nos Estados Unidos fatalmente não haveria obrigação de indenizar, aplicando-se a "economic loss rule", que inibe a reparação de danos patrimoniais puros. A regra foi definida de forma bastante simples: é uma doutrina criada pelos tribunais que proíbe a extensão da responsabilidade civil para casos em que um produto danificou apenas a si mesmo e não há danos pessoais ou danos a outras propriedades.8  No direito civil brasileiro, a ilicitude não se impõe por meio de cláusulas específicas que limitam a responsabilidade. Daí que qualquer violação de direito é - em tese e atendidos aos demais pressupostos de responsabilidade -, capaz de gerar danos ressarcíveis. Também ao jurista brasileiro, como ao francês, o problema dos danos puramente patrimoniais lhe é estranho. No direito civil brasileiro, como próprio desse tipo de modelo, o limite à responsabilidade se impõe através da questão da causalidade.9  Uma quarta situação - dentre inúmeras possíveis - concerne ao fato de uma pessoa ter sido ferida em um acidente e impossibilitado de cuidar de si próprio. Em razão da gravidade da situação sua esposa é obrigada a fechar o seu pequeno estabelecimento profissional para cuidar do marido, pleiteando indenização do ofensor pelos lucros cessantes que deixou de obter durante a paralisação da atividade. A peculiaridade aqui reside em que a esposa não pleiteia verbas relacionadas à saúde ou a vida do lesado, porém a paralisação de atividade rentável em razão de socorro ao cônjuge.10  No direito português, o art. 495 do CC explicita indenização devida a determinados terceiros por certos danos patrimoniais que sofram em caso de morte ou lesão corporal de outrem. Trata-se de desvio a um princípio geral pelo qual a titularidade do direito à reparação cabe apenas à pessoa a quem pertence o direito absoluto ou interesse juridicamente protegido ofendido e não a terceiros, ou seja, a sujeitos só mediata, indireta ou reflexamente prejudicados.11 Na ausência de previsão expressa do referido preceito, é controversa a questão de saber se os familiares da vítima fazem jus aos lucros cessantes de que ficaram privados por deixarem de exercer a atividade que até então desenvolviam pela necessidade de cuidarem da vítima. A resposta afirmativa é alicerçada pela jurisprudência no dever legal de socorro que existe entre os cônjuges, acrescentando-se que tais danos estão abrangidos pelo escopo da norma de estimulo à assistência e ao tratamento, sendo que a intervenção familiar supre aquela que poderia ser realizada por terceira pessoa e cujos custos seriam sempre imputáveis ao responsável.12  Já no Código Civil Brasileiro, nenhum dos três dispositivos que tangenciam tais eventos lesivos permitem imediatamente uma pretensão pelo dano patrimonial puro - aqui traduzido nos lucros cessantes decorrentes do socorro à vítima - em face do causador do dano ao seu cônjuge, ascendente ou descendente.13 Contudo, não temos dúvidas que, mesmo diante de uma lacuna legislativa, a solidariedade familiar em situações de urgência é uma exigência especial de proteção que atraí para aquilo que seria em princípio um puro dano econômico de um terceiro, uma distinta qualificação, como um interesse patrimonial merecedor de tutela.  Um quinto e último exemplo, invocado por GRAZIANO: Uma empresa instrui uma agência de publicidade a fazer pedidos substanciais em seu nome, de comerciais na televisão e espaço publicitário em jornais. Antes de aceitar o pedido e executá-lo, agência de publicidade solicita ao seu banco que entre em contato com o banco da empresa e pergunte sobre a solvência da empresa. O banco da empresa afirma que se trata de uma "empresa constituída de forma respeitável" que é "considerada boa para os seus compromissos normais de negócios". A agência de publicidade conta com essa avaliação e faz o pedido às empresas de televisão e jornal. É pessoalmente responsável pelos custos destas encomendas. Antes de pagar a agência de publicidade por seus serviços, a empresa entra em liquidação. Como resultado, a agência de publicidade perde uma quantia considerável de dinheiro. A agência de publicidade pleiteia indenização contra o banco da empresa, alegando que sua resposta foi negligente, criando uma imagem enganosa da situação de crédito de seu cliente.14  Como cediço, na maioria das jurisdições a responsabilidade por perdas econômicas "puras" é admitida apenas em circunstâncias excepcionais. Contudo, outros ordenamentos podem responsabilizar o provedor de informações ou conselhos errôneos perante o usuário final das informações - que é um terceiro - pela perda econômica "pura" sofrida.15 Como síntese, o DCFR (draft common frame of Reference), preconiza no Livro VI. - 2:207 "Perda ao confiar em informações ou conselhos incorretos: O prejuízo causado a uma pessoa como resultado de tomar uma decisão com base razoável em conselhos ou informações incorretas é um dano legalmente relevante se: (a) o conselho ou a informação for fornecido por uma pessoa no exercício de uma profissão ou no exercício de uma atividade comercial; e (b) o provedor sabia ou poderia razoavelmente esperar que soubesse que o destinatário confiaria no conselho ou informação para tomar uma decisão do tipo tomada".16 Perante todo o exposto, vê-se que a regra da não indenizabilidade dos danos patrimoniais em sistemas que delimitam as hipóteses de ilicitude pode ser excepcionada em três situações: a) dano econômico consequente à uma violação a direito absoluto; b) dano puramente patrimonial intencionalmente infligido; c) tutela seletiva de danos econômicos com origem em simples culpa. Se os dois primeiros aspectos são de imediata compreensão e ampla aceitação, o terceiro se dá através de subterfúgios como a ampliação do espectro da responsabilidade contratual, como percebe KOZIOL, para abarcar casos de culpa in contrahendo, pela violação de deveres pré-contratuais de cuidado negocial que acarretam danos puramente patrimoniais. Deveres de longo alcance são forjados entre os parceiros e a sua violação é contabilizada como inadimplemento contratual, ao contrário do que ocorre nos ordenamentos em que a responsabilidade por ofensa às tratativas é de natureza extracontratual. Outro exemplo relevante na prática é o da responsabilidade do prospecto, por parte daquele que elabora um prospecto em relação aos endereçados, que geralmente não são partes contratuais. Contudo, é possível a indenização por danos patrimoniais puros decorrentes de erros, omissões ou informações falsas em conexão com a emissão do documento.17 __________ 1 Turma STJ, 3.6.22, Min. Rel. Marco Aurelio Belizze: Em seu voto, o relator destacou que, de acordo com a teoria do terceiro cúmplice, além de estar sujeito à eficácia transubjetiva das obrigações, o terceiro também não pode se associar a uma das partes para descumprir com a obrigação, pois, nesse caso, ele poderia ser considerado um terceiro cúmplice no inadimplemento daquela prestação. Para Bellizze, uma das hipóteses em que a conduta condenável do terceiro pode gerar sua responsabilização é a chamada "indução interferente ilícita", na qual o terceiro se intromete na relação contratual mediante informações ou conselhos com o intuito de estimular uma das partes a não cumprir com seus deveres contratuais. O magistrado ressalvou, no entanto, que a simples emissão de opinião não configura ato ilícito, "pois a todos é lícito exprimir sua convicção sobre eventuais riscos ou desvios", o que, porém, não pode ser exercido de forma maliciosa, exagerada ou proferida em contrariedade à boa-fé objetiva. 2 KOZIOL, Helmut. Basic Questions of tort law from a comparative perspective. Viena: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 730. 3 FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Forjar o direito. Coimbra: Almedina, 2019. p. 168- 169. 4 A primeira é a de Superga em 1949, em que todos os jogadores do "Grande Torino" perderam a vida em um acidente de avião. A empresa demandou contra a companhia aérea pedindo indenização pelo "direito ao desempenho", mas o Supremo Tribunal negou. O motivo foi que a lei protegia expressamente os Direitos Absolutos (que podem ser reivindicados por todos contra todos) e não os de Crédito (que fazem parte dos Direitos Relativos). 5 Texto introduzido pela Ordonnance n. 2016-131 du 10 février 2016. 6 Art. 186 CC: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". 7 VICENTE, Dario Moura. Direito comparado. Obrigações. Coimbra: Almedina, 2017. v. II, p. 436. O autor traz as posições favoráveis dos tribunais franceses e italiano, com base em cláusulas gerais de responsabilidade extracontratual em oposição ao direito alemão ,dada a funcionalização da responsabilidade extracontratual à tutela de direitos absolutos que impede a imputação ex delicto de danos decorrente da simples lesão a direitos de crédito sem que haja ofensa aos bons costumes. 8 GREEN, Michael; CARDI, Jonathan. Basic questions of tort law from the perspective of the USA. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 462. 9 BRITO, Fábio Leite de Farias. Responsabilidade civil por danos puramente patrimoniais. Anais do VII Encontro Internacional do CONPEDI/BRAGA - Portugal - Direito Civil Contemporâneo. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2022. p. 12. 10 FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Forjar o direito. Coimbra: Almedina, 2019. p. 173. 11 Artigo 495.º (Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal): "1. No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral. 2. Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima. 3. Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural". 12 FERNANDES, Gabriela Páris. Comentários ao Código Civil. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015. v. II, p. 345. 13 "Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido. Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu". 14 GRAZIANO, Thomas Kadner. Comparative tort law: cases, materials and exercises. New York: Routledge, 2018. p. 419. 15 De acordo com o American Law Institute, Restatement of the Law - Torts (2nd), 1979, § 552: "Informações fornecidas negligentemente para a orientação de terceiros. (1) Aquele que, no exercício de seus negócios, profissão ou emprego, ou em qualquer outra transação em que tenha interesse pecuniário, forneça informações falsas para orientação de terceiros em suas transações comerciais, está sujeito à responsabilidade por perdas pecuniárias causados a eles por sua confiança justificável na informação, se ele deixar de exercer cuidado ou competência razoável na obtenção ou comunicação das informações. [.] (2) [.] [A] responsabilidade indicada na Subseção (1) é limitada a perdas sofridas (a) pela pessoa ou um de um grupo limitado de pessoas para cujo benefício e orientação ele pretende fornecer as informações ou sabe que o destinatário pretende fornecê-lo; e (b) confiando nele em uma transação que ele pretende que a informação influencie ou saiba que o destinatário assim pretende ou em uma transação substancialmente similar. [.]". 16 Comentando o referido dispositivo, VON BAR, Christian assevera que "Como princípio geral, não há responsabilidade por aconselhamento, recomendação e informação. [.] O caso é diferente apenas quando o destinatário da informação tem uma causa especial para confiar na exatidão da informação e o provedor da informação sabe ou deveria saber sobre esta situação especial em que o destinatário da informação está colocado. Casos típicos dizem respeito a informações sobre a qualidade de crédito fornecidas por bancos e avaliações ou certificações incorretas. [.]". 2. VON BAR, Christian; CLIVE, Eric (ed.). Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law. Draft Common Frame of Reference (DCFR), Full Edition, v. 4, 2009, p. 3345-3347. 17 KOZIOL, Helmut. Basic Questions of tort law from a comparative perspective. Viena: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 764.
Nunca é por demais enfatizar a realidade econômica que subjaz à responsabilidade Civil. Se pelo ângulo estritamente normativo, a reparação integral de danos é associada à literalidade da regra do art. 944 do Código Civil e a repercussão dos pressupostos específicos de uma certa imputação (subjetiva ou objetiva). Nessa primeira barreira, a maior parte dos danos é contida, tendo as vítimas que suportar os próprios infortúnios.  Parte-se da premissa de que o ordenamento jurídico apenas trasladará danos do demandado ao demandante se houver um nexo de imputação capaz de atribuir o comportamento ao causador do dano, seja ele um ilícito, um dever de custódia ou o risco de uma atividade.  Por outro lado, em um quadro mais amplo e supralegal, indagar sobre a oportunidade de transferir os danos do ofendido ao patrimônio do ofensor, sempre implicou em vislumbrar qual o sentido que cada sistema jurídico concede à ponderação entre dois vetores: a tutela das vítimas pela reparação integral em contraposição ao casum sentit dominus (ou the loss lies where it falls), aforismos que justificam a limitação da responsabilidade e a não conversão de qualquer prejuízo em dano indenizável.  Os aplicadores da responsabilidade civil devem ter em mente que em sociedades democráticas e plurais, liberdades individuais e econômicas caminham de braços dados e uma ameaça constante de pretensões reparatórias seria um elemento decisivo de inibição ao exercício de direitos constitucionalmente assegurados. Como a base da responsabilidade civil não é a caridade, e para que os prejuízos sejam deslocados da vítima para alguém, deve haver algum argumento convincente, em uma ordem de adequação e razoabilidade.  Nesse delicado "malabarismo" entra em cena a figura dos danos econômicos puros. Estudar esse tema não significa trazer à baila um debate doutrinário brasileiro (que aqui é incipiente), porém repercutir uma discussão fundamental em qualquer sistema jurídico sobre as possibilidades e contenções da responsabilidade civil. Em qualquer jurisdição, a reparabilidade da perda econômica pura está no ponto de encontro de questões cruciais, como estas: Esse tipo de interesse deve ser protegido? Se for o caso, por uma questão de política, a recuperação de danos econômicos puros deve ser de domínio principalmente da responsabilidade contratual? Se este não for o caso, até que ponto a responsabilidade extracontratual pode se expandir sem impor ônus excessivos à atividade individual?1  O dano econômico puro pode ser conceituado como dano que não tenha implicado violação de direitos absolutos - propriedade ou direitos da personalidade - porém direitos meramente patrimoniais. O dano verbera na situação patrimonial global de alguém, sem, entretanto, haver a lesão de um bem absolutamente tutelado. A doutrina que se debruça sobre a matéria admite a sua indenizabilidade apenas em caráter excepcional.  No particular, aduz CARNEIRO DA FRADA que em um espaço econômico aberto como o mercado, essa exigência especial "prende-se a necessidade de salvaguardar a liberdade de atuação dos sujeitos, pois esta opõe-se a uma indiscriminada proteção do patrimônio em sede de responsabilidade civil delitual".2  Uma primeira dificuldade é que estamos diante de uma conceituação negativa, pois não nos permite compreender no que verdadeiramente consistem em tais danos. Com efeito, nos ordenamentos onde o termo e´ bem reconhecido, a sua explicação costuma ser: "It is loss without antecedent harm to plaintiff 's person or property". A palavra "puro" desempenha um papel central, pois se houver perda econômica que esteja ligada a danos à pessoa ou propriedade do ofendido, então esta última é chamada de perda econômica consequencial e todo o conjunto de danos será indenizável (a perda econômica será um dano parasitário). A perda é recuperável porque pressupõe a existência de lesões físicas, enquanto a perda econômica pura atinge a carteira da vítima e nada mais.3  Inexiste consenso terminológico e, portanto, encontramos variadas expressões que corresponde a que aqui adotamos, tal como dano patrimonial primário, perda econômica pura (pure economic loss), perda financeira (financial loss) - (bloss, rein ou primaer Vermoegensshaden), pois nunca houve a aceitação de uma definição universal dos danos puramente patrimoniais.  A celeuma incide diretamente no âmbito da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, tendo em vista que em sede de responsabilidade civil obrigacional, seja em outros ordenamentos como no Brasil (art. 389, CC), a obrigação de indenizar reflete o fato jurídico do inadimplemento em sentido amplo, compreendendo a indenização mesmo o dano patrimonial puro, quando se encontre no âmbito da prévia conformação negocial, nos limites da autonomia privada. Todavia, mesmo uma violação a uma situação creditícia não repercute diante de terceiros afetados por danos econômicos puros.  Vários ordenamentos discutem extensamente as justificativas que levam à exclusão da reparação de danos que não se prendem a posições absolutamente protegidas. Quer dizer, o dano econômico puro se contrapõe aos chamados danos patrimoniais "consequentes", que são aqueles em que decorrem de uma prévia violação a um direito absoluto, normalmente objeto de indenização. Contudo, não se trata apenas de um discrímen entre tipos de interesse econômicos concretamente dignos de tutela, porém de uma mais ampla verificação sobre os limites entre a responsabilidade contratual e a extracontratual - e suas particularidades - e a possibilidade de uma responsabilidade pela confiança como terceira via que supra tais lacunas. Discutir o dano patrimonial puro também importa em refletir sobre a abrangência da responsabilidade pré-contratual, a operabilidade da eficácia externa de contratos e o âmbito de concretude da boa-fé objetiva e do abuso do direito.  O direito inglês adota uma atitude geral de reserva perante estes danos. Há o receio de que a responsabilidade possa se estender a uma classe indeterminada de demandantes, em uma quantia indeterminada, colocando um encargo excessivo sobre o demandado.4 Some-se a isto o menor valor que se defere a interesses econômicos em contraposição a direitos da personalidade e ao direito de propriedade, a consideração que muitos danos econômicos puros (pure economic losses) não são custos sociais, porém apenas envolvem a transferência de riqueza de uma parte a outra, o que leva à conclusão que é preferível que esses custos sejam diluídos pela sociedade como um risco econômico em vez de se concentrarem no demandado, exceto se esse riscos foram objeto de alocação contratual, ou mesmo sem haver um contrato, se o causador do dano de alguma maneira assumiu alguma espécie de responsabilidade perante o ofendido.5  De fato, em países das jurisdições do common law, assim como na Alemanha, Itália e Portugal a controvérsia avulta. Especificamente no BGB nasce a primeira oposição organizada do civil law ao sistema francês da cláusula geral do faute (abrangendo ilicitude e culpa). Nesse distinto sistema de responsabilidade civil, surge a objeção ao ressarcimento dos danos puramente patrimoniais, pois a pretensa ilicitude não se apresenta em um ordenamento que demanda a sua configuração somente diante da violação de direito absoluto. Talvez, como ironicamente já se colocou, a "síndrome da comporta" tenha atingido aqueles sistemas jurídicos em que o acesso à compensação seja balizado por diques de contenção, como na Inglaterra, onde as "causes of action" e precedentes vinculantes restringem determinados danos, ou mesmo na referida Alemanha, onde os interesses protegidos são colocados em caixas distintas e no momento em que irrompe um novo interesse, a síndrome é reativada.6  Poderíamos arriscar que, salvo raras exceções,7 nossa displicência diante do assunto8 se justifique por dois aparentes motivos: a um, o Código Civil não distingue entre os diferentes tipos de dano; pelo contrário, nossas cláusulas gerais dos artigos 186 e 927 do Código Civil são generosas, abraçando qualquer espécie de dano patrimonial ou extrapatrimonial, incluindo aí danos patrimoniais puros. Especificamente em termos econômicos, tal como no paradigma do Código Francês, nossa cultura católica não aceita com facilidade a possibilidade de alguém obter lucros às expensas da desgraça alheia ("battre monnaie avec ses larmes" ou "making money out of one's tears"); a dois, como não podemos fugir à universal necessidade de evitar a anárquica reparabilidade de qualquer prejuízo - travestido como dano - a contenção de determinadas pretensões indenizatórias se dá via oblíqua de outros pressupostos da responsabilidade civil, sobremaneira a causalidade.  Ilustrativamente, se por falta de combustível um carro é imobilizado em importante via urbana, provocando um enorme engarrafamento, derivando na perda de compromissos por parte de condutores retidos no trânsito, poderiam estes demandar contra o condutor negligente, seja pela perda de um exame, de um voo ou de possíveis lucros em uma reunião profissional? Em princípio, os tribunais brasileiros afastariam a demanda com base em uma causalidade remota, talvez assumam que conduzir carros em lugares movimentados implique na assunção de um risco, ou, então, caso admitam a reparabilidade, aplicariam a teoria da perda de uma chance para minimizar o montante da indenização.  Em sentido distinto, em sede de direito comparado as respostas seriam mais diretas. Assim, no direito alemão a recusa à obrigação de indenizar resultaria da exegese das três pequenas cláusulas gerais de responsabilidade civil do BGB,9 ou seja, inexistência de violação de norma de proteção ou conduta ofensiva aos bons costumes. O mesmo se extraí do direito inglês, por não se identificar violação de dever de cuidado por parte do ofensor em relação ao ofendido. Idêntico resultado se afere no Código Civil de Portugal, por não haver violação de norma de proteção, ou de um direito absoluto, sequer se cogitar de um abuso do direito.10  Contudo, o dano meramente econômico seria ressarcível se o motorista que ficara de transportar certa pessoa ao respectivo destino não tiver comparecido à hora marcada. Aqui não se aplicam as dificuldades suscitadas pois existe relação contratual entre lesante e lesado. A relação preexistente permite operar uma delimitação do círculo dos potenciais credores de indenização, perante os quais o devedor tem de agir com particular cuidado, designadamente evitando infringir obrigações e empregando em sua execução a diligência necessária.11 __________ 1 BUSSANI, Mauro; SEBOK, Anthony; INFANTINO, Marta. Common Law and Civil Law Perspectives on Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2022. p. 143. 2 FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Forjar o direito. Coimbra: Almedina, 2019. p. 164. 3 BUSSANI, Mauro; SEBOK, Anthony; INFANTINO, Marta. Common Law and Civil Law Perspectives on Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2022. p. 145. 4 "Em muitas situações em que a lei francesa permitiu que terceiros reivindicassem em contrato alheio, a única opção de acordo com a lei inglesa é uma demanda de responsabilidade civil, que está sujeita a regras restritivas sobre a recuperação de danos econômicos puras. Por exemplo, quando há contratos para a venda de mercadorias, ao contrário da França, na Inglaterra o comprador final pode apresentar uma reclamação contratual contra sua contraparte direta e não, contra as partes inferiores da cadeia. A opção de recorrer a uma ação delitiva pode ser mais aparente do que real, porque os tribunais se recusam a impor um dever de cuidado quando isso seria inconsistente com a estrutura contratual estabelecida, prejudicando o princípio da privacidade das partes". ROWAN, Solène. The New French Law of Contract. Oxford: Oxford University Press, 2022. p. 170. 5 OLIPHANT, Ken. Basic Questions of Tort Law. In: KOZIOL, Helmut (ed.). Basic Questions of tort law from a comparative perspective. Viena: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 410. 6 MORÉTEAU, Olivier. Basic Questions of tort law from the perspective of the USA. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 76. 7 FACCHINI NETO, Eugênio. Expandindo as fronteiras da responsabilidade civil: danos puramente econômicos. O autor os conceitua como: "Por dano puramente econômico entende-se aquele prejuízo que não afeta bem tangível de outrem, nem lesiona a integridade psicofísica alheia. Trata-se de dano puramente pecuniário: perda de dinheiro, de vantagem econômica ou aumento de despesas. A expressão "pure" ou "puramente" está a indicar que o tema não abrange aqueles outros danos econômicos que são consequências de um dano a coisas ou à pessoa, como ocorre com a figura semelhante, mas não idêntica, dos lucros cessantes". Revista de Direito Civil Contemporâneo - RDCC, 27, 2021, p. 153. 8 Em texto dedicado a temática no contexto comparativo entre Portugal e outros ordenamentos, Fábio Leite de Farias Brito confessa que "A nossa ideia inicial era a de realizar um estudo comparativo entre a responsabilidade civil extracontratual luso-brasileira, com enfoque sobre a questão dos danos puramente patrimoniais. A ideia, no entanto, foi descartada, pois sob a ótica da responsabilidade civil do direito brasileiro, a questão é praticamente desconhecida". BRITO, Fábio Leite de Farias. Responsabilidade civil por danos puramente patrimoniais. Anais do VII Encontro Internacional do CONPEDI/BRAGA - Portugal - Direito Civil Contemporâneo. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2022. p. 8. 9 O § 823 (1), que responsabiliza aquele que, com dolo ou negligência, lesar ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito alheio; b) o § 823 (2), que responsabiliza quem viole uma disposição legal destinada à proteção de outrem; c) o § 826 que responsabiliza quem, dolosamente, provoque danos a alguém atentando contra os bons costumes. 10 Artigo 483º (Princípio geral) "1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". 11 VICENTE, Dario Moura. Direito comparado. Obrigações. Coimbra: Almedina, 2017. v. II, p. 432.