Responsabilidade civil por exposição de imagens captadas por kiss cam em eventos públicos: O caso do casal filmado no show do Coldplay
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Atualizado em 4 de agosto de 2025 12:38
Um caso curioso ganhou as páginas dos jornais e circulou pela internet nos últimos dias. Durante um show da banda inglesa Coldplay, realizado em Boston, EUA, no dia 16/7/25, a denominada "câmera do beijo" (kiss cam) focalizou um casal que estava na plateia, em aparente situação de romance. Imediatamente, a mulher se virou de costas e o homem se abaixou, ambos com a clara intenção de se esconderem das lentes da kiss cam. Com a imagem projetada no telão, o vocalista da banda Chris Martin falou ao microfone, em tom de brincadeira: "Ou eles estão tendo um caso ou são muito tímidos".1
O casal que aparece na filmagem é Andy Byron e Kristin Cabot, respectivamente CEO e chefe de RH da empresa de tecnologia Astronomer. O problema é que ambos são casados com outras pessoas e claramente não desejavam aparecer nas imagens captadas pela kiss cam. A imagem foi postada nas redes sociais por uma fã e logo viralizou em todo o mundo, gerando toda sorte de críticas à conduta do homem e da mulher, que nitidamente estavam traindo os seus respectivos cônjuges.
Uma das consequências desse episódio é o pedido de demissão de Andy Byron, do cargo de CEO que ocupava na Astronomer. Outra consequência é que sua esposa removeu o sobrenome do marido em seus perfis nas redes sociais. Alguns dias depois, foi noticiado que Kristin Cabot também pediu demissão de seu emprego na companhia Astronomer. Consta também que, após o episódio acima relatado, o vocalista do Coldplay passou a avisar a plateia sobre o uso da kiss cam durante as apresentações.
É indiscutível que Andy Byron e Kristin Cabot tiveram suas vidas completamente reviradas, de uma hora para outra, em virtude da exibição de sua imagem, expondo ao mundo uma situação de dupla infidelidade conjugal. Em poucos dias, ambos perderam os empregos de elevado prestígio e renda, provavelmente destruíram as suas famílias, envolvendo os filhos menores de idade, bem como seus nomes se tornaram motivo de achincalhe por toda parte. O caso ocorrido nos Estados Unidos se sujeita naturalmente às leis norte-americanas, mas suscita interessantes questionamentos à luz do ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à proteção dos direitos da personalidade.
De fato, a proteção ao direito de imagem é prevista diretamente pelo art. 5º da Constituição, entre os direitos e garantias individuais. O inciso V assegura a indenização por dano à imagem, ao lado dos danos morais e materiais. O inciso X é ainda mais detalhado ao decretar a inviolabilidade dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização. Em complemento a essa diretriz constitucional, o art. 20 do Código Civil proíbe a publicação, a exposição ou a utilização não autorizada da imagem da pessoa.
A respeito dos direitos da personalidade, Adriano de Cupis ensina que eles são a medula da personalidade, sem os quais a personalidade restaria esvaziada de sentido e de conteúdo. São direitos essenciais porque, se não existissem, todos os outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse e a pessoa não existiria como tal. Para esse autor, a honra significa tanto o valor íntimo da pessoa quanto a estima dos outros, a consideração social, o bom nome, a boa fama, aspectos esses que constituem a dignidade pessoal. Ademais, o direito à imagem se apresenta como desdobramento do direito ao resguardo, definido como o modo de ser da pessoa, com exclusão do conhecimento sobre aspectos que interessam somente à própria pessoa.2
Por seu turno, Carlos Alberto Bittar concebe os direitos da personalidade como direitos inatos, que constituem a pessoa e, portanto, não se restringem aos que forem reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Na perspectiva desse autor, o direito à imagem se relaciona com o direito de escolher as ocasiões e modos pelos quais a pessoa deseja aparecer em público, tendo como substrato o direito à privacidade. Em uma apreciação mais estrita, envolve o direito à figura humana, de modo a evitar que seja utilizada - e explorada economicamente - sem autorização do titular. O direito à intimidade, em suas diversas designações, conduz à noção de direito ao resguardo, pois se destina a resguardar a personalidade humana contra intromissões alheias em suas esferas de interesses pessoais, familiares e até mesmo negociais. Por sua vez, o direito à honra compreende a reputação que a pessoa diante da coletividade e também o sentimento de estima e consciência sobre a própria dignidade.3
É fora de questão que Andy Byron e Kristin Cabot sofreram considerável abalo moral e patrimonial como decorrência da exposição de sua imagem e de seu envolvimento amoroso para o mundo todo. Não bastasse, o vocalista da banda aproveitou a situação embaraçosa para fazer um gracejo para diversão da plateia. Desse modo, é possível pensar que o casal faz jus a uma indenização pelos prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos em decorrência de sua exposição nos meios de comunicação.
Inicialmente, deve-se destacar que não há ilicitude na captura de imagens dos telespectadores nas plateias de shows em geral, cuja finalidade é envolver o público presente e realçar a energia positiva do entretenimento. Da parte da banda Coldplay, observa-se a intencionalidade de sua conduta, que não teve como finalidade expor os casais em situação irregular, mas antes entreter o público, mostrando a felicidade e descontração das pessoas que se encontravam na plateia.
Por outro lado, não resta dúvida quanto à reprovabilidade da conduta do casal filmado durante o show do Coldplay, uma vez que ambos são casados com outras pessoas e, inclusive, têm filhos pequenos em seus respectivos casamentos. Também é inquestionável que, ao comparecer a um evento público de tamanha amplitude, o casal assumiu o risco de ser visto por outras pessoas, incluindo parentes, amigos e colegas de trabalho, que se encontrassem entre os espectadores. É admissível até que o casal tenha assumido o risco de ser captado aleatoriamente pelas filmagens do próprio show.
Desse modo, embora a causa original do dano seja a exposição do casal pela organização do show do Coldplay, é possível entrever a culpa das vítimas pelas consequências danosas dessa exposição. É dizer que a filmagem por si só não seria causa suficiente para produzir o resultado danoso, o qual só ocorreu em razão da conduta do próprio casal que, encontrando-se em uma situação de dupla infidelidade, compareceu a um evento público, assumindo o risco de ser visto e exposto.
A Justiça brasileira é refratária à pretensão de reparação moral por uso de imagens captadas em espetáculos públicos. Há um caso análogo julgado pelo STJ, de um torcedor que teve sua imagem, capturada em meio à torcida durante uma partida de futebol, posteriormente utilizada pelo clube em uma campanha publicitária. A Corte Superior entendeu que, embora não tenha havido autorização pelo torcedor, "as filmagens não destacam a sua imagem, senão inserida no contexto de uma torcida, juntamente com vários outros torcedores".4 Outro processo julgado pelo STJ trata de ação indenizatória movida por um torcedor filmado em meio a outros torcedores, dentro de um bar nas proximidades do Sport Clube Internacional de Porto Alegre, cujas imagens foram utilizadas posteriormente pelo Clube para fins promocionais. A Corte entendeu que o torcedor sabia que estava sendo filmado e que não é possível identifica-lo nas imagens, razão pela qual não se caracteriza a hipótese de reparação por danos morais.5
A culpa da vítima, muitas vezes designada como "concorrência de culpas", é uma hipótese de interferência causal, uma vez que a conduta da vítima atua sobre a conduta ou atividade inicialmente apontada como causa do dano, produzindo uma diminuição ou até mesmo a exclusão da responsabilidade do ofensor.6 À luz do direito alemão, a hipótese é tratada como "negligência contributiva" da vítima, que colabora para a efetiva produção do dano, bem como para o agravamento ou a não mitigação das consequências da lesão.7
No Direito brasileiro, a interferência causal tem como consequência a redução proporcional do montante indenizatório, nos termos do art. 945 do Código Civil brasileiro, que segue o teor de disposições semelhantes encontradas em outras codificações, a exemplo do Código Civil alemão (§ 254, item 1),8 do francês (art. 1.245-12),9 do italiano (art. 1.227),10 do espanhol e do português (art. 506º e 570º).11 Eventualmente, a culpa da vítima pode assumir o caráter de causa principal, configurando a hipótese designada pela doutrina como "culpa exclusiva da vítima" ou "fato exclusivo da vítima", que elide completamente a responsabilidade daquele figurava inicialmente como causador do dano.12
Como dito, o caso dos espectadores flagrados no show do Coldplay ocorreu nos Estados e se submete à Justiça norte-americana. No sistema brasileiro, uma ação indenizatória com base nesse fato provavelmente seria julgada improcedente por ruptura do nexo de causalidade entre o dano e o fato inicialmente apontado como sua causa. As vítimas, que viviam uma situação de dupla infidelidade conjugal, compareceram a um evento público que sabidamente seria filmado e transmitido pelos meios de comunicação de massa, assumindo o risco de serem vistas e de terem a sua situação exposta para todo o mundo. A interferência causal, nesse caso, assume o papel de culpa exclusiva ou fato exclusivo da vítima, que se mostra suficiente para afastar qualquer responsabilidade dos organizadores do show.
1 Disponível aqui. Acesso em: 22/7/25.
2 CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2ª ed. Tradução de Afonso Celso Furtado Rezende. São Paulo: Quorum, 2008, p. 23-24, p. 121-122 e p. 139-140.
3 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ª ed. atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 4-10, p. 95-96, p. 110-111, p. 133-134.
4 STJ, 3ª Turma, RESP 1.773.593/RS, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, J. 16 jun. 2020, v.u.
5 STJ, RESP 1.827.965/RS, rel. Min. ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, J. 17 set. 2019, decisão monocrática.
6 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações; introdução à responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 620 e 644-647; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte especial. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958. t. XXII: Direito das obrigações e suas espécies, fontes e espécies de obrigações, p. 197; CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2018. p. 352-353; BONVICINI, Eugenio. La responsabilità civile. Milano: Giuffè, 1971. t. I: Responsabilità soggetiva e oggettiva contratuale ed extra contratuale, responsabilità per fatto altrui. p. 410-411.
7 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958. t. I: Versión española y notas de Jayme Santos Briz, p. 197 e 511; JANSEN, Nils. § 254. Mitverantwortlichkeit des Geschädigten. In: Reinhard Zimmermann, Mathias Schmoeckel, Joachim Rückert (Hrsg.). Historisch-kritischer Kommentar zum BGB. Band II: Schuldrecht: Allgemeiner Teil, §§ 241-432. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 656 e 660-661.
8 Seção 254 (Negligência contributiva). (1) Quando a culpa da pessoa lesada contribui para a ocorrência do dano, a responsabilidade pelos danos, bem como a extensão da indemnização a pagar, dependem das circunstâncias, em particular até que ponto o dano é causado principalmente por um ou a outra parte.
9 Article 1.245-12. La responsabilité du producteur peut être réduite ou supprimée, compte tenu de toutes les circonstances, lorsque le dommage est causé conjointement par un défaut du produit et par la faute de la victime ou d'une personne dont la victime est responsable.
10 Art. 1227 Concorso del fatto colposo del creditore. Se il fatto colposo del creditore ha concorso a cagionare il danno, il risarcimento è diminuito secondo la gravità della colpa e l'entità delle conseguenze che ne sono derivate. Il risarcimento non è dovuto per i danni che il creditore avrebbe potuto evitare usando l'ordinaria diligenza (2056 e seguenti).
11 Art. 506º (Colisão de veículos) 1. Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.
2. Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.
Art. 570.º (Culpa do lesado) 1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. 2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.
12 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 1004-1005.