COLUNAS

Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Nelson Rosenvald
O sistema categorial-classificatório da responsabilidade civil é comumente dividido em fato, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. E cada um desses pressupostos dogmáticos tem diferentes fundamentos consoante estejamos a tratar de uma matéria específica da vida em sociedade. Ora, no que diz respeito à responsabilidade civil pela violação dos deveres que decorrem do casamento, levantam-se questões teóricas relacionadas com o requisito da ilicitude que não são fáceis de solucionar.  Este simples enunciado indagatório encerra em si inúmeros problemas: estará em causa uma hipótese de responsabilidade contratual por violação do contrato do casamento ou a natureza própria do contrato em questão afasta a possibilidade de se demandar uma indenização por esta via? Ou, ao invés, será que a responsabilidade se deve qualificar como extracontratual pela violação de direitos de personalidade? É evidente que assumir uma ou outra posição pode ter consequências práticas importantes, como o ônus da prova ou o prazo de prescrição. Entretanto o que pretendemos aqui não é assumir uma posição definitiva em relação a esse problema, mas questionar se existe ou não uma terceira via da ilicitude para estes casos de violação dos deveres conjugais de fidelidade.  E essa terceira via está relacionada com uma eventual ilicitude pelo abuso de direito.   Vamos, assim, debater a seguinte questão: será que, na responsabilidade civil por abuso de direito, a moral pode impor normas de conduta ao dever de fidelidade das pessoas casadas? Bom, em relação à "moral" propriamente dita, rios de tinta já correram quanto à relação entre "Direito e Moral" na história do direito e na filosofia do direito.  Um dos principais problemas está em saber qual interesse deve o Estado colocar em primeiro plano, o interesse pessoal ou o interesse coletivo? Ou seja, quais são os limites impostos pelo Estado às relações entre os indivíduos, qual é a liberdade que pode ser concebida pelo Estado aos indivíduos?  Repare-se que estamos a falar especificamente de interesses que decorrem de um contrato de casamento que é regulado pelo próprio Estado,  e  no direito romano, eram tutelados pela figura da FIDES, uma figura feminina de cabelos branco que era a personificação da confiança, da honra, da credibilidade e da própria fidelidade no casamento.  Os gregos, tais como os romanos, entendiam que o Estado teria de educar a consciência do homem no sentido da moralidade e da justiça. Com Aristóteles1 foi possível assumir essa posição que hoje seria considerada "conservadora".  É verdade que na história do direito e na filosofia do direito começou-se por separar radicalmente a moral do direito.  A moral estaria intimamente ligada ao interior de uma pessoa e à consciência tranquila, enquanto o direito, pelo contrário, estaria relacionado com o exterior, visando a regulamentação das relações entre as pessoas e não poderia ser imposta à força, ao passo que o direito teria mecanismos de coerção que seriam aplicados pelo próprio Estado. Autores da filosofia como Kant2 são associados a esta forma de ver as coisas.  Porém, esta separação radical entre Direito e Moral é atualmente contrariada em importantes autores e pensadores como Jurgen Habermas ou Ronald Dworkin.3  Jurgen Habermas4 tem vindo a insistir nessa relação estreita entre o direito e a moral como pressuposto essencial para o projeto emancipatório da modernidade. A própria religião é dada como um exemplo-paradigma da transmissão da moral e da elevação do bem comum, procurando dar ao ser humano uma maior compreensão de como se deve comportar diante as situações quotidianas da vida em sociedade.   E todos sabemos o que a religião cristã diz acerca do casamento religioso e dos deveres conjugais de fidelidade.  Isto para dizer, em primeiro lugar, que só podemos privilegiar a fidelidade no casamento e conceber a fidelidade como um "bem moral" protegido pelo Estado se privilegiarmos a perspectiva do casal, não em detrimento do indivíduo casado, mas a favor do projeto de vida escolhido pelas pessoas que optaram pelo casamento. Se optaram pelo casamento, e se têm a opção de o dissolver, não há logo à partida um dever moral de cumprir com os seus deveres?  A existência dos valores morais e do bem moral está contida na própria norma legal do casamento. Não é por acaso que Ronald Dworkin5 defende uma leitura moral do texto constitucional, nos termos da qual os conceitos morais aí implícitos deveriam ser aplicados como conceitos jurídicos.  Assim, a constituição seria vista como uma mensagem moral universalista que está na base da produção das normas jurídicas, como será o caso da nossa própria Constituição Federal que reconhece a família como base da sociedade e a união estável entre o homem e a mulher como algo que deve ser privilegiado na proteção do Estado.  Como é evidente, a autonomia e a liberdade de uma pessoa que se compromete com a outra através do casamento fica de alguma forma limitada.  A moral que decorre do casamento deve ser vista como uma moral coletiva, própria dos bons costumes, dotada de uma expressão normativa que possibilita a vida comunitária do casal.  Assim, procura-se um primado ontológico em relação aos interesses conjuntos do casal em prejuízo de certos interesses pessoais ou individuais da pessoa casada.   Como será a família, enquanto "base da sociedade", se os valores morais da fidelidade estiverem corrompidos e banalizados?  É efetivamente um problema saber se há um bem jurídico "moral" que o terceiro adúltero terá de respeitar - e isto antes de olhar para o casamento como um contrato entre duas pessoas ou para o cônjuge lesado como alguém com direitos de personalidade.  Mas é certo que ao existir o dever de fidelidade decorrente do casamento, o Estado tutelou diretamente assuntos privados que dizem respeito às pessoas, conferindo a todas as pessoas que se encontrem nesse estado - no estado civil de casados - uma tutela jurídica de assuntos que também parecem ser morais.  Poderíamos também argumentar que o dever de fidelidade parece ser o dever mais natural que deriva da celebração do casamento. Um "dever natural" que é intrinsecamente moral. Não se trata de um dever paternalista que é imposto pelo Estado, trata-se de um dever que faz sentido desde logo para todos os que se comprometem individualmente e pessoalmente com o casamento e que, na perspectiva da própria sociedade, passa a ser um dos pilares da relação conjugal.  Aqui temos novamente, na perspectiva da sociedade, o primado ontológico dos deveres naturais e morais das pessoas casadas sobre os interesses pessoais do indivíduo casado.  Ora, se as coisas são assim, a moral de uma pessoa casada não pode ser vista como uma opção individual ou pessoal da qual a responsabilidade civil é totalmente alheia. Defender o contrário poderia querer dizer que o Estado autoriza tacitamente a prática de condutas com conteúdo imoral fora do casamento civil, não admitindo a responsabilização dessas condutas imorais, nem vislumbrando quaisquer danos indenizáveis.  Cumpre agora enquadrar o que fica dito no instituto da ilicitude por abuso de direito na responsabilidade civil.  Se definirmos o dever conjugal de fidelidade amplamente, para além de um dever de não praticar relações sexuais com terceiro - estando aqui subjacente a monogamia própria da religião cristã, também há, segundo alguns autores, um dever de fidelidade moral, para salvaguardar aqueles casos em que há ligações íntimas extraconjugais com um terceiro sem, contudo, haver relações sexuais6. No que diz respeito ao dever de "fidelidade física", na verdade, quando uma pessoa viola esse dever, ao ter propriamente relações sexuais com um terceiro fora do casamento, não está, sequer, a exercer um direito legítimo. Pois entende-se que só há abuso de direito quando uma pessoa começa por exercer um direito legítimo. O que parece afastar o abuso de direito do conteúdo estritamente sexual do dever de fidelidade.  Porém, o mesmo já não se poderá dizer em relação ao dever de "FIDELIDADE MORAL".  É um aspecto de ordem moral que impede uma ligação afetiva, ainda que não carnal, de um cônjuge com um terceiro, quando se trata de uma ligação que extravassa os limites axiológicos do moralmente adequado7. São os exemplos em que há uma troca de mensagens de cariz íntimo e sexual através da internet entre uma pessoa casada e um terceiro; ou quem, mais ainda, nas mesmas circunstâncias, faz simulações do ato sexual ou tem confidências de natureza sexual ao ponto de tecer comentários jocosos sobre o desempenho do seu cônjuge.  Em Portugal há mesmo uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, do ano de 1987, que chegou a considerar uma "infidelidade matrimonial de ordem moral" o fato de um dos cônjuges escrever uma peça literária em que se imaginava a ter relações sexuais com uma personagem que não o seu cônjuge.8  Na verdade, o abuso de direito é duvidoso quando um dos cônjuges faz apenas uso da sua imaginação para se relacionar sexualmente com uma "pessoa invisível", satisfazendo assim as suas intenções libidinosas.  O problema é precisamente este: as conversas ou comportamentos de cariz erótico com terceiros, para satisfazer pretensões libidinosas, não caracterizam um adultério, tecnicamente, ao nível da conduta, pela falta de contato físico. Ou seja, não se pode dizer, obviamente, que há práticas sexuais consumadas com um terceiro9.  Ainda assim, o dever de fidelidade terá sempre um conteúdo associado a questões de natureza sexual, mais do que os deveres de respeito e consideração mútuos, esperados entre os cônjuges.  Ao nível da ILICITUDE, se admitíssemos que a "moral do casamento" ou a "moral das pessoas casadas" é um interesse tutelado pela responsabilidade civil e que faz parte do conteúdo axiológico do dever de fidelidade conjugal, nesse caso poderíamos admitir que há uma certa violação de normas morais pela mera troca de fantasias eróticas com um terceiro alheio ao casamento.                Repare-se bem: é desejável que uma pessoa casada possa ter ligações pessoais fora do casamento, com família, amigos e pessoas próximas, com as quais possa ter conversas e contactos sociais de diversa natureza. É também perfeitamente normal que uma pessoa queira conversar ou confidenciar com a família ou com os amigos sobre experiências sexuais, conversas essas, no limite, dinamizadas pela internet em salas de chat do facebook, instagram ou whatsaap. Mas já parece ultrapassar os limites do razoável, por abuso de direito, quando essas conversas de carácter erótico são realizadas com intenções libidinosas.  Temos que admitir que o problema terá que ser solucionado caso a caso, consoante as circunstâncias concretas, considerando que pode não haver uma verdadeira afronta moral ao fundamento valorativo-material do dever de fidelidade.  Tudo o que ficou dito até ao momento poderia ser fundamentado a partir do ordenamento jurídico brasileiro que parece reconhecer a tutela da "moral no casamento" através da disposição do artigo 187 do Código Civil, relativa ao abuso direito, que passo a citar:  "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes"  E quando nos referimos aqui ao bem jurídico "moral no casamento" remetemos igualmente o problema dos "bons costumes".  Aqui temos o cerne da questão: tais padrões são ainda mais exigíveis para uma relação entre duas pessoas que assumiram perante a sociedade um casamento com efeitos pessoais e patrimoniais da mais importante ordem, inclusivamente porque essa relação tem potencial para constituir a base da própria sociedade: a família.                Ora, como já vimos, a moral, e agora também os bons costumes, associados ao casamento, envolvem limites ao exercício da autonomia e da liberdade das pessoas, criando deveres, os tais deveres naturais, que impõe condutas positivas, especialmente o dever de fidelidade, cujo conteúdo pode ser alargado para uma fidelidade moral, ou seja, um dever de fidelidade moral.  Assim, será atentatório à moral e aos bons costumes uma pessoa casada ter conversas sexuais com intenções libidinosas ou relações sexuais virtuais com outra pessoa através da internet. Estão em causa boas práticas que promovem o respeito ao estado civil de casado e a defesa de comportamentos condignos numa relação de família perante terceiros e perante a própria sociedade.  Menezes Cordeiro, em Portugal, defende que os bons costumes surgem como algo exterior que exprime a "moral social", podendo mesmo expressar regras impeditivas de comportamentos10. Parece-nos que é justamente esse o caso.  Enfim, saindo um pouco do pressuposto da ilicitude:  Repare-se que a questão da "moralidade" fica reforçada pelos "danos morais" que podem ser causados às pessoas mais próximas do cônjuge lesante:  Desde logo, o próprio cônjuge lesado, que fica com a "integridade da vida sentimental" ferida por via dos comportamentos imorais do seu cônjuge. Capelo de Sousa11, célebre Professor de Coimbra, já afirmava que o cônjuge tem "integridade da sua vida sentimental e à autodeterminação sobre os sentimentos próprios, que excluiu as outras pessoas de ilicitamente lesarem os seus interesses existentes...".  A posição da jurisprudência majoritária é a de que apenas há dano moral se ficar demonstrada a gravidade do caso, na medida das repercussões lesivas ao equilíbrio psicológico e emocional do cônjuge lesado, considerando também os reflexos sociais à sua própria imagem.  Mas também o projeto de vida familiar e os danos podem estender-se à vida dos filhos do casal. Ninguém pode negar que eles próprios têm uma esfera de interação no plano comunitário que pode ficar alterada com os comportamentos imorais do seu progenitor12. Aqui chegados, à giza dalgumas conclusões, vamos sistematizar algumas ideias:  Podemos observar que o Direito e moral estão hoje mais próximos devido a institutos como a responsabilidade civil por abuso de direito, considerando a menção legal expressa aos "bons costumes".  Nesse diapasão, o espírito axiológico do dever conjugal de fidelidade terá de abranger, para além de uma fidelidade física, uma fidelidade moral. E essa fidelidade moral está fundamentada numa perspectiva comunitária, não em detrimento dos interesses do indivíduo casado, mas a favor do projeto de vida escolhido pelas pessoas que optaram pelo casamento.  A própria Constituição Federal concebe a família como base da sociedade e a união estável entre o homem e a mulher como algo que deve ser privilegiado na proteção do Estado. Pelo que o dever de fidelidade é um "dever natural" intrinsecamente moral, até pela possibilidade de dissolver o casamento a qualquer momento.   No que diz respeito aos atos de natureza sexual propriamente físicos, esses estão afastados do enquadramento do abuso de direito, porque nem sequer representam o exercício de um direito legítimo. E em contrapartida, em relação às conversas ou comportamentos de cariz erótico com terceiros, para satisfazer pretensões libidinosas, mesmo sem um contato físico de natureza sexual, podem muito bem ultrapassar os limites do moralmente razoável, podendo ser considerados ilícitos por abuso de direito.  Uma pessoa adulta que é casada perante a lei vigente, não pode atuar livremente quando às relações afetivas e conversas de natureza sexual com terceiros, precisamente devido ao compromisso legal e moral que assumiu perante a sociedade, com o seu próprio companheiro e com a sua família, interferindo no campo da sua autonomia e liberdade sexual.  Portanto, existem necessariamente normas morais e bons costumes implícitos à natureza do dever de fidelidade no casamento, considerando também os valores cristãos e os valores constitucionais presentes na sociedade e na ordem jurídica brasileira, que impõe normas de comportamento às pessoas casadas.  *Karenina Carvalho Tito é mestre e doutoranda pela Universidade de Coimbra. Associada do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Investigadora colaboradora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora e advogada. __________ 1 ARISTOTE. "La politique". Tradução de J. Tricot. Paris: Vrin, 1982, 1261 a, 20 e ss. 2 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa, Portugal, jan., 2005, pp. 41 a 43. 3 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1985 apud MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Ronald Dworkin - Teórico do direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui, acessado em 15 de agosto de 2021. 4 HABERMAS, J. (1987a). The theory of communicative action. Vol 2. Lifeworld and sistem: A critique of functionalist reason. Boston, Beacon Press, p.87. 5 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1985, p.241. 6 PINHEIRO, Jorge Duarte faz referência na sua tese de doutoramento O núcleo intangível da comunhão conjugal: os deveres conjugais sexuais, p. 719. 7 Cfr.VARELA, João de Matos Antunes. Direito de Família. 5ª ed. Lisboa:Petrony, 1999, v.1, p. 342-343. 8 Acórdão do STJ de 25/05/1987, Boletim do Ministério de Justiça 364, p.866. 9 Ver TITO, Karenina Carvalho., Responsabilidade Civil por "Infidelidade Virtual"? In:Responsabilidade civil e novas tecnologias/Adriano Marteleto Godinho_ [et al]; coordenado por Guilherme Magalhães Martins, Nelson Rosenvald, Indaiatuba, SP; Editora Foco, 2020, p. 331-347. 10 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2013, p 837. Ver também Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves distinguem a boa-fé dos bons costumes, frisando que nem toda infração à boa-fé é ofensa aos bons costumes, mas a conduta imoral atinge a boa-fé. Segundo os doutrinadores, no imaginário coletivo, a boa-fé e os bons costumes não seriam conceitos distintos, porquanto ambos emanam de um anseio ético, convergindo em um mesma linha moral. Por outro lado, se é verdade que ambos tangenciam a linha da moral e se direcionam à satisfação de anseios gerais, os bons costumes, no entanto, surgem como algo exterior, exprimindo a moral social, a ponto de expressar regras impeditivas de comportamentos que não recebem consagração expressa por determinada coletividade, a certo tempo, ao passo que a boa-fé é algo interior ao ordenamento jurídico, que, com base em comportamentos típicos, será sistematizada mediante a criação de esquemas normativos de atuação. (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil. Vol.1, 11.ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 699). 11 SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de. O direito geral da personalidade (reimpressão), Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p.231. 12 Ver TITO, Karenina Carvalho., Responsabilidade Civil por "Infidelidade Virtual"? In:Responsabilidade civil e novas tecnologias/Adriano Marteleto Godinho_ [et al]; coordenado por Guilherme Magalhães Martins, Nelson Rosenvald, Indaiatuba, SP; Editora Foco, 2020, p. 331-347.
Há em curso no mercado de combustíveis do Brasil pelo menos dois movimentos de abertura do setor: i) o abandono da exclusividade da comercialização nos estabelecimentos dos postos de combustíveis, abrindo-se espaço para o delivery; e ii) o fim da tutela regulatória do modelo de bandeiramento, que impõe ao revendedor que ostente a marca de uma distribuidora ("bandeira") a obrigação de adquirir combustíveis exclusivamente daquela fornecedora. Em ambos os casos, a sistemática de tutela do consumidor, nomeadamente o direito à informação e a responsabilidade do fornecedor, tem sido posta como barreira à abertura e à inovação no setor. Há quem defenda que o delivery e a extinção do bandeiramento são ameaças ao sistema de defesa do consumidor, mas, na realidade, utiliza-se dessa retórica para se proteger um status quo que fomenta a concentração de mercado, prejudicando, ao fim e ao cabo, o próprio consumidor. É isso que discutimos nestas breves linhas. O delivery de combustíveis foi trazido ao Brasil pela GOfit, um aplicativo pelo qual o consumidor indica o local onde deseja receber o combustível e um "minicaminhão tanque" se desloca para abastecer o veículo. O modelo de negócio logo encontraria os entraves da regulação exercida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, cujas normas impõem um modelo de fornecimento exclusivamente nos estabelecimentos dos postos de combustíveis, e da própria concorrência, que logo lançou mão de argumentos consumeristas, ambientais e de segurança operacional como fundamentos para frear a iniciativa. Entre liminares, permissões e proibições, a própria ANP viu no delivery uma oportunidade de abertura do mercado e instalou o chamado sandbox regulatório, uma alternativa para que a ultrarregulação do setor não se impusesse de forma tão incisiva à inovação trazida pela empresa. Basicamente, a "caixa de areia" implica na criação de um ambiente específico, destacado do ambiente geral, para o desenvolvimento de um modelo experimental. Lá fora, a prática é bastante difundida. No Reino Unido, precursor da prática, o Financial Conduct Authority a define como uma oportunidade para que negócios testem proposições inovativas no mercado, com consumidores reais. Na Alemanha, a prática intitulada reallabore é regulada pelo Bundesministerium für Wirtschaft und Energie (Ministério da Economia e da Energia), que destaca um duplo viés desse tipo de estratégia: oportunizar a inovação e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar a regulação por meio de uma "aprendizagem regulatória". Assim, autorizada pela ANP e seguindo uma série de regras de segurança, inclusive mais rígidas do que as regras ordinárias, a empresa passou a operar em três bairros da cidade do Rio de Janeiro. Mesmo assim, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro editou uma lei proibindo "a prestação de serviço ao consumidor que tenha como objeto o abastecimento de veículo em local diverso do posto de combustível", sujeitando o infrator a multas e até ao cancelamento da inscrição estadual. Tudo em suposta defesa do consumidor. Como desfecho, o Supremo Tribunal Federal declarou a norma inconstitucional, por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre energia (art. 22, IV, da Constituição Federal), e negando a prevalência do modelo de competência concorrente da União, estados e Distrito Federal para legislar sobre produção e consumo e sobre responsabilidade por dano ao consumidor (art. 24, V e VIII)1. Quanto ao bandeiramento, tudo gira em torno da regra que impõe ao posto de combustível que desejar ostentar a marca de uma distribuidora a exclusividade na aquisição dos produtos daquela distribuidora. A questão é posta pela Resolução ANP nº 41, de 2013, que em seu art. 25, §4º, estabelece que "se o posto revendedor exibir marca comercial de distribuidor em suas instalações, o revendedor deverá adquirir, armazenar e comercializar somente combustível fornecido pelo distribuidor do qual exiba a marca comercial". Pela norma, ao decidir ostentar uma "bandeira", o posto deve adquirir produtos exclusivamente daquele distribuidor. Também aqui a defesa do consumidor, notadamente o direito à informação, está na base da regra, mesmo porque inserida em dispositivo cujo caput preleciona que "o revendedor varejista de combustíveis automotivos deverá informar ao consumidor, de forma clara e ostensiva, a origem do combustível automotivo comercializado". Em audiência pública, a ANP registrou que a regra de exclusividade concentra poderes em poucos players do mercado e que o abandono dessa regra não enfraqueceria a proteção do consumidor, pois viria acompanhada de reforços informacionais e de responsabilidade do fornecedor. Trata-se, aliás, de orientação mais consentânea com uma lógica de abertura de mercado e com a própria liberdade contratual que está na base das relações privadas e principalmente das relações empresariais. Esses dois aspectos entraram no radar da ANP, que caminha no sentido de uma flexibilização regulatória que permitirá o delivery e extinguirá a tutela regulatória da regra de bandeiramento. Aliás, antecipando esse movimento de abertura, o Governo Federal acaba de editar (em 11 de agosto de 2021) Medida Provisória autorizando os postos a comercializarem combustíveis de outras marcas e a comprarem etanol diretamente dos produtores, justificando tal medida na ampliação da concorrência e no consequente favorecimento do consumidor, permanecendo intacto o seu direito à informação. Ambos os tópicos trazem consigo uma primeira reflexão: a quem interessa a abertura de qualquer mercado? A história mostra que modelos de negócio disruptivos, com os efeitos concorrenciais que lhes são peculiares, normalmente vêm acompanhados de ganhos para o mercado de consumo e, essencialmente, para os próprios consumidores, aprimorando os produtos e serviços colocados ao seu alcance, inclusive com vantagens nos preços. Assim, a inovação é um componente essencial ao desenvolvimento do mercado, que interessa a todos os agentes econômicos, inclusive aos consumidores. Como segunda reflexão, deve-se indagar se a inovação seria incompatível com a sistemática de defesa do consumidor, principalmente no tocante ao direito à informação, à proteção da vida, saúde e segurança e à responsabilidade do fornecedor. Obviamente, não. O Código de Defesa do Consumidor oferece plena proteção inclusive quando se tratar de produto ou serviço potencialmente perigoso ou nocivo. Aliás, perceba-se que, a teor do art. 9º do CDC, a periculosidade ou nocividade do produto ou serviço é contrabalanceada pela ênfase no dever de informação imposto ao fornecedor. A única proibição apriorística fica por conta do fornecimento de produtos ou serviços de alta periculosidade (art. 10), assim considerados aqueles cuja periculosidade ou nocividade extrapole a normalidade e a previsibilidade, o que definitivamente não ocorre no fornecimento de combustíveis fora do posto, pois acompanhado de regras de segurança ainda mais rígidas do que as normalmente seguidas, estabelecidas pela própria ANP como condicionantes do sandbox. Assim, tratando-se de produto ou serviço de periculosidade inerente ou latente, não há falar-se em proibição prévia da atividade, mas em reforço da estrutura normativa de tutela pelas vias da informação ao consumidor e da responsabilidade do fornecedor. Além disso, o CDC abre inegável espaço para a inovação ao consagrar o risco de desenvolvimento como eximente de responsabilidade do fornecedor. Sobre o tema, Paulo Roque Khouri consigna que o risco de desenvolvimento acaba se impondo à coletividade, "que tem inegáveis ganhos com o desenvolvimento tecnológico"2. Essa abertura à inovação é mais um mérito do CDC e a leitura que a doutrina faz sobre o tema se coaduna com um modelo protecionista, mas não paternalista. De todo modo, principalmente em modelos de negócio disruptivos (não apenas inovadores), o desenvolvimento deve vir acompanhado do reforço das estruturas normativas de tutela do consumidor. O que não se admite é que a retórica da tutela consumerista se coloque como barreira a um movimento benéfico ao consumidor e ao mercado. Não se pode, assim, realizar uma espécie de controle prévio de adequação de um modelo de negócio à tutela do consumidor em abstrato, pois isso implicaria paternalismo incompatível com a lógica de livre mercado. É principalmente nas situações da vida que a proteção do consumidor se impõe, não como uma falácia de tutela preventiva. No caso do delivery de combustíveis, sobreleva-se a importância do regime de responsabilização do fornecedor pelo fato do produto ou do serviço; no caso do fim do bandeiramento, é o direito à informação que merecerá reforço. E tudo isso é plenamente concretizável sem que se altere qualquer nuance do Código ou da sua filosofia protetiva. Agora, com o já decretado fim da tutela regulatória do bandeiramento pelo Governo Federal, é de se esperar uma reação das grandes distribuidoras e certamente o argumento da defesa do consumidor será utilizado. Mas não se pode admitir que essa retórica seja manejada contra o próprio consumidor. A disciplina protetiva não pode funcionar como um filtro antecipado de validação de novos modelos de negócio, principalmente daqueles mais disruptivos. Concretiza-se, sim, na prática das relações de consumo. Havendo risco de confusão, haverá reforço informacional; havendo lesão ao consumidor imputável ao fornecedor, haverá o dever de indenizar, e isso permanece intacto tanto para o delivery de combustíveis quanto para a realidade "pós-bandeiramento".    *Adisson Leal é coordenador da filial Brasília do escritório Magro Advogados. Doutorando em Direito Civil pela USP. Professor e coordenador do curso de Direito da Universidade Católica de Brasília. Foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München. Foi Assessor de ministro do STF. **Alberto Coimbra é sócio do escritório Magro Advogados, coordenador das equipes de contencioso cível, precatórios/creditórios e regulatório. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. __________ 1 Trecho da ementa: "A legislação estadual impugnada com o escopo de coibir a atividade de "delivery de gasolina e etanol" exorbitou sua competência e usurpou competência privativa da União para legislar sobre energia. A matéria das normas impugnadas é regulada pela lei 9.478/1997, pela qual se definem normas gerais sobre a política energética nacional e pela resolução 41/2013 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, na qual estabelecidos os requisitos necessários à autorização para o exercício da atividade de revenda varejista de combustíveis automotivos. É inconstitucional norma estadual pela qual usurpada a competência privativa da União para legislar sobre energia e por ela estabelecida regulamentação paralela e contraposta à legislação federal existente, por ofensa ao que se dispõe no inc. IV do art. 22 da Constituição da República. Precedentes." (ADI 6580, rel. Min. Cármen Lúcia, julgada em  12 de maio de 2021). 2 Paulo Roque Khouri, Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo, 6 ed., Editora Atlas, ebook.
O Direito de Família é formado por uma série de deveres previstos no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.1 Dois deveres muito recorrentes em sede de ações de reparação de danos imateriais guardam relação com o descumprimento, por exemplo, do dever de fidelidade recíproca e com o abandono afetivo. A análise da reparação, entendemos e vamos desenvolver nestas breves linhas, deve ser iniciada e finalizada à luz da dignidade do ofendido. Vejamos. Seja a causa de pedir o descumprimento do dever de fidelidade recíproca ou a prática do abandono afetivo, e quando se analisa a condição da vítima, ponderando os interesses dos pais, dos filhos e dos cônjuges, é possível perceber que a prática daqueles atos se trata de verdadeira negação da condição de cônjuge ou ainda, negação à condição de um (a) filho (a). Há sim pura exclusão de sua condição humana de cônjuge e de filho (a), em flagrante ofensa objetiva à dignidade da pessoa humana enquanto ser integrante da família, haja vista que sua condição e desenvolvimento da personalidade, no que diz respeito à família restam, de forma involuntária (portanto, causada por terceiro), interrompida. É análise que deve ser feita, por nossa conta e risco, anterior ao Direito pois, como ensinam Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald: "A dignidade é um valor espiritual e moral da pessoa, que constitui dado prévio ao direito. Trata-se de qualidade intrínseca da pessoa humana".2 A dignidade da pessoa humana, o seu estudo, se por um lado se torna tarefa complexa, deve sempre ser analisada enquanto princípio inserido em determinado contexto jurídico. Falar das relações entre seres humanos a partir de condutas de um deles, pode, simples, mas lesivamente, apagar a situação existencial do (a) outro (a), pertencente à família daquele (a). E a família não pode ser palco de atuações neste nível de depreciação da pessoa; muito peço contrário. De sorte que devemos visualizar a pessoa humana com base na Constituição Federal, projetando o seu valor enquanto ser humano integrante da família e que, por conduta de terceiro (a), vê-se encerrada materialmente de sua própria origem ou de um projeto de vida institucionalizado pelo casamento. Aqui então surge um interesse constitucionalmente protegido para fins de reparação por danos extrapatrimoniais. A traição e o abandono afetivo configuram condutas que violam interesses legítimos, como a consideração enquanto ser humano que existe para e pela família. A dignidade humana tem relação direta com o direito civil-constitucional, ou seja, com a obtenção da "[...] máxima realização dos valores constitucionais no campo das relações privadas".3 Na voz de Daniela Courtes Lutzty, a seu turno, o princípio da dignidade da pessoa humana é dotado de eficácia que vincula também os particulares em suas relações.4 Entendemos ocorrer a negação à condição do cônjuge e de filho (a) quando da violação dos deveres aqui referidos. De sorte que antes do que violar textos jurídicos, ocorre verdadeira afronta à dignidade da pessoa humana enquanto ser integrante de uma família, gerando a injustiça. Orlando Gomes ensina que os elementos constitutivos do ato ilícito se configuram na análise do elemento objetivo ou material: o dano, e o elemento subjetivo: a culpa, ligados pelo necessário nexo de causalidade.5 A responsabilidade, no que nos toca a estas linhas, resta caracterizada por uma conduta violadora (antijurídica, em um primeiro momento), do dever de criação dos filhos ou de fidelidade recíproca, sendo que tal conduta é sim negligente (abandono) para o primeiro caso e imprudente ou, dependendo, até dolosa para o segundo (infidelidade), restando caracterizada a culpa (stricto ou lato senso, a depender da análise), sendo que o dano reside justamente pelo nexo daquelas condutas, no sentido de se anular a condição de cônjuge ou de filho (a), afrontando objetivamente a dignidade da pessoa humana, surgindo a ilicitude, com a negação existencial daquelas pessoas. Quando escrevemos a expressão textos jurídicos encontramos inspiração (por nossa conta e risco), na doutrina de Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior, quando ensinam sobre a teoria geral do direito privado, pois nem sempre "[...] o sistema normativo conduz, necessariamente, à justiça individual".6 É que: "[...] o sistema normativo pode conter textos que conduzam à injustiça ou que possam gerar consequências injustas e, então, é necessário ir além do texto, em busca da Justiça".7 Miguel Reale pondera que a regularidade das condutas dos seres humanos, em termos dos seus comportamentos, facilita a edição de normas reguladoras e sancionadoras de suas condutas, bem como suas consequências sobre eventual violação.8 Destas lições, nos parece claro que a Constituição e a lei não primam pela violação dos deveres aqui referidos, muito pelo contrário. Por analogia aos ensinamentos supra referidos é que vemos a previsão constitucional e infraconstitucional9 quanto à proteção da família, de seus indivíduos,10 e da reparação por danos imateriais11 e que, em relação ao integrante da família, tal reparação vem, em um primeiro momento, como função de promoção de sua dignidade e, caso violada, como função reparatória. Assim, parte-se da dignidade da pessoa humana para (ou além dos) textos jurídicos, em sede da reparação ora em análise. Os textos normativos vão dar efetividade à proteção da pessoa humana. Parte-se da tutela da pessoa humana para os textos; e não contrário! E quando escrevemos para além das leis, das normas, não estamos fugindo dos textos escritos, mas, sim, os incluindo na tutela da pessoa humana. Seria pela lei ou para a pessoa a promoção da dignidade humana? Se se entender pelo primeiro, os códigos valem mais; se se entender pelo segundo, os códigos cumprirão sua missão constitucional de proteção dos integrantes da família (de sua interferência lesiva nos direitos da personalidade do outro), resultando então o nexo causal entre a conduta e o dano imaterial. Ora, será que o pai ou a mãe não sabem que são pai ou mãe? Que tem a responsabilidade por e para um (a) filho? Da mesma forma, o cônjuge não sabe de sua relação para seu/sua parceiro (a)? Claro que sabem. E dependendo da forma como agem, fazem negar a condição existencial daquelas pessoas. Da premissa final acima é que mais do que a antijuridicidade (avançando para o campo da ilicitude), ganha relevo a conduta culposa. Mas, objetivamente, e com destaque nas lições de Aguiar Dias, acerca da culpa, diz esta se tratar de "[...] elemento substancial do procedimento perigoso, animado de consciência vontade".12 E, no particular, envolvendo a traição, por exemplo, muitos daqueles fatos ocorrem às escuras, às escondidas, até que descobertos. Quem age assim, age deliberadamente, pois tem a liberdade de trair, mas, por outro lado, não tem a coragem de assumir a conduta. Pietro Pierlingieri observa que a relação jurídica de Direito de Família também é dotada de prestações e contraprestações para além das questões patrimoniais, ou seja, releva os comportamentos, a lealdade, ponderando que: "Seria necessário estuda-las sob o perfil seja da exigibilidade seja da coercibilidade, em maneira diversa da qual normalmente tais problemáticas foram estudadas referentemente às obrigações".13 Há por aí alguém - filho (a); cônjuge; que anda por este mundo, excluído da vida de um pai ou mãe, de seu cônjuge, sentindo-se humilhado em, por exemplo, nas rodas e conversas com amigos, com familiares, no trabalho, na escola (e isso independe da idade), falar de tal fato. Depara-se com verdadeira humilhação com sua condição de integrante familiar anulada. Certamente não falará de tais fatos. A conduta apaga a realização pessoal do filho ou do cônjuge. Contudo, independentemente da intenção (ou ausência de intenção do autor da conduta), primamos para um olhar humano à vítima da mencionada conduta. A dor ou humilhação será critério para a quantificação do dano. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka aponta para um hiato de cerca de cem anos entre o Código Beviláqua e o Código Miguel Reale, que então justificou modificações sensíveis na legislação relativa à Responsabilidade Civil.14 E a dignidade da pessoa, reforçamos, deve ser sempre objeto de análise e de proteção, em uma escala evolutiva. Portanto, da família para o Direito de Família enquanto o ser humano digno de respeito e consideração, vindo da Constituição para os Códigos a efetividade e promoção à dignidade. Não devemos esquecer, como já ensinou Vicente Ráo, que os casos concretos devem ser tratados com humanidade, benignidade, através da equidade, com objetivo de correção de fórmulas rígidas, gerais, utilizadas pelas normas jurídicas.15 E havendo a injustiça do dano, Maria Celina Bodin de Moraes pondera que: [...] o que torna hoje preferível proteger a vítima em lugar do lesante, é justamente o entendimento (ou, talvez, o sentimento de consciência de nossa coletividade de que a vítima sofreu injustamente; por isso, merece ser reparada.16 Tal tema, em pleno ano de 2021, não deveria ser tão tormentoso, mas, ao o que tudo indica, ainda o é, continuando a abrir espaços ao debate. Afinal, como leciona Pietro Perlingieri, a norma não está isolada, exercendo "[...] a sua função unida ao ordenamento e o seu significado muda com o dinamismo do ordenamento o qual pertence".17 *Felipe Cunha de Almeida é mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e Processual Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor universitário e de diversos cursos de pós-graduação, advogado sênior, parecerista e palestrante, autor de diversos livros, capítulos de livros e artigos. Referências BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2021. ______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. DF, 17 jul. 1990. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2021. ________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2021. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 12. ed. DIAS, Rui Berford (atual). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2015. GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. 1. ed. BRITO, Edvaldo (atual).  Rio de Janeiro: Forense, 2011. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta: evolução de fundamentos e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade. In: Ensaios sobre responsabilidade civil nas pós-modernidade. 1. ed. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; FALAVIGNA, Maria Clara Osuna Diaz (org). Porto Alegre: Magister, 2007. LUTZKY, Daniela Courtes. A reparação de danos imateriais como direito fundamental. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Processo, 2017. NERY, Rosa Maria de Andrade. NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: teoria geral do direito privado. v. I. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. DE CICCO, Maria Cristina (trad). Rio de Janeiro: Renovar, 2007. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. REALE, Miguel Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013. __________ 1 Sobre o tema, convidamos para a seguinte leitura: ALMEIDA, Felipe Cunha de. Normatividade e interação entre os deveres pessoais do direito de família, as leis imperfeitas e a responsabilidade civil. In: Revisa Eletrônica da ESA OAB/RS, v. 08, n.º 2 (2020). Porto Alegre: ESA/RS, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 jul. 2021. 2 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 20. 3 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 06. 4 LUTZKY, Daniela Courtes. A reparação de danos imateriais como direito fundamental. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 250. 5 GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. 1. ed. BRITO, Edvaldo (atual).  Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 63. 6 NERY, Rosa Maria de Andrade. NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: teoria geral do direito privado. v. I. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 12. 7 NERY, Rosa Maria de Andrade. NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil: teoria geral do direito privado. v. I. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 12. 8 REALE, Miguel Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 93. 9 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: [...]. IV - sustento, guarda e educação dos filhos; [...]. 10 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  [...]. Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. [...] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. 11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...]. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 12 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 12. ed. DIAS, Rui Berford (atual). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 479. 13 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. DE CICCO, Maria Cristina (trad). Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 252-253. 14 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta: evolução de fundamentos e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade. In: Ensaios sobre responsabilidade civil nas pós-modernidade. 1. ed. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; FALAVIGNA, Maria Clara Osuna Diaz (org). Porto Alegre: Magister, 2007, p. 156. 15 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 108. 16 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 180. 17 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. DE CICCO, Maria Cristina (trad). Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 72.
Pode-se dizer que a reparação pelos chamados danos morais é um dos temas mais frequentes no Judiciário brasileiro. A título de exemplo, a simples pesquisa pela expressão no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul remete a mais de 450 mil processos entre os anos de 2021 e 1965.   O estudo do tema apresenta complexidades desde o seu começo com a difícil tarefa de conceituação. Essa dificuldade se reflete no maior obstáculo enfrentado pelos magistrados, advogados e acadêmicos, atribuir, de modo fundamentado, um valor adequado à lesão de âmbito moral. Em busca de uma solução, alguns países (como Reino Unido e Itália) adotaram diferentes sistemas de tabelamento. O tema é de especial interesse, haja vista os dois anos de estudo no mestrado dedicados à temática que, posteriormente, fora publicado em formato de livro1. Ao contrário do que se pode pensar, o tabelamento do dano moral não é uma novidade no ordenamento jurídico pátrio. Neste ponto, ao contrário do caminho de prosperidade seguido pela técnica tabelar adotada no direito italiano, no Brasil, ao longo das décadas, todas as tentativas de se estabelecer uma espécie de tabelamento foram refutadas seja pela doutrina, seja pela jurisprudência. Sendo que, um dos principais motivos para essa rejeição é que em basicamente todas as propostas, inclusive na mais recente (com o art. 223-G da CLT), tentou-se fixar um limite ao valor que a indenização poderia alcançar. Critica-se que, até então, todas as tentativas brasileiras partiram do Poder Legislativo. Já na Itália, a título elucidativo, a iniciativa partiu dos chamados Observatórios de Justiça (um rol de estudiosos formado por advogados, juízes, médicos-legistas e professores universitários), uma espécie de grupo vinculado ao Tribunal de cada região. Esse pequeno, mas não tanto, detalhe fez toda diferença. O sucesso da técnica italiana passa pelo fato de que os sujeitos responsáveis pelo seu desenvolvimento foram e ainda são (considerando a constante evolução) todos indivíduos com formação jurídica, anos de estudos e dedicação sobre o tema. Nesse sentido, muito relevante a notícia sobre a ferramenta que vem sendo desenvolvida pela Comissão de Inovação do TJRS (INOVAJUS) e pela Escola Superior da Magistratura da AJURIS, em parceria com a PUCRS. A ferramenta chamada Tabela de Parâmetros do Dano Moral, utilizada há cerca de 6 meses pelos Juízes e Desembargadores gaúchos, representa um novo capítulo na temática. Atenta-se que, pela primeira vez, no Brasil, a iniciativa para desenvolver o tema do tabelamento do dano moral partiu de um grupo de julgadores, ou seja, pessoas que diariamente lidam com o tema e se deparam com as dificuldades que ele apresenta. Algo mais próximo do que ocorreu na Itália. Interessante destacar o início do tema na Itália que, curiosamente, não se deu em virtude do dano moral, mas sim por conta de outro dano extrapatrimonial, o dano biológico. A mesma dificuldade que hoje enfrentamos ao tentar mensurar o dano moral os juristas italianos enfrentaram quanto ao biológico. Isso não significa que, em países conhecidos por adotarem tabelas orientativas, como o caso da Itália e Inglaterra, o tema seja tratado como resolvido. Pelo contrário, em ambos os países a matéria segue sendo objeto de debates, discussões e atualizações. Em busca de uma solução para tal dificuldade, na Itália, no começo dos anos noventa, os membros dos Observatórios de Justiças de alguns Tribunais elaboraram as primeiras tabelas. Maior destaque se deve ao instrumento desenvolvido pelo Observatório do Tribunal de Milão, que hoje é adotada inclusive pela Corte de Cassação. Inicialmente desenvolvido para o cálculo do dano biológico, o instrumento ganhou tamanha relevância que, com julgamento n. 394, seção III, de 2 de janeiro de 2007, a Corte de Cassação adotou a posição de que a sua utilidade também abrangeria o cálculo dos danos morais. Ainda que seja intitulada de "tabela", a técnica não se restringe a um aglomerado de linhas e colunas preenchidas por números. Em especial a tabela milanesa apresenta uma série de detalhamentos e explicações acerca de diferentes situações que podem ensejar o dano moral. Assim, tem-se uma harmonia entre valores de condenações anteriores, indicadores gráficos a serem considerados conforme a idade, o gênero e outras características da vítima, bem como orientações de como identificar os graus de gravidade de diferentes espécies de ofensas (como, por exemplo, uma parte própria destinada ao estudo do dano moral decorrente da difamação via imprensa). Percebe-se que o instrumento estrangeiro é incomparável ao que havia sido proposto até então no Brasil a título de tabelamento de danos. Até porque, na Itália os Magistrados não estão vinculados ao uso da tabela, não há uma lei que imponha a sua adoção, esta consiste apenas numa ferramenta que está disponível, que pode ou não ser utilizada. Soma-se a isso a inexistência de um valor teto atribuído à indenização, ou seja, o valor máximo estabelecido na tabela não consiste em algo intransponível, podendo o julgador, no caso concreto, romper esta barreira com a devida fundamentação. Como visto, as tentativas brasileiras não apresentavam tal possibilidade. Por esse cenário que é possível ter certo nível de otimismo com o que vem sendo desenvolvido no âmbito do Tribunal de Justiça gaúcho, pois pela primeira vez a iniciativa não parte do legislativo, mas sim de quem enfrenta diariamente os obstáculos da matéria. Um dos responsáveis pelo projeto é o Desembargador e Professor Eugênio Facchini Neto, reconhecido nacionalmente pelo seu estudo no âmbito do Direito Comparado e da responsabilidade civil. Ao relatar a construção da ferramenta, em artigo publicado no final de 20202, o Desembargador menciona uma situação que há anos é objeto de crítica, o costume brasileiro de nomear como dano moral todo e qualquer dano não patrimonial. Por conta disso, ao realizarem a pesquisa dos acórdãos que comporiam a ferramenta, o termo pesquisado foi "dano moral", a despeito de se tratar muitas vezes de dano estético, biológico ou qualquer outra espécie do gênero dano não patrimonial. Uma mudança de cultura não ocorre de imediato, custa tempo e esforço daqueles que desejam implementá-la. Aqui, registra-se mais uma vez a crítica a esse tratamento equivocado feito por boa parte dos operadores do direito no país. A matéria dos danos não patrimoniais é vastíssima, composta por diferentes espécies merecedoras de estudos individualizados. Nesse cenário, indaga-se, não em tom de crítica, mas sim de sugestão, se a nomenclatura mais adequada à ferramenta não seria "tabela de parâmetros dos danos não patrimoniais", haja vista que, não apenas a valoração do dano moral é um desafio, como também do dano estético, biológico e de qualquer outro que não esteja limitado ao âmbito patrimonial. Ainda é cedo para avaliar a efetividade da ferramenta. O que se sabe é que ela visa fornecer uma completa rede de precedentes a fim de orientar os magistrados na valoração do quantum indenizatório, nas palavras do presidente da INOVAJUS. Algo muito parecido com a primeira fase do Método Bifásico de valoração do dano moral desenvolvido pelo Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. Essa etapa inicial tem como marco momento anterior ao recebimento da demanda. A sugestão do autor é de que os Tribunais desenvolvessem grupos de julgamentos com casos semelhantes, uma espécie de banco de dados de precedentes (por isso a proximidade à ferramenta do TJRS). Infelizmente, a aplicação do método restou limitada ao âmbito do STJ, não recebendo a adoção desejada pelos julgadores de primeiro e segundo graus. A despeito da semelhança, parece que a ferramenta representa uma evolução da primeira fase do método proposto pelo Ministro. Em primeiro lugar, por representar um instrumento concreto e não uma ideia orientativa. Não se busca aqui criticar o Método Bifásico (cujo desenvolvimento também deve ser reconhecido como um marco na temática no âmbito nacional), mas sim demonstrar que o tema segue em constante evolução. Em segundo, pelo fato de que concentra mais de 1500 decisões (número que certamente crescerá com o tempo), com indicações de valores. Não se trata de uma simples ferramenta de busca (isso os próprios sites dos Tribunais já fornecem). Há uma orientação de valor mínimo, médio e máximo extraído dos julgados relacionados a cada ponto da matéria. Tal como ocorre hoje com a tabela milanesa, a ferramenta da justiça gaúcha poderá se desenvolver a ponto de apresentar conteúdo complementar aos valores e julgados. Seria interessante termos no mesmo instrumento os valores recomendados (com base nos julgados anteriores) e esclarecimentos sobre as espécies de danos ali referidas. Enfim, um detalhamento que certamente auxiliaria os magistrados que em todo processo decisório envolvendo os danos não patrimoniais. De certo, um dos primeiros efeitos a serem notados deverá ser a redução nas sentenças de casos similares com valores extremamente desconexos. Espera-se que, num momento não tão distante, o acesso à ferramenta não seja mais restrito aos Membros do Tribunal e seus assessores. Assim como ocorre na Itália com as tabelas, deve-se dar acesso a todos os operadores do direito. Com isso, além de se permitir que os magistrados possuam melhor embasamento na tomada de decisões, também se viabilizará que os advogados elaborem petições mais objetivas e adequadamente fundamentadas. Possibilitando haver uma certa previsibilidade ou noção mínima para se analisar a situação antes mesmo de ingressar com a ação indenizatória. Questiona-se até que ponto essa iniciativa do Tribunal gaúcho será um fator de inspiração a outros órgãos ou será um fato isolado. Espera-se que, assim como houve o desencadeamento de um movimento entre os Tribunais italianos, inspire outros estudiosos do tema, outros tribunais a desenvolverem ferramentas nessa linha para que, quem sabe mais a frente a tarefa de quantificar o dano moral não seja tão obscura e repleta de subjetivismo. *Lucas Girardello Faccio é mestre em Direito pela PUC/RS. Associado titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Professor de Direito Civil. Advogado. __________ 1 Esse estudo resultou na minha primeira obra publicada pela Editora Fi. A versão digital pode ser acessada aqui. 2 O uso da tecnologia para o arbitramento de danos morais: a recente inovação gaúcha.
A partir do século XX, a sociedade da produção e do fornecimento em massa se consolidou. Esse fenômeno observado sob a ótica da antropologia, da sociologia e do direito, mas abarcando uma realidade cultural muito mais ampla denominada de sociedade de consumo, já foi objeto de obras escritas por doutrinadores consagrados como, dentre outros, Gilles Lipovetsky1, Jean Baudrillard2, Zygmunt Bauman3 e Bruno Miragem4. Essa realidade foi bem retratada por Claudia Lima Marques5 quando expressou: "Consumo é inclusão na sociedade, nos desejos e benesses do mercado atual. Consumo é igualdade, igualdade do mais fraco, do leigo, do vulnerável em um direito privado renovado. Consumo é liberdade, exercício de autonomia do leigo e vulnerável. Ser consumidor é ser um cidadão-econômico. Consumo é a nova fraternidade, no sentido latino de fraternitas, a irmandade de, enfim, poder aproveitar um pouco das benesses do mercado liberal e globalizado, como agente ativo ao lado dos fornecedores. Em outras palavras, consumo é, para as pessoas, a realização plena da liberdade e sua dignidade, no que podemos chamar de verdadeira 'cidadania econômico-social'd o século XX". (2016, p. 21). Na prática, a convivência em sociedade passou a ser muito influenciada pelo mercado de consumo, com alteração de hábitos, relações familiares e outros aspectos, afinal, todos somos consumidores em tempo integral e da qualidade de nossas relações de consumo pode depender em muito, a qualidade de nossas vidas. Tradicionalmente, o direito busca sempre se adequar à nova realidade social, porém logo tal se transforma em passado diante de criações trazidas pela tecnologia. Na elaboração do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, o Brasil utilizou como inspiração, diversas normas estrangeiras, as quais, como fonte de história, foram referidas por Ada Pellegrini Grinover e Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, membros da comissão responsável pelo anteprojeto6. O Código se apresenta como um microssistema que conforme seu art. 7º, não exclui a possibilidade de um benéfico diálogo das fontes com outras normas (ou, aplicar-se uma concepção de sistema com completude, para quem adota essa doutrina). E essa condição se revela fundamental quando se trata de comércio por meios eletrônicos, fenômeno mundial, composto por diversos elementos significativamente complexos e multifacetados (abarcando e-mail, compra e venda online, dentre outras formas que se utilizam do universo digital/virtual)7. E é nesse contexto que sobressai a importância dos efeitos da internet nas relações de consumo, pois se desde o tempo das caravelas os negócios a distância vieram se ampliando, foi através desse meio eletrônico que estes mais se intensificaram/popularizaram. Eles não apenas aproximam contratantes, como propiciam rapidez e facilidade para fornecedores e consumidores firmarem contratos mediante um simples click. Com isso, se destacaram situações como compras por impulso ou mesmo incentivadas por informações enganosas ou incompletas. Por esses e outros motivos, o CDC instituiu um direito de arrependimento com prazo de 07 (sete) dias sempre que a aquisição aconteça fora do estabelecimento comercial do fornecedor8. E o fato do art. 49, CDC, não mencionar especificamente as vendas por internet em nada afeta esse direito potestativo do consumidor (não concedido ao fornecedor), dado que o elenco do dispositivo tem o caráter de numerus apertus9, como reconhecido na doutrina predominante10. Cite-se os ensinamentos de Guilherme Magalhães Martins que esclarece de forma apropriadamente assertiva: "O Decreto 7.962, de 15.03.2013, ao regulamentar o Código de Defesa do Consumidor, prevê o direito de arrependimento, nos seus arts. 1º, III, 4º, V, e 5º. Na medida em que o consumidor, nessas condições, possui menor possibilidade de avaliar o que estava contratando, deve lhe ser assegurado o prazo de arrependimento, não só nos contratos em distância em geral - tais quais a venda porta-a-porta, por telefone, reembolso postal, por fax, vídeo-texto, por prospectos etc. - como também nos contratos via Internet, até mesmo pela disseminação de tais práticas, à margem de uma regulação, a partir dessas novas técnicas, que permitem que o consumidor contrate sem sair de casa, muitas vezes com fornecedores de outros países"11. Observe-se que, inicialmente, o comércio por meios eletrônicos se tornou uma opção a mais para os consumidores, mas na atualidade, em decorrência dos efeitos da pandemia que desde 2020 aflige o país (e o mundo), essa modalidade cresceu em importância principalmente devido as medidas de fechamento temporário de estabelecimentos e isolamento social. Essas providências tomadas por autoridades públicas, restringiram a circulação de pessoas em busca presencial da compra e venda de bens de consumo e vieram mantendo trabalhadores em casa, o que passou a limitar os atendimentos. Desta forma, em várias situações, o comércio eletrônico se tornou a única ou a principal alternativa para o consumidor conseguir os bens de sua necessidade, incluindo os que compõem os mínimos vital e existencial caracterizados pela imprescindibilidade (sua falta pode gerar abalo à direitos fundamentais e da personalidade como alimentação, saúde, educação, etc.). Trata-se de um direito à reflexão (no dizer de Rizzatto Nunes: desistência imotivada de efeito ex tunc12), no sentido de tentar mitigar os efeitos das situações já descritas (eventual compra por impulso ou de desconformidade entre a limitada informação que a internet permite ao consumidor e o bem a este entregue, algo comum neste momento de pandemia). Com esse cenário, determinadas cautelas se mostram necessárias quando dessas relações de consumo online. A primeira delas que referenciamos, é que com as já referidas medidas emergenciais (lockdown, etc.), ficou mais evidente que o prazo de 07(sete) dias para exercer o direito de desistência é muito exíguo. Na Europa, a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho13, inclusive internalizada por diversos outros países além dos que compõem a União Europeia (ex.: Islândia, Noruega, etc.), prevê que esse prazo é de 14 dias14. Note-se que essas disposições já existiam para tempos normais e que, no mercado, há fornecedores que estendem esse prazo como espécie de garantia contratual. Então, de lege ferenda, cabe propugnar pela respectiva alteração na legislação brasileira, para que o referido prazo seja ampliado e se torne mais condizente com a proteção do consumidor e desta forma se equipare ao de países mais desenvolvidos. Um segundo aspecto a ser considerado é que em termos de informação adequada, o meio digital, por mais realistas que pareçam os conteúdos expostos, não tem aptidão que viabilize se igualar ao que o consumidor consegue perceber no contato presencial com o objeto, seu exame e teste. Na prática, exceto em situações muito excepcionais nas quais o consumidor já compra rotineiramente o mesmo produto do fornecedor, ao realizar-se a relação de consumo via internet, naturalmente, ocorrem notórias carências quanto ao conhecimento do bem, seja por conta de que virtual e real diferem no poder de transmitir, seja devido ao fato de que o material exposto pelo fornecedor costuma estar impregnado de publicidade que transmite impressão nem sempre fidedigna de todos os detalhes do fornecimento. Em seu livro "A desinformação na sociedade da informação: a vulnerabilidade do consumidor na internet", Renato Porto, enfatiza: "A comercialização de produtos na modalidade virtual é lícita, útil e necessária ao bom desenvolvimento do sistema capitalista. No entanto, o que se impõe é um critério de readaptação da antiga publicidade, ou da prática de mercado, agora assentada em atributos éticos, capazes de produzir no consumidor o senso crítico necessário à escolha e decisão responsável. Algumas dificuldades desse intento são expressas na linguagem utilizada pela mídia, quando embriaga o ser humano. Através do estímulo à sua afetividade, aos sentidos, à inteligência, à imaginação e, sobretudo, à capacidade de sonhar, torna-se difícil (se não impossível) fugir dos influxos moderadores de imagem, das ondas luminosas ou sonoras da comunicação. O mais grave é que a sociedade engendrada pelo processo de comunicação avança sem o controle ou consciência da realidade, da amplidão ou da profundeza dessa evolução (JOSAPHAT, 2006, p. 15)"15. Um terceiro aspecto, é que o comércio virtual sobrelevou o destaque para a boa-fé objetiva, dever bilateral entre fornecedor e consumidor. Cabe ao fornecedor ser transparente, informar devida e o mais precisamente possível e cumprir o contrato para que o consumidor possa dele retirar o que, legitimamente, foi buscar na contratação; e isso sem que advenha despesa decorrente do desfazimento do negócio jurídico.16 Afinal, quando assume esse tipo de comercialização, o fornecedor já sabe da norma concedendo direito de arrependimento e, naturalmente, internaliza esses custos redistribuindo-os no montante de contratos que firma. Independente disso, quando o consumidor compra produto sob encomenda com as especificações que requer (produtos sob medida, customizados ou personalizados) e o profissional cumpriu seu dever de informação e todos os requisitos do pedido, é fundamental que o primeiro não busque devolução por arrependimento imotivado (por exemplo: por uma simples mudança de opinião), posto que o fornecedor terá dificuldades de recolocar o produto no mercado e amargará injusto prejuízo. Já quanto às condições do bem quando da devolução, é primordial que seja devolvido no estado de novo, sendo que pode ter sido examinado e até adequadamente testado, porém sem provocar danos e respectivos prejuízos deixados sem ressarcimento. Para aclarar, convém diferenciar experimentação e uso. Experimentar17 remete à palavras como: verificar por meio de experiência; ensaiar, provar, tentar; ver se se pode conseguir; sentir, ter; receber e achar. De outra forma, o verbo usar18 aduz significados como: pôr em uso, pôr em prática; costumar, ter por hábito; empregar, servir-se de; deteriorar pelo uso, cotiar; trazer habitualmente. Ou seja, com base no referido direito, o consumidor não pode se servir do bem para depois buscar devolvê-lo com desgaste de uso não convencionado com o fornecedor ou mesmo com danos decorrentes de utilização desconforme com as recomendações do fabricante, conduta que não condiz com o princípio da boa-fé, lealdade e equilíbrio contratual19 (CDC, art. 4º, III). Vale mencionar a doutrina de Ronaldo Porto Macedo Jr. quando refere à cooperação e desenvolve a concepção de que, contemporaneamente, os contratos devem ser vistos menos pela simples noção de troca (bem x pagamento), e sim como acordos de solidariedade de justa repartição entre as partes, dos ônus e benefícios da relação negocial20. Todavia, não se pode ignorar que são comuns as situações em que, como parte de seu marketing, o fornecedor divulga que o consumidor pode experimentar o produto e posteriormente decidir pela devolução. Nessa circunstância, este (fornecedor), desde que o consumidor siga as instruções de uso, assume as consequências de tal prática de mercado, sendo naturalmente presumível que, dentro de parâmetros de probabilidade, tenha calculado e considerado em seus preços, os custos de eventuais devoluções. Em complemento, chega-se a determinados aspectos das obrigações e da responsabilidade civil21 (relembre-se que havendo devolução dentro do prazo legal, o consumidor tem direito ao ressarcimento imediato do que pagou). Considerando que o CDC não ficou limitado a adotar a noção estrita de contrato e prevê deveres pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais, o agente econômico ao ingressar no mercado na condição de fornecedor assume cumprir deveres implícitos (implied warranty). Na célebre figura de linguagem atribuída a Karl Larenz e referenciada por Sérgio Cavalieri Filho22: "a obrigação é como um edifício que projeta sua sombra, a responsabilidade". No CDC, os contratos presenciais ou os contratos à distância mediados por tecnologias digitais, são regrados pelo mesmo regime de responsabilidade civil objetiva. Naturalmente, como estabelecido em numerosa jurisprudência, existem setores muito específicos como o de passagens aéreas compradas por internet, no qual se aplica o artigo 49 CDC (superando inclusive as normas editadas pela regulação setorial por Agência Reguladora)23, mas que requerem uma análise mais detida de cada caso concreto. Afinal, em nome da harmonia e equilíbrio nesse tipo de relação de consumo, se de um lado, o fornecedor não pode se negar a atender esse direito de arrependimento e nem mesmo aplicar multa que, na prática, anule substancialmente o valor da devolução das quantias pagas pelo consumidor, de outro, o adquirente da passagem quando pretender exercer esse direito (e não existe direito absoluto) deve estar imbuído do mesmo espírito de cooperação não causando situação em que o fornecedor acabe sofrendo injusto prejuízo por ter inviabilizada sua oportunidade de revender e preencher o lugar na aeronave. Observe-se que esse tipo de conduta prejudicial tem potencial para fazer surgir o denominado risco moral, com efeito no aumento de preços a serem pagos por todos os adquirentes de passagens, o que não se coaduna com a função social do contrato. Ou seja, o art. 49 se aplica as relações de consumo em geral, mas é essencial haver atenção para com às características do tipo de fornecimento (outro exemplo que pode ser citado é quando se trata de compra de produtos perecíveis, de modo que a devolução seja de algo inservível). Acrescente-se que em paralelo ao seu regime geral de responsabilidade objetiva, o CDC excepciona ao estabelecer responsabilidade subjetiva baseada na apuração da culpa quando se trata de profissionais liberais (art. 14, § 4º) e de sociedades coligadas (art. 28, § 4º). Então, em tempos de cadeias de fornecimento cada vez mais complexas e sofisticadas, bem como, de atendimentos profissionais até para a saúde praticados por meio virtual (online), deve-se fazer uma adequada leitura e interpretação dessa legislação para que atinja os objetivos para os quais foi proposta. Assim, quando a empresa coligada integrar a cadeia de fornecimento, não merece desfrutar da benesse da responsabilidade subjetiva, e sim, responder de forma objetiva e solidária por essa condição de fornecedora (standart ou equiparada). Já no que refere ao profissional da saúde que escolhe praticar seus serviços por meios limitados como a internet, que apresenta evidentes carências em termos do melhor padrão de informação-conteúdo, informação-advertência e informação aconselhamento, essa circunstância deve levar para que sua culpa seja rigorosamente aferida quanto a negligência, imprudência ou imperícia (inclusive sob a concepção de obrigação "de meio" e obrigação "de resultado", com automática inversão do ônus da prova). Naturalmente, se o consumidor usufruiu do serviço praticado online (consulta ou terapia, por exemplo), salvo falha comprovada no fornecimento, não pode utilizar o art. 49 do CDC para se furtar ao pagamento, pois não tem como devolver o serviço. Entretanto, se o profissional receitar medicamento de sua fabricação, manipulação ou revenda, no tocante a isso, além do direito ao arrependimento em favor do consumidor, na questão da qualidade do produto cabe para esse fornecedor (que ainda se utiliza de sua palavra de autoridade), a aplicação de responsabilidade civil objetiva, tal como é regra geral para fabricantes e comerciantes. Feitas essas considerações, conclui-se expressando que, principalmente tendo em vista a vulnerabilidade (por vezes, até hipossuficiência) dos consumidores e o aumento desses negócios jurídicos por meio digital, é indispensável a existência do direito ao arrependimento (que até merece ampliação) e dotado das respectivas consequências de responsabilidade civil. Na sociedade de fornecimento e consumo de massa, essas específicas proteções são imprescindíveis em razão de que, a par da possibilidade de estarem envolvidas questões patrimoniais, também é comum haver afetação da incolumidade físico-psíquica dos consumidores. Perceba-se que quando nas relações de consumo estão em jogo o respeito a valores constitucionais inscritos como direitos fundamentais e da personalidade, presente está, a proteção ao que de mais humano temos. *Oscar Ivan Prux é doutor e mestre em Direito, economista (especialista em teoria econômica) e pedagogo. Mediador judicial. Professor de direito na respectiva pós-graduação stricto sensu da Universidade CESUMAR - UNICESUMAR e professor pesquisador bolsista do ICETI, com estudos de pós-doutorado concluídos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Portugal (FDUL). __________ 1 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2007, p. 19-32. 2 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2007, p. 15-27. 3 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 70-106. 4 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p.43. 5 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime de relações contratuais, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 21. 6 GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Introdução. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 10. 7 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 672. 8 CDC, art. 49 - O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos ou serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. 9 TARTUCE, Flávio. Manual de direito do consumidor: direito material e processual, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2016, p. 345. 10 Apenas à guisa de comentário, Flavio Tartuce faz menção a uma corrente que não prevalece ao defender que o direito de arrependimento não deve ser aplicado quando o consumidor visita o site do fornecedor, algo que, por si só e comparando com as demais relações de consumo por internet, não configura uma melhora do cumprimento do dever de informação a ponto de torná-la plena. TARTUCE, Flávio. Manual de direito do consumidor: direito material e processual, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2016, p. 346. 11 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2016, p. 212. 12 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de defesa do consumidor: direito material (arts. 1º a 54), São Paulo, Saraiva, 2000, p. 560. 13 Disponível aqui (acesso em 24/06/2021). 14 Centro Europeu do Consumidor. Disponível aqui (acesso em 24/06/2021). 15 Porto, Renato. A desinformação na sociedade da informação: A vulnerabilidade do consumidor na internet (Locais do Kindle, posição 1910-1917). Edição do Kindle). 16 ADMINISTRATIVO. CONSUMIDOR. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. ART. 49 DO CDC. RESPONSABILIDADE PELO VALOR DO SERVIÇO POSTAL DECORRENTE DA DEVOLUÇÃO DO PRODUTO. CONDUTA ABUSIVA. LEGALIDADE DA MULTA APLICADA PELO PROCON. 1. No presente caso, trata-se da legalidade de multa imposta à TV SKY SHOP (SHOPTIME) em razão do apurado em processos administrativos, por decorrência de reclamações realizadas pelos consumidores, no sentido de que havia cláusula contratual responsabilizando o consumidor pelas despesas com o serviço postal decorrente da devolução do produto do qual pretende-se desistir. 2. O art. 49 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que, quando o contrato de consumo for concluído fora do estabelecimento comercial, o consumidor tem o direito de desistir do negócio em 7 dias ("período de reflexão"), sem qualquer motivação. Trata-se do direito de arrependimento, que assegura o consumidor a realização de uma compra consciente, equilibrando as relações de consumo. 3. Exercido o direito de arrependimento, o parágrafo único do art. 49 do CDC especifica que o consumidor terá de volta, imediatamente e monetariamente atualizados, todos os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, entendendo-se incluídos nestes valores todas as despesas com o serviço postal para a devolução do produto, quantia esta que não pode ser repassada ao consumidor. 4. Eventuais prejuízos enfrentados pelo fornecedor neste tipo de contratação são inerentes à modalidade de venda agressiva fora do estabelecimento comercial (internet, telefone, domicílio). Aceitar o contrário é criar limitação ao direito de arrependimento legalmente não previsto, além de desestimular tal tipo de comércio tão comum nos dias atuais. 5. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1340604 RJ 2012/0141690-8, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 15/08/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/08/2013). 17 Experimentação | n. f. derivação fem. sing. de experimentar "experimentação", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, [consultado em 17-06-2021]. 18 Usar | v. tr. | v. pron. "usar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, [consultado em 17-06-2021]. 19 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor, 6ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 20 MACEDO JR. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 147-194. 21 De forma incisiva Álvaro Villaça Azevedo afirma: "A responsabilidade civil nada mais é que o dever de indenizar o dano". (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações, Responsabilidade Civil, 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 276). 22 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 2. 23 Vide página do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT): Nos termos do art. 49 do CDC, o consumidor pode desistir do contrato no prazo de 7 (sete) dias, a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a compra ocorrer fora do estabelecimento comercial (prazo de reflexão). A faculdade de desistir das compras fora do estabelecimento do fornecedor, prevista no art. 49 do CDC, aplica-se aos contratos de transporte aéreo, concluídos por meio da internet." Acórdãos representativos - Acórdão 1175293, 07173046320188070003, Relator: AISTON HENRIQUE DE SOUSA, Primeira Turma Recursal, data de julgamento: 30/5/2019, publicado no DJE: 13/6/2019; - Acórdão 1112688, 07436002020178070016, Relator: CARLOS ALBERTO MARTINS FILHO, Terceira Turma Recursal, data de julgamento: 31/7/2018, publicado no DJE: 7/8/2018; - Acórdão 1098878, 07501762920178070016, Relator: FERNANDO ANTONIO TAVERNARD LIMA, Terceira Turma Recursal, data de julgamento: 22/5/2018, publicado no DJE: 29/5/2018; Reembolso integral - multa indevida: "Contrato de transporte. Aquisição de passagem aérea pela internet. Desistência. A faculdade de desistir das compras fora do estabelecimento do fornecedor, prevista no art. 49 do CDC, aplica-se aos contratos de transporte aéreo, concluídos por meio da internet. Ademais, o exercício do direito de arrependimento, por constituir faculdade do consumidor, não o sujeita à aplicação de multa. Precedente: (Acórdão n.935671, 07253718020158070016). Devido, pois, o reembolso do valor integral das passagens adquiridas pelo autor." Acórdão 1175293, 07173046320188070003, Relator: AISTON HENRIQUE DE SOUSA, Primeira Turma Recursal, data de julgamento: 30/5/2019, publicado no DJE: 13/6/2019. Disponível aqui. Acesso em 30/06/2021.
Os meios virtuais são uma realidade. Com o acesso facilitado às informações por utilização da internet, novos problemas surgiram e carecem de uma efetiva tutela jurídica, tal qual ocorre com o fenômeno do cyberbullying (assédio moral virtual). Há ferramentas jurídicas no sistema que permitem aplicar sanções aos agressores virtuais (justa causa na esfera trabalhista, indenização na esfera judicial e crime na esfera penal). Caracteriza-se o assédio moral virtual ou digital como uma ação repetitiva e prolongada, dentro do ambiente eletrônico (WhatsApp, e-mails, plataformas digitais), capaz de expor a vítima a situações constrangedoras. Trata-se de um desdobramento do conceito de assédio moral. Diante do assédio on-line, o trabalhador pode se sentir amedrontado e envergonhado. Isso pode gerar problemas psicológicos capazes de afetar a sua vida pessoal e profissional. O Assédio Moral Digital (cyberbullying) foi precipitado pelo Direito Emergencial do Trabalho: COVID-19 e necessidade de isolamento social, home-office como realidade para os trabalhadores manterem seu emprego e renda (Medida Provisória nº 1046/2021, que instituiu a possibilidade de home office a critério da necessidade das empresas) - tornando o trabalho digital uma realidade mundial, entre outras medidas. Nesta coluna, refletindo-se sobre a "Responsabilidade parental em tempos digitais", Ana Cristina de Melo Silveira já alertava para o fato de que "com a era digital, o bullying tradicional se tornou mais complexo, com potencial ainda maior de atingir diversas esferas da personalidade de crianças e adolescentes. O Cyberbullying pode acontecer por meio do anonimato, ainda, dificulta a reação da vítima, deixa registros indeléveis no espaço sem fronteiras do mundo digital, podendo atingir um número potencialmente maior de expectadores. Em alguns casos, leva à automutilação e ao suicídio."1 Nesse cenário, o cyberbullying é um tipo de violência contra uma pessoa praticada através da internet ou de outras tecnologias relacionadas (meios virtuais). Praticar cyberbullying significa usar o espaço virtual para intimidar e hostilizar uma pessoa (colegas de escola, professores, chefes, subordinados, colegas de mesma hierarquia ou mesmo pessoas desconhecidas), difamando, insultando ou atacando covardemente. O cyberbullying nada mais é do que bullying praticado por meio de novas tecnologias. No entanto, a análise mais profunda do tema, evidenciará que ele pode se configurar como mais gravoso, perpetuando a situação de vitimização em virtude das configurações do espaço virtual, que permite o livre e simultâneo fluxo das informações, o que faz com que as notícias e informações se propaguem muito rapidamente, alcançando um número indefinido de internautas. Significa dizer, de outro modo, que se perde o controle sobre as informações postadas, podendo qualquer usuário da internet  armazenar esse conteúdo, como disseminá-lo entre outras pessoas. É o assédio moral virtual, muito comum nas relações de trabalho, em que algum colega quer se vingar de alguém que se destaca no serviço, na empresa.2 Nesse sentido, o uso de meios digitais de comunicação no trabalho remoto emergencial (WhatsApp, Telegram, Reuniões Virtuais, enfim, uso das mais variadas plataformas digitais), facilita a propagação mais rápida do assédio moral digital - cyberbullying (mais pessoas são atingidas em menor e mais veloz espaço de tempo em comparação com o assédio moral tradicional que até então tínhamos como fonte de consulta e debate). A própria linguagem é mais coloquial nos meios digitais, o que facilita até mesmo um duplo sentido de uma determinada ordem dada pelo empregador ou superior hierárquico, facilitando o abuso de poder consagrado no art. 187 do Código Civil Brasileiro. Na jurisprudência, já é possível localizar casos envolvendo o assédio moral digital/ virtual (cyberbullying). Nesse sentido, a Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou recurso da Almaviva do Brasil Telemarketing e Informática Ltda. contra a condenação ao pagamento de indenização a uma supervisora de atendimento de Guarulhos (SP) em razão da conduta assediadora dos gestores em grupo de WhatsApp. As situações vexatórias incluíam a cobrança de retorno do banheiro, com a exposição dos empregados aos demais participantes do grupo. Na reclamação trabalhista, a supervisora disse que, desde o início do contrato, era obrigada a permanecer em grupos de WhatsApp administrados pelos gestores, em que eram expostos os resultados e os nomes de quem não alcançava as metas semanais e divulgadas falhas como pausa, faltas e atrasos. Como supervisora, ela também era chamada a atenção nos grupos. Para o relator do recurso de revista da Almaviva, ministro Alberto Bresciani, a sujeição da empregada à humilhação por seu superior hierárquico compromete a sua imagem perante os colegas de trabalho e desenvolve, presumidamente, sentimento negativo de incapacidade profissional. O ministro observou que, nessa circunstância, o dano moral não exige prova para sua caracterização, bastando a demonstração do fato que revele a violação do direito de personalidade para originar o dever de indenizar. No caso, ficaram evidenciados, na decisão do TRT, o dano, o nexo causal e a culpa da empregadora (Processo: RRAg-1001303-33.2018.5.02.03210 - publicação em 18/09/2020). Por outro lado, garantir um meio ambiente de trabalho equilibrado, sadio, é condição sine qua non para que haja respeito à dignidade do trabalhador3, evitando condutas desrespeitosas no trabalho. Dessa forma, estará a empresa4 agindo de forma responsável, ética, evitando futuras condenações contra si mesma por danos morais propostas por seus ex-empregados, seja por assédio moral presencial, seja por assédio moral virtual.5 Assim, percebe-se que além de ser um dever da empresa evitar a prática do assédio moral na empresa, quer seja ele presencial, quer seja virtual (cyberbullying), deve ela também promover ações de inclusão de grupo vulneráveis (deficientes físicos, portadores de HIV/AIDS, entre outros). Nessa medida, a ISO 26000 - Diretrizes sobre Responsabilidade Social - recomenda reconhecer a diversidade dos seres humanos como fonte de riqueza para a organização do trabalho. Assim, além de evitar possíveis indenizações por danos morais, a empresa passa a ser promotora da dignidade da pessoa humana no que essa tem de mais sagrado: o trabalho, direito fundamental social previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988, dever do Estado em relação aos seus súditos.6 Os danos indenizáveis podem ser patrimoniais ou extrapatrimoniais. Nesta última categoria, em especial das lesões oriundas da prática de cyberbullying no ambiente laboral, destacam-se os danos morais puros e os danos existenciais. No que tange ao dano existencial, observe-se que "consiste em espécie de dano extrapatrimonial cuja principal característica é a frustração do projeto de vida pessoal do trabalhador, impedindo a sua efetiva integração à sociedade, limitando a vida do trabalhador fora do ambiente de trabalho e o seu pleno desenvolvimento como ser humano, em decorrência da conduta ilícita do empregador". (TST - Recurso de Revista (RR) 10347420145150002- Publicação em 13/11/2015). Diante disso, exige-se das autoridades julgadoras atuações cooperativas7 a fim de se otimizar a concretização das normas constitucionais, e, em particular, dos direitos fundamentais. Todo direito é constitucional, isto é, deve ser lido e interpretado através dos preceitos constitucionais. Nessa linha, fato inexorável é que a atividade judicial é, por excelência, interpretativa. Porém, inarredável também a realidade de que todos os atores que militam no mundo jurídico participam dessa tarefa e também contribuem para esse mister hermenêutico. Por fim, registre-se que no artigo "Bullying e responsabilidade civil" publicado neste site em 2011, o professor Adriano Ferriani já advertia que "o fato é que o problema do bullying, presencial ou digital, existente no mundo inteiro, precisa ser rigidamente combatido."8 Fundamental que se incentive, no ambiente laboral, nas atividades prestadas nas dependências da empresa ou em homeoffice, a adoção de programas de educação e prevenção de danos praticados em meio digital muito antes de se procurar compensar pecuniariamente a lesão a um direito da personalidade, o que, por diversas oportunidades, revela-se incompensável. Sem falar na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - Lei 13.709/2018), que prevê pesadas sanções aos empregadores (controladores) que não fizerem o devido tratamento dos dados pessoais sensíveis de seus empregados (origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico). Sem dúvida alguma, a LGPD traz nova responsabilidade às empresas, podendo acarretar uma indústria de indenizações por danos morais na Justiça do Trabalho pela inadequada armazenagem, por exemplo, de dados pessoais sensíveis de seus empregados.  *Liane Tabarelli é doutora em Direito pela PUC-RS com doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra - PT. Mestre em Direito pela UNISC. Pesquisadora. Professora. Advogada e Consultora. Autora de obras e artigos jurídicos. Associada do IBERC. **Rodrigo Wasem Galia é pós-Doutor em Direito pela PUC-RS. Doutor em Direito pela PUC-RS. Mestre em Direito pela PUC-RS. Pesquisador. Professor Federal nas áreas de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. Avaliador do INEP/MEC na autorização de novos cursos de Direito no Brasil. Palestrante. Autor e co-autor de Diversas Obras Jurídicas. Diretor Científico da Comissão de Direito do Trabalho da ABA (Associação Brasileira de Advogados) na Região do RS. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 21 jul. 2021. 2 RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral e Cyberbullying no trabalho: O Abuso do Poder Diretivo do Empregador e a Responsabilidade Civil pelos Danos Causados ao Empregado - atuação do Ministério Público do Trabalho. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019. 3 Nesse sentido: "A norma constitucional inserida no artigo 170 determina que a ordem econômica deve assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, devendo, pois, buscar um equilíbrio entre esses fundamentos, conquistando, assim, a dita justiça social, sem olvidar de um de seus princípios, qual seja a busca do pleno emprego. Assim, resta claro que a dignidade da pessoa do trabalhador constitui uma das finalidades principais da ordem econômica, devendo tal princípio ser informador da própria organização do trabalho". RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral e Cyberbullying no trabalho: O Abuso do Poder Diretivo do Empregador e a Responsabilidade Civil pelos Danos Causados ao Empregado - atuação do Ministério Público do Trabalho. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019. 4 "A livre iniciativa, pois, deve ser compatibilizada à valorização do trabalho humano, devendo o aplicador do direito buscar um equilíbrio entre os bens constitucionalmente tutelados, diante do caso concreto, aplicando a ponderação entre os ditos valores, sem, jamais, olvidar dos direitos fundamentais do trabalhador." SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direitos fundamentais e o contrato de trabalho. São Paulo: LTr, 2005. p. 24. No que se refere ao dever de ressarcir (independentemente de dispensa por justa causa do colega assediador e imposição de dever indenizatório ao mesmo), veja-se que os artigos 932, III c/c 933, ambos do CC/02 estabelecem a responsabilidade civil objetiva do empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. 5 Nesse ponto, veja-se que o art. 223-E da CLT, após a Reforma, prescreve que "são responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão". Ademais, o art. 223-G da CLT estabelece parâmetros para auxiliar o julgador na fixação do quantum indenizatório nesses casos, tendo em vista que a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física, ou seja, o trabalhador, consoante art. 223-C da CLT. 6 RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral e Cyberbullying no trabalho: O Abuso do Poder Diretivo do Empregador e a Responsabilidade Civil pelos Danos Causados ao Empregado - atuação do Ministério Público do Trabalho. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019. Nessa esteira: "Fato é que todas as províncias jurídicas devem conformidade e obediência ao Estatuto Fundamental. Assim, o respeito à Constituição, fonte normativa suprema, garante estabilidade e coerência a todo o tecido normativo brasileiro, em especial ao promover a axiologia decorrente das opções político-jurídicas do legislador constituinte. Essa conformação constitucional é exigível de todas as normas que compõem o ordenamento, ainda quando vinculem unicamente interesses privados". TABARELLI, Liane. Contratos agrários e sustentabilidade ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. 7 Lembre-se que, por exemplo, com a adoção do Princípio da Cooperação no art. 6º, CPC/2015 para que exercício do direito constitucional disposto no art. 5º LV, CF/88 (contraditório e ampla defesa) seja pleno e efetivo, exige-se do julgador condução proativa do feito, estimulando e facilitando o auxílio mútuo entre todos os envolvidos na relação jurídica processual para que, ao fim e ao cabo, consiga-se se obter uma prestação jurisdicional eficiente num prazo razoável. Foi exatamente em homenagem à composição amigável dos conflitos entre os litigantes e a duração razoável dos feitos em juízo (art. 5º, LXXVIII, CF/88), entre outros motivos, que o legislador processual civil de 2015 previu a implantação da audiência do art. 334 na lei 13.105. 8 Disponível aqui. Acesso em 21 jul. 2021. 
Diante da colação de diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça, em face da aplicação do artigo 12 do Código Civil brasileiro, em especial da apreciação da legitimidade atribuída aos herdeiros do falecido para a defesa dos seus interesses após a morte, a doutrina se sente provocada a descrever os principais posicionamentos relativos à interpretação da norma jurídica e realizar críticas sobre as suas disposições e como os Tribunais vêm aplicando o direito ao caso em concreto.  O Código Civil brasileiro em seu artigo 6º declara que a existência da pessoa natural termina com a morte, e consequentemente a sua personalidade civil se encerra, deixando a pessoa de ser sujeito de direitos e obrigações. Por sua vez, apesar da morte, o corpo da pessoa, a sua imagem e a sua memória podem influir no curso social e perdurar no mundo das relações jurídicas, mesmo que o seu titular não seja mais sujeito de direitos, merecendo uma proteção jurídica autônoma.1 Visando dar efetiva proteção aos bens da personalidade do morto, os quais se estendem após a sua morte, o Código Civil brasileiro, no parágrafo único do artigo 12, dispõe sobre a tutela jurídica post-mortem da personalidade humana. Considerando que o corpo morto e sua memória necessitam do mesmo respeito à dignidade a qual era submetida à pessoa viva. Assim, o presente trabalho delimita o estudo da tutela jurídica dos direitos da personalidade, após a morte, apontando o caminho que deve o interprete utilizar para a aplicação do direito e a solução dos conflitos. A esse respeito poderíamos perguntar se é possível depois da morte que uma pessoa continue a ter direitos à honra, à imagem e à intimidade, uma vez que, com fundamento no artigo 6o do Código Civil brasileiro, com a morte extingue-se a personalidade.2 A postura de boa parte da doutrina é manter a ideia de que a pessoa morta não tem direitos, nem pode ser vítima de difamação, apesar de ser possível reclamar indenização por danos causados àqueles que tinham relacionamento com o falecido, e se sintam atingidos pelas ofensas.3 Mas, apesar de o morto não ter personalidade, nem mesmo ser sujeito de direitos, será que é justo atacar a dignidade de pessoa falecida? Não é justo que se ataquem bens da personalidade de pessoa morta; por isso, os valores da personalidade humana, dignos de proteção, perduram muito mais além do que a sua personalidade civil; em respeito à pessoa do falecido, admite-se ao mesmo tempo em que a personalidade se extingue com a morte, que os familiares mais próximos possam defender os interesses perdurados do morto. Desta forma, o Código Civil concede legitimidade aos herdeiros para proteger a memória do falecido, os quais podem exercer a tutela jurídica dos direitos da personalidade, independente da transmissão dos direitos em si mesmos, pois, a legitimação foi concebida de forma concorrente e independente da preferência imposta pela ordem de vocação hereditária, objetivamente para a defesa dos bens da personalidade do morto. Nesse mesmo sentido, o disciplinamento legal trata de semelhante caso quando ocorre o ataque ao direito da personalidade ainda em vida, antes do falecimento, e a pessoa não pôde exercer o seu direito de ação. Quando a lesão tem lugar antes do falecimento sem que o titular do direito tenha exercido as ações reconhecidas pela lei, pode o mesmo ser substituído em seu direito de ação pelos sucessores, segundo a ordem de vocação hereditária, como determina o art. 943 do Código Civil, que dispõe que o direito de exigir a reparação e a obrigação de prestá-la transmite-se com a herança. Ora, neste caso não se trata da transmissão do direito da personalidade, mas sim da transmissão do direito de ação que protege os bens da personalidade, pois o dano evidentemente foi causado na esfera jurídica do autor da herança, não sendo a morte do titular do direito motivo justificável para excluir a responsabilidade civil do lesante. Não há dúvidas de que se o dano foi provocado quando o titular do direito ainda estava vivo e este promoveu a competente ação processual civil, vindo a falecer logo em seguida, a transmissão do direito à reparação civil se faz presente, desde que os sucessores queiram continuar com o processo. Contudo, quando a lesão ocorre em face da memória do morto, através de afirmações negativas quanto a sua honra e seu bom nome, surge uma grande discussão quanto à titularidade do direito subjetivo violado. O titular do direito violado é o próprio morto, em face de sua memória, ou aqueles parentes determinados pelo Código Civil, em face da relação de parentesco? Com a morte e consequente extinção da personalidade, a pessoa deixa de ser sujeito de direitos e obrigações, daí a necessária discursão quanto à titularidade do bem jurídico violado, pois, a lesão é causada diretamente a honra e a memória do morto, discutindo-se se a mesma atinge os bens da personalidade do falecido, ou os bens da personalidade de seus familiares. A resposta a esta indagação é objeto de várias ponderações e divergências. O professor Menezes Cordeiro diante de polêmica discursão na academia portuguesa, enumera três posições possíveis, em face da divergência quanto à extinção ou não dos direitos da personalidade, com a morte do seu titular.4 A primeira delas, defendida pelo Professor Diogo Leite Campos, em suas Lições de Direitos da Personalidade, entende que a personalidade não se extinguiria (totalmente), contrariando disposição do Código Civil que determina a extinção da personalidade com a morte, empurrando a personalidade do morto para um momento posterior a sua própria morte.5 A segunda posição, defendida por José de Oliveira Ascensão, em sua Teoria Geral do Direito Civil, entende que a personalidade cessa com a morte, e que a proteção não se faz em face dos direitos da personalidade do morto, mais sim em face da memória do morto, que seria um bem autônomo.6 A terceira corrente defendida por Paulo Mota Pinto, declara que a tutela se faz aos vivos, e o que se protege são as pessoas enumeradas no Código Civil, afetadas pelas ofensas à memória do morto. Elas, as pessoas vivas, teriam direito próprio à indenização, pois, são as pessoas juridicamente protegidas e lesionadas.7 O Professor Menezes Cordeiro defende a terceira corrente, declarando que "a tutela post mortem é, na realidade, a proteção concedida ao direito que os familiares têm de exigir o respeito pelo descanso e pela memória dos seus mortos". No mesmo sentido entende o Professor Pedro Paes de Vasconcelos.8 Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que permite a extensão do direito à indenização pelos danos causados à pessoa do morto, a todos aqueles relacionados no art. 12 do Código Civil, atribuindo além da legitimidade de ação, o direito próprio de pedir indenização, independentemente de outros herdeiros, inclusive os necessários, mesmo que estes já tenham exercido os mesmos direitos e promovido a mesma ação. Abro a divergência para sustentar, com elevado respeito ao Superior Tribunal de Justiça, principalmente, porque a matéria é polêmica, que a melhor doutrina é a do Professor José de Oliveira Ascensão, a qual demonstra que de fato aos familiares não é exigido que comprovem lesão à sua personalidade, vez que o que deve ser exigido e demonstrado é a lesão a memória do falecido.9 Caso houvesse a necessidade de provar a lesão à personalidade dos parentes, como seria produzida esta prova, vez que o bem jurídico violado foi a memória do morto? A aplicação do princípio in re ipsa, no caso, limita-se a demonstrar que o fato por si mesmo lesiona a memória e o respeito ao morto, não sendo possível estendê-lo aos seus parentes. Como provar a lesão à dignidade dos parentes?  Falar em presunção de dano em face dos parentes seria atribuir um caráter subjetivo ao dano, sem possibilidade de impugnação. Ou seja, entender que a lesão à memória do falecido causaria imediatamente uma lesão a honra dos seus parentes estenderia, por presunção, a lesão a um sem número de familiares, que se prolongaria até o quarto grau na ordem de sucessão, e que na maioria dos casos, nenhuma relação tem com o falecido. Se a ofensa fosse praticada em vida, a pessoa do ofendido teria direito a uma única ação e os seus familiares nenhuma legitimidade teriam para pleitear uma indenização, mesmo que fossem afetadas pelas ofensas dirigidas ao seu parente. Em caso de morte posterior do ofendido, os familiares herdariam os valores da indenização, segundo a ordem de vocação hereditária, bem como, sucederiam no direito de ação, nos termos do artigo 943 do Código Civil. Apesar de os herdeiros terem legitimidade para a propositura de ações visando à proteção pos-mortem dos bens da personalidade, nos termos do artigo 12 do Código Civil, não é possível atribuir a eles a titularidade do bem jurídico violado, pois não se exige a comprovação de dano a sua personalidade, mas sim a comprovação de lesão à memória do falecido.10 Indaga-se, porém, se a legitimidade atribuída aos herdeiros para a propositura de ações de indenização por danos causados à memória do morto possibilitaria tantas ações quantos fossem os herdeiros, ou uma única ação coletiva, ou promovida por um só dos herdeiros? O art. 12, parágrafo único, do Código Civil não indica uma ordem sucessória preferencial, quando gradativamente o parente mais próximo exclua o mais remoto. Porém, o melhor entendimento para essa questão é o de que existe um único direito à indenização, o qual beneficiará todos os sucessores, seguindo a ordem de vocação hereditária, mesmo que a ação tenha sido promovida por aquele que não é o herdeiro mais próximo. No caso, o dano é causado a memória do morto. Os sucessores serão beneficiados com o valor pago a título de indenização; não há uma transmissão do direito da personalidade do morto para os seus sucessores, não sendo o herdeiro titular de um direito próprio de indenização, mas possuidor exclusivamente de uma legitimação processual para agir em defesa da memória do morto. Assim, o valor atribuído na ação de indenização será partilhado entre os herdeiros legais, independente do fato de alguns deles não terem participado efetivamente da propositura da ação. Do contrário, teríamos um número infindável de ações, tantos fossem os herdeiros do morto.11 O dano post-mortem aos bens da personalidade é único e autoriza uma única ação, que pode ser promovida em conjunto por todos os herdeiros legitimados, por alguns deles, ou por um só herdeiro, e terá por objeto a indenização por dano causado à memória do morto, diante dos valores relativos aos direitos da personalidade que devem ser preservados com a sua morte. A legitimação atribuída no artigo 12 do Código Civil não permite concluir que aquelas pessoas ali relacionadas sejam os titulares dos bens jurídicos da personalidade objeto de proteção. São eles guardiões dos interesses do morto, em respeito à sua personalidade enquanto pessoa viva, estando autorizados a pleitearem indenização pecuniária nos limites do dano causado, e não em seu interesse próprio. *Silvio Romero Beltrão é pós-doutor em Direito pela FDUL. Juiz de Direito. Professor adjunto da UFPE. __________ 1 SOUZA, Rabindranath V. A. Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 192. 2 SÁNCHEZ, Clemente Crevillén. Derechos de la personalidad: honor, intimidad personal y familiar y propia imagem en la jurisprudencia. Madri: Actualidade, 1995, p. 54. 3 SÁNCHEZ, op. cit., p. 55. 4 CORDEIRO, Menezes. Tratado de Direito Civil Português - Parte Geral. Coimbra: Almedina, 2000, p. 514. 5  VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 119. 6 Idem. 7 Idem, p. 120. 8 Idem. 9 ASCENSÃO, José de Oliveira. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Editora Coimbra, 1997, p. 90. 10 Idem. 11 SANTOS, Antônio Jeová. Dano moral indenizável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 485.
Introdução A realidade nos hospitais brasileiros, que mantêm programas de Residência Médica, mostra médicos residentes - em época de normalidade - trabalhando em excesso. O limite da carga horária prevista na legislação é ultrapassado. A urgência ou emergência impõem aos residentes, muitas vezes, intervenções sem a imprescindível assistência do preceptor. Literalmente, os residentes ficam entregues à sua própria sorte - ao lado de pacientes inteiramente alheios àquela anômala situação. O sistema é implacável, não permite insurgências ou reclamações. O ingresso na Residência demanda enorme sacrifício - e a única alternativa que resta ao médico em formação é concluir sua especialização, habilitando-se ao exercício profissional em condições mais favoráveis. O propósito da Residência Médica é possibilitar, por meio de treinamento, que o profissional adquira um nível de excelência e aprimoramento em determinada área específica da Medicina. Os médicos residentes são aprendizes de uma especialidade sob orientação de preceptores, que sãoprofissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional.Contudo, desde 2020, com o anúncio da Organização Mundial da Saúdesobre a pandemia da Covid-19, o cenário da atuação dos residentes tem sido substancialmente modificado.Em meio ao caos da atual pandemia, no olho desse furacão da emergência sanitária, os médicos residentes têm sido exigidos até o limite de suas forças. Trabalham até a exaustão, em condições adversas e, muitas vezes, hostis. Veem-se na contingência de descurar da própria formação, para se dedicar inteiramente aos pacientes da Covid-19. Em linhas gerais, a Residência Médica, por força da lei 6.932/81, consiste em modalidade de ensino de pós-graduação, e os médicos que a realizam, apesar de terem concluído o curso de Medicina são juridicamente equiparados a estudantes na área da especialidade correspondente. A Referida lei traz consigo certo grau de utopia, sobretudo no artigo 1º, que tipifica o médico como mero estudante. Todavia, como bem afirmam Pessoa e Constantino (2002, p. 821), muito além de estudante, o residente é- de fato - mão de obra essencial dos hospitais: A força de trabalho do residente, reconhecidamente importante em todos os hospitais com programa de Residência Médica, deve ser vista e utilizada no sentido de que esse é um momento de aprendizagem. Ou seja, o atendimento prestado pelo residente, isoladamente, não é o objetivo da inserção do mesmo no programa. Se em tempos normais os residentes já eram reconhecidamente peças fundamentais na rotina dos nosocômios, quiçá com o advento da atual pandemia, que os colocou à linha de frente do combate ao novo coronavírus, conforme se observada descrição abaixo do cenário caótico na prática da Medicina: Não demorou muito para o sistema de saúde entrar em colapso. Hospitais de campanha começaram a ser montados; faltavam leitos, respiradores, oxigênio. Não bastassem todas essas dificuldades, os profissionais de saúde foram rapidamente contaminados, pois faltavam materiais de proteção individual e, o próprio desconhecimento do comportamento do novo vírus, propiciava o contágio entre os membros das equipes assistenciais [...]. É aí que fora convocada a força de trabalho dos médicos residentes. (Folha Machado e Stellfeld, 2020, p. 71). Após inúmeros profissionais da saúde serem contaminados no país, criou-se, por meio da Portaria nº 580 do Ministério da Saúde, o programa "O Brasil Conta Comigo - Residentes na área da Saúde", a fim de suprir a necessidade de médicos e demais profissionais da saúde no combate ao novo coronavírus, sendo uma ação estratégica criada para ampliar o número de atendimentos aos pacientes contaminados e salvar o maior número de vidas possível. Contudo, residentes deixaram seus programas de estudos nas mais diversas áreas de especialidades médicas e, praticamente sem nenhum arbítrio, foram remanejados ao atendimento de pacientes acometidos pela Covid-19. Ao lado do maior reconhecimento nacional da relevância desses profissionais no cenário pandêmico, os quais saíram do anonimato e assumiram papel de protagonismo, surge imprescindível reflexão acerca da eventual responsabilização civil dos médicos residentes. Pandemia e responsabilidade civil do médico residente Quem optou pela Medicina e jurou consolar, aliviar e curar, nos moldes ditados por Hipócrates, certamente busca proporcionar qualidade de vida e bem-estar ao paciente. A respeito disso, frise-se que, "a atividade curativa, em regra, não gera risco ao paciente. Antes, muito pelo contrário, visa a afastar o risco do agravamento do seu estado de saúde do doente, propiciando-lhe melhora ou cura total" (Kfouri Neto, 2018, p. 82). Todavia, podem acontecer eventos adversos na atuação médica, especificamente no contexto do médico estudante no front do cenário atual. Para determinar quando o médico será responsabilizado civilmente por ocorrências danosas provenientes de sua intervenção, o ordenamento jurídico nacional condicionou a existência de culpa na conduta correspondente, como aduz Matielo (2014, p. 31): "no que concerne à responsabilidade civil dos médicos, segue-se a regra geral da imprescindibilidade da demonstração da culpa do agente (...)". A rigor, do médico exige-se diligência, empenho máximo e utilização da melhor conduta profissional. Contudo, a aferição da culpa médica durante a pandemia adquire certas peculiaridades e exige maiores reflexões. Não há como exigir do profissional, sobretudo do residente, por uma ilusória perfeição e diligência em meio ao caos pandêmico. Rosenvald (2020) enfatiza que "praticar medicina em condições de crise, como as criadas pela Covid-19, não é o mesmo que praticar em condições sem crise" - quanto mais para um profissional ainda em formação. Ademais, "profissionais de saúde precisam de um escudo de responsabilidade civil para que não se preocupem com pretensões judiciais enquanto lutam para salvar vidas".(Rosenvald, 2020) França (2014, p. 289) assevera que "os médicos residentes são os menos vulneráveis à questão da responsabilidade civil, em virtude da sua condição de aprendizagem e pela necessidade da presença obrigatória dos preceptores em seus atos".Em termos de deveres de cuidado com o paciente, obviamente que a inexperiência não exime o residente da responsabilidade perante o doente, pois ele é graduado e inscrito no Conselho Regional de Medicina. Todavia, já defendemos tese, que vem ganhando voz na doutrina, no sentido de que é possível pensarmos na redução equitativa da indenização, nos termos do art. 944, parag. único, do CC, no caso dos médicos residentes. (Folha Machado e Alvarez Vianna, 2020). Por outro lado, em estudo anteriormente desenvolvido, verificou-se que esse entendimento é minoritário na jurisprudência brasileira. A realidade consiste em decisões que fundamentalmente atribuem o mesmo grau de responsabilidade ao preceptor e médico-residente, porquanto, de acordo com os julgadores, o residente é médico já formado e, como tal, passível de responsabilização como os demais profissionais (Apelação Cível nº 0015883-16.2011.8.26.0482, TJSP; Apelação Cível nº 0057761-21.8.26.0114, TJSP; Apelação Cível nº 0026718- 21.2013.8.26.0053, TJSP). Contudo, há célebre e inovadora decisão do STJ, do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que julgou o Recurso Especial 316.283/PR (2002), na qual destacou a diferença entre a responsabilidade do médico residente e de seu preceptor e enfatizou: "não comungo da assertiva de que, para a lei, todos os médicos são iguais, pois sempre será necessário considerar as condições pessoais do médico e as circunstâncias de sua atuação". Considerar o residente como um soldado despreparado e ter presente a condição do residente médico como "pós-graduando" é essencial para lembrar que, não obstante se trate de alguém graduado, não se alcançou o nível de especialista, sendo assim, se eventualmente cometer algum equívoco, sua responsabilização deverá ser atenuada com base no artigo 944, parag. único, do Código Civil. Em regra, diante da complexidade de um atendimento emergencial, onde as circunstâncias não são as mais favoráveis e os profissionais precisam agir rápido e ter cuidados redobrados, são imprescindíveis os protocolos e as recomendações ou diretrizes clínicas. Contudo, o cenário da responsabilidade profissional do médico é particularmente delicado quando se considera a inexistência de protocolos terapêuticos universalmente estabelecidos para atendimento dos pacientes, motivo pelo qual é fundamental a análise particularizada da culpa médica tendo em vista a extraordinariedade do momento(Kfouri, Dantas e Nogaroli, 2020).Longe de defendermos a impunidade em situações manifestamente lesivas e erro grosseiro, visa-se, unicamente, garantir ao médico que o exercício da profissão em tempos de pandemia não seja tão "perigoso" quanto o próprio vírus. Ao investigar cada caso de erro médico, o juiz deverá ponderar sobre as suas peculiaridades, especialmente os diferentes níveis profissionais envolvidos - se acadêmico, residente ou especialista -, e, além disso, deve especialmente considerar o caos da atuação médica trazido pela pandemia, para, então, determinar a responsabilização adequada e razoável.  Vale ainda a ponderação de que a Residência Médica tem diferentes durações conforme a especialidade. Sendo assim, além de tratar o residente com maior benevolência, há de considerar qual estágio da Residência este se encontra (se é, por ex. um R1, R2, R3, R4 ou R5). Frise-se que o residente é um clínico geral em fase de aprimoramento para o exercício como especialista em determinada área. Magalhães (1984, p. 309) defende critérios para avaliar a culpa médica, dentre estes: "O clínico geral deve ser tratado com maior benevolência que o especialista". Na mesma trilha, Alsina (1993) afirma que "a diligência exigível de um médico especialista é maior que a correspondente ao não especialista". Logo, os "residentes não devem ser confrontados com situações para as quais não estejam preparados" (Kfouri, 2019, p. 270). Paradoxal, não é mesmo? Considerações finais Para evitar erros e possibilitar a aprendizagem ideal aos médicos residentes, a legislação impôs a figura do preceptor - profissional médico incumbido de supervisionar a atuação do residente. Entretanto, o programa do Ministério da Saúde foi criado justamente para suprir a ausência de médicos suficientes para combater a pandemia. Como poderia, então, em meio ao caos estabelecido pelo vírus, cumprir a disposição da lei 6.932/1981, ao impor que o estudante deve atuar acompanhado? Ao estabelecer a Portaria nº 580, o próprio Estado de Direito criou um limbo jurídico, no qual o maior prejudicado é o residente médico. Nas breves considerações ora apresentadas, fundamentamosque, em eventual processo sobre erro médico que envolva o médico estudante como réu, especificamente a atuação isolada de residentes durante a pandemia, caberá ao juiz, ponderar, equalizar ou mitigar a responsabilidade civil deste, após análise minuciosa das peculiaridades do caso. Em momento algum, defendemos aqui a possibilidade de isentar o residente de responder por condutas nitidamente inadequadas e errôneas. A tese é a da necessidade de conferir ao médico residente, profissional em formação, um grau de culpa compatível, não só com o caso concreto, mas também, e sobretudo, com seu estágio acadêmico-profissional, somando-se às peculiaridades da atuação médica em meio ao caos pandêmico. *Yasmin A. Folha Machado é doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Médico pela Unicuritiba. Graduada em Direito pela PUCPR. Integrante do Grupo de Pesquisas de Direito da Saúde e Empresas Médicas, coordenado pelo Prof. Dr. Desembargador Miguel Kfouri Neto. Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogada. **Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestranda em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Pós-graduanda em Direito Médico pelo Centro Universitário Curitiba. Coordenadora do grupo de pesquisas em "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do grupo de pesquisas em direito civil-constitucional "Virada de Copérnico" (UFPR). ***Miguel Kfouri Neto é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina. Autor de diversos artigos e obras jurídicas na área de responsabilidade civil médico-hospitalar. Refereências bibliográficas ALSINA, Jorge Bustamante. Teoría general de La responsabilidad civil. 8. ed. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 1993. FOLHA MACHADO, Yasmin A.; Stellfeld, Emma Louise. Médicos Residentes: do anonimato ao protagonismo. Revista de Direito Médico e da Saúde: doutrina, legislação e jurisprudência. Brasília, nº 21, p. 66-74, 2020. FOLHA MACHADO, Yasmin A.; ALVAREZ VIANNA, José Ricardo. Necessidade de equalização da responsabilidade civil do médico residente - p. 175 - 198. In:Debates contemporâneos em direito médico e da saúde / Miguel Kfouri Neto, Rafaella Nogaroli, coordenadores. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 12. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2018. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2019. KFOURI NETO, Miguel; DANTAS, Eduardo; Rafaella Nogaroli. Medidas extraordinárias para tempos excepcionais: da necessidade de um olhar diferenciado sobre a responsabilidade civil dos médicos na linha de frente do combate à Covid-19 - p. 505-541. In: Debates contemporâneos em direito médico e da saúde / Miguel Kfouri Neto, Rafaella Nogaroli, coordenadores. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopez de. Responsabilidade civil dos médicos, p. 309. In: CAHALI, Yussef Said (Coord). Responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984. MATIELO, Fabrício Zamprogna. Responsabilidade Civil do Médico. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2014. PESSOA, José Hugo Lins; CONSTANTINO, Clóvis Francisco. O médico residente como força de trabalho.Rev. Soc. Cardiol. Estado de São Paulo, v.12, n.6, p.821-5, 2002. PORTARIA Nº 580 DE 27 DE MARÇO DE 2020. Disponível aqui. Acesso em 20 jul 2021. ROSENVALD, Nelson. Por uma isenção de responsabilidade dos profissionais de saúde por simples negligência em tempos de pandemia. Disponível aqui. Acesso em 20 jul 2021.
terça-feira, 20 de julho de 2021

Prescrição de danos ambientais

Introdução  Este artigo tem por objetivo examinar o tema da prescrição dos danos ambientais no direito brasileiro. O STF, ao decidir o RE  654833, fixou, por maioria, o tema 999 de Repercussão Geral, com a seguinte tese: "É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental". A tese adotada pelo STF, como se demonstrará, não corresponde à melhor aplicação do direito.   A prescrição dos danos ambientais é tema controverso, pois há legislações omissas e outras que dela tratam diretamente, formando três (3) grupos distintos:  há (1) países que não possuem legislação sobre o assunto (Brasil e Argentina); países (2) que reconhecem a prescrição dos danos ambientais (Chile, México e Panamá) e (3) países que expressamente reconhecem a imprescritibilidade dos danos ambientais (Equador- Artigo 396, 4º da Constituição. Las acciones legales para perseguir y sancionar por daños ambientales serán imprescriptibles.).1 Na Europa2, a prescrição está disciplinada em nível regional e ao nível dos estados3.  A Prescrição como instrumento de segurança jurídica A prescrição é uma das consequências do tempo sobre o direito, possuindo significação jurídica, tal como as manifestações de vontade e dos demais atos aquisitivos de direitos. O tempo é um elemento que se soma aos demais requisitos formadores de um direito. Para San Tiago Dantas (1979) a influência do tempo no direito, pela inércia do titular, serve a vários propósitos, com destaque para o estabelecimento da segurança das relações jurídicas. São poucas as hipóteses de imprescritibilidade de direitos ou mesmo de ações previstas na Constituição Federa (C.F.), com destaque para a imprescritibilidade dos direitos sobre terras indígenas (art. 231, § 4º), não havendo qualquer menção ao tema no artigo 225 da Carta Política. O dano ambiental pode ser definido como alteração adversa das condições ambientais vigentes em determinado momento. Todavia, é necessário considerar que o dano ambiental pode ser dividido em dois grandes blocos, sendo o (1) primeiro constituído pelos danos aos recursos naturais em si mesmos, água, flora, fauna etc, ou danos ambientais próprios (ecológicos) e  o segundo (2) bloco constituído pelos  danos causados a outros bens jurídicos tutelados, tais como, à saúde humana e animal,  às propriedades, bens e atividade econômica, os danos ambientais impróprios. Há consenso que em relação aos danos ambientais impróprios não se discute a incidência da prescrição: "Em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias"4. A controvérsia limita-se à prescrição da reparação dos danos ecológicos, ou danos ambientais próprios.   Nos países nos quais não há previsão legal para a prescrição de danos ao meio ambiente, recorre-se ao Código Civil para solucionar a questão.  Na Argentina, e.g., o Código Civil e Comercial unificado5 estabelece as normas gerais de prescrição e decadência aplicáveis na ausência de disposições específicas, como é o caso da ação de reparação de danos ao meio ambiente, sendo o prazo de 5 (cinco) anos o genérico6. As ações indenizatórias de danos derivados de responsabilidade civil prescrevem em 3 (três) anos; já no prazo de 2 (dois) anos prescreve a ação de responsabilidade civil decorrente de danos de natureza extracontratual. No Chile, há a prescrição ambiental7, estabelecendo a lei 19.330 que o início da contagem do prazo prescricional se dá a partir da manifestação evidente do dano. O artigo, como se percebe, determina que é a ciência do dano que dá início a fluência do prazo, no caso dos danos continuados e evidentes, que se renova diariamente (CS, Rol 47890-2016, 2-03-2017). No Brasil, a prescrição no regime geral do Código Civil se dá em 10 (dez) anos, salvo estipulação legal em contrário. No caso dos danos ambientais impróprios, o prazo prescricional aplicável é o constante do §3º, V artigo 206 do CCB. Jurisprudência criativa O Recurso Extraordinário 654833 se originou do Resp. 1120117/AC, de cuja ementa destaca-se: "O direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal." E mais: "O dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental."  Como se pode perceber há (1) o reconhecimento expresso da inexistência de norma legal declarando a imprescritibilidade dos danos ambientais e (2) uma clara confusão entre dano ambiental e direitos indisponíveis, "como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade".   A argumentação, do ponto de vista jurídico, é modesta. A imprescritibilidade, no caso, não está amparada pelo direito à vida, como criativamente, a questão é tratada. A resposta jurídica para a questão é muito mais simples: O § 4º do artigo 231 da C.F. estabelece a imprescritibilidade dos direitos sobre as terras indígenas. Cuida-se, evidentemente, de um regime jurídico especial que não se confunde com o regime geral aplicável aos danos ambientais fora de terras indígenas. A argumentação da decisão, no entanto, parte para províncias distantes do caso concreto. Salvo engano, o § 4º do artigo 231 da CF não é citado uma única vez. Trata-se, efetivamente, de uma das poucas hipóteses de imprescritibilidade declaradas formalmente na C.F. Ora, sabe-se que exceções são interpretadas restritivamente.  O STF, por sua vez, reproduziu a equivocada interpretação - por maioria -, criando direito novo. O reconhecimento da imprescritibilidade dos danos ambientais serve para aumentar a proteção ambiental? A resposta é, certamente, negativa. Há que se considerar que a vida humana, sob todos os aspectos se faz sobre a base da utilização dos recursos ambientais. A partir disto, o conceito de danos ao meio ambiente varia no tempo e no espaço. Caso sejam utilizados conceitos atuais e contemporâneos de danos ambientais ao passado, corre-se o risco de desestabilizar a vida em sociedade, sem qualquer benefício ambiental. Ao contrário, podem ser criados danos ambientais mais amplos. A C.F, por exemplo, admite o conceito de meio ambiente cultural (art. 216, V) que, em não poucas oportunidades, é construído com "sacrifício" do meio ambiente natural, e, g., aterro do Flamengo (Rio de Janeiro) ou monumento ao Cristo Redentor (Rio de janeiro). Do ponto de vista estritamente ecológico, tais obras de arte humana causaram danos indiscutíveis.  A tese da imprescritibilidade, seguramente, coloca em risco a existência de tais bens culturais. Certamente, poder-se-ia alegar que não é cabível à argumentação, pois tais obras de arte já se incorporaram ao meio ambiente cultural, pelo decorre do tempo. Entretanto, nem tudo aquilo que foi feito no passado se transformou em obra de arte. Há cidades inteiras que são construídas às margens de rios (Recife, v.g.), ocupando o que atualmente são áreas de preservação permanente. Logo, há equívoco em se proclamar a imprescritibilidade de danos ambientais sem uma previsão legal expressa, não cabendo a extrapolação do § 4º do artigo 231 da CF para toda e qualquer situação relativa a danos ambientais, pois as exceções são interpretadas restritivamente.  Temos, portanto, que no direito brasileiro é de 10 anos o prazo prescricional para danos ambientais. *Paulo de Bessa Antunes possui mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1997). Foi Visiting Scholar da Lewis and Clark School of Law (Portland, Oregon), Membro da Deustch Brasilianisch Juristen Vereingung (DBJV), Presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental - UBAA. Procurador da República aposentado, tendo exercido por diversos anos a atividade de proteção ao meio ambiental. Professor Associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito e Políticas Públicas - PPGD~UNIRIO Professor de Direito Ambiental Autor de diversos livros Referências ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano Ambiental: uma abordagem conceitual. São Paulo: Atlas. 2ª edição. 2015 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. São Paulo. Atlas. 22ª edição. 2021 OST, François. O tempo do Direito (tradução de Élcio Fernandes). Bauru: EDUSC. 2005 SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil - aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945). Parte Geral. Rio de Janeiro: Editora Rio. 4ª Tiragem. 1979. __________ 1 Disponível aqui, acesso em 11/07/2021. 2 Artigo 10º -   Prazo de prescrição para a recuperação dos custos - A autoridade competente tem o direito de instaurar, contra o operador ou, se adequado, contra o terceiro que tenha causado  o dano ou a ameaça iminente de dano, uma ação de cobrança dos custos relativos às medidas tomadas por força da presente diretiva, dentro de um prazo de cinco anos a contar da data em que as medidas tenham sido completadas ou em que o operador ou o terceiro responsável tenha sido identificado, consoante a que for posterior. Disponível aqui, acesso em 11/07/2021. 3 Portugal. DL  147/2008.  Artigo 33.º Prescrição Consideram-se prescritos os danos causados por quaisquer emissões, acontecimentos ou incidentes que hajam decorrido há mais de 30 anos sobre a efetivação do mesmo. Disponível aqui, acesso em 11/07/2021. 4 Superior Tribunal de Justiça.  REsp 1120117/AC, Rel. Ministra Eliana CALMON, 2ª  TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 19/11/2009. 5 ARTICULO 2532.- Ambito de aplicación. En ausencia de disposiciones específicas, las normas de este Capítulo son aplicables a la prescripción adquisitiva y liberatoria. Las legislaciones locales podrán regular esta última en cuanto al plazo de tributos. Disponível aqui, acesso em: 07/072021. 6 ARTICULO 2560.- Plazo genérico. El plazo de la prescripción es de cinco años, excepto que esté previsto uno diferente en la legislación local. 7 Artículo 63.- La acción ambiental y las acciones civiles emanadas del daño ambiental prescribirán en el plazo de cinco años, contado desde la manifestación evidente del daño. Disponível aqui, acesso em 11/07/2021.
Seguindo o fluxo da constante normatização deontológica sobre o tema, em 15 de junho de 2021, foi publicada, no Diário Oficial da União (DOU, Seção I, p. 60), a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.294/211, que aporta normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida e revoga a normativa antecessora, a Resolução CFM 2.168/172. A norma atual manteve questões importantes e trouxe, também, aspectos positivos3, mas, por outro lado, conferiu disciplina acentuadamente controversa a determinados pontos4, o que tem demandado reflexões bioéticas e jurídicas, considerando os direitos dos sujeitos envolvidos - o paciente e o médico. A proposta, aqui, é uma prévia reflexão panorâmica sobre as mudanças trazidas pela Resolução, para a análise da dimensão de responsabilidade que possa envolver a doação anônima de gametas.        NOTAS PONTUAIS SOBRE AS MUDANÇAS TRAZIDAS PELA RESOLUÇÃO CFM 2.294/21 Uma análise prévia sobre as alterações trazidas pela Resolução CFM 2.294/21 deve partir da necessidade de que os comandos deontológicos coadunem as demais normas do ordenamento jurídico, em especial, as previstas na Constituição da República (como os direitos fundamentais) e, também, na legislação civil, (como os direitos da personalidade). A harmonização entre normas hierarquicamente distintas é um pressuposto fundamental à construção de uma tutela adequada. A inexistência de legislação ordinária, emanada do poder legislativo brasileiro, que regulamente a utilização das técnicas de RA, corrobora, historicamente, o papel do CFM na regulamentação da temática, ainda que destinada estritamente às condutas dos profissionais que aplicam as técnicas. Um dos pontos fundamentais da regulamentação deontológica tem sido a medida de preservação das autonomias do paciente (e, mesmo, do médico) diante dos comandos normativos atuais. A Reprodução Assistida, até a Resolução CFM 2.168/17, foi pontualmente concebida como mecanismo de auxílio aos problemas de reprodução humana, de forma a facilitar o processo de procriação (Item I.1). A Resolução CFM 2.294/21 excluiu a concepção restritiva, baseada na infertilidade física5, concebendo as técnicas como meios facilitadores do processo de procriação (item I.1). Tal concepção é concretizada na manutenção da ideia de que "é permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros" (Item II.2 da Resolução CFM 2.294/21), previsão que havia sido incluída na Resolução de 2017 em 2020. Assim, é possível perceber que outras motivações, não relacionadas a impedimentos biológicos, também são capazes de fundamentar a demanda pelos procedimentos artificiais de reprodução - as motivações de ordem pessoal, como nos casos de mães ou pais solteiros, viúvos e casais homoafetivos, que não querem contrariar sua orientação sexual, apesar de férteis muitas vezes. Em situações como essa, as técnicas de procriação artificial são necessárias porque dependem de um terceiro doador de gametas e/ou gestante por substituição6. Da leitura da exposição de motivos da Resolução CFM 2.294/21, é possível inferir a tentativa do Conselho em incorporar à norma deontológica, sob a perspectiva bioética, entendimentos científicos, decisões judiciais e posições jurídicas correlatas já reconhecidas e não antes previstas na norma7. Contudo, do ponto de vista biojurídico, acredita-se, ainda, na necessidade legislativa de avançar em prol da garantia de prerrogativas que contemplem a autonomia das decisões no que tange aos projetos parentais assistidos. A Resolução nova propugna a diminuição das chances de gestações múltiplas, reconhecidas como de risco, com a restrição do número de embriões transferidos e a limitação da idade da receptora (item I.78 da Resolução CFM 2.294/21). Por outro lado, levando-se em conta a saúde reprodutiva e o êxito da técnica, houve a redução da idade do homem (de 50 para 45) e o aumento da idade da mulher (de 35 para 37) para doação de gametas (item IV.3 da Resolução CFM n.º 2.294/21). A Resolução limitou, também, o número de embriões gerados em laboratório que, nos termos do item V.2 da Resolução CFM 2.294/21, não poderá exceder a 8 (oito). A justificativa apresentada na exposição de motivos para a limitação é a existência de muitos embriões excedentários congelados e abandonados nas clínicas, o que não coaduna posição já vigente no país sobre a natureza jurídica do embrião humano e entendimento científico até então firmado sobre as características do processo de fertilização laboratorial. A RA é um processo complexo, sem possibilidade de cálculos precisos, que pressupõe o excedente embrionário como resultado da prática. A limitação do número de embriões gerados, sem a apresentação de uma justificativa científica, restringe o exercício dos direitos reprodutivos e da autonomia, na medida em que nem todos os embriões serão viáveis: uns não desenvolverão, outros podem apresentar questões genéticas e não serão transferidos e outros, ainda, serão implantados e não gerarão a gravidez. Deve-se depreender que a limitação do número de embriões gerados pode contribuir significativamente para o aumento do custo das técnicas de RA e atingir, também, a saúde reprodutiva e psicológica dos envolvidos, já que pode simbolizar a necessidade de realização de mais tentativas. No item V.4, a Resolução CFM 2.294/21 exige autorização judicial para o descarte de embriões. Tal previsão não evidencia harmonia, de um lado, com a natureza jurídica do embrião extrauterino, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3510 em 2008; de outro lado, com a autonomia manifesta no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), exigido previamente para a realização da prática de RA. Tal previsão é um apelo injustificável à judicialização da relação. A submissão da decisão do descarte do excedente embrionário à autorização judicial contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que um embrião extracorpóreo não titulariza a condição de pessoa e evidencia uma série de questionamentos. Quanto tempo durará esse processo? Não seria mais um ônus emocional e financeiro aos envolvidos? Tal dispositivo seria válido para os descartes consentidos após a nova Resolução, permanecendo os anteriores como ato jurídico perfeito? No campo da gestação de substituição ou cessão temporária de útero, o CFM trouxe a exigência, no item VII.1 da Resolução 2.294/21, de que a cedente temporária, além de pertencer à família de um dos parceiros usuários das técnicas de RA em parentesco consanguíneo até o quarto grau, deva ter ao menos um filho vivo. Qual é o fundamento científico para essa exigência? Seria um eventual conflito positivo de maternidade? Ocorre que a técnica é desenvolvida com a manifestação do consentimento por meio do TCLE, além do próprio contrato, onde deve estar claramente determinada a relação de maternidade. Sobre a noção de consanguinidade no parentesco, há outra questão problemática, na medida que o Direito das Famílias atual é fundado no afeto e nas relações socioafetivas. Desse modo, o próprio item traz a possibilidade de que existem exceções que deverão ser avaliadas e autorizadas pelo Conselho Regional de Medicina. Por fim, passa-se, em seguida, às questões concernentes ao item IV que versam sobre a doação de gametas e embriões.  DOAÇÃO DE GAMETAS À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO                Até a Resolução CFM 2.168/2017,9 a doação de gametas ou embriões para uso das técnicas de RA era admitida exclusivamente a título anônimo, ou seja, os doadores não podiam conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. Contudo, em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento 52, trazendo as regras para o registro de nascimento de crianças nascidas pelo uso das técnicas de RA, onde previu, no art. 2º, II, que o dito registro demandaria a apresentação de declaração do diretor técnico da clínica de RA, contendo o nome do doador ou da doadora, o registro de seus dados clínicos gerais, características fenotípicas e o nome dos beneficiários e das beneficiárias, dentre outros dados. Ademais, a norma, no §º do art. 2º, exigia a apresentação do TCLE de todas as partes via escritura pública. Tal posição colocava em discussão o anonimato da identidade civil dos doadores e das doadoras, conforme previsto pela Resolução do CFM. Em 2017, o CNJ editou o Provimento n.º 63, que revogou o de n.º 52, passando a harmonizar o sistema e deixar de exigir a apresentação de dados de identificação civil das partes, em especial do doador ou da doadora, garantindo-se, portanto, o sigilo. Ainda que não se trate de situação de mesma natureza, é importante esclarecer que o art. 4810 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei 8.069/90 admite o direito ao conhecimento da origem genética em casos de adoção quando o indivíduo completar a maioridade. A Resolução CFM 2.294/21 incorporou no seu item IV.2 a possibilidade de doação por parentes até o 4º grau, desde que não incorra em consanguinidade. Passa-se, então, a ter um sistema não isonômico quanto ao anonimato de doadores. A justificativa para a incorporação da exceção ao anonimato se deu, conforme exposição de motivos, em razão da existência de decisões judiciais que autorizavam a doação de gametas entre parentes. Ademais, é uma forma de contribuir, em nome da segurança da saúde, para a diminuição da prática de inseminações caseiras11. Do ponto de vista jurídico, em um caso ou em outro, a doação autorizada contratualmente e pelo TCLE garantirá a não extensão da filiação e os direitos daí correlatos. Pontua-se que a Resolução do CFM se afasta do contexto socioafetivo do Direito das Famílias e desconsidera que a autonomia das pessoas envolvidas é suficiente para criar ou afastar o parentesco, não sendo a consanguinidade sua única forma de consecução. A exigência da não ocorrência de consanguinidade na doação entre parentes parece ser pensada a partir de um paralelo com os impedimentos matrimonias previsto no art. 1.521 do Código Civil. Assim, por exemplo, uma irmã não poderia doar seu óvulo para que a cunhada gerasse um embrião produzido com o esperma do próprio irmão, em razão da consanguinidade entre eles. Pondera-se a necessidade de amadurecimento da noção de consanguinidade como uma das formas de vínculo familiar.  RESPONSABILIDADE CIVIL E DOAÇÃO ANÔNIMA DE GAMETAS O item IV.10 da Resolução CFM 2.294/21 prevê que "a responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões". Tal previsão normativa não evidencia clareza em sua proposta finalística, ou seja, carece de ponderações quanto ao seu objetivo. A redação do dispositivo caminha no sentido de isentar a responsabilidade dos profissionais sobre problemas relacionados à escolha de gametas doados via banco, seja quanto aos aspectos terapêuticos, seja quanto ao perfil fenotípico. O estágio atual da Genética acentuou a necessidade de admitir o uso de processos heterólogos de reprodução (com doação de gametas), pois, passou-se a ser possível a identificação das doenças hereditárias transmissíveis que somente seriam evitadas em caso de não uso das células reprodutivas dos indivíduos que possuam o gene. Assim, uma das justificativas atuais, além da infertilidade clássica, é que a doação de gametas seja uma forma de contornar essa realidade, considerando o fato de que exames ou diagnósticos que propiciam o acesso às condições genéticas dos indivíduos são cada vez mais usados em termos procriativos12. Questões importantes emergem do processo de seleção de doadores anônimos de gametas e demandam ponderações. Uma dessa questões está, justamente, nos critérios legítimos para seleção. A Resolução nova, assim como a anterior, não estabeleceu   parâmetros claros para a escolha do doador, ficando, muitas vezes, a questão à mercê da vontade de quem impulsionou o projeto parental ou do médico. A Resolução determina que "a escolha das doadoras de oócitos, nos casos de doação compartilhada, é de responsabilidade do médico assistente. Dentro do possível, deverá selecionar a doadora que tenha a maior semelhança fenotípica com a receptora, com a anuência desta". Não se sabe, ao certo, o que motivou a redação do dispositivo quanto à exclusão da situação que envolve a doação de sêmen. Se a razão da previsão é a manutenção da semelhança fenotípica, não há motivação para que a redação tenha previsto apenas o caso da doação de oócitos na forma compartilhada. Também se faz necessário previsão normativa quanto a casos de reprodução heteróloga com doação de sêmen. O processo seletivo dos doadores aponta para duas questões distintas: os aspectos relacionados à saúde do(a) doador(a) e as características fenotípicas que possam manter relação com a possibilidade de semelhança entre doadores e demandantes. A doação de gametas demanda atenção especial à elaboração do TCLE. As informações de saúde e possíveis exames realizados no material reprodutivo do doador precisam restar esclarecidas aos demandantes. É necessário que na relação entre o médico responsável e as pessoas que demandaram a reprodução assistida fiquem pontuadas quais informações são possíveis de ser aferidas no que tange às condições de saúde do doador(a). Há, também, de se esclarecer que, em genética, não se pode perquirir a ideia de determinismo e, sim, de probabilidade. Logo, o TCLE deve ser concebido como "um instrumento de garantia da autonomia do paciente, mas é, também, instrumento de garantia de direitos do profissional e da instituição, capaz de limitar ou excluir sua responsabilidade."13 Assume, dessa forma, protagonismo o TCLE, na medida em que deve prever, em detalhamento, as questões concernentes às informações de saúde do doador, bem como os critérios fenotípicos para escolha. Assim, ainda que certas características sejam escolhidas no que tange ao doador, não necessariamente serão elas reproduzidas na realidade. Se não é possível garantir a incidência de características de um filho na reprodução natural, também não será possível garanti-las na RA.  As informações referentes à escolha do doador de gametas, em sua dimensão fenotípica e de saúde, devem ser esclarecidas durante a relação médico-paciente, bem como previstas no TCLE. O não esclarecimento das informações pode ensejar responsabilidade civil do profissional, independentemente da ressalva prevista na Resolução CFM 2.294/21. A medida de responsabilidade do profissional envolvido não pode ser previamente excluída, tendo em vista que dependerá da sua conduta diante do dever de informação perante o(s) paciente(s) submetidos à fertilização laboratorial. A doação de gametas é um procedimento que demanda cuidados especiais, bem como a elaboração de um TCLE especifico, com o objetivo da prevenção de litígios por violação de algum direito. _______________ 1 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun. 2021. 2 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun. 2021. 3 Sobre o tema, sugere-se o vídeo 1 do Diálogo entre o CEBID e o JusBioMed, com participação das autoras, disponível no YouTube em: clique aqui. 4 Sobre o tema, além do vídeo da nota vi, sugere-se o vídeo 2 do Diálogo entre o CEBID e o JusBioMed, com a participação das autoras, disponível no YouTube em: clique aqui. 5 "[...] impotentia coeundi (de ereção ou de ejaculação), incluindo aí a esterilização voluntária, ou quando há escassez de espermatozoides, ovulação insuficiente, incapacidade de retenção do embrião no útero para o seu natural desenvolvimento, ou, ainda, pela denominada infertilidade inexplicada." (SÁ, Maria de Fátima Freire; SOUZA, Iara Antunes de. Responsabilidade Civil e Reprodução Humana Assistida: a (in)aplicabilidade das ações de wrongful conception ou pregnancy e birth nos tribunais brasileiros. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (Org.). Responsabilidade Civil e novas tecnologias. 1ed.Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, v. 1, p. 383-397.) 6 MEIRELLES, Ana Thereza. Neoeugenia e reprodução humana artificial. Limites éticos e jurídicos. Salvador: JusPodivm, 2014; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 5ª ed. Indaiatuba: Foco, 2021. 7 É o caso do objeto desse escrito, qual seja, a doação de gametas, que, até a Resolução de 2017, somente era admitida na forma anônima. Contudo, por exemplo, no julgado da Apelação Civil n.º 0007052-98.2013.4.03.6102/SP pelo TRF3 em 2015 (Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun. 2021), foi permitida a doação de gametas (óvulos) entre parentes. 8 "7. Quanto ao número de embriões a serem transferidos, fazem-se as seguintes determinações, de acordo com a idade: a) mulheres com até 37 (trinta e sete) anos: até 2 (dois) embriões; b) mulheres com mais de 37 (trinta e sete) anos: até 3 (três) embriões; c) em caso de embriões euploides ao diagnóstico genético; até 2 (dois) embriões, independentemente da idade; e d) nas situações de doação de oócitos, considera-se a idade da doadora no momento de sua coleta." 9 As Resoluções CFM sobre RA anteriores são: 1.358/92, 1957/2010, 2013/2013 e 2121/2015. 10 "Art. 48.  O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos." 11 MEIRELLES, Ana Thereza. Projetos parentais por meio de inseminações caseiras: Uma análise bioético-jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 24, p. 101-119, abr./jun. 2020 12 MEIRELLES, Ana Thereza; CAVALCANTI, Thais. As novas famílias por projetos parentais assistidos heterólogos: uma ponderação sobre o acesso e os critérios concernentes à escolha do doador de gametas. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 14, n. 32, p. 137-159, jan./abr. 2019. 13 SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Termo de consentimento livre e esclarecido e responsabilidade civil do médico e do hospital. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. (Org.). Responsabilidade civil e medicina. 2ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 75.
1. Introdução. A tecnologia produz enormes benefícios, mas também causa espanto, curiosidade, perplexidade e danos. Nesse contexto, os associados do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade (IBERC) publicaram relevantes reflexões sobre tecnologia, responsabilidade e direito, tendo o Professor Sergio Marcos Carvalho de Ávila Negri redigido coluna destacada, no Migalhas de Responsabilidade Civil: "Personalidade, responsabilidade e classificação dos riscos na Inteligência Artificial e na robótica". O tema da tecnologia também será objeto deste texto, dialogando com algumas questões tratadas na referida coluna e partindo de elementos e pressupostos do constitucionalismo. 2. Constitucionalismo: aspectos gerais e direitos fundamentais. Trata-se de filosofia social e jurídica que informa a construção das práticas constitucionais e o direito constitucional positivo, possuindo como algumas das suas características os direitos fundamentais, a democracia, a separação dos poderes, o controle das autoridades, dos órgãos e dos poderes estatais e a distinção entre poder religioso e poder estatal, assim como o reconhecimento das diferenças entre o público e o privado. Por sua vez, as novas tecnologias1, em maior ou menor medida, impactam nas estruturas centrais do constitucionalismo. No âmbito dos direitos fundamentais, observa-se o reconhecimento doutrinário, legal e jurisprudencial de novos direitos fundamentais (proteção de dados pessoais), além de ricos debates sobre a existência ou não de outros direitos fundamentais (direito ao esquecimento). A privacidade e a liberdade de expressão são intensamente reconfiguradas, modificando seus âmbitos de proteção e suas formas de exercício, gerando a tecnologia novos dilemas sobre o abuso e limites desses direitos. Também a caracterização jurídica do ato ilícito se torna mais difícil por inúmeros motivos, sendo um deles a constante colisão de normas e especialmente de direitos fundamentais. 3. Tecnologia. Esses dilemas dos direitos fundamentais contemporâneos são perpassados pelas interações com a internet, a inteligência artificial, os algoritmos e os robôs. A utilização da tecnologia ocorre em campos bastante diversos da vida social e humana: emprego de drones militares, uso de inteligência artificial para auxiliar no desenvolvimento de fluência em idioma estrangeiro e seleção de músicas em aplicativos, por exemplo. De outro lado, a nota comum do fenômeno tecnológico consiste na substancial integração de tecnologias por bancos de dados, robôs, inteligência artificial e algoritmos2. As empresas tecnológicas que são utilizadas para interação e comunicação de milhões de pessoas, além de poder econômico, exercem de maneira direta ou indireta poder político e social, influenciando ou determinando padrões, condutas e benefícios para pessoas naturais, empresas, autoridades e governos. Assim, o constitucionalismo do Século XXI precisa controlar razoável e adequadamente o poder exercido pelas big techs, devendo a accountability privilegiar a participação dos usuários e os mecanismos democráticos. 4. Democracia e Accountability. Dessa forma, ressalta-se que não se trata de um simples controle estatal e popular sobre as grandes empresas de tecnologia, e sim um imbricado sistema de accountability. A literatura especializada sobre accountability indica a existência de algumas modalidades: vertical (eleitoral e social), horizontal e internacional3. A accountability que os usuários e a sociedade civil precisam aplicar sobre grandes empresas de tecnologia aproxima-se da modalidade de accountability social, porque as pessoas e os afetados pela tecnologia demandam das empresas e dos funcionários responsáveis pelas big techs informações e justificações de suas ações e omissões, podendo ser sancionados positiva e negativamente. Ainda, por meio de eleições (accountability eleitoral), os cidadãos encontram-se atentos às propostas e às ações dos agentes políticos eleitos e dos partidos sobre a adequada regulação legislativa e a construção de políticas públicas, em relação ao emprego e ao impacto da tecnologia, na vida cotidiana de pessoas naturais e jurídicas. Não se olvida da accountability horizontal especialmente em razão da cooperação entre grandes empresas de tecnologia e governos com robustas consequências para os cidadãos. Entende-se por accountability horizontal o controle e a limitação que uma autoridade, órgão ou poder estatal impõe a outra entidade estatal. Nesse sentido, o legislativo necessita fixar normas sobre as big techs, mas também deve regulamentar a utilização da tecnologia por governos e órgãos públicos. O papel da jurisdição é essencial para determinar a legalidade e a constitucionalidade, a partir de casos concretos ou escrutinando a legalidade dos atos normativos, no uso e desenvolvimento de tecnologia pelo Estado. Por fim, a accountability internacional, a qual significa o controle realizado por organismos e entidades internacionais globais e regionais relativamente a atos ou a omissões de autoridades nacionais. Assim, os Tribunais Regionais de Direitos Humanos (Corte Interamericana de Direitos Humanos e Corte Europeia de Direitos Humanos) decidem acerca de assuntos tecnológicos que se relacionam com importantes situações existenciais. 5. Público e Privado. O tema do público e do privado atravessa a discussão sobre o direto e o constitucionalismo moderno. Nesse sentido, há diferenças substanciais, por exemplo, entre as contratações privadas e as contratações públicas. De outra banda, vislumbram-se claras inter-relações entre essas esferas no campo da tecnologia. Apesar de a inovação ser intensamente relacionada com a iniciativa privada, o desenvolvimento tecnológico decorre de incentivo dos governos, em virtude da existência de tributação adequada, de mecanismos de resolução de disputas e da alocação de recursos públicos. Constata-se atualmente a enorme dificuldade de regulamentação das atividades de tecnologia, as quais fixaram um modelo de atuação inovador com interações que transcendem em muito o espaço territorial. A normação privada construída pelas empresas de tecnologia para os consumidores e usuários é bastante assimétrica e desproporcional, porquanto resta ao interessado aderir ou não aos termos propostos pelas big techs. Nessa esteira, é imprescindível a ampliação da participação efetiva dos usuários e dos consumidores na definição e no controle do uso da tecnologia, sem desconsiderar o respeito à iniciativa privada e as atribuições dos governos preocupados em promover os direitos fundamentais. 6. Constitucionalismo Digital. A adequada regulação da tecnologia deve pautar-se no constitucionalismo digital, o qual analisa "o impacto que declarações de direitos, posicionamentos de organizações internacionais e propostas legislativas exercem sobre a proteção de direitos fundamentais no ciberespaço" e o papel da jurisdição constitucional4. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais e o controle judicial de constitucionalidade são assuntos a serem revisitados e repensados. Além disso, a liberdade é bem de primeira necessidade e pressuposto da democracia e do constitucionalismo. Em verdade, a medida da responsabilidade vincula-se diretamente com a liberdade e a autonomia do agente. As novas tecnologias impossibilitam que um comando programado seja descumprindo, produzindo inegáveis vantagens sob diversas perspectivas. Nesse sentido, se o motorista de um veículo automotor ingerir bebida alcoólica superior à quantidade permitida para guiar com segurança, a tecnologia utilizada no automóvel impossibilita acionar o motor. Esse instrumento provavelmente salvará muitas vidas. Por sua vez, a incapacidade de inobservância das condutas programadas pode causar enormes problemas. Em primeiro lugar, o direito é complexo, sendo difícil programar algoritmos ou empregar a inteligência artificial de forma a produzir decisões jurídicas sobretudo em questões que impactam sobre direitos fundamentais. Em segundo lugar, o descumprimento consciente e voluntário das normas é elemento relevante em práticas legítimas de desobediência civil, tendo a tecnologia a aptidão de obstar esse instrumento democrático. 7. Conclusão. A tecnologia impacta fortemente em relações e aspectos sociais, econômicos, políticos e jurídicos. Por consequência, novos desafios surgem para a responsabilidade civil, impondo-se principalmente reflexões sobre as regulações das big techs, o papel do Estado como regulador, usuário e eventualmente violador de direitos com o auxílio tecnológico e a participação popular, dos usuários e dos consumidores. Nesse contexto, o constitucionalismo digital tem e terá grande papel. _____________ 1 Cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford University Press, 2018. 2 Cf. BALKIN, Jack. The Path of Robotics Law. California Law Review Circuit, Berkeley, v. 06, p. 45-60, jun. 2015. 3 Cf. TOMIO, Fabrício Ricardo de Limas e ROBL FILHO, Ilton Norberto. Accountability e Independência Judiciais: uma Análise da Competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Revista de Sociologia e Política [online]. 2013, v. 21, n. 45. 4 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo Digital e Jurisdição Constitucional: uma Agenda de Pesquisa para o Caso Brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 3, out. 2020.
Na era digital, o vazamento de dados tem se tornado frequente realidade e infelizmente tem propiciado setor promissor de vendas no mercado negro (deep web ou dark web). Atesta essa realidade, por exemplo, o fato de que, conforme pesquisa recente (2019) da ACM (Association for Computing Machinery), os vazamentos de dados no Brasil aumentaram em 493%. Ora, se para a economia é certo que os dados pessoais constituem hoje a maior commodity do mundo1; se é certo que até mesmo no campo cultural, como afirma Yuval Noah Harari (Homo Sapiens), por meio da análise de dados, atualmente dispositivos como o kindle nos leem ao invés de nós os lermos, podendo inclusive afirmar "quais partes  do livro você lê depressa e quais lê devagar; em que página fez uma pausa e em que frase abandonou o livro para nunca mais voltar; quais frases abalam seus sentimentos ou não"2; certa também deve ser a necessidade de proteção desses dados íntimos de cada cidadão. Nesse sentido, a ponderação necessária que se deve buscar com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em agosto de 2021 se dará entre o número de demandas judiciais por responsabilidade civil ajuizadas no já abarrotado Poder Judiciário brasileiro e quais medidas este Poder adotará com o nítido papel de contenção dessa enxurrada do porvir. Este rápido esboço cuidará de analisar como têm sido (e como devem ser) julgadas as demandas judiciais individuais de reparação extrapatrimonial em caso de vazamento de dados de particular, sob a perspectiva responsabilidade civil, notadamente do elemento dano. Pois bem. Antes de mais, veja-se que logo na abertura da Seção III, no capítulo "Da Responsabilidade e do Ressarcimento de Dados", o artigo 42 da Lei 13.709/18 anota que o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. Estão aí colocados os requisitos para a reparação. Os sujeitos a que podem ser imputadas as sanções legais são o controlador ou o operador, os quais, conforme os incisos do § 1º do mencionado artigo 42, podem responder solidariamente pelos danos causados quando descumprirem as obrigações da legislação de proteção de dados ou quando não tiverem seguido as instruções lícitas do controlador (hipóteses do inciso I do § 1º do artigo 42); igualmente responderá solidariamente pelos danos causados os controladores que estiverem diretamente envolvidos no tratamento do qual decorreram danos ao titular dos dados (hipóteses do incido II do § 1º do artigo 42). Exceções a esta regra verifica-se no artigo 43 da LGPD, o qual é muito similar ao regramento do parágrafo terceiro do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. São as hipóteses em que os agentes de tratamento conseguem provar: (i) que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído; (ii) que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou (iii) que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros. O artigo 44 da LGPD, de sua vez, também pontua que respondem pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no artigo 46 desta Lei, der causa ao dano. A diretriz aqui nitidamente é a do dever de segurança quanto aos dados. Quanto ao sujeito ativo para pleitear pretensão de danos extrapatrimoniais por violação à legislação de proteção de dados veja-se que o artigo 1.º afirma categoricamente que a LGPD tem por objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da "pessoa natural". Em consonância com este enunciado normativo, veja-se que o inciso I do artigo 5.º consigna considerar-se dado pessoal informação relacionada a "pessoa natural" identificada ou identificável. Portanto, pela inteligência desses dois postulados normativos (artigo 5.º, I e 1.º, caput da LGPD), vê-se como contra legem qualquer papel criativo hermenêutico que venha a aplicar o estatuto desta lei protetiva à pessoa jurídica. Vale dizer que essa discussão existe, igualmente, no âmbito da leitura do artigo 82º na Europa (RGPD), por possuir a seguinte redação: "qualquer pessoa que tenha sofrido danos (...) tem direito a receber indenização do responsável". Filia-se aqui a corrente doutrinária de Cícero Dantas Bisneto, qual seja: "não se apresenta possível, à revelia da legislação aplicável, que expressamente limita o âmbito de aplicação da proteção de dados a pessoas naturais, postular-se uma interpretação ampliativa com supedâneo no art. 52 do Código Civil de 2002, que permite aplicar a pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade."3 Colocadas essas premissas, e sendo cediço que há tormentosa discussão em sede doutrinária quanto ao regime de responsabilidade civil adotado pela Lei Geral de Proteção de Dados, se subjetivo4 ou objetivo5, passa-se a observar aspectos na jurisprudência, amparado já na LGPD (ainda que não esteja em vigor), de indenização por dano moral. Também passa a ser mister deste esboço os métodos para a quantificação do dano moral nesses casos. Ora, já foi dito que violação ao regramento da LGPD gera para o ofendido direito à reparação na esfera patrimonial e extrapatrimonial. Mas aqui chega-se ao questionamento central deste texto: havendo desrespeito ao estatuto da LGPD, o dever de reparar por dano moral é automático, ou seja, caracteriza-se in re ipsa? Dano moral in re ipsa é aquele em que, como o nome sugere, é caracterizado pelos próprios fatos, sendo desnecessário maior rigor probatório nos autos para que reste patente a responsabilidade civil e a consequente necessidade de reparação do dano extrapatrimonial. Casos assim são observados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, em questões como dano decorrente de atraso de voo (overbooking) - REsp 299.532), ou mesmo por inscrição indevida em cadastro de inadimplentes (REsp 1.059.663). Pois bem. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), em decisão de setembro de 2020 (processo 1080233-94.2019.8.26.0100), condenou uma empresa do ramo imobiliário a indenizar em R$ 10.000,00 um consumidor que teve informações pessoais enviadas a outras empresas. Consta da inicial que o autor comprou um apartamento em novembro de 2018 e, no mesmo ano, começou a ser assediado por instituições financeiras e firmas de decoração, que citavam sua recente aquisição com a parte ré. O juízo entendeu se tratar de hipótese de compartilhamento de dados do consumidor sem o consentimento deste. Consta da sentença que o dano moral foi verificado in re ipsa: "o dano a esfera extrapatrimonial também fora demonstrado. Justamente por conta do ato ilícito relativo ao acesso de dados titularizados pelo autor a terceiros, houve violação a direitos de personalidade (intimidade, privacidade, nome). O dano, nesta hipótese, decorre do próprio ilícito (in re ipsa), e resta corroborado pelos documentos que comprovam que o requerente fora assediado por diversas empresas por conta da conduta ilícita da requerida". (processo n. 1080233-94.2019.8.26.0100, às fls. 1258). O mesmo TJ/SP, em decisão de abril de 2021, consignou entendimento diverso do acima analisado. Julgou improcedente pedido de dano moral pleiteado por consumidora que ajuizou ação contra a empresa Eletropaulo "após ser surpreendida com chamada telefônica do IPRODAPE - Instituto de Proteção de Dados Pessoais dizendo que seus dados pessoais haviam sido vazados pela Eletropaulo se encontravam em poder de estranhos. Na Justiça, alegou que passou a enfrentar inúmeros problemas que, até então, não tinha, tais como recebimento mensagens indesejadas via celular e e-mail, ligações de telemarketing, além de ter que se revestir de mais cautela para não adimplir eventuais boletos fraudulentos. Assim, a autora pediu indenização por danos morais argumentando violação à LGPD.6" Nas razões de decidir, o juízo apontou que o vazamento de dados pessoais, per se, não caracteriza dano indenizável. Veja-se: "À parte autora cabia comprovar os fatos constitutivos de seu direito. No entanto, apenas alegou ter sofrido danos morais, sem demonstrá-los, já que não juntou aos autos comprovantes de seu prejuízo. Frise-se que, neste caso, a prova é puramente documental, de fácil acesso da parte autora. Ora, se a parte autora recebeu tantas mensagens em celular, e-mail ou boletos para pagamento como alega, seria muito simples a prova de sua ocorrência. Bastaria apresentar cópia de alguns dos e-mails e dos boletos recebidos, print da tela de seu celular para comprovar o recebimento de mensagens; porém, não trouxe nenhum documento para corroborar suas alegações. Verifica-se, pois, que o vazamento de dados, de per si, não acarretou consequências gravosas à imagem, personalidade ou dignidade da parte autora, vez que, ao menos com base nos elementos probatórios dos autos, o prejuízo foi apenas potencial." (processo n. 1025226-41.2020.8.26.0405, às fls. 705). Em outra oportunidade o TJ/SP, na fraude conhecida como "golpe do motoboy", decidiu que diante de ausência de demonstração de dano que efetivamente viole direito da personalidade, indevida é indenização por danos morais. Consta da ementa que: "(...) suposto vazamento de dados, por si só, não é causa eficiente de danos morais. Sentença mantida. Recurso não provido". (TJSP; Apelação Cível 1033826- 30.2019.8.26.0100; Relator (a): Tasso Duarte de Melo; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 37ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/06/2020; Data de Registro: 11/06/2020). Tal raciocínio é acompanhado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS): "(...) 1. Narra o autor que em razão do vazamento de seus dados sigilosos, foi levado a cair em uma fraude. 2. Sentença que julgou parcialmente procedente a ação, a fim de condenar o réu ao pagamento da quantia de R$ 814,02 a título de indenização por danos materiais. 3. Analisando o conjunto probatório, verifica-se que o autor não demonstrou de forma cabal o abalo moral sofrido, a fim de comprovar fato constitutivo de seu direito, ônus que lhe incumbia, nos termos do art. 373, I, do CPC. 4. Com efeito, o autor tinha um acordo com a ré, recuperadora de créditos, sendo que foi contatado por fraudadores, que dispunham dos dados do acordo e, mediante fraude, fizeram-no pagar uma parcela indevida. 5. O presente recurso cinge-se a postular danos morais por conta do manejo de dados fraudulentos. 6. In casu, não se trata de situação excepcional capaz de determinar a incidência de danos morais, porque tal se daria apenas em caráter punitivo. (...)". (TJ-RS, Recurso Inominado n. 0047026- 37.2019.8.21.9000, Relator Desembargador Fábio Vieira Heerdt, 3ª Turma Recursal Cível, j. 26/09/2019). Em nosso entendimento, têm andado bem os tribunais pátrios, ainda que antes mesmo da entrada em vigor da LGPD, no sentido de não permitir caracterização de dano moral in re ipsa pelo simples fato de ocorrer vazamento de dados. Isso porque, antes de mais, deve-se, ao invés de tratar a responsabilidade civil como autorizadora de punição civil sem dano, voltar-se cada vez mais os olhos para as sanções administrativas previstas na própria LGPD. Ademais, e como se pode perceber no caso acima (trecho de ementa do TJ/RS), tal condenação por reparação moral sem demonstração de dano teria tão somente caráter punitivo, o que, como sabido, não é permitido pelo ordenamento jurídico pátrio, como afirma Paulo de Tarso Sanseverino em obra já clássica: "malgrado a tentativa de se inserir o instituto no ordenamento nacional, por meio da alteração do art. 16 do CDC e a inclusão de parágrafo ao art. 944 do CC, restou fracassado o intuito de adoção explícita da teoria em âmbito nacional". A propósito, sobre o tema da aplicação de dano moral em casos em que não se verifica dano efetivo percebe-se, como já tivemos oportunidade de registrar nesta Coluna, verdadeira caracterização de punição civil. Assim7: "o que se vê, portanto, é a utilização do instituto da responsabilidade civil para sancionar condutas antijurídicas sem qualquer demonstração efetiva do dano moral. Neste caso, jurisprudencialmente fala-se em indenização por dano moral, mas conceitualmente as condenações pecuniárias tratam propriamente do instituto da punição civil, que acaba sendo de fato aplicada sem qualquer previsão legal expressa. Sanciona-se a mera conduta antijurídica." Por fim, especificamente em relação à fixação do quantum indenizatório na esfera extrapatrimonial, deve o intérprete da norma levar em consideração duas fases, sendo a primeira consistente em se fixar um valor básico para indenização levando-se em conta a jurisprudência sobre casos semelhantes para, num segundo momento, analisar as particularidades que o caso concreto venha a ter (o que pode majorar ou minorar o valor). Trata-se, a rigor, do método bifásico de adoção do dano moral (capitaneado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino após estudos doutorais na UFRGS), o qual tem sido adotado no mais das vezes pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 959780). _________ 1 DE LUCCA, Newton. Yuval Noah Harari e sua visão dos dados pessoais de cada um de nós. Migalhas de Proteção de Dados. Disponível em: clique aqui. Acesso em 29 jun. 2021. 2 HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 346. 3 DANTAS BISNETO, Cícero. Reparação por danos morais pela violação à LGPD e ao RGPD: uma abordagem de direito comparado. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, 3, 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em 29 jun. 2021. 4 Idem. 5 Por todos: MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o Direito do Consumidor. Revista dos Tribunais: São Paulo, vol., 1009, ano 108, p. 27. 6 Assim: LGPD: Vazamento de dados não gera indenização se dano não for provado. Portal Migalhas Quentes. Disponível em: clique aqui. Acesso em 28 jun. 2021. 7 KHOURI, Paulo R. Roque A. Khouri. Litigância no Brasil, relação de consumo a falta de eficiência dos aparelhos estatais. Disponível em: clique aqui. Acesso em 4 jun. 2021.
"Direitos Fundamentais", sobretudo quando se utiliza essa expressão no plural, é o modo como denominamos o conjunto de compromissos assumido pelo Poder Público perante o cidadão. Em contrapartida, os deveres fundamentais seriam o projeto civilizatório caracterizador de determinada comunidade1. A partir dessa forma de pensar, observá-los e implementá-los seria o papel do Estado. E, assim, a missão de respeitar, fazer respeitar, regular e torná-los acessíveis é a melhor definição do que seja um "objetivo fundamental da República Federativa do Brasil". Seria a melhor síntese para a busca de uma sociedade livre, justa, solidária e desenvolvida, sem espaço para a pobreza, a marginalização e as desigualdades, na qual o bem de todos fosse promovido para afastar a discriminação preconceituosa. Mas seria possível responsabilizar o Estado por não cumprir esse projeto constitucional? Os requisitos básicos para a existência da responsabilidade estão presentes. Atenção especial será dada ao descumprimento de um dever jurídico. Primeiramente, considere-se que essa compreensão impacta diretamente o que se entende por Estado e o que se espera dele. E "responder" e "esperar" são duas palavras que se unem para formar o diálogo da responsabilidade: há uma expectativa por uma atitude. E, diante da falibilidade humana, certas expectativas insatisfeitas dão ensejo à responsabilidade do sujeito de Direito. Essa conexão entre prescrição de condutas e resultados esperados2 marca a transição de um Estado no qual avultam as funções protetoras e repressivas para um outro modelo no qual a atividade dita promocional ocupa lugar de destaque3. Enquanto aquelas são marcadamente delineadas pela descrição de direitos, estabelecimento de proibições e fixação de atribuições institucionais, estas se caracterizam pelo implemento de mecanismos de acessibilidade aos direitos. As primeiras dependem de uma atitude estatal específica: a edição de leis. As segundas derivam de uma conexão estrutural entre condutas e normas. Nestas, o planejamento passa a ser um método indispensável como vetor do republicanismo e do debate democrático. O advento de um governo por políticas4 ultrapassa as questões sobre o juízo meramente de diretrizes políticas governamentais (policies) para se preocupar com a gestão pública de direitos. Não basta mais ao cidadão a concessão legal do mesmo, mas a construção de vias para a sua efetivação. E essa concepção se espraia por todos os direitos nas múltiplas funções que possuem simultaneamente. Por isso a Constituição de 1988 estabeleceu o dever da União de elaborar e executar planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico e social (21, IX, c/c 43, II, 48, IV, e 174, § 1º), os quais devem ter seus relatórios apreciados pelo Legislativo (49, IX c/c 166, § 1º, II), e sujeitam-se a ser debatidas em suas comissões (58, § 2º, VI). Consequentemente, o Executivo deve anualmente apresentar ao Congresso Nacional as providências que considera cabíveis para a situação nacional (84, XI); as quais se congregam no planejamento orçamentário nacional (165). Além disso, o controle interno de cada Poder deve avaliar o cumprimento das metas dos programas (74, I) - o que é um dever de todos os entes públicos (37, § 16) -, a ser obrigatoriamente considerado no planejamento orçamentário (165, § 16). Essa avaliação, no caso das políticas sociais, deve, inclusive, ter a participação da sociedade (193, parágrafo único). Enfim, deve haver planos de desenvolvimento urbano e agrário, de saúde e assistência social, de educação, cultura e juventude (182, 187, 196, 204, 214, 215, § 3º, e 227, § 8º, II). Como se pode ver, uma obrigação com largo esteio constitucional. Portanto, a consideração do resultado - ainda que possa não ser uma obrigação de fim - ingressa como elemento na atuação do Poder Público5. E que posicionamento se pode extrair do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto? É possível vislumbrar que a Corte passa a observar o planejamento do Estado para proteger direitos fundamentais como fator para sua responsabilidade. As decisões passam a surgir mais técnicas e com suporte em dados e algumas situações podem ser assim classificadas: a)            Dever de planejar: No contexto social, ao julgar o MI 7300, a Corte estabeleceu - após análise de dados orçamentários e de impacto financeiro - que deveria haver a implementação do programa renda cidadã. Uma decisão técnica, com suporte em fatos, redução do caráter retórico-ideológico e com atenção ao planejamento estatal. Tudo isso participa de um contexto maior de redução de riscos por meio da regulação de expectativas de conduta. b)            Dever de implementar planos vigentes: No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 620 (Rel. Min.  Roberto Barroso, julgado em 24/2/21), ao analisar a possibilidade de bloqueio de verbas públicas vinculadas a um aspecto específico, a par do aspecto relativo à ingerência do Judiciário em tema orçamentário, foi dado particular destaque à política pública. Ali é destacada a importância de se "resguardar o planejamento" constitucionalmente elaborado, com atenção ao fato de que se tratava de dar cumprimento a projetos sociais de acesso à água para populações de baixa renda mediante a construção de barragem.  c)            Dever de não ampliar riscos e observar o estado da técnica: Verifica-se uma sistemática atenção da Corte a dados científicos, sobretudo em aspectos que envolvem direta ou indiretamente a saúde pública. Em 2008, no julgamento da ADIn 3.937, o STF entendeu que os danos causados pelo amianto suplantavam a jurisprudência da casa acerca da repartição de competências federativas, tendo em vista a necessidade de se proteger a saúde do trabalhador (Rel. para acórdão, Min. Dias Toffoli). Mencionou-se ali a "inconstitucionalização em razão da alteração nas relações fáticas subjacentes". Esse raciocínio não se mostra historicamente estranho à Corte. No voto condutor da decisão na ADIn 3.366, após salientar a importância do contexto para a hermenêutica sistemática do texto constitucional, o ministro Eros Grau argumentou em prol da apropriação do produto da lavra de jazidas minerais pelo concessionário por ser "inerente ao modo de produção social capitalista". No RE 566471, onde foi discutido o direito a obter judicialmente o acesso a medicamentos de alto custo, desempenhou papel decisivo a consideração de dados científicos acerca da solução medicamentosa e, inclusive, acerca dos procedimentos burocráticos cabíveis. E, no julgamento da ADIn 6.421, foi debatida a responsabilização do agente público no contexto da pandemia de COVID-19. Ficou estabelecido em tese que a motivação decisória deve estar em consonância com as "normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria". d)            Dever de zelar pelo aprimoramento da política pública: E, em referência direta à política prisional, tem sido tratada a questão da responsabilidade do Estado por pessoa foragida (repercussão geral, tema 362)6. No qual são estabelecidas condições como o nexo causal. Mas, em suma, refere-se à possibilidade de responsabilização objetiva do Estado em caso de falha no cumprimento de política pública.  e)            Dever de observar o planejamento e alcançar resultados: Por fim, na decisão da ADPF 770, que chancelou a possibilidade de os Estados e Municípios a adquirirem vacina, trouxe inovadora perspectiva constitucional. Resumidamente, em caso de descumprimento ou insuficiência do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, estes "poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham". Observe-se: o descumprimento de um planejamento passa a ser fator disparador da competência constitucional. E, por outro lado, considerado inclusive os aspectos políticos envolvidos, torna-se uma sanção à União pela inobservância ou falibilidade do plano.  Portanto, pode ser vista uma consolidação do planejamento como um método para o respeito ao desenvolvimento como direito fundamental de acesso a políticas públicas. E a responsabilidade do Estado passa a ser, mais do que um mecanismo indenizatório, uma forma de proteção e promoção dos direitos fundamentais. Para isso, basta verificar os requisitos para constatar o dever de se impor uma conduta reparadora ao Estado. Há o ato, omissivo ou comissivo, do Poder Público perante o planejamento, o nexo causal e o resultado propriamente relacionado com o dever jurídico inobservado. Essa situação causa um prejuízo ao acesso a direitos e que pode tanto ser um dano material subsistente, certo e presente, como um dano moral coletivo. De outra parte, pode haver a condenação a efetuar o planejamento, implementá-lo ou responder pelo seu descumprimento. Dessa maneira, republicanamente, as diversas dimensões dos direitos fundamentais alcançariam proteção para além das lides individuais. __________ 1 Sobre o tema dos deveres fundamentais, v. DUQUE, Bruna Lyra, PEDRA, Adriano Sant'Ana. Os deveres fundamentais e a solidariedade nas relações privadas. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 147-161, jul./dez., 2013. 2 Tratando da análise do resultado para o Direito, cf. CARNELUTTI, Francesco. Teoria Generale del Diritto. 3. ed. Roma: Foro Italiano, 1951. p. 21. Da mesma forma, acerca da importância do alcance de objetivos de bem comum, v. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 541. 3 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de Teoria do Direito. Prefácio de Mario Losano. Apresent. Celso Lafer. Trad. por Daniela B. Versiani. Barueri: Manole, 2007. 4 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 86, n. 737, p. 11-22, mar., 1997.  5 Cf. sobre o tema da legalidade de resultado, IANNOTTA, Lucio (org.) Economia, diritto e politica nell'amministrazione di risultato. Torino: G. Giappichelli Editore, 2003. (Nuovi Problemi di Amministrazione Pubblica, n. 9). MENDONÇA, Fabiano. Introdução aos direitos plurifuncionais: os direitos, suas funções e a relação com o desenvolvimento, a eficiência e as políticas públicas. Natal: 2016. p. 65. BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas.  São Paulo: Saraiva, 2013. p. 198. 6 V. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do Poder Público por omissão e a recente decisão do STF em sede de repercussão geral. Migalhas de Responsabilidade Civil. 10 jun., 2021. Disponível na Internet em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/346805/a-responsabilidade-civil-do-poder-publico-por-omissao
Novas tecnologias e velhas metáforas Como acompanhantes de idosos, de crianças, como artefatos cirúrgicos, entregadores ou seguranças, os robôs já começaram a entrar nos lares e nas vidas das pessoas.1 Antes restritos às fábricas e aos laboratórios, os artefatos robóticos estão cada vez mais integrados aos mesmos ambientes que os seres humanos, o que, por sua vez, pode acarretar grandes impactos e danos, ainda não totalmente mensurados.2 Em razão da indefinição da natureza da própria tecnologia em questão, o Direito se vê obrigado a recorrer a velhas figuras, conceitos já conhecidos, que nos auxiliam a nos aproximar, com certa familiaridade, daquilo que é novo e desconhecido. Em 2017, o Parlamento Europeu apresentou uma resolução com orientações sobre Robótica, com uma proposta de criação de uma personalidade eletrônica para artefatos robóticos "inteligentes".3 A personalidade eletrônica é apresentada como uma resposta aos problemas da responsabilidade civil tendo em vista  possíveis danos que possam ser causados pelos artefatos robóticos. Com efeito, nota-se uma confusão nessa forma de abordagem: a atribuição de uma suposta personalidade jurídica para robôs é tratada como se fosse uma decorrência natural do debate sobre a responsabilidade.4 Traçar a relação entre Direito e novas tecnologias não é uma tarefa fácil e, geralmente, essa aproximação não ocorre de maneira simples. Muitas vezes, essa ligação é viabilizada por meio do uso de metáforas, que servem de instrumento para a concretização de um efeito retórico, equiparando diretamente conceitos diferentes. O imaginário sobre robôs é intensamente marcado pela associação com artefatos antropomórficos, como os androides, que aparecem nos filmes e na literatura. Uma metáfora particularmente sedutora, não só para o Direito, mas também para outros campos, é pensar os robôs a partir de uma retórica antropomórfica, como se fossem pessoas, projetando-lhes autonomia, consciência e outros atributos humanos. Frequentemente, os diferentes conceitos, originariamente fundidos em torno da metáfora, desaparecem, de modo que as diferenças são apagadas e as comparações e analogias ganham vida, passando a ser pensadas em seu sentido literal.  O antropomorfismo não representa uma característica exclusiva da Robótica. A IA também foi historicamente conceituada em termos antropomórficos. Além de sempre se falar de artefatos que pensam e aprendem, o próprio nome (inteligência artificial) nos estimula a comparar reiteradamente os modos humanos de raciocínio com máquinas5. Da mesma forma que acontece com a pessoa jurídica, nem sempre é claro se essa linguagem é utilizada em sentido literal ou figurado.  A metáfora antropomórfica esconde aspectos funcionais da inteligência artificial, fazendo com que essa retórica, que mimetiza qualidades e atributos humanos, possa comprometer o enfrentamento dos complexos desafios éticos colocados pelas tecnologias emergentes. Consequentemente, quando se pensa em qualquer tentativa de disciplinar ou regular a Robótica e a IA, mostra-se fundamental não confundir a existência de uma autonomia ou agência real com a sensação de autonomia ou agência. Infelizmente, a confusão entre a suposta agência dos artefatos com a sensação provocada pela tecnologia emergente conduz a uma naturalização da própria autonomia, como se todo robô com IA necessariamente estivesse, assim como acontece com o ser humano, tomando uma decisão de uma maneira específica e independente.           Pessoa Jurídica e Pessoa Eletrônica  Nota-se, atualmente, a prevalência de uma linha pragmática ou funcional da personalidade eletrônica, a qual, ao se afastar do debate filosófico centrado nas análises ontológicas, procura se pautar, principalmente, no modelo da sociedade limitada personificada. Nesse sentido  argumenta, por exemplo, Jacob  Turner, que chega, inclusive, a sustentar que eventuais abusos, como a não responsabilização de programadores e engenheiros, poderiam ser combatidos por meio da desconsideração da personalidade jurídica.6 A criação de uma personalidade eletrônica pode, contudo,  acabar repetindo os mesmos problemas presentes no unitarismo  da pessoa jurídica. No lugar de se reconhecerem as particularidades das diferentes áreas de atuação de robôs com Inteligência Artificial, unificam-se essas diferentes relações em modelo jurídico único, pautado exclusivamente na figura de um sujeito abstrato. Esse é um problema frequente quando o Direito tenta se aproximar de novas tecnologias. Os artefatos são, na verdade, determinados pelas destinações em concreto, não comportando, assim, generalizações abstratas e reduções unitárias, indiferentes aos variados usos. Tendo isso em mente, seria possível comparar os problemas ocasionados pela utilização da Robótica na Medicina com os usos de drones para fins militares e de segurança? Da mesma forma, a utilização de robôs sociais com pessoas vulneráveis suscitam problemas éticos específicos, distintos dos que se verificam na utilização da Robótica para o transporte de mercadorias e pessoas. Se a personalidade eletrônica foi pensada em função dos problemas gerados pela necessidade de responsabilização pelos eventuais danos, deve-se recordar que há um descompasso entre o formato jurídico da sociedade personificada isolada e o protagonismo econômico da empresa contemporânea. Trata-se de uma contradição interna do Direito, materializada na tensão entre diversidade jurídica e unidade econômica. Para minimizar esse problema, o Direito foi buscar uma nova gramática, aproximando-se da figura de controle e direção, rompendo com o modelo de um sujeito abstrato como ponto central no processo de responsabilização. Novas diretrizes da Robótica e a classificação dos riscos na IA A partir das Leis da Robótica formuladas na obra de ficção de Asimov, Frank Pasquale apresenta quatro "novas leis da robótica" que, ao contrário das propostas por Asimov, são destinadas aos desenvolvedores de sistemas de Inteligência Artificial e não aos robôs.7 A primeira nova diretriz estabelece que os sistemas robóticos e a IA devem complementar os profissionais, não substituí-los. A segunda diretriz determina que os sistemas robóticos e a IA não devem falsificar a humanidade. Sistemas de IA  que criam imagens de "pessoas falsas" e vozes sintéticas têm se tornado cada vez mais comuns. Nesse ponto, devemos questionar se queremos viver em um mundo no qual os seres humanos não sabem se estão lidando com outro ser humano ou com uma máquina. Para Pasquale, há uma distinção importante entre "a humanização da tecnologia e a falsificação de características distintamente humanas".8 Como afirma o próprio autor,  a corrida para imitar a humanidade pode facilmente se tornar uma antessala para a sua substituição. O terceiro mandamento fixa que os sistemas robóticos e a IA não devem intensificar as corridas armamentistas de soma zero, isto é, quando o que uma parte ganha é precisamente o que a outra perde. Não podemos esquecer que as  tecnologias pioneiras dos exércitos também são utilizadas pela polícia (o uso de reconhecimento facial em multidões, por exemplo) e podem criar um estado de vigilância constante. Por fim,  os sistemas robóticos e a IA devem sempre indicar a identidade de seu(s) criador(es), controlador(es) e proprietário(s). Apesar de a vanguarda dos campos de IA enfatizar a autonomia e uma ideia nebulosa de "robôs fora de controle", Frank Pasquale entende que algumas pessoas ou organizações devem ser responsáveis por estes sistemas. Mesmo diante de sistemas com aprendizado de máquina, Pasquale aponta que o criador original deve ser obrigado a incluir certas restrições na evolução do código para registrar as influências e evitar resultados ruins. Os reguladores precisam também  exigir responsabilidade por design, complementando os modelos de segurança por design e privacidade por design.  Em 21 de abril de 2021, a Comissão Europeia apresentou a Proposta de Regulamento sobre a Inteligência Artificial, que busca estabelecer um quadro jurídico uniforme para o desenvolvimento, a comercialização e a utilização da inteligência artificial no âmbito da União Europeia.9 A atual proposta se afasta da criação de uma personalidade jurídica eletrônica. O texto está amparado em uma abordagem baseada no risco, que modula o conteúdo das normas de acordo com a intensidade dos riscos criados pelos sistemas de IA. No caso de sistemas de IA classificados como de "risco elevado" é necessário implementar um sistema de gestão de riscos contínuo, que deve estar presente durante todo o ciclo de vida, ou seja, até mesmo antes da colocação desses sistemas no mercado. Com o gerenciamento de riscos, surgem obrigações relacionadas a accountability dos sistemas, exigindo a elaboração de documentações técnicas que informem características gerais, capacidades e limitações do sistema, manutenção de registros, implementação de medidas de transparência e adoção de rotinas e procedimentos internos que assegurem a governança de dados. Em síntese, a abordagem baseada em risco deve vir acompanhada de sólidas medidas de transparência, que permitam avaliar o nível de segurança, exatidão, solidez e desempenho dos sistemas de IA. É importante notar também que processos de gerenciamento de riscos  já fazem parte da gramática difundida de compliance das próprias empresas. A confusão entre os modelos representa um grave problema, uma vez que, no caso de tecnologias que impactam diretamente  direitos humanos, como se observa com o reconhecimento facial, esses processos devem seguir uma lógica própria, completamente diferente dos mecanismos tradicionais de gestão dos riscos de negócios relacionados à sociedade empresária. Se nos modelos tradicionais, a preocupação se volta para a própria empresa e para os riscos do negócio, ainda que eventuais violações possam impactar nos riscos da própria atividade, o foco deve estar sempre nos detentores dos direitos que deverão ser respeitados. Da mesma forma, grupos historicamente submetidos a opressões e violências podem se mostrar mais expostos a um risco maior de vigilância e de outros danos ocasionados pelo uso de novas tecnologias. Nesse sentido, a efetiva construção de um modelo pautado na alocação diferencial pressupõe a percepção de que os riscos associados aos usos de novas tecnologias podem não se distribuir de forma linear entre pessoas e grupos.10 *Sergio Marcos Carvalho de Ávila Negri é professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFJF. Membro do corpo docente permanente do programa de pós-graduação Stricto Sensu em Direito e Inovação da UFJF. Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália). Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Pessoa, Inovação e Direito (NEAPID-UFJF). __________ 1 O presente tema foi desenvolvido em: NEGRI, Sergio Marcos Carvalho Ávila. Robôs como pessoas: a personalidade eletrônica na robótica e na inteligência artificial. Pensar - Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, p. 1-14, 2020.  Deve-se registrar que vários associados do IBERC têm enfrentado o tema objeto do presente artigo. Para outras referências ver: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (orgs.). Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba: Foco, 2020. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Riscos e responsabilidades na inteligência artificial e noutras tecnologias digitais emergentes. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. O Direito Civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 543-564. BARBOSA, Mafalda Miranda; NETTO, Felipe Braga; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. (orgs.) Direito Digital e Inteligência Artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021. FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin. (orgs.) Inteligência Artificial e Direito. Ética, Regulação e Responsabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2019. 2 Embora a Robótica não se confunda com a IA, é inegável que, atualmente, esses campos se entrelaçam cada vez mais. Os principais avanços em IA nos últimos anos estão relacionados ao aprendizado de máquina, que permite aos sistemas a identificação de padrões estatísticos e correlações ocultas sem serem explicitamente programados. Como subcampo do aprendizado de máquina, têm se destacado os sistemas de  deep learning, que alcançam grande poder e flexibilidade na tentativa de representação do mundo exterior com uma hierarquia alinhada de conceitos. O aprendizado profundo está intimamente associado à arquitetura das redes neurais artificiais. 3 UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, com recomendações à Comissão Direito Civil sobre Robótica. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 28/10/2019. 4 PAGALLO, Ugo. Vital, Sophia, and Co.-The Quest for the Legal Personhood of Robots. Information , 9, 230, 2018. 5 WATSON, D. The Rhetoric and Reality of Anthropomorphism in Artificial Intelligence. Minds & Machines, [s.l.], v. 29, n. 3, p.417-440, 21 set. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 28/10/2019. 6 TURNER, Jacob. Robot Rules: Regulating Artificial Intelligence. Nova York: Palgrave Macmillan, 2019. 7 PASQUALE, Frank. New laws of robotics: defending human expertise in the age of AI. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press Of Harvard University Press, 2020. 8 PASQUALE, Frank. New laws of robotics: defending human expertise in the age of AI. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press Of Harvard University Press, 2020, p.13. 9 UNIÃO EUROPEIA. Proposal for a Regulation of the European Parliament and the Council Laying Down Harmonized Rules on Artificial Intelligence (Artificial Intelligence Act) and Amending Certain Union Legislative Acts (COM/2021/206). Bruxelas: Comissão Europeia, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 10 jun. 2021. 10 MACHADO, Joana de Souza; NEGRI, Sergio M. C. A.; GIOVANINI, Carolina F. R. Nem invisíveis, nem visados: inovação, direitos humanos e vulnerabilidade de grupos no contexto da COVID-19. LIINC EM REVISTA, v. 16, p. 1-21, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 22/01/2021.
O objetivo precípuo é, a partir da relevância que se dá ao meio ambiente, refletir sobre a possibilidade de levar os argumentos da imprescritibilidade dessas ações reparatórias para outras demandas coletivas, justamente pelos interesses envolvidos nessas situações, que merecerem o mesmo destaque. Por que é certo exigir que as vítimas tenham que agir no tempo determinado pela lei para se verem ressarcidas e não é justo que o lesante fique com seu encargo pendente até arcar com as consequências dos seus atos danosos? Então, antes deixar o devedor/lesante correndo o risco de responder por eventual demanda reparatória, do que os credores/vítimas, sem direito de exigir o ressarcimento, por não terem atendido a um prazo aleatório previsto em lei. Partindo-se da ideia de meio ambiente como um direito fundamental, mister salientar que os direitos fundamentais são "direitos inerentes à própria noção dos direitos básicos da pessoa, que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade1." Os direitos fundamentais de terceira geração, a exemplo do meio ambiente, caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva lato sensu, têm por destinatário principal o gênero humano e, como tal, não devem ser pleiteados exclusivamente ao Estado, ou especialmente a outras pessoas, configurando, na verdade, um direito erga omnes que traz uma solidariedade não só jurídica, como também ética2. De nada adianta a Lei Maior assegurar a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, o meio ambiente equilibrado, se não erigir a vida humana3 num desses direitos; ou seja, a tutela do meio ambiente significa proteção à vida, à sobrevivência da espécie humana4. O direito ao meio ambiente (natural, artificial e do trabalho) ecologicamente equilibrado é intrinsecamente difuso (transindividual, de natureza indivisível e titularidade indeterminada), sendo que o conteúdo do art. 225 da CF/88 impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender o meio ambiente. Interesses juridicamente difusos5 são necessidades comuns a conjuntos indeterminados de indivíduos e que só podem ser satisfeitas numa perspectiva comunitária. O STJ adotou a concepção ampla de dano moral ambiental: "o dano extrapatrimonial atinge direitos de personalidade do grupo ou coletividade enquanto realidade massificada, que a cada dia reclama mais soluções jurídicas para sua proteção. É evidente que uma coletividade pode sofrer ofensa à sua honra, à sua dignidade, à sua reputação, à sua história, costumes e tradições e ao seu direito a um meio ambiente salutar para si e seus descendentes. Isso não importa exigir que a coletividade sinta a dor, a repulsa, a indignação, tal qual fosse um indivíduo isolado. Essas decorrem do sentimento de participar de determinado grupo ou coletividade, relacionando a própria individualidade à ideia do coletivo"6 (Grifou-se). Pode-se, nesse contexto, definir o dano moral coletivo, como sendo "(...) o resultado de toda ação ou omissão lesiva significante, praticada por qualquer pessoa contra o patrimônio da coletividade, considerada esta as gerações presentes e futuras, que suportam um sentimento de repulsa por um fato danoso irreversível, de difícil reparação, ou de consequências históricas"7; assim, dano moral coletivo "(...) não constitui, pois, uma soma de interesses, mas interesse único titulado por uma coletividade indeterminada de pessoas com repercussões na seara específica de cada um dos seus membros, mesmo quando indeterminados e indetermináveis, circunstância que, por isso mesmo, não afasta a sua concomitante existência e relevância individuais"8. No que pertine à imprescritibilidade das demandas ambientais reparatórias, repise-se, justamente por se tratar de um direito fundamental, o julgamento do Recurso Extraordinário 654.8339, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes foi um dos mais relevantes do STF e fixou a tese dessa imprescritibilidade mediante a apreciação do tema 999, em repercussão geral, no ano de 2020. A origem foi o ajuizamento de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal com pedido de reparação por danos materiais, morais e ambientais em decorrência da extração ilegal de madeira, por meio de invasões ocorridas entre os anos de 1981 a 1987, em área ocupada pela comunidade indígena Ashaninka-Kampa, que fica no estado do Acre. A imprescritibilidade já tinha sido reconhecida, pelo STJ10, para danos não individuais; ou seja, para aqueles compreendidos como o resultado de uma lesão à esfera não material de uma determinada coletividade, conduta que agride, injusta e intoleravelmente, não só o ordenamento jurídico, como os valores éticos fundamentais de uma sociedade, causando repulsa e indignação de forma generalizada. Ademais, o STJ editou a Súmula 623 afirmando que a pretensão de reparação civil de dano ambiental é imprescritível e propter rem, o que permite discutir e cobrar do proprietário atual danos ambientais ocorridos em qualquer época o que, por certo, mereceria algumas críticas se não desviasse o foco. O precípuo argumento em favor da imprescritibilidade é o fato de o meio ambiente ter uma natureza transindividual e não haver regras específicas acerca da prescrição da pretensão de reparação civil para esses direitos, forçando que se pense muito além do direito privado. Ainda que o dano ambiental possa ser futuro, e se defende que sim, já que é possível enxergar um desdobramento elástico de uma situação danosa atual, a imprescritibilidade não está somente nisso assentada, pois o cerne é, como propositadamente já enfatizado, a própria natureza fundamental do bem jurídico protegido; qual seja, um ambiente sadio e equilibrado. O mesmo julgado reforça, também, que a imprescritibilidade não dá margem para eventual impunidade diante de danos aos ecossistemas, já que ao deixar em aberto o prazo para ações ressarcitórias frente ao desmatamento ilegal, uma infeliz realidade, enfatiza o quão necessário é evitar esse e outros tipos de ilícitos ambientais. Diferentemente, portanto, do que acontece diante da prática de racismo ou ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLII e XLIV da CF); ou diante da obrigatoriedade de ressarcimento de valores ao erário (art. 37, §5º da CF), casos em que a prescrição, por expressa previsão constitucional, não se aplica, a imprescritibilidade das demandas ambientais, como referido, ainda não têm acento nem constitucional, nem infraconstitucional. Há quem entenda11 como fundamento da prescrição ser ela uma pena à negligência do titular do direito que, deliberadamente, opta por não o exercer. Ocorre que diante de danos morais coletivos lato sensu essa vontade deliberada não pode ser vista como em outras situações (uma ação de cobrança, por exemplo), pois a vida das pessoas restou atingida de tal forma que, muitas vezes, não há força, nem tempo, nem vontade de se pensar em punir alguém; afora o fato de, talvez, não se saber ainda ao certo, quem é ou são os responsáveis. Os lesados, em regra pela extensão do dano, estão se sentindo enfraquecidos, sem norte, e precisam minimamente se reerguer para, depois, pensar em movimentar o Judiciário. À punição do credor inerte, ainda como fundamento da prescrição, soma-se a presunção de renúncia do direito pelo seu titular, mas como se pode renunciar a um direito que, além de ser de todos nós, quando se fala em dano moral coletivo, é indisponível e, por sua natureza, irrenunciável. Não temos como abrir mão do que não é nosso, ou não é apenas nosso. Dessa feita, já que se está diante de um dano moral coletivo lato sensu toda a vez que houver "lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela"12, como no caso de desrespeito aos direitos do consumidor por publicidade abusiva, de vilipêndio ao patrimônio histórico e artístico, de violação à honra de determinada comunidade judaica, indígena, negra, não se pode cogitar renúncia a esse direito. Sob esse mesmo viés há quem argumente13 que: "a inação representaria o descumprimento do dever de cooperação social, reprimido pela perda da pretensão decorrente do reconhecimento da prescrição". (Grifou-se) Como se falar, entretanto, em descumprimento do dever de cooperação social se foi exatamente o social que restou lesado? Quando se pensa na prescrição como uma forma de assegurar a ordem social há de se ter em mente que diante de danos morais coletivos a ordem social já foi desfeita. Na mesma linha de raciocínio, para quem defende que a prescrição é um instituto de direito privado que atende ao interesse público14, a pergunta que resta ser feita é: como a prescrição irá atender a um interesse público, se ele próprio restou maculado diante do dano moral coletivo sofrido? Como uma situação que vai retirar ainda mais direitos dos (indeterminados) lesados pode, nesse caso, atender a um interesse público? Não há como se concordar com essa dupla punição. Assim, defendendo a imprescritibilidade diante de lesões a interesses constitucionalmente protegidos de uma coletividade, mister enfatizar o fato de a pretensão do autor ser uma faculdade atribuída aos titulares e o seu não exercício não significa, portanto, infringência a qualquer dever legal ou contratual, não se podendo falar em punição pela prescrição. Ou seja, se a inércia do credor não configura nenhuma antijuridicidade, não poderá ser objeto de sanção15, até porque não há punição maior do que o dano já sofrido. Dessa feita, ainda que a lei pretenda continuar punindo a inércia de credores, em busca de uma tal segurança jurídica, o que é uma escolha do legislador, há de se raciocinar que, se reprovável é a inação do credor, não menos condenável é a conduta do devedor que, diante de um dano e do dever de ressarci-lo, consciente e voluntariamente, não o faz, não devendo subsistir razão para se recompensar a inércia do devedor, lesante, e punir aquela imputada ao credor16, representado pela sociedade lesada. Nesse sentir, quando se imagina que a prescrição faz com que o devedor dê o assunto por acabado e se sinta liberado da obrigação, é importante ter em mente que há determinadas circunstâncias que não podem ser encerradas, se não por outra razão, pelo menos porque não terão como sair da vida e da lembrança da coletividade em que o dano foi causado. É justo pensar que o devedor sentir-se-á liberado, e como tal agirá, enquanto os lesados muito provavelmente nunca retornarão ao status quo, uma vez que tiveram suas vidas devastadas? Por certo que não. Ao suscitar esse tema, a autora tem plena ciência de que, alguns, entenderão a proposta como absurda, pois vai de encontro a um entendimento, crê-se, falso, de que a prescrição da pretensão traz segurança jurídica; no entanto, o que dá coragem para ousar é lembrar que a algum tempo atrás a reparação pelo dano imaterial era tida como imoral, sendo que hoje o não ressarcimento desses danos é o inimaginável. Esse é o bonito do Direito. Referências BORGES, Roxana Cardoso. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX, in VARELLA, Marcelo Dias e BORGES, Roxana (org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey Ed., 1998. CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1978. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil, JusPDIVM: 2014. MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; e CAPPELI, Sílvia. Direito ambiental. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2006. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais. Coimbra: Ed. Coimbra, t. IV, 1988. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. PUGLIESE, Giuseppe. La Prescrizione Estintiva. Turino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1924. ROSENVALD, Nelson. Fundamento Normativo do Dano Moral Coletivo. In Dano Moral Coletivo. Organizado por Nelson Rosenvald e Felipe Teixeira Neto. Indaiatuba: Editora Foco, 2018, p. 99/100. SAAB, Rachel. Prescrição: função, pressupostos e termo inicial. Belo Horizonte: Fórum, 2019. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio Ambiente, in: Revista de Direito Ambiental nº27 (2002), p. 51 e ss. TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano Moral Coletivo - A configuração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão aos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2014. __________ 1 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais. t. IV. Coimbra: Ed. Coimbra, 1988, p. 8 - 10. 2 BORGES, Roxana Cardoso. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX, in VARELLA, Marcelo Dias e BORGES, Roxana (org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey Ed., 1998, p. 21. 3 Ingo W. Sarlet afirma que os direitos fundamentais integram um sistema constitucional, sendo que esses direitos são, na verdade, concretizações do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, e o direito à proteção ambiental, desta feita, é um legítimo protetor da dignidade da pessoa humana e da dignidade da vida como um todo. Reforça, ainda, a ideia de que os direitos e garantias individuais encontram seu fundamento na dignidade da pessoa humana, mesmo que de variando o modo e a intensidade. SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.73, 81 -82. 4 SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio-Ambiente, in: Revista de Direito Ambiental nº27 (2002), p. 54-55. 5 Nos interesses difusos há indeterminação de sujeitos, indivisibilidade de objeto, intensa litigiosidade interna e tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço. MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; e CAPPELI, Sílvia. Direito ambiental. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2006, p. 24. 6 REsp nº 1.269.494/MG, 2ª Turma, j. 24.09.2013, rel. Min. Eliana Calmon. De acordo com a Min. Eliana Calmon, o dano imaterial coletivo, em qualquer das suas modalidades, independe da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, o que é clássico na esfera individual, porém inaplicável aos interesses difusos e coletivos, como bem consta no REsp 1.057.274/RS. 7 ROSENVALD, Nelson. Fundamento Normativo do Dano Moral Coletivo. In Dano Moral Coletivo. Organizado por Nelson Rosenvald e Felipe Teixeira Neto. Indaiatuba: Editora Foco, 2018, p. 99/100. 8 TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano Moral Coletivo - A configuração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão aos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 143. 9 Disponível aqui. 10 REsp 647.493/SC, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha; REsp 1.644.195/SC e REsp 1.559.396/MG, de relatoria do Ministro Herman Benjamim. 11 SAAB, Rachel. Prescrição: função, pressupostos e termo inicial. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 22. 12 FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil, JusPDIVM: 2014, p. 336. 13 CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 17. 14 Para Giuseppe Pugliese: "Esse modo de ver está em plena harmonia com o objetivo social da prescrição, porque esta é um instituto de direito privado, mas que realiza um interesse público..." (trad. Livre). PUGLIESE, Giuseppe. La Prescrizione Estintiva. Turino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1924, p. 21. Em sentido contrário, Yussef Said Cahali defende que a prescrição é matéria de ordem pública, criada por razões de ordem social, e não no interesse das partes. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 24. Esclarece-se que a jurisprudência pátria firmou-se no sentido de que ela é matéria de ordem pública  REsp. 890.311/SP, da 3ª T., Rel. Sidnei Beneti, ac. 10/08/2010, DJe 23/08/2010. 15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 683. 16 PUGLIESE, Giuseppe. La Prescrizione Estintiva. Turino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1924, p. 21.
O Brasil, em setembro de 2019, sofreu um extenso dano em seu meio ambiente marítimo e costeiro, em razão de ter sido atingido por diversas manchas de óleo, sem que se soubesse a origem, o local do vazamento ou os possíveis responsáveis. É de se destacar, ainda, que em virtude da enorme extensão do vazamento, até o presente momento, algumas manchas de óleo voltam a aparecer nas praias do nordeste brasileiro. De acordo com os levantamentos realizados pelos órgãos de controle, desde o início de aparecimento das manchas de óleo - foram mais de 4.700 toneladas de petróleo cru misturados à areia recolhidas ao longo do litoral - mais de 117 municípios a registraram contaminação, além de diversos prejuízos aos setores de hotelaria, bares e restaurantes, turismo, pesqueiro etc. Ademais, é importante lembrar do caso do navio mercante "MV Stellar Banner", carregado de minério de ferro da Vale, que ficou encalhado a cerca de 100 km da costa do Maranhão. Ainda mais recente, o mundo parou para acompanhar o encalhe do navio porta-contêineres de grande porte "Ever Given", no canal de Suez. Caso este que fez ressurgir problemáticas sobre a possibilidade de limitação da responsabilidade, declaração de avaria grossa, jurisdição e foro de competência, bandeiras de conveniência, relação de direito trabalhista dentre outras. Desta forma, os incidentes marítimos com óleo trazem à tona questões especificas relacionadas à responsabilidade civil, seja porque não se consegue identificar a origem da poluição ou os agentes envolvidos (direta ou indiretamente); bem como, em face da multiplicidade de atores no cenário internacional, a diversidade de elementos de conexão, concorrência de foros e incidência de diversas normativas sobre as complexas e diversas relações jurídicas que regem a navegação e o transporte pelo modal marítimo. A referida preocupação se soma ao fomento do transporte aquaviário, bem como ao aumento significativo da ocorrência de acidente marítimos com consequências ambientais, o que requer uma atenção redobrada1 dos players e dos juristas que diligenciam no sentido de evidenciar, aclarar e solucionar os imbróglios jurídicos decorrentes de tais fatos. Em acidentes marítimos surgem grupos de atuação, com diferentes responsabilidades, que, em caso de dano ambiental, podem ser caracterizados como poluidores diretos ou indiretos, como por exemplo: órgãos ambientais, transportador, porto, terminal, proprietário da carga, afretador, fretador, proprietário do navio e seguradores, que podem estar ligados à carga, ao transporte e ao navio. Não é demais lembrar que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, decreto 1.530/1995, estabelece em toda sua parte XII, o dever dos Estados de proteger e preservar o meio marinho, através de medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição, qualquer que seja a sua fonte. Assim, quando se fala em contenção da poluição por óleo, que pode ensejar a responsabilidade solidária, importante lembrar que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre Preparo, Resposta e Cooperação em Caso de Poluição por Óleo, de 1990, ratificada pelo decreto 2.870/1998, que estabelece o dever de as partes desenvolverem os sistemas nacionais e regionais de preparo e resposta a emergência. A referida convenção estabelece responsabilidades aos navios e aos portos, de forma ampla. Nesta seara, para o combate à poluição por óleo e substâncias nocivas ou perigosas, a lei 9966/2000 estabelece a criação de Planos de Emergência Individuais e Planos de Área, que são consolidados pelo órgão federal de meio ambiente no Plano Nacional de Contingência (PNC), em articulação com os órgãos de defesa civil. Na seara normativa, seguindo o escalonamento hierárquico das normas, frisa-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, institui em seu art. 225, § 3º, a responsabilidade tripla em decorrência do dano ambiental, através da responsabilidade civil, administrativa e penal. No que tange a responsabilidade administrativa subjetiva em casos de poluição por óleo, decorrente de fatos e acidentes marítimos, é indispensável a identificação da causa do acidente e possíveis responsáveis, apuração que ocorrerá no âmbito do Inquérito Administrativos sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN), cujo tramite ocorre na Capitania dos Portos competente. Nesta senda, importante destaque quanto à jurisdição do Tribunal Marítimo, a qual se estende sobre todo o território nacional e alcança toda pessoa jurídica ou física envolvida, por qualquer força ou motivo, em acidentes ou fatos da navegação, envolvendo diversos personagens no direito marítimo e portuário. Em muitos casos, as cortes judiciais, ao analisarem os critérios para responsabilização ambiental administrativa, já consideram todo o quanto decidido no processo de julgamento levado a efeito no tribunal administrativo especializado. Destaca-se, neste sentido, a Resolução no 49/2020, do Tribunal Marítimo, que estabelece a sua competência para o julgamento em casos de poluição proveniente ou causada por embarcações. No que concerne à responsabilidade civil, considerando o impacto ambiental em face do acidente, é possível a identificação de danos que podem ser materiais e morais, incluindo lucros cessantes, individuais e coletivos, a depender do caso, considerando ainda o tempo necessário para a recuperação completa do meio ambiente afetado. A responsabilidade civil ambiental, por força da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA, lei 6.938/1981), é objetiva por risco integral.  Assim disciplina o artigo 14, § 1o, da PNMA, que sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. Instituindo, assim, a responsabilidade objetiva, como anteriormente visto. A responsabilidade solidária entre os poluidores é pautada na teoria do risco profissional, prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, segundo a qual todos aqueles que se dediquem ao exercício de atividade com habitualidade que, por sua natureza, implique risco para os direitos de outrem, devem responsabilizar-se, independentemente de culpa, pelos danos causados. Desta forma, o STJ ratifica que a responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva e, inclusive, solidária de todos os agentes que obtiveram proveito da atividade que resultou no dano ambiental (STJ, 2ª T., AgInt no AREsp 277.167/MG, Rel. Min. Og Fernandes, j. 14/03/2017, DJe 20/03/2017.). Demais pontos também devem interferir na análise do caso, como a definição de uma avaria simples ou grossa, os possíveis foros competentes, que podem envolver arbitragem internacional, no que concerne aos direitos patrimoniais entre as partes. Igualmente, considerando multiplicidades de atores envolvidos, deve-se analisar detidamente a existência de bandeiras de conveniência de embarcações, elementos de conexão, eleição de foro em possíveis contratos entre as partes e, ainda, o foro de conveniência para desastres ambientais. Neste sentido um ponto de suma importância à efetivação da responsabilidade civil paira nos fundos de compensação por danos ambientais decorrentes da poluição por óleo e na obrigatoriedade de seguros ambientais. O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969 (CLC 69), regulamentada pelo decreto 83.540/79, o qual estabelece a responsabilidade civil limitada do proprietário do navio poluidor, bem como seguros obrigatórios para este fim e um fundo de compensação. Merece ressalva o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial no 467.212 - RJ (2002/0106671-6), que teve como Relator o Ministro Luiz Fux.  No referido julgamento restou decidido sobre a possibilidade de caracterização de demais atores como poluidores indiretos, como no caso de afretadores brasileiros de embarcações estrangeiras. O STJ entendeu que merecem tratamento diverso os danos ambientais provocados por embarcação de bandeira estrangeira contratada por empresa nacional cuja atividade, ainda que de forma indireta, seja a causadora do derramamento de óleo, daqueles danos perpetrados por navio estrangeiro a serviço de empresa estrangeira, quando então resta irretorquível a aplicação do art. 2°, do decreto 83.540/79. Ainda, de acordo com o decreto 83.540/79, a ação de responsabilidade civil será proposta contra o proprietário do navio ou seu segurador, e igualmente, quando for o caso, contra a entidade ou pessoa prestadora da necessária garantia financeira. A CLC 69, mesmo já prevendo a limitação de responsabilidade civil, atrelava a contribuição a um fundo de compensação, o IOPC 71, que, infelizmente, deixou de existir em 2002, em decorrência da adesão do protocolo mais recente que dispõe sobre o fundo IOPC 92. No entanto, o Brasil ainda não aderiu o protocolo atualizado da Convenção de Responsabilidade Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1992, (International Convention on Civil Liability for Oil Pollution Damage - CLC). Fato esse que, sem dúvida, pode representar uma dificuldade maior na plena responsabilização civil. Isso, pois, a CLC 92 prevê um fundo de compensação por danos ambientais (IOPC Fund 92), além de um fundo suplementar, que poderá ser acionado em situações especificas. De acordo com o primeiro de seus propósitos, o Fund 92 tem a obrigação de pagar uma indenização a Estados e pessoas que sofrem danos causados pela poluição, se essas pessoas não puderem obter uma indenização do proprietário do navio do qual o petróleo escapou ou se a indenização devida por tal proprietário não é suficiente para cobrir os danos sofridos. Nos termos da Convenção em glosa, as vítimas de danos causados pela poluição por hidrocarbonetos podem ser compensadas além do nível de responsabilidade do armador. No entanto, quando não houver um armador responsável ou o armador for incapaz de cumprir sua responsabilidade, o Fund 92 será obrigado a pagar o valor total da compensação devida. Em outras palavras, caso o Brasil fosse signatário da referida convenção, no incidente com óleo em 2019, que atingiu grande parte do país, mesmo sem se identificar o responsável, poderia ter sido pleiteada a indenização pelo dano ambiental. Destaca-se que o Brasil, atualmente, ocupa a 10ª posição no ranking global de produção de petróleo, conforme dados do relatório BP Statistical Review, que agrega as informações disponíveis mais recentes de cada país. Mesmo assim, não possui sistema de compensação por danos ambientais decorrentes de óleo, nem mesmo em razão da sua normativa doméstica. Aparta-se que a lei 9478/1997, em seu art. 49, disciplinava, por exemplo, que parcela do valor do royalty que exceder a cinco por cento da produção teria a distribuição para financiar, entre outros, programas de mesma natureza que tenham por finalidade a prevenção e a recuperação de danos causados ao meio ambiente por essas indústrias. Entretanto, Lei nº 12.734/2012 que modificou as leis 9.478/1997 e 12.351/2010, instituiu novas regras de distribuição dos royalties e da participação especial devidos em função da exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos, retirando a referida disposição para danos causados ao meio ambiente. Assim, para que haja a plena responsabilidade civil em face da poluição ambiental marítima por óleo, é necessário que os planos de contenção, incluindo o Plano Emergencial Individual, Plano Área e Plano Nacional de Contingência, sejam eficientes; bem como que o Brasil possua fundos de compensação, inclusive que ratifique a CLC 92 e o Fund 92. Afinal, em um incidente marítimo com danos ambientais em face da poluição por hidrocarboneto, só a resta a certeza de que cada parte deve promover seus máximos esforços para a operação de contenção de danos e restauração da qualidade do meio ambiente, além de ampla responsabilização civil objetiva e solidária, pois haverá uma gama de responsabilidade, conforme brocardo utilizado no Direito marítimo: "no pain no gain". *Ingrid Zanella é sócia titular do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia. Professora da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora e mestre em Direito (UFPE). Possui cursos de Liability for Maritime Claims e Law of Marine Insurance, pela International Maritime Law Institute. Oficial da Ordem do Mérito Naval. Vice-presidente da OAB-PE. Secretária geral da Comissão Nacional de Direito Marítimo e Portuário do Conselho Federal da OAB. Membro da Women's International Shipping & Trading Association (WISTA). Associada Titular do IBERC. __________ 1 BRASIL. Agência Brasil. Acidentes com embarcações no Brasil aumentam 12,63% em 2017. Disponível aqui. Acesso em 05 de mai. 2018.
terça-feira, 22 de junho de 2021

Taxa legal de juros no Brasil: a saga continua

Juros são frutos civis do capital e a ele se aderem de forma acessória. Sua natureza acessória, entretanto, não os faz meros coadjuvantes na construção do quantum indenizatório. Vai sem dizer que a incidência de juros - aqui se tem em conta aqueles de natureza moratória - pode alterar de forma significativa o montante indenizatório. Esse impacto pode se dar tanto em razão do tempo de duração do estado de mora, desde sua constituição até a sua purgação, como também em razão da taxa de juros de juros aplicada. É sobre ela que se desenvolvem as linhas que seguem. O ponto de partida para essa reflexão é o texto legal, mais precisamente o artigo 406 do Código Civil, que tem a seguinte redação: Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. A regra substituiu o art. 1.062 do Código Civil de 1916, o qual adotava um índice fixo de seis por cento ao ano, aplicável na ausência de convenção entre as partes. Na vigência do revogado art. 192, § 3º da Constituição Federal (EC 40/2003), e de acordo com o disposto no art. 1º da Lei de Usura (decreto 22.626/1933), o limite máximo de juros pactuado poderia ser de 12% ao ano, que se obtinha como o dobro da taxa legal então vigente.   Na redação do art. 406 CC, entretanto, optou-se por fazer remissão a uma taxa não nominada que suscita divergências jurisprudenciais e doutrinárias. Afinal, como o STJ lê a controvérsia? A resposta à pergunta nos leva a três recursos que colocaram na ordem do dia a discussão do tema: um REsp já julgado, um REsp em julgamento e um EResp em vias de ser julgado. No primeiro deles, REsp 1.846.819 (DJe 15.10.2020), de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a Terceira Turma deu provimento unânime ao recurso especial para alterar a taxa de juros incidente sobre a dívida, antes fixada em 1% ao mês: "Nos termos dos Temas 99 e 112/STJ, a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 do Código Civil é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, vedada a acumulação com correção monetária." Apesar do entendimento unânime em favor da SELIC, que tem sido a marca da jurisprudência daquela corte, a discussão havida entre os Ministros apontou para uma possível mudança de entendimento. O teor do julgamento foi noticiado no Migalhas e pode ser acessado aqui. O efeito prático de uma possível alteração de entendimento é enorme. Em junho de 2021, data em que esse texto foi escrito, a taxa SELIC é de 4,25% ao ano, conforme decisão do Comitê de Política Monetária (COPOM) datada 16 de junho de 2021. No período ânuo, a aplicação do percentual previsto no CTN levaria à incidência de juros na base de 12%. E foi, aliás, com base na variação (negativa) da SELIC nos últimos tempos que a discussão entre os Ministros se pautou. O segundo julgamento, ainda não finalizado, refere-se ao REsp n. 1.081.149, que teve início em novembro de 2020, com o voto do Ministro Relator Luis Felipe Salomão no sentido de distinguir a taxa de juros moratórios aplicável à responsabilidade civil contratual e àquela extracontratual. Nas suas palavras, a "proposta de atualização por um outro ângulo da visão que hoje prevalece sobre o tema" tem como pano de fundo a distinção dos termos a quo de incidência de juros de mora e de correção monetária (Súmula 54 e 362). A compreensão exata do argumento remete ao entendimento do STJ no sentido de ser incabível a cumulação da SELIC e da correção monetária, ao entendimento de que a taxa SELIC abrange juros e correção monetária (vide, por todos, REsp 1136733/PR, Rel. Ministro Luiz Fux). Nos casos em que os termos a quo não sejam coincidentes, haveria um empecilho prático à aplicação da SELIC. Na proposta do relator, a taxa de juros moratórios na responsabilidade extracontratual deveria ser a taxa de 1% (um por cento) prevista no artigo 161 do Código Tributário Nacional (CTN). O terceiro julgamento, do EREsp n. 1.731.193, recentemente admitido (DJe 29.03.2021), funda-se exatamente na mesma controvérsia em torno do art. 406 CC. Esse breve resumo é o que basta para confirmar o panorama geral do entendimento do STJ: até o presente momento, o entendimento que vigora no STJ é no sentido de que a taxa legal de juros referida no artigo 406 CC é a SELIC. É verdade, porém, que a realidade é diversa no âmbito dos Tribunais Estaduais. Apenas a título exemplificativo, da Tabela Prática publicada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e da planilha de cálculos criada a partir dela, consta expressa menção de que "competem juros nos termos do Código Civil de 2002, art. 406, a 12% a.a. a partir da entrada em vigor da lei"1. Qual a razão de ser dessas duas correntes interpretativas? O embate entre o entendimento atual do STJ, em favor da SELIC, e dos Tribunais Estaduais, em favor da taxa de 1% (um por cento), reflete duas correntes sobre como interpretar a remissão feita no artigo 406 à "taxa que estiver em vigor para a mora de impostos devidos à Fazenda Nacional". A primeira delas defende que a remissão é à taxa de 1% (um por cento), ex vi artigo 161, § 1º do Código Tributário Nacional (CTN) - "§ 1º se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês". Ele encontra abrigo na doutrina, como se vê pelo Enunciado n. 20 das I Jornadas de Direito Civil: "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês".2 Os principais argumentos a favor da aplicação da taxa de 1% ao mês, entende-se, são de ordem prática: a taxa SELIC, definida pelo Conselho Monetário Nacional (COPOM) com o objetivo de tratar de aspectos macroeconômicos, é naturalmente variável, o que impede a previsibilidade desejada nas relações civis3; a volatilidade da taxa torna inviável o controle do limite da pactuação de juros previsto na Lei de Usura (afinal, se taxa legal é variável, como controlar o limite imposto pelo legislador?); o fato de a SELIC embutir correção monetária torna impraticável a aplicação de juros e de correção monetária apartados e, por fim, a SELIC não seria uma taxa de juros (na lição sempre lúcida do Professor Simão: "simples assim: não pode ser taxa de juros o que não tem natureza jurídica de juros, uma taxa de remuneração que cuida de política macroeconômica".4) A segunda, que corresponde ao entendimento até então adotado pelo STJ, compreende que a remissão leva à aplicação da taxa SELIC, instituída como juros de mora para tributos federais a partir de 1º de abril de 1995 pela lei 9.065 de 1995, também referida nos decretos 7.212/2010 (IPI) e n. 9.580/2018 (IR). O primeiro argumento para essa conclusão repousa na intepretação literal do dispositivo. O art. 406 CC remete à taxa que estiver em vigor para a mora de impostos devidos à Fazenda Nacional. Essa taxa é, hoje, a SELIC. Aliás, anota-se que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as legislações estaduais podem fixar juros moratórios sobre seus impostos, desde que observem o limite dos juros fixados pela Fazenda Nacional. Do inteiro teor da decisão, foi feita referência à SELIC, e não ao art. 161, § 1º do CTN. (STF, ARE 1216078 RG). O segundo, remete ao histórico legislativo do art. 406 CC. Desse histórico, sobressaem duas emendas propostas no Câmara dos Deputados de n. 41 e 332. Da leitura das razões para suas rejeições, conclui-se que o legislador optou por uma taxa variável de juros, em substituição àquela fixa antes aplicável. A Emenda 41 sugeria um percentual fixo, de 18%, em substituição àquele previsto na redação proposta do dispositivo. A emenda foi rejeitada: "numa economia, como a nossa, marcada pela instabilidade, é ousado prefixar os juros moratórios nos antigos 6% ao ano, ou nos 18% propostos. O art. 406 do Projeto prudentemente se reporta a uma taxa variável, fácil e objetivamente apurável". Já a Emenda 362 também propôs a adoção de um percentual fixo, "inteligível para o cidadão comum do povo". Ela foi rejeitada, constando do parecer parcial: "taxa fixa, em tempos de economia oscilante, é proposição perigosa". Mas, afinal, qual entendimento deve prevalecer? A pergunta de um milhão de dólares - em alguns casos, literalmente - ainda não foi respondida e a ausência de resposta a tema tão sensível não é desejável. Com o intuito de contribuir ao debate, lanço algumas provocações, por entender que a discussão será mais produtiva na medida em que os argumentos de cada um dos lados sejam analisados em conjunto, e não de forma apartada: O primeiro ponto que considero relevante é aquele que diz respeito à previsibilidade da taxa: a noção de previsibilidade diz respeito ao conhecimento prévio do percentual aplicável ou da forma de obtenção desse percentual? Qual a importância da intenção do legislador, que expressamente se afastou de um percentual fixo, nesse particular? O segundo ponto que considero relevante diz respeito à cumulação de correção monetária e de remuneração do capital: será que a SELIC tem uma natureza diversa e diferenciada das demais taxas de juros? Do ponto de vista da ciência econômica, as taxas de juros não compreendem também correção monetária? O terceiro ponto se refere à natureza da taxa SELIC como taxa de juros: qual o impacto de a Receita Federal e o Banco Central considerarem a SELIC como taxa de juros? E, ademais, qual o alcance da menção do legislador à "taxa que estiver em vigor para mora"? O quarto ponto diz respeito à intepretação do art. 406: qual o fundamento legal para aplicação do art. 161, § 1º do CTN? Se é certo que a regra não foi revogada - afinal, ela permanece vigente e aplicável se inexistir lei em sentido contrário - como aplicá-la em situação diversa daquela prevista em seu suporte fático? O quinto ponto endereça problemas práticos de aplicação da SELIC, que são evidentes e não podem ser negados: a existência de dificuldades de ordem prática é suficiente para negar a aplicação da SELIC? Essa provocação lança luzes também sobre dois pontos frequentemente referidos na discussão, mas pouco verticalizados: o alcance da Lei de Usura e o termo a quo da contagem de correção monetária. Mas esses são tema para outra coluna. Finalizo lembrando a célebre lição do Professor Clóvis do Couto e Silva de que, sem que se estabeleça o conceito de dano, não há como se ter a exata compreensão da responsabilidade civil de determinado país.5 Essa tarefa tampouco é possível sem a compreensão exata de seus encargos moratórios, acessórios que também compõem a noção de dano. *Renata Carlos Steiner Reisdorfer é doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, aprovada com distinção e menção honrosa pelo Departamento de Direito Civil. Mestre em Direito das Relações Sociais e graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Foi pesquisadora visitante nas Universidades de Munique (LMU) e Augsburg (Alemanha). Professora de Direito Civil na Escola de Direito de SP. Atua como árbitra em São Paulo. __________ 1 Disponível aqui. 2 O Enunciado, aprovado ainda na vigência do revogado artigo 193 da Constituição Federal,  ainda dispõe que: "A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano." 3 Na síntese de Giovanni Nanni: "Em suma, o uso da taxa SELIC para o propósito em análise é de todo inconveniente, pois imprecisa e flutuante para atuar em relações civis, subtraindo qualquer sorte de previsibilidade." (NANNI, Giovanni Ettore; GUERRA, Alexandre. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. 9788553612369. Disponível aqui). 4 SIMÃO, José Fernando. In: SCHREIBER, Anderson e outros. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. 9786559640720. Disponível aqui. Acesso em: 21 Jun 2021. 5 COUTO E SILVA, Clovis. O conceito de dano no Direito brasileiro e comparado. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegrre: Livraria do Advogado, 1997.
O papel dos exames de imagem na prática médica está passando por uma fase de transformação, haja vista a possibilidade de implemento de algoritmos de Inteligência Artificial para diagnosticar as mais variadas enfermidades.1 Eric Topol, nos seus livros sobre o futuro da Medicina, indica diversos estudos científicos que atestam a capacidade da IA de diagnosticar alguns tipos de câncer de pele ou identificar anormalidades específicas do ritmo cardíaco, tão bem ou talvez até melhor do que os dermatologistas e cardiologistas. Todavia, um dos maiores temores do setor de saúde em tempos de fomento ao uso de algoritmos na prática médica é a chamada black box medicine, segundo expressão de Nicholson Price, dada a obscuridade na forma como as informações são processadas pelos algoritmos. No presente estudo, apresentamos uma tese por nós desenvolvida de que há três diferentes dimensões semânticas da opacidade algorítmica particularmente relevantes para a Medicina, e com repercussão direta no consentimento do paciente e na responsabilidade civil médica: (i) opacidade epistêmica; (ii) opacidade pela não revelação (medical disclosure) da utilização da Inteligência Artificial; (iii) opacidade explicativa. (i) Opacidade epistêmica: A opacidade epistêmica reflete a absoluta complexidade no processamento dos dados pelos algoritmos, que podem descobrir padrões dentro de um número tão alto de variáveis, que se torna extremamente difícil - ou até mesmo impossível - para uma mente humana compreendê-los. Nesse contexto, a opacidade se origina de uma falta de compreensão do próprio médico sobre como o sistema "inteligente" opera. O processo de aprendizado da máquina, para chegar ao diagnóstico ou a uma predição sobre o quadro clínico do paciente, muitas vezes constitui uma verdadeira incógnita para os médicos, o que gera compreensíveis receios quanto ao implemento da tecnologia na prática médica. Esse é, em realidade, um problema presente na generalidade dos sistemas de Inteligência Artificial, chamado por Frank Pasquale de "problema da caixa preta" (black box problem), no livro The Black Box Society.2 A falta de transparência se associa, ainda, à problemática da confiabilidade dos algoritmos. Afinal de contas, não é desprezível a dúvida sobre a efetiva possibilidade de se confiar no acerto das previsões algorítmicas. Por isso, ao serem implementados sistemas algorítmicos na prática clínica, mostra-se essencial que o médico conheça suas limitações e o que é efetivamente levado em conta para as predições. Entender os limites dos algoritmos ajudará o médico a melhor julgar suas decisões e propostas, evitando, assim, visões simplistas e reducionistas, além de evitar que pacientes se tornem "reféns" de decisões tomadas na "caixa-preta" dos algoritmos. Diante desse cenário, à medida que forem implementadas estruturas algorítmicas de Inteligência Artificial e novas tecnologias no setor da saúde, crescerá a necessidade de discussão sobre a necessidade de conhecimento interdisciplinar dos médicos, de treinamento dos profissionais da saúde para o uso dessas novas tecnologias como ferramentas de apoio à decisão clínica, desde os bancos da universidade.3 A falta de conhecimento aprofundado dos benefícios e riscos de tecnologias na área da saúde pode se traduzir em piores resultados para os pacientes devido à falta de compreensão sobre quais ferramentas agregam valor às suas atividades ou sobre como integrar a IA de forma adequada ao fluxo de trabalho clínico. Por isso, justifica-se a urgência para a educação médica dos estudantes de Medicina em saúde digital, novas tecnologias e Inteligência Artificial. Inclusive, estudo já desenvolvido no âmbito das cirurgias robóticas4 permitiu constatar a necessidade de educação e constante treinamento dos médicos nas plataformas robóticas, tendo em vista os inúmeros litígios sobre a imperícia e a consequente mudança do modelo de treinamento, especialmente com a criação de simuladores do próprio robô para que os médicos possam praticar no hospital onde atuam. No cenário da educação médica em saúde digital e Inteligência Artificial, há no Canadá, por exemplo, a Universidade de Toronto, que é uma das primeiras instituições a reconhecer a necessidade crescente de conhecimento interdisciplinar dos acadêmicos de Medicina, e uma das primeiras a criar oportunidades de educação extracurricular, com certificação de IA em saúde aos estudantes durante a faculdade. Sobre a opacidade epistêmica, decorrente da falta de compreensão dos médicos sobre como o sistema "inteligente" opera, oportuna a análise de uma hipótese fática. Imagine-se um médico que faz o diagnóstico de um paciente oncológico, acreditando, num primeiro momento, que ele tem um determinado tipo de câncer, mas, após inserir os dados clínicos do paciente em um software preditivo, como o Watson for Oncology, da IBM, este apresenta resultado diverso, dizendo que o paciente tem um tipo diferente de câncer. Então, surge a indagação: se o médico segue ou desconsidera o resultado da IA, e sobrevêm danos ao paciente, após diagnóstico e tratamento inapropriados, como deverá ser responsabilizado? Essa questão complexa já foi objeto de discussão em trabalho recente.5 Ainda, é importante destacar que, somada à natural falibilidade dos algoritmos preditivos na área médica, há a potencialidade discriminatória,6 pois eles podem ser programados a partir dos dados de estudos científicos e registros eletrônicos de saúde de populações determinadas, onde predominam algumas raças, correndo-se, assim, o risco de que as decisões sejam contaminadas por vieses significativos.   Então, toda essa opacidade epistêmica demanda do médico educação interdisciplinar. O profissional não pode simplesmente implementar a tecnologia na sua prática clínica, pois é preciso compreender de maneira geral como funcionam as ferramentas de apoio à tomada de decisão, bem como seus riscos e benefícios para o paciente, em cada caso concreto. Nicholson Price afirma que, em tese, caso o médico não seja diligente na utilização da IA, pode ser responsabilizado. No mesmo sentido, Fruzsina Molnár-Gábor defende que, se os médicos reconhecerem, com base em suas expertises, que as informações fornecidas pela IA estão incorretas naquele caso específico, não devem considerá-las como base para a tomada de decisão. Assim, para verificar se um médico agiu culposamente em um caso específico, devem ser analisados os padrões de conduta profissional exigidos no momento da atuação médica. Em linhas gerais, conclui-se que o médico especialista que utiliza a tecnologia estará na difícil posição de justificar: a) as razões que o levaram a seguir o diagnóstico ou curso de ação sugerido pela IA; ou b) porquê - e com base em quais fatores - se desviou da recomendação algorítmica. O médico é livre para escolher seus meios de diagnóstico e propostas de terapia, mas também é responsável por suas escolhas.7 (ii) opacidade pela não revelação (medical disclosure) da utilização da IA: Partindo para a segunda dimensão semântica da opacidade algorítmica particularmente relevante para a Medicina, observa-se que há um risco considerável de os algoritmos de IA serem utilizados para apoiar a decisão médica, mas sem a ciência dos pacientes e familiares. O medical disclosure é o processo estruturado de comunicação transparente entre os sujeitos envolvidos durante a assistência médica. O disclosure se insere em um contexto de programas de compliance médico em clínicas e hospitais, levando sempre em conta o dever de informação qualificado com os pacientes. Inúmeras críticas a isso têm surgido pelo fato de os pacientes, muitas vezes, não serem informados ou solicitados a consentir com o uso de algoritmos de Inteligência Artificial em seus cuidados. Inclusive, alguns médicos utilizam um discurso acentuadamente paternalista de que eles dominam a legis artis da profissão, motivo pelo qual não precisariam informar o paciente sobre todos os recursos que utilizam no processo de decisão clínica. Contudo, informar o paciente e oportunizar o seu consentimento representa um dos mecanismos de efetivação do direito geral ao livre desenvolvimento da personalidade humana, tendo feição instrumental por ser uma forma de concretização do direito fundamental de autonomia do paciente. Assim, o tipo de opacidade algorítmica pela não revelação não diz respeito às características intrínsecas dos sistemas de IA, mas tem sua origem nos riscos à autodeterminação informativa do paciente, isto é, deriva da maneira como a atividade de processamento de dados pode ser realizada pelo médico sem que os titulares dos dados (pacientes) tenham conhecimento disso, nem durante a intervenção médica, tampouco posteriormente ao evento danoso. Nesse sentido, constatamos que alguns hospitais norte-americanos têm implementado os chamados "AI Dying Algorithms", que utilizam os dados dos pacientes para prever as chances de sobrevivência entre indivíduos hospitalizados, realizando triagem de doentes com necessidades paliativas ou, até mesmo, determinando o tempo até a morte dos pacientes com doenças terminais ou incuráveis.8 Há benefícios desses algoritmos enquanto ferramentas de suporte à decisão médica na indicação de cuidados paliativos, a fim de evitar o prolongamento indevido da vida e proporcionar a opção do paciente de "viver o fim de vida com melhor qualidade", por meio da indicação de cuidados paliativos. Contudo, médicos que atuam no Stanford Hospital, nos Estados Unidos, onde os profissionais utilizam algoritmos para apoio nas decisões sobre cuidados paliativos, afirmam que muitas vezes não revelam e não explicam para os pacientes que utilizam essa tecnologia. Nesse cenário, torna-se discutível a opacidade pela não revelação (medical disclosure) da utilização da Inteligência Artificial. Isso, porque os médicos não informam ao paciente que utilizam a tecnologia, ao argumento de esta ser "também uma questão de aproveitar ao máximo o breve tempo que os médicos têm com cada paciente (...). Quando você tem 30 minutos para falar com o doente, você não quer começar uma conversa dizendo que um algoritmo indicou este paciente para cuidados paliativos - e depois perder os outros 29 minutos respondendo às perguntas sobre isso, ao invés de outras questões mais importantes".9 Seguindo essa lógica, o profissional, em tese, poderia indicar cuidados paliativos para um paciente, informando diversos aspectos do seu quadro clínico e fazendo recomendações médicas sem a necessidade de informá-lo especificamente sobre a utilização do "AI Dying Algorithm". Todavia, seja no âmbito da Medicina curativa ou da paliativa, o dever de informação é essencial para a expressão da vontade livre, consciente e esclarecida. Em se tratando do dever de informação, cabe ao médico fornecer todos os esclarecimentos relativos ao diagnóstico e ao prognóstico, incluindo-se as vantagens e as desvantagens dos procedimentos empregados. Além disso, o dever de informar corretamente o paciente e obter seu consentimento livre e esclarecido decorre da boa-fé objetiva, que sempre deve preponderar nessas relações jurídicas. Diante disso, pode-se concluir que, em regra, o médico deve informar e esclarecer o paciente de que diagnóstico, prognóstico, proposta de tratamento ou mesmo a sua indicação de cuidados paliativos são apoiados por diversos fatores, dentre eles um algoritmo de Inteligência Artificial, explicando, na medida do possível - e de acordo com o nível de compreensão do paciente -, sobre a tecnologia empregada. (iii) opacidade explicativa: Por fim, há a opacidade explicativa nos algoritmos utilizados no setor da saúde. Além do dever do médico de informar que, por exemplo, utilizou um algoritmo de IA para apoiar a sua avaliação de determinado quadro clínico, ele precisa também explicar o funcionamento da tecnologia utilizada, de acordo com o grau de compreensão de cada paciente, sob pena de ocorrer a chamada opacidade explicativa. Em que pese existir divergência doutrinária sobre a quantidade de informações que se deve repassar ao paciente para que o médico cumpra seu dever de informação, defendemos que, com a evolução das novas tecnologias na área da saúde, os médicos precisam compreender que o direito à informação adequada (que lhes corresponde a um dever de informar) engloba ainda o consentimento para o uso das novas tecnologias, a partir do conhecimento do paciente de seu funcionamento, objetivos, vantagens, custos, riscos e alternativas.10 No mesmo sentido, defendemos que há a exigência de uma nova interpretação ao princípio da autodeterminação do paciente: saímos do simples direito à informação e caminhamos para uma maior amplitude informacional, ou seja, há um direito à explicação e justificação.11 Pertinente mencionar as lições de Edson Fachin, no sentido de que, para o direito, impõe-se a consciência da própria história e que não se deve acomodar "na falsa ideia de que o que existe não pode ser mudado (...) Cabe aos seus operadores, mais sensíveis à realidade, a abertura para a constante reflexão e renovação das categorias jurídicas de acordo com as exigências e necessidades sociais".12 Há inclusive uma tese defendida por Nelson Rosenvald - à qual aderimos: não basta o criador ou utilizador de um algoritmo dizer "the algoritm did it" [ops, o algoritmo fez isso; ele errou]. Há, desde o princípio da decisão por utilizar o algoritmo, a necessidade de uma explicação e justificação para aquele que é atingido pela tecnologia. Portanto, é imprescindível a substancial revisão do atual sistema de obtenção do consentimento informado, convertendo-o realmente em um processo de escolha esclarecida, seguindo-se a ideia de um verdadeiro processo de diálogo entre médico e paciente. De igual modo, os diversos reflexos ético-jurídicos do implemento de robôs de assistência à saúde importam na seguinte constatação: na sociedade atual, é imprescindível a compreensão das relações contratuais não apenas nos seus aspectos econômicos, mas também éticos.13 Portanto, se voltarmos à hipótese fática do Watson for Oncology, mesmo não sendo configurada a culpa médica, caso o profissional apenas informe - mas não explique de maneira adequada ao paciente sobre a utilização da tecnologia para apoio à decisão médica, ele pode ser responsabilizado pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar sobre vantagens e riscos do diagnóstico médico apoiado com algoritmos de Inteligência Artificial. Finalizamos este texto convidando o leitor à uma reflexão trazida por Eric Topol, sobre o presente e o futuro da Medicina: "Eventualmente, médicos adotarão Inteligência Artificial e algoritmos como seus frequentes parceiros de trabalho. Esse novo panorama do conhecimento científico disponível acabará levando a um novo tipo de desafio: encontrar e treinar médicos que tenham o mais alto nível de inteligência emocional com a utilização das novas tecnologias".14 *José Luiz de Moura Faleiros Júnior é doutorando em Direito pela USP e pela UFMG. Mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFU. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado e professor. **Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestranda em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Pós-graduanda em Direito Médico pelo Centro Universitário Curitiba. Coordenadora do grupo de pesquisas em "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do grupo de pesquisas em direito civil-constitucional "Virada de Copérnico" (UFPR). __________ 1 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência artificial nas decisões clínicas e a responsabilidade civil médica por eventos adversos no contexto dos hospitais virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1079-1107. 2 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A evolução da inteligência artificial em breve retrospectiva. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 3-26. 3 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti. Adaptive learning e educação digital: o uso da tecnologia na construção do saber e na promoção da cidadania. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, a.23, n.37, p. 487-514, 2019. 4 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. (coord.) Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67. 5 NOGAROLI, Rafaella; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial na análise diagnóstica: benefícios, riscos e responsabilidade do médico. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. (coord.) Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 69-91. 6 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Discriminação por algoritmos de inteligência artificial: a responsabilidade civil, os vieses e o exemplo das tecnologias baseadas em luminância. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, p. 1007-1043, 2020. 7 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Algoritmos de inteligência artificial na predição do quadro clínico de pacientes e a responsabilidade civil médica por omissão de cuidados paliativos. In: DADALTO, Luciana. (coord.). Cuidados paliativos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 163-190. 8 Idem. 9 Idem. 10 DANTAS, Eduardo. NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 11 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. O consentimento do paciente no admirável mundo novo de robôs de assistência à saúde e algoritmos de inteligência artificial para diagnóstico médico. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. (coord.). O direito civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 139-164. 12 FACHIN, Luiz Edson. Pressupostos hermenêuticos para o contemporâneo Direito Civil brasileiro: elementos para uma reflexão crítica. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 48, jun. 2012., p. 287. 13 NALIN, Paulo; NOGAROLI, Rafaella. Perspectivas sobre ética e responsabilidade civil no contexto dos robôs inteligentes de assistência à saúde.  In: CAMPOS, Aline França; BERLINI Luciana Fernandes. (coord.). Temas contemporâneos de responsabilidade civil: teoria e prática. Belo Horizonte: D'Plácido, 2020. p. 61-94. 14 TOPOL, Eric. Deep medicine: how artificial intelligence can make healthcare human again. Nova York: Basic Books, 2019. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - lei 13.709/2018 - inaugura em seu texto um sistema próprio de responsabilidade civil nos artigos 42 a 45 (e art. 46, se considerarmos o texto do art. 44). Fica evidenciado pela letra da lei, que tais artigos limitam a responsabilidade civil pelos eventuais danos causados quando da violação às regras criadas para as atividades e tratamento de dados pessoais somente aos chamados "agentes de tratamento de dados", notadamente, o controlador e o operador, consoante inciso IX do Art. 5º. Nesse último caso - operador - a sua responsabilidade, via de regra é subsidiária. Haverá  responsabilidade solidária junto ao controlador na hipótese do § 1º, inciso I do Art. 42, qual seja, quando descumprir as obrigações da legislação de proteção de dados ou quando não tiver seguido as instruções lícitas do controlador. Em nenhum momento, a LGPD estabelece uma regra qualquer que seja destinada especificamente para a responsabilidade do encarregado pelo tratamento de dados pessoais, sendo certo que todo o capítulo destinado à responsabilidade tem como foco, exclusivamente, os agentes de tratamento de dados, conforme acima delineado. Igualmente, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados 2016/679 - GDPR - regula em seu artigo 24 que a responsabilidade pelo cumprimento com o respectivo regulamento cabe ao controlador. Tais assertivas nos levam à conclusão de que as regras a respeito da obrigação de indenizar por eventuais danos causados pelo encarregado em decorrência do exercício de sua função devem ser regidas pelas normas e princípios gerais previstas no Código Civil, em especial, as que se referem à prática de ato ilícito (arts. 186 e 187) e à responsabilidade civil (arts. 927 e seguintes). Vale mencionar ainda que o encarregado deverá ser indicado pelo controlador para que possa cumprir obrigações que decorrem da própria Lei e de eventuais resoluções da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (art. 41, § 3º), estas últimas ainda pendentes de deliberação1. Dentre as principais funções  a serem exercidas pelo encarregado, o artigo 41, da LGPD, indica: "I - aceitar reclamações e comunicações dos titulares, prestar esclarecimentos e adotar providências; II - receber comunicações da autoridade nacional e adotar providências; III - orientar os funcionários e os contratados da entidade a respeito das práticas a serem tomadas em relação à proteção de dados pessoais; e IV - executar as demais atribuições determinadas pelo controlador ou estabelecidas em normas complementares". Em relação ao disposto no inciso IV, deve-se entender que as atribuições a que se referem devem estar em consonância com a lei e não implicar em ações praticadas pelo encarregado em qualquer tipo de atividade em que se identifique potencial conflito de interesses. Frise-se que o encarregado deve ter autonomia, tanto funcional, quanto financeira, para que possa realizar suas atividades com independência, sem receber ordens do controlador no exercício de suas funções. Esta é a orientação que se extrai também do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados 2016/679 - GDPR - que eu seu Art. 38 informa expressamente que o encarregado não pode receber instruções para o exercício das suas funções, não pode ser destituído nem penalizado em razão do exercício de suas funções. Importante também salientar que as funções a serem cumpridas pelo encarregado devem ser reconhecidas como semelhantes a de uma consultoria ou auditoria, indicativa de condutas a serem seguidas pelo controlador, mas não vinculativas de posturas obrigatórias. Caberá ao controlador decidir o que fazer no âmbito das atividades de tratamento de dados pessoais, tendo por consequência lógica a sua exclusiva responsabilidade pela tomada de decisões, seguindo ou não as orientações de seu encarregado. Dito isso, entendemos que a figura do encarregado pelo tratamento de dados deve ser afastada da aplicação do sistema de responsabilidade civil da LGPD, na medida em que, em última análise, não detém nenhuma autonomia, tampouco o controle para definir os limites, premissas  e condições para as suas respectivas atividade de tratamento de dados pessoais. Por outro lado, a indicação do encarregado pelo controlador, em que pese obrigatória pela redação do Art. 41 da LGPD, é livre. Significa dizer que o encarregado pode ser, por exemplo, empregado do controlador, consultor independente, escritório de advocacia externo, consultoria de segurança da informação, entre outros modelos de negócio. A LGPD, contudo, previa em seu artigo 41, §4º - vetado -, regra diversa. Em seu texto havia previsão que "com relação ao encarregado, o qual deverá ser detentor de conhecimento jurídico-regulatório e ser apto a prestar serviços especializados em proteção de dados, além do disposto neste artigo, a autoridade regulamentará: (VETADO) I - os casos em que o operador deverá indicar encarregado; (VETADO) II - a indicação de um único encarregado, desde que facilitado o seu acesso, por empresas ou entidades de um mesmo grupo econômico; (VETADO) III - a garantia da autonomia técnica e profissional no exercício do cargo". Com o mencionado veto, a qualificação do encarregado deixa de ser obrigatória. Contudo, é de esperar que o controlador indique como encarregado pessoa - física ou jurídica - que tenha a capacidade de atuar de maneira adequada para sua função2. Nesse contexto, é possível que o controlador - no seu atuar autônomo - indique como encarregado um empregado (ou servidor). Nesta hipótese, caso se verifique um dano indenizável decorrente da atividade desenvolvida pelo encarregado - a exemplo daquelas previstas no artigo 41, § 2º, LGPD -, , haverá a possibilidade de sua responsabilização? E mais, considerando o disposto no art. 932 e 933, do Código Civil, pode-se concluir que a responsabilidade civil do empregador/controlador seja objetiva? Essas perguntas, por óbvio, não são fáceis de responder. A começar pela primeira consideração: sendo empregado do controlador, é necessário que seja estabelecido os termos de sua relação em programa contratual autônomo? Isto é, a função de encarregado, diante de suas especificidades, por ser independente e autônoma, deve ser regida por contrato a parte do contrato empregatício previamente realizado, estabelecendo obrigações próprias à função? Aqui uma questão deve ser levantada: a importância da atuação do encarregado sem que haja conflito de interesse com o tratamento de dados realizado pelo controlador. Parece claro que a atribuição do cargo de encarregado a empregado da controladora importa na necessária revisão contratual de funções por ele desempenhadas, a despeito das atividades por ele já exercidas, caso já fosse empregado antes da nomeação. Aqui, por óbvio, é necessária uma análise da relação empregatícia com base nas normas de Direito do Trabalho a fim de evitar nulidades ao contrato de trabalho. Retornando ao tema: as obrigações assumidas pelo encarregado em seu contrato de trabalho são obviamente de meio, na medida em que não se obriga a um resultado específico, mas à realização de consultoria e indicação de condutas que podem - ou não - ser adotadas pelo controlador. Se o controlador opta por não seguir a orientação do encarregado é uma questão que deverá ser resolvida no âmbito de eventual responsabilização do próprio controlador, aplicando-se assim, as regras dos artigos 42 e 44, da LGPD. Contudo, se, em decorrência de evidente orientação contra legem do encarregado/empregado, o controlador toma medidas que geram danos a titulares de dados, pergunta-se se o encarregado deve ser responsabilizado pelo ato ilícito praticado durante e em função do exercício de sua atividade laborativa. Essa pergunta não é de todo tola, na medida em que se o empregado causa danos a terceiros em decorrência de sua atuação ou em função da atividade, o controlador pode ser responsabilizado, inclusive objetivamente. Por outro lado, o artigo 43, da LGPD prevê que "os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem: III - que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro". Pode-se considerar o encarregado "terceiro" no caso em que danos sejam ocasionados aos titulares de dados pessoais? Parece-nos que não, considerando que a locução "terceiro" deve ser interpretada como sendo relacionada à pessoa absolutamente alheia à atividade desenvolvida no tratamento de dados pessoais pelo controlador. Evidente que ao controlador caberá direito de regresso para reaver do encarregado aquilo que pagou aos ofendidos por conta de sua conduta ilícita. Aqui estamos fora do âmbito de aplicação da LGPD, mas dentro da aplicação do Código Civil e da responsabilidade civil do empregador pelos atos de empregado. E aqui temos mais um problema de interpretação sistemática: é conciliável a responsabilidade civil da LGPD, de base subjetiva como querem alguns, com a responsabilidade civil do empregador pelos atos de seus empregados, do Código Civil, de natureza objetiva? No primeiro caso, a responsabilidade é do controlador por ato próprio e em decorrência - para alguns - do descumprimento de deveres de segurança a serem cumpridos. No segundo caso, a responsabilidade é do controlador por ato de terceiro (encarregado, seu empregado) que com sua conduta ilícita durante o exercício de sua função causou danos a terceiros - inclusive a titulares de dados pessoais. E aqui a responsabilidade é objetiva, por previsão expressa do artigo 933, CC. No caso, temos a co-existência de duas bases legais para a responsabilidade civil do controlador: a da LGPD, por descumprimento de deveres de segurança do controlador que "causar a outrem dano" (art. 42, LGPD), e a do Código Civil, com base na relação de emprego com encarregado, "no exercício do trabalho que lhe competir, ou em razão dele" (art. 932, III, CC). Em conclusão, caso seja constituída a relação de emprego entre controlador e encarregado parece claro que o Código Civil será aplicável, com base nos artigos 932, III e 933. A responsabilidade civil do controlador passa a ter como fundamento o fato de que um empregado seu - encarregado - atuou em desconformidade com suas obrigações. Afasta-se, assim, a responsabilidade civil do controlador da sistemática da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Com isso, se permite uma coexistência de bases legais diversas para a obrigação de indenizar. Uma, de natureza objetiva, calcada na relação empregatícia e na conduta culposa do empregado/encarregado, tendo atribuída a responsabilidade ao controlador pelo fato de terceiro. Outra, para alguns, de natureza subjetiva, calcada no descumprimento pelo controlador de deveres de conduta e de segurança previstos na LGPD.    Caitlin Mulholland é professora do Departamento de Direito da PUC-Rio. Associada do IBERC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa DROIT - Direito e Novas Tecnologias. Doutora em Direito Civil pela UERJ.  Rodrigo Dias de Pinho Gomes é advogado. Doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Coordenador de Direito e Tecnologia da Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ. _________ 1 Nos termos da agenda regulatória para o biênio 2021-2022, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD prevê que esta deliberação ocorra no primeiro semestre de 2022. PORTARIA Nº 11, DE 27 DE JANEIRO DE 2021. Disponível aqui. Acesso em 21/03/2021. 2 "É altamente recomendável que o encarregado tenha comprovado conhecimento jurídico específico sobre proteção de dados, bem como noções sobre o funcionamento da tecnologia utilizada pelo controlador, exigência expressa na GDPR. Seria de suma importância que a ANPD regulamentasse requisitos mínimos o quanto antes, na forma do Artigo 41, § 3º da LGPD, visando evitar dúvidas e questionamentos neste sentido." GOMES, Rodrigo Dias de Pinho. Encarregado pelo tratamento de dados pessoais na LGPD Disponível aqui . Acesso em 07/04/2021.
Há muito se debate acerca da natureza jurídica da responsabilidade civil do Poder Público na hipótese de conduta omissiva. Em verdade, mesmo após a Constituição da República de 1988 muitas vozes, em especial no Direito Administrativo, continuaram a fazer a distinção entre conduta comissiva do agente público - situação que serviria de fundamento para uma responsabilidade civil objetiva, fundada no risco administrativo - e conduta omissiva, caso em que o elemento subjetivo da culpa ou dolo seria exigido. A razão seria que a Constituição de 1988, no seu conhecido art. 37, § 6º, ao utilizar a expressão causarem, só poderia estar se referindo às ações do agente público, uma vez que, na hipótese de omissão, o dano não teria sido causado por este, o qual só teria permitido, por força da sua omissão, que o dano ocorresse1. Trata-se de criativa interpretação doutrinária, a qual costuma ter na doutrina francesa da faute du service a sua grande inspiração. Assim, é a partir dessa visão que se afirma que a responsabilidade civil do Poder Público por omissão só existirá se ficar demonstrado que o serviço público não funcionou, ou funcionou mal ou funcionou tardiamente. Ou seja, fica, de todo modo, dispensada a prova da negligência de um agente público específico, o que, de fato, tornaria muito incerta a possibilidade de ressarcimento daquela que se diz vítima da omissão estatal. Contudo, julgados mais recentes, inclusive dos Tribunais Superiores, foram, paulatinamente, afirmando a natureza objetiva da responsabilidade civil estatal também na hipótese de omissão do Poder Público. Exemplo desse entendimento foi a decisão proferida pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.869.046/SP2. O caso versava sobre homicídio ocorrido dentro do Fórum de São José dos Campos, no Estado de São Paulo, tendo o autor do crime conseguido utilizar arma de fogo, uma vez que os detectores de metal do prédio público, naquela ocasião, não estavam funcionando. Ao julgar o Recurso Especial o Ministro Relator utiliza, como fundamento da responsabilidade civil estatal, o disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, conhecida "cláusula geral" da responsabilidade civil objetiva3. A mesma afirmação da natureza objetiva da responsabilidade civil estatal ocorreu, pouco depois, no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário 608.880/MT. O caso versava sobre latrocínio cometido por um evadido da penitenciária estadual, - onde cumpria pena em regime fechado -, cerca de três meses antes do trágico crime4. Este julgado levou à edição da seguinte tese para fins de Repercussão Geral (tema 362): "Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada". Tal decisão, portanto, tem o grande mérito de referendar a adoção da responsabilidade civil objetiva mesmo para a situação de omissão do Poder Público, fundando-a no chamado risco administrativo. Também parece confirmar a conhecida preferência pela teoria do dano direto e imediato para a explicação do nexo de causalidade entre a omissão estatal, que permite a fuga do apenado, e o dano então verificado (Código Civil, art. 403). Contudo, embora tenha o mérito de definir um norte para as futuras - e, infelizmente, não tão escassas decisões sobre o tema -, certo é que a expressa referência ao momento da fuga não pode servir de impeditivo a que, presentes certos elementos, se reconheça a responsabilidade civil estatal pelos danos decorrentes de conduta omissiva. Nesse sentido, podem ser recordados ao menos dois precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal nos quais o dano não se verificou, propriamente, no momento da fuga, tendo, porém, sido reconhecida a causalidade entre a omissão estatal e o trágico desfecho. O primeiro deles é representado pela decisão proferida pela Segunda Turma no julgamento do Recurso Extraordinário 409.203/RS5. O caso versava sobre crime de estupro cometido por detento que, nada obstante ter sido considerado, por sete vezes, foragido do sistema prisional - uma vez que não realizava o recolhimento noturno - foi mantido no regime aberto e, por volta das 04h30min, ingressou, armado, em uma residência onde veio a praticar o citado crime. O segundo precedente é da mesma Segunda Turma do STF e foi proferido por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 573.595/RS (Rel. Min. Eros Grau, julgado em 24.06.2008). Este último caso também se refere à prática de latrocínio, tendo o crime sido praticado após o prazo de 25 dias da terceira fuga do criminoso. Percebe-se, assim, que a referência ao momento da fuga, tal como consta da Tese firmada por ocasião do julgamento do tema 362 da repercussão geral, deve ser entendida com grande cautela pelo intérprete, sendo oportuno observar que a passagem do tempo, por si só, não é capaz de romper o nexo causal entre a omissão estatal e o seu possível seu trágico efeito. Nesse sentido, podem ser recordadas as palavras de Gustavo Tepedino, Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes:   Não é, portanto, a distância temporal entre o dano e a conduta do agente que rompe o nexo causal, mas, sim, a interferência de outra cadeia causal independente. A interrupção do nexo de causalidade pode ocorrer por fato exclusivo de terceiro, da própria vítima ou por um evento de caso fortuito ou de força maior. Assim, os desdobramentos do evento danoso que, temporalmente, estão distantes da conduta do agente são também passíveis de ressarcimento, contanto que sejam consequência direta e imediata de um ato ilícito ou de uma atividade perigosa objetivamente considerada, isto é, contanto que estejam ligados à conduta do agente por uma cadeia causal que não tenha sofrido qualquer interrupção. Em regra, conforme salienta Agostinho Alvim, os danos remotos não são indenizáveis, porque quase sempre deixam de ser efeito necessário, em decorrência do aparecimento de concausas, mas, se isso não ocorrer, eles devem ser indenizados. Para a análise do nexo de causalidade, não é, pois, a distância temporal que importa, mas antes a distância lógica que separa o dano da conduta do agente (grifou-se)6.    Marcelo Junqueira Calixto é doutor e mestre em Direito pela UERJ. Professor adjunto da PUC-Rio e associado fundador do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). __________ 1 Recorde-se a redação do dispositivo: "Art. 37. (...); § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".   2 STJ, Segunda Turma, Recurso Especial 1.869.046/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 09.06.2020. Afirma a ementa, no que aqui interessa: "(...) 3. A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa. 4. Aplica-se igualmente ao Estado a prescrição do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, de responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante seja a conduta comissiva ou omissiva. O vocábulo "atividade" deve ser interpretado de modo a incluir o comportamento em si e bens associados ou nele envolvidos. Tanto o Estado como os fornecedores privados devem cumprir com o dever de segurança, ínsito a qualquer produto ou serviço prestado. Entre as atividades de risco "por sua natureza" incluem-se as desenvolvidas em edifícios públicos, estatais ou não (p. ex., instituição prisional, manicômio, delegacia de polícia e fórum), com circulação de pessoas notoriamente investigadas ou condenadas por crimes, e aquelas outras em que o risco anormal se evidencia por contar o local com vigilância especial ou, ainda, com sistema de controle de entrada e de detecção de metal por meio de revista eletrônica ou pessoal". 3 Afirma o dispositivo: "Art. 927. (...). Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".  4 STF, Plenário, Recurso Extraordinário 608.880/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 08.09.2020. A ementa do julgado é a seguinte: "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DACONSTITUIÇÃO. PESSOA CONDENADA CRIMINALMENTE, FORAGIDA DO SISTEMA PRISIONAL. DANO CAUSADO A TERCEIROS. INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE O ATO DA FUGA E A CONDUTA DANOSA. AUSÊNCIA DE DEVER DE INDENIZAR DO ESTADO. PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.1. A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva, exige os seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. 2. A jurisprudência desta CORTE, inclusive, entende ser objetiva a responsabilidade civil decorrente de omissão, seja das pessoas jurídicas de direito público ou das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. 3. Entretanto, o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias como o caso fortuito e a força maior ou evidências de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima. 4. A fuga de presidiário e o cometimento de crime, sem qualquer relação lógica com sua evasão, extirpa o elemento normativo, segundo o qual a responsabilidade civil só se estabelece em relação aos efeitos diretos e imediatos causados pela conduta do agente. Nesse cenário, em que não há causalidade direta para fins de atribuição de responsabilidade civil extracontratual do Poder Público, não se apresentam os requisitos necessários para a imputação da responsabilidade objetiva prevista na Constituição Federal - em especial, como já citado, por ausência do nexo causal. 5. Recurso Extraordinário a que se dá provimento para julgar improcedentes os pedidos iniciais". 5 STF, Segunda Turma, Recurso Extraordinário 409.203/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, Relator para o Acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgado em 7/3/2006, em cuja ementa se lê: "(...). Impõe-se a responsabilização do Estado quando um condenado submetido a regime prisional aberto pratica, em sete ocasiões, falta grave de evasão, sem que as autoridades responsáveis pela execução da pena lhe apliquem a medida de regressão do regime prisional aplicável à espécie. Tal omissão do Estado constituiu, na espécie, o fator determinante que propiciou ao infrator a oportunidade para praticar o crime de estupro contra menor de 12 anos de idade, justamente no período em que deveria estar recolhido à prisão. Está configurado o nexo de causalidade, uma vez que se a lei de execução penal tivesse sido corretamente aplicada, o condenado dificilmente teria continuado a cumprir a pena nas mesmas condições (regime aberto), e, por conseguinte, não teria tido a oportunidade de evadir-se pela oitava vez e cometer o bárbaro crime de estupro. Recurso extraordinário desprovido".      6 Gustavo TEPEDINO, Aline de Miranda Valverde TERRA, Gisela Sampaio da Cruz GUEDES, Fundamentos do Direito Civil, vol. 4, Rio de Janeiro, Forense, 2020, pp. 90-91.
Atualmente, a informação e a compreensão se revelam como fundamentos essenciais à conformação adequada da relação entre médicos e pacientes. São elas dois pressupostos que devem ser minuciosamente observados se analisada parte importante das causas que sustentam o aumento das demandas judiciais relacionadas à responsabilidade civil nessa área. O dever de informação recíproca entre as partes e o ato de compreender as informações devem ser requisitos complementares, fundamentais à administração dos riscos que envolvem, naturalmente, a relação. O rechaço ao paternalismo médico acentua a mudança da forma de se conceber historicamente a relação, na medida em que se constata maior facilidade de acesso ao conhecimento pelas pessoas em geral, a transformação cultural consciente que busca a garantia de novos direitos e a reivindicação do cumprimento de perspectivas que coadunem as diferenças identitárias, traduzidas, muitas vezes, pelas condições de vulnerabilidade. Nesse contexto, a esfera subjetiva, que envolve a capacidade de informar e a capacidade de compreender, ínsitas às relações sociais, passa a integrar o espaço da relação entre médicos e pacientes e, por vezes, torna-se elemento protagonista na aferição da medida de possível responsabilidade pela ocorrência de um resultado danoso. A informação, enquanto uma obrigação recíproca entre as partes, não deve mais ser concebida como um dever meramente formal, exarada pragmaticamente pela assinatura de termos de consentimento padronizados. Num primeiro momento, deve-se compreender que a relação agrega o profissional como o sujeito detentor do conhecimento técnico e o paciente como sujeito vulnerável, já que desprovido da mesma condição. Disso, deve surgir a preocupação com o fato de que a informação precisa estar acompanhada de outro elemento fundamental - a compreensão. A habilidade para compreender uma informação não pode ser atestada simplesmente pela existência de capacidade jurídica. A compreensão somente pode ser adequadamente constatada se avaliada a esfera real de autonomia do paciente, que está relacionada às suas possíveis vulnerabilidades. A informação adequada, associada à compreensão alcançada, compõe o alicerce de uma atuação profissional preventiva, na medida em que não adere à obtenção conveniente de termos de consentimento calcados em aspectos puramente obrigacionais e formais. A vulnerabilidade, antes de tudo, deve ser apreendida como característica universal de todo ser existente. A condição de finitude e mortalidade do ser humano está diretamente relacionada à natureza vulnerável da sua existência1. Alargando o sentido de vulnerabilidade, é notório perceber que ela ganha contornos específicos (ou adjetivantes)2 quando representa a qualificação de alguns grupos de pessoas por considerar contingências e realidades. A informação é um dos elementos que propicia o exercício adequado da autonomia, seja do paciente ou do médico. Cabe ao profissional da Medicina o dever de informação adequada ao paciente em prol da obtenção correta do consentimento, assim como cabe ao paciente informar, com detalhamento, seu histórico clínico, hábitos e estilo de vida. As relações em saúde demandam a manifestação do consentimento, representado pela assinatura de um termo, conhecido como Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A autonomia, então, é manifestada por meio da expressão direta da vontade do paciente, que é o responsável por ler, compreender, preencher e assinar este documento3. Culturalmente, o termo é concebido como um processo de formalização para evitar conflitos jurídicos no futuro e não é resultado, em grande parte das vezes, de uma construção dialógica e esclarecida entre os sujeitos. Nem sempre as informações foram concedidas em totalidade e nem sempre quem assina o termo de consentimento compreendeu adequadamente o conteúdo previsto no instrumento. "A não compreensão adequada do conteúdo reduzido a termo é um problema persistente no âmbito da reflexão bioético-jurídica"4, que passou a ser considerado, de maneira mais incidente, quando investigadas, com profundidade, possíveis causas que justificaram a propositura de demandas judiciais para responsabilizar profissionais de saúde. Informação e compreensão são pressupostos contratuais relacionados a demandas que envolvem responsabilidade médica. Cabe, então, refletir sobre a questão a partir da dimensão bioética, que traz fundamentos que colaboram para a construção da tutela jurídica. Beauchamp e Childress5, autores da bioética principialista, propuseram distinção conceitual entre pessoas autônomas e ações autônomas, a fim de explicar a importância da informação, da autonomia e da capacidade de compreensão. Uma ação considerada realmente autônoma deve ser manifestamente intencional, estar livre de influências e pressupor a compreensão das informações em totalidade5. Logo, é possível perceber o quão é necessário, dentro das relações que envolvem saúde, entender que a manifestação da autonomia de um paciente, que é, por exemplo, juridicamente capaz, precisa vir coadunada pela sua real condição de compreender as informações. A pura aferição da capacidade jurídica de um paciente não deve atestar a sua condição de autonomia. A informação, quando fornecida pelo médico, é apta a revelar opções terapêuticas disponíveis, riscos do tratamento, ponderação quanto às vantagens e desvantagens da hospitalização ou das diversas técnicas a serem empregadas, revelação quanto aos prognósticos e ao quadro clínico e cirúrgico, bem como qualquer detalhamento relacionado à situação clínica do indivíduo. A informação, quando dada pelo paciente, também é fundamental para construção adequada das decisões e sugestões médicas, o que inclui o relato do histórico clínico, sintomas, tratamento realizados, cirurgias, bem como todas as informações de que tiver ciência relacionada às suas condições de saúde. A articulação adequada do discurso é um dever do profissional, uma preocupação humanizante, uma conduta preventiva e profilática. A informação não pode ser concebida apenas como uma obrigação técnica a ser cumprida, precisa se revelar como uma missão pormenorizada, detalhada, conduzida por uma preocupação ética. A conscientização de que o dever de informação é um dos pilares do gerenciamento de riscos, quanto a demandas que possam envolver qualquer tipo de dano e culminar na responsabilização, é o começo para a prevenção de litígios. A tarefa da informação não pode ser concebida apenas como uma preocupação jurídica, mas, antes, como uma preocupação humanizante. A doutrina e a jurisprudência6 nacionais já firmaram importantes conteúdos quanto à relevância do dever de informação no âmbito dessa relação. Segundo jurisprudência consolidada pelo STJ, "haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica", da mesma maneira, "para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado"6. Importante, agora, cada vez mais, contextualizar tal dever a partir do crescimento da complexidade dessa relação, o que envolve as tecnologias disponíveis (como a telemedicina) e os tratamentos inovadores (como o uso da inteligência artificial). As novas tecnologias podem facilitar a dinâmica de atuação dos médicos, mas precisam ser observadas cuidadosamente em relação a cada paciente, já que nem todas as pessoas compreendem informações sobre recursos e elementos tecnológicos, por isso, podem precisar de orientações mais cuidadosas e pontuais.    O consentimento informado deve representar um processo gradual, que avança progressivamente, não podendo ser reduzido a um simples documento escrito padronizado. A redução do conteúdo do consentimento à forma escrita não é suficiente para comprovar que a informação foi devidamente e/ou adequadamente passada. Isto porque as vulnerabilidades funcionam como óbices ao processo de compreensão. Esse ponto tem sido importante quando se pensa em demandas judiciais relacionadas a possíveis erros médicos quanto ao não esclarecimento ou ao esclarecimento inadequado de conteúdos concernentes à relação. A informação só tem sua finalidade alcançada se for devidamente compreendida pelo destinatário. A formulação de termos de consentimento, com a previsão de informações excessivamente técnicas, não atende à ideia do dever de informar, já que não reflete o cuidado ético com a possibilidade de compreensão. É necessário reajustar o olhar sobre os pressupostos de construção dos termos de consentimento, ainda que seja necessário reconhecer as dificuldades, como o tempo de consulta e as relações entre médicos e planos de saúde. Não há, de fato, garantia de que o profissional de saúde consiga sempre aferir a condição de compreensão de cada paciente, mas, em grande parte das vezes, é a sua conduta que fará diferença quanto a essa possibilidade de compreender. O acolhimento do profissional, revelado pela construção de um diálogo personalizado, é capaz de propiciar a compreensão necessária. Retomando a proposta da bioética principialista, pessoas com capacidade de autogoverno podem não governar a si mesmas em razão de restrições impostas por doença, pela ignorância, pela coerção, pela fome, pala falta de conhecimento ou por condições restritivas5. É necessário almejar que a ação de consentir seja autônoma, ou seja, com intenção, entendimento ou compreensão e ausência de influências controladoras. No Direito, questões que fundamentam a não compreensão pelo paciente estão relacionadas aos requisitos dos negócios jurídicos em geral. No entanto, no que concerne à assinatura do termo de consentimento, pode-se perceber a pouca importância dada à compreensão como elemento fundante que valida a informação escrita. Na prática, muitas vezes, a capacidade jurídica do paciente tem sido o único fator relevante para que o mesmo possa assinar o termo e o dever de informação seja concebido como cumprido. O exercício da autonomia privada deve exigir "requisitos de validade especiais, que excepcionam ou apenas complementam os requisitos dos atos jurídicos em geral, determinados no artigo 104 do Código Civil"7. Esse é o ponto de partida para entender que outros elementos, como a informação e a compreensão adequadas, devem integrar a avaliação da manifestação correta da autonomia. Não basta "passar" a informação ao paciente, ela "deve ser construída dialogicamente e não unilateralmente", não cabendo ao profissional a simples tarefa de relatar os dados, mas a construção de uma comunicação acessível7.   Somente na esfera da vulnerabilidade, onde estão as motivações capazes de impedir a concretização da compreensão, é que se pode pensar no desenvolvimento do sentido adequado de autonomia e da legitimidade dos consentimentos escritos. A capacidade de compreensão pelo paciente precisa passar a ser uma preocupação consistente, considerando, também, o número de ações judiciais assentadas na possibilidade de negligência durante o processo de informação. Como dito, não há como garantir a possibilidade de aferir categoricamente a condição de compreensão de cada sujeito, mas há como transformar o curso do processo de obtenção de consentimento por meio de um diálogo responsável e acolhedor, capaz de revelar a boa-fé e a confiança, que contribuem substancialmente para a prevenção de litígios.   *Ana Thereza Meirelles é pós-doutoranda em Medicina pelo programa de pós-graduação de Medicina e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (PPGMS/UFBA). Doutora em Relações Sociais e Novos Direitos e Mestre em Direito Privado e Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (PPGD/UFBA). Professora membro do Corpo permanente do Mestrado em Direitos Fundamentais e Alteridade da Universidade Católica do Salvador (PPGD/UCSal). Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora da pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética da Faculdade Baiana de Direito. Líder do Grupo de Pesquisa JusBioMed - Direito, Bioética e Medicina. __________ 1 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-RJ, 2006. 2 PATRÃO NEVES, Maria do Céu. Sentidos da vulnerabilidade: características, condição e princípio. In: BARCHIFONTAINE, Christian Paul de; ZOBOLI, Elma Lourdes Campos Pavone (Org.). Bioética, Vulnerabilidade e Saúde. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2007. 3 MEIRELLES, Ana Thereza; LINS-KUSTERER, Liliane. Pressupostos fundamentais da recusa a tratamento médico na assistência à saúde. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 19, n. 04. p. 69-90, out./dez. 2020. 4 MEIRELES, Ana Thereza; AGUIAR, Mônica. Prática médica e diretivas antecipadas de vontade: uma análise ético-jurídica da conformação harmônica entre os pressupostos autonomia e alteridade. Revista Jurídica Cesumar,  v. 17 n. 3, 2017: set./dez.  5 BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Principles of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press, 1979. 6 STJ. Recurso Especial Nº 1.540.580 - DF (2015/0155174-9). Disponível aqui. Acesso em: 01 jun. 2021. 7 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima; NAVES, Bruno Torquato. Bioética e Biodireito. 4.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p.108. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Fundada em 2013, a Quinto Andar, proptech1 dedicada a simplificar e agilizar o fechamento de contratos de locação e de compra e venda de imóveis, acaba de ser avaliada por espantosos US$ 4 bilhões, ou mais de R$ 21 bilhões2. A metodologia de avaliação dessa e de outras empresas em atividade, em última análise, considera o que a corporação tem, realiza, representa e lucra no presente; e, principalmente, o que ela é capaz de ser e de lucrar no futuro. Um laudo de avaliação de uma companhia, assim, tem boa dose de futurologia, o que não lhe retira a priori a confiabilidade, afinal, ninguém investe centenas de milhões de dólares em uma companhia sem que haja uma chance palpável da possibilidade se transformar em realidade. Dito de outro modo: a avaliação, embora espelhada no futuro, trata do presente. A Quinto Andar, não daqui a um ano, ou dez, e sim hoje, vale US$ 4 bilhões. No futuro poderá valer muito mais ou muito menos. Quem viver, verá. Também um reflexo da transformação por que vem passando o setor imobiliário, o mercado de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) vem crescendo consistentemente. O estoque de CRIs que, em 2005, era de aproximadamente R$ 1 bilhão, em 2020 já se aproximava de R$ 80 bilhões3. Nesse mercado, o titular do crédito imobiliário (geralmente, um incorporador, loteador ou locador) cede seu crédito - prestações do saldo devedor do preço do imóvel ou aluguéis - para uma companhia securitizadora, que emite os CRIs no mercado, os quais são comprados por investidores, que recebem o rendimento dos títulos, com lastro imobiliário. Nesta operação estruturada, o credor-cedente antecipa sua receita, obviamente com deságio, calculado pela diferença econômica entre a chance e a certeza de recebimento do crédito cedido. Financeiramente, algo semelhante ocorre com o bilhete de loteria: quanto maior a chance, maior seu valor. Se a possibilidade do bilhete simples da Mega Sena acertar as seis dezenas é ínfima, algo como 1 em 50 milhões, você pode tentar revolucionar sua vida financeira por apenas R$ 4,50, menos que uma passagem de metrô na cidade do Rio de Janeiro, que quase certamente te levará à estação desejada. O fato de a chance de ganhar o prêmio ser ridícula não significa que o bilhete não vale nada. A economia tem muitos exemplos de negócios jurídicos cujo preço presente leva em conta um fato futuro e incerto. Toda chance tem valor e pode ser alienada mediante contrapartida. Estamos acostumados a isso. Entretanto, quando saímos do campo negocial e seguimos pela estrada da responsabilidade civil, uma avalanche de nuvens se derrama sobre nós, nublando a visão e criando uma encruzilhada sem placa ou sinalização clara de que rota seguir. É como se a matemática da chance ganhasse novas regras elementares, sem uma razão que realmente justifique a distinção. Se, por um lado, já se caminhou bastante no desenvolvimento da teoria e aplicação da responsabilidade civil pela perda de uma chance, há muito a ser feito. Doutrina e jurisprudência concordam bastante, mas discordam ainda mais quando o tema é a natureza da indenização ou suas hipóteses de cabimento e valoração. Trata-se de lucro cessante, dano emergente ou algo intermediário? Que chance perdida gera o dever de reparar o dano? Como quantificá-lo?4 Naturalmente este brevíssimo artigo não tem a pretensão de responder a tais perguntas. O objetivo aqui é chamar a atenção para uma nuance que, ao menos em tese, pode ser capaz de evitar o que talvez seja um falso dilema. A teoria da perda de uma chance (perte d'une chance), pelas feições gerais que lhe atribuiu a doutrina francesa da década de 1960, assenta-se, em larga medida, sobre o conceito de lucro cessante, com olhar sobre a supressão ilícita de oportunidade de obtenção de situação futura benéfica, que pode ser de um ganho obtido ou de um dano evitado.5 Vista sob tal enfoque, a teoria, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, exigiria "que o Poder Judiciário bem saiba diferenciar o improvável do quase certo, bem como a probabilidade de perda da chance do lucro, para atribuir a tais fatos as consequências adequadas"6, e segundo o Ministro Luis Felipe Salomão, responsabiliza-se o agente pela indenização "não de um dano emergente, tampouco de lucros cessantes, mas de algo intermediário entre um e outro, precisamente a perda da possibilidade de se buscar posição mais vantajosa que muito provavelmente se alcançaria, não fosse o ato ilícito praticado"7. Parece haver consenso de que, para ser indenizável, a chance eliminada precisa ser "razoável, séria e real, e não somente fluida ou hipotética"8. O próprio Enunciado 444 do CJF estabelece, em sua parte final, que "a chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos". Entretanto, essa premissa, embora correta, não parece ajudar muito diante do caso concreto, pois o que é sério para um juiz pode soar meramente hipotético para outro. Por que isso? Ora, somos humanos, tendemos a julgar a partir do nosso senso comum, e o senso, mesmo sendo comum, varia - e muito - de pessoa para pessoa; e pior, mesmo quando não varia, pode enganar a muitos. Se você duvida, trazemos um caso real ocorrido no programa americano de televisão das décadas de 1960 e 1970, denominado Let's make a deal. Em um dos episódios, o participante estava diante de três portas fechadas. Atrás de duas delas havia cabras, e na terceira havia o prêmio, um carro. Uma vez que a pessoa escolhia aleatoriamente uma das três portas, por exemplo a nº 1, o apresentador, sabendo onde estava o carro, abria a porta nº 2, revelando uma cabra, e então perguntava ao participante: vale a pena mudar para a porta nº 3 a fim de aumentar a chance de ganhar o automóvel, ou permanecer na nº 1 dá no mesmo? Caso não conheça o problema de Monty Hall, pare de ler e pense mentalmente qual seria sua resposta. Somente então leia a nota de rodapé9. Se tentou e não acertou o que parecia evidente, não se envergonhe: até mesmo alguns matemáticos reconhecidos, na época, não foram capazes de deduzir corretamente que trocar de porta dobrava a chance de ganhar o carro, e mesmo depois de saberem a resposta relutaram em aceitá-la. Sim, o que parece logicamente óbvio pode não ser o correto. E se até mesmo um expert pode errar, com muito mais probabilidade um juiz, que não foi preparado para fazer análise combinatória, pode se enganar pelas aparências e pelo espaço amostral. É possível contra-argumentar no sentido de que os juízes, em casos de erro médico, para citar as ações mais comuns em que se discute tal indenização, já nomeiam peritos que estimam, por exemplo,  qual a probabilidade de sobrevivência do paciente, não fosse o erro médico. De fato, em situações existenciais, a valoração do dano em regra deve ser feita pelo próprio juiz - o que não significa que se deva renunciar a uma metodologia adequada para evitar incongruências e indenizar da forma mais justa possível, tal como ocorre em relação ao dano moral, para o qual a doutrina sempre procurou estabelecer critérios coerentes.10 Contudo, aqui o foco são as oportunidades perdidas nos negócios imobiliários, que possuem caráter patrimonial. Se o locador não consegue provar que alugaria o imóvel não fosse seu péssimo estado de conservação, fruto dos maus cuidados do locatário, não há lucro cessante. Mas nesse caso havia uma chance que se perdeu? Afinal, o que seria uma chance séria e indenizável? No mínimo 50%11? 25%12? Quem define isso? Aliás, alguém precisa realmente definir se a chance é séria? Ninguém pode cravar se a Quinto Andar terá sucesso no futuro, mas isso não impede de avaliá-la no presente por bilhões de reais. Não temos certeza se o inquilino, em um contrato built to suit, pagará os aluguéis vincendos que dão lastro ao crédito imobiliário cedido e securitizado. Porém, esse fato não impede a emissão dos CRIs e a antecipação, com deságio, de receita pelo locador. De outro lado, é extremamente improvável que o esperançoso, com uma aposta simples de seis números, leve o prêmio da Mega Sena. Todavia, tamanha improbabilidade não impede que o bilhete tenha um valor econômico, ainda que muito baixo (R$ 4,50), o que, inclusive, tal como nos seguros, é precisamente o que dá base a tal modelo de contrato aleatório. Se assim ocorre nos negócios, porque o mesmo não se passa na responsabilidade civil, ao menos nas situações de cunho patrimonial? Aqui não deveria haver espaço para binarismos em relação à indenização da chance perdida. De duas uma: ou não existia chance, e inexistindo dano, nada há a reparar; ou a chance existia, e seu percentual de concretização é importante não para definir se há ou não dever de indenizar, e sim para calcular seu valor, pois a indenização, em alguma medida, será sempre devida, ainda que em valor módico ou irrisório, salvo se a chance tiver, literalmente, valor zero, caso em que ela seria completamente irrelevante. Isto não significa que a chance tenha valor autônomo, o que seria um contrassenso. Tal como ocorre na fixação do preço de empresas, de recebíveis imobiliários e de bilhetes de loteria, a avaliação jamais prescindirá da análise da (im)probabilidade de ocorrência do fato futuro e por natureza incerto. O que se defende é: em se tratando de direito patrimonial, e se ficar provado que há chance, a avaliação econômica será sempre possível - e assim indenizável - independentemente de seu percentual de futura concretização, desde que superior a zero. Sendo esta não uma questão de se, mas de quanto, a prova da existência da chance é apenas um dos passos, mas não o único. É preciso apurar - e aqui parece que a prova é eminentemente técnica -, no caso concreto, qual é o valor econômico da possibilidade destruída, e o ponto de partida parece claro: quanto mais séria e real a chance, maior o montante a reparar, e vice-versa. Tal quantificação, a toda evidência, é um trabalho técnico, e não jurídico, a ser exercido por um perito, e não pelo juiz, salvo nos casos em que depender de simples e mero cálculo aritmético, o que não costuma ser a regra. Uma vez que o dano e sua expressão em Reais (grande, média ou pequena) tenham sido apurados, o julgamento da causa torna-se tarefa mais clara, sem que o juiz tenha que decidir, como normalmente ocorre, se a chance é séria a ponto de merecer reparação, dando azo a decisões diferentes para situações idênticas. Em um barco, no meio do oceano, não conseguimos mudar a direção do vento, mas podemos fazer um pequeno ajuste de velas para ir aonde queremos. Se, como disse o Ministro Ricardo Villas Boas, "o que se indeniza na responsabilidade por perda de chance outra coisa não é senão a própria chance perdida"13, ainda mais em situações patrimoniais, a chance séria, indenizável, deve ser toda aquela possível de se avaliar economicamente, com base na possibilidade, grande ou pequena, mas superior a zero, de futura ocorrência do fato alegado. Sublinhe-se, para terminar: se há chance economicamente valorável, há dever de indenizar, ainda que pequeno, não importa seu percentual de possível concretização. Se aceita tal premissa, talvez evitemos discussões que no fundo são estéreis, melhorando a expectativa de se encontrar terra firme, com menor insegurança jurídica, maior previsibilidade, e mais justiça na decisão. André Abelha é membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral na OAB Nacional. Fundador e Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Sócio de Wald, Antunes, Vita, Blattner Advogados. Antonio Evangelista de Souza Netto é pós-doutor em Direito pela Universidad de Salamanca - Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália e pela Universidade de Coimbra - Portugal. Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Participates in Judicial Exchange at Harvard University. Juiz de Direito Titular de Entrância Final e Juiz Coordenador do CEJUSC Recuperação Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Membro do Fórum Nacional de Juízes com Competência Empresarial - FONAJEM. Professor e Coordenador do Núcleo de Ensino a Distância da EMAP - Escola da Magistratura do Paraná. __________ *Agradecemos a Juliana Velloso e sua valiosa pesquisa, sem a qual teria sido impossível escrever este artigo. 1 No link é possível fazer o download de um mapa com as principais proptechs e construtechs, isto é, startups do setor de construção e do mercado imobiliário. Acesso em 30.mai.2021. 2 Quinto Andar quadruplica sua avaliação para US$ 4 bilhões, após nova captação de investimento. Acesso em 30.mai.2021. 3 Conforme reportagem disponível aqui. Acesso em 30.mai.2021. 4 Confiram-se dois excelentes artigos, ambos publicados no mesmo livro (PIRES, Fernanda Ivo (Org.); GUERRA, Alexandre et al (Coord.). Da estrutura à função da responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil (IBERC) ao Professor Renan Lotufo. São Paulo: Editora Foco, 2021): (i) SOARES, Ronnie Herbert Barros. Responsabilidade civil por perda de uma chance. Ob cit, p. 331- 338; e (ii) KFOURI NETO, Miguel. Quantificação do dano na perda de uma chance de cura ou sobrevivência. Ob. cit, p. 339-352. 5 Existiria, assim, uma linha tênue que separa a aplicação da perda de uma chance dos lucros cessantes nos casos concretos. Enquanto nos lucros cessantes há uma certeza quanto ao que se deixou de ganhar, aqui haveria a perda de uma oportunidade de se alcançar o resultado. 6 REsp 965.758/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/08/2008, DJe 03/09/2008. 7 STJ, Resp: 1.190.180/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/11/2010, DJe 22/11/2010 RDDP vol.95 p.125). 8 Resp: 1.190.180/RS (vide nota de rodapé nº 9). 9 Mudar da porta nº 1 para a porta nº 3, faz com que sua chance de levar o carro duplique, de 1/3 para 2/3, por duas razões simples: (i) a chance do carro estar nas porta nº 2 ou na porta nº 3 era de 1/3 + 1/3 = 2/3; e (ii) o apresentador sabia que o carro não estava na porta nº 2, e a abriu, revelando a cabra, e com isso, os 2/3 de chance se concentraram na porta nº 3, não escolhida e que permaneceu fechada. A chance somente se alteraria para 50% porta nº 1 x 50% porta nº 3 se a porta nº 2 tivesse sido aberta aleatoriamente, o que não foi o caso. Conclusão: é indubitavelmente melhor trocar de porta. 10 Por todos, ver: MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 11 Este é o entendimento de Sergio Savi: "Não é, portanto, qualquer chance perdida que pode ser levada em consideração pelo ordenamento jurídico para fins de indenização. Apenas naqueles casos em que a chance for considerada séria e real, ou seja, em que for possível fazer prova de uma probabilidade de no mínimo 50% (cinquenta por cento) de obtenção do resultado esperado (o êxito no recurso, por exemplo), é que se poderá falar em reparação da perda da chance como dano material emergente" (SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 65). No mesmo sentido, ver: CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 12 Em 2005, foi julgado pela Quarta Turma do STJ o caso do programa de televisão "Show do Milhão". Essa decisão fomentou os debates sobre a teoria da perda de uma chance no direito brasileiro. A participante, que havia acertado todas as questões até a última pergunta e acumulado R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), se recusou a respondê-la sob a alegação de que estaria mal formulada. O relator do caso, Ministro Fernando Gonçalves, entendeu que houve culpa da empresa na elaboração da redação da questão e aplicou a probabilidade de acerto para estabelecer a o valor da indenização. Desta forma, a ré foi condenada ao pagamento de R$ 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil reais), correspondente a ¼ (um quarto) do valor total da questão que era de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), considerando que, se formulada a questão corretamente, esta teria ¼ (um quarto) de chance de acertá-la. (REsp 788.459 REsp 788.459/BA, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 13/03/2006). Nesse ponto, Flávio da Costa Higa, citando a referida decisão, defende que a utilização apenas da probabilidade matemática não traz segurança ao julgamento do caso concreto. (HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade Civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 86-87). 13 REsp 1335622/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2012, DJe 27/02/2013.
Em janeiro de 2020, a OMS acendeu o seu mais grave alerta, ao decretar a emergência de saúde pública internacional em virtude da COVID-19, conclamando uma resposta internacional coordenada contra a expansão da doença, nos termos do Regulamento Sanitário Internacional.1 Desde então, a comunidade científica e os grandes laboratórios passaram a empreender todos os esforços para dissecar o vírus e desenvolver imunizantes e/ou medicamentos adequados à prevenção e à cura da doença. Como saldo, a OMS contabilizou, em março de 2021, um total de 182 vacinas candidatas à fase pré-clínica de pesquisa e outras 81 vacinas já em fase clínica. Até maio de 2021, sete vacinas atenderam aos critérios de segurança e eficácia, segundo o Procedimento de Listagem para o Uso de Emergência (EUL) da OMS, quais sejam: as duas versões da AstraZeneca/Oxford-SKBio e Serum Institute of India; a Janssen/Johnson & Johnson; a Pfizer/BionTech; a Moderna e a Sinopharm.2  No Brasil, a vacinação é uma das estratégias de enfrentamento do vírus prevista na lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, art. 3º., inciso III, alínea d. Em decorrência de uma série de fatores, porém, o Plano Nacional de Imunização (PNI) contra a Covid-19 só foi publicado em 16 dezembro de 2020, iniciando-se a campanha em 18 janeiro de 2021.3 Atualmente, PNI está na sua sexta edição e agora prevê o uso de quatro vacinas aprovadas pela Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA): a Sinovac/Butantan e a Janssen/Johnson & Johnson, autorizadas para o uso emergencial; e a AstraZeneca/Fiocruz e a Pfizer/Wyeth, com registro definitivo. Nas suas primeiras versões, aplicavam-se apenas a Sinovac/Butantan e a AstraZeneca/Fiocruz, os únicos imunizantes aprovados à época. Compete à Anvisa (Lei 9.782/99) a concessão de registros e licenças para o lançamento das vacinas no mercado, seguindo um conjunto de regras e procedimentos que visam a aferição de sua qualidade e segurança em respeito ao direito fundamental à saúde. Mais recentemente e em caráter excepcional, as leis 14.124/2021 e 14.125/2021 autorizaram a aquisição do imunizante pelo Distrito Federal, Estados e Municípios antes do registro sanitário correspondente ou de uma autorização temporária para uso emergencial (art.2o., inciso I),4 exigindo apenas o seu registro ou autorização de uso temporário por uma das autoridades sanitárias estrangeiras listadas no art.16, da lei14.124/2021. Nessa hipótese, a Anvisa ainda deve ser consultada sobre essa importação nos moldes do art.16 e parágrafos, lei14.124/2021e da resolução 476/20215, incumbindo-se ao importador, a responsabilidade sobre a qualidade, eficácia e segurança do produto importado (resolução 476/2021, art.4º., III,). O uso do imunizante no país é acompanhado das ações de farmacovigilância que monitoram e investigam os eventos adversos pós-vacinação, cuja ocorrência é de notificação compulsória ao SUS (decreto 8.077/2013, art.16, parágrafo único). A farmacovigiância se desenvolve no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância de EAPV6 como parte da política vacinal e em respeito ao direito à saúde, imprescindível à manutenção da vida e da dignidade da pessoa humana.7 Considera-se EAPV, qualquer ocorrência médica indesejada após o uso do imunizante, independentemente de uma relação causal com a vacina ou imunobiológico (imunoglobulinas e soros heterólogos).8 Classificam-se como eventos esperados ou inesperados, conforme sejam ou não, conhecidos e identificados pelos respectivos fabricantes. Quanto à gravidade, são classificados como graves (EAG) e não graves (EAnG). A cada campanha vacinal, o Brasil divulga os informes técnicos sobre o imunizante, nos quais aponta os possíveis EAPVs. No informe técnico sobre a vacina contra a H1N1, por exemplo, listou-se a síndrome Guillain-Barré como um Evento Adverso Grave - EAG que pode ocorrer na proporção de reduzida de 01 caso para cada milhão de doses aplicadas.9 A vacina contra a febre amarela, por sua vez, apresenta risco de doenças neurológicas ou doença viscerotrópica aguda. Entre 2007 a 2012, registraram-se, no Brasil, 0,42 casos desses EAGs por 100 mil doses administradas da vacina contra a febre amarela.10 Os Eventos Adversos Inesperados, a seu turno, são aqueles que não foram arrolados previamente pelo fabricante, seja porque a sua identificação era inalcançável pelo estado da arte da ciência à época do seu fornecimento, hipótese em que se vislumbra um risco de desenvolvimento;11 seja porque teve origem na contaminação de lotes, na má conservação do produto pelos distribuidores ou no erro de prescrição, manipulação ou aplicação do imunizante. Há outras situações, como referido, nas quais os eventos adversos não tem qualquer correlação com a vacina, sendo listados como tais porque ocorreram nas semanas seguintes à vacinação e demandam a investigação da farmacovigilância. Feitas essas considerações, é de se concluir que nem todo EAPV importará em dano indenizável. Eventos adversos não graves - EAnG consistentes em estado febril leve, dores no corpo, edema no local da aplicação são uma consequência ordinária e natural do processo de vacinação que devem ser suportadas pelo paciente. Também não suscitam reparação aqueles EAPVs sem conexão causal com o imunizante ou com o seu manejo. Relativamente aos Eventos Adversos Graves Esperados - EAG associados aos imunizantes cuja aquisição foi autorizada pelo órgão competente, a informação prévia, acessível e adequada sobre a possibilidade de sua ocorrência, afastará a responsabilidade civil do fornecedor (fabricante, importador, distribuidor ou clínicas particulares). Na hipótese de importação nos moldes das leis 14.124/2021 e 14.125/2021, também caberá ao importador os deveres de informação. Não se olvidando os deveres da União, gestora do PNI, na elaboração e divulgação do correspondente informe técnico. O fornecimento e/ou importação regular do imunizante não constitui ato ilícito, ainda que o produto apresente um risco mínimo, devidamente sopesado pelas agências reguladoras nacional ou internacional. A falta da comunicação clara e efetiva sobre esse risco é que poderá resvalar em vício de informação (art. 6o, III, e art.12 do CDC) e justificar eventual responsabilidade civil do fornecedor e/ou importador.12 Importa ressaltar a responsabilidade civil da União Federal que tem desenvolvido notável protagonismo nessa matéria.13 Por meio da Agência de Vigilância, atesta a qualidade do imunizante e chancela a sua introdução no mercado de consumo pelo registro, autorização temporária de uso ou pela apreciação da solicitação da importação pelas demais entidades federativas. Por intermédio do Ministério da Saúde, conduz o Programa Nacional de Imunização, desenvolvendo as campanhas nacionais de vacinação e gerenciando todo processo imunizatório e as ações de farmacovigilância. Se o imunizante apresenta riscos de danos à saúde do usuário, serão eles (ou deverão ser) do conhecimento da União Federal. A seguir a teoria do risco administrativo, presente no art.37, §6º., da CF/88, os danos associados ao exercício ou à prestação do serviço público suscitam o dever de reparação, independentemente da culpa do agente. Basta a prova da relac¸a~o causal entre o dano sofrido e a ação do agente ou do órgão da administração para que a reparac¸a~o se torne exigível. Considerando o papel da Anvisa e do Ministério da Saúde no controle da qualidade das vacinas e na gestão das políticas públicas vacinais, não há como afastar o dever da União em indenizar os danos decorrentes dos EAPV, ainda que o imunizante haja sido adquirido por outras entidades federativas. Diz a lei14.125/2021, no art. 1º., que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são autorizados a adquirir vacinas e deverão assumir a responsabilidade civil em relação a eventos adversos pós-vacinação. Quando da sua aplicação as entidades federativas deverão informar aos pacientes que o produto não possui registro e nem autorização temporária para uso emergencial fornecido pela ANVISA (Res. No.476, art.3º., XII), entregando-lhe o cartão vacinal no qual constem informações sobre o imunizante utilizado, inclusive, quanto ao lote. Mesmo nesse caso, entende-se pela subsistência da responsabilidade solidária da União pelos EAG associados ao seu uso, haja vista a sua atuação em todo o processo. Não se pode admitir que a vítima seja condenada a suportar o peso do dano como um mero infortúnio pessoal quando a campanha de imunização visava o equilíbrio da saúde pu'blica, em geral. A despeito da liceidade da vacinação, "não parece razoável, na legalidade constitucional, estando a pessoa humana posta na cimeira do sistema jurídico, que a vítima suporte agressões, ainda que causadas sem intenção nem culpa, isto é, sem negligência, imperícia ou imprudência."14 A ratio do ressarcimento do dano que decorre de atividade lícita como no exemplo citado, está na necessidade de salvaguardar interesses que o ordenamento jurídico considera merecedor de tutela mesmo em face de outros que também se comportam no vasto campo da licitude. Em face de interesses igualmente tutelados como na hipótese, é possível justificar a indenização pelo dano que sobrecarrega um ou poucos indivíduos.15 Em duas oportunidades (REsp no 1.514.775 - SE (2015/0026515-0) e REsp. no 1.388.197 - PR (2013/0099928-9), o Superior Tribunal de Justiça reconheceu como dano injusto e, consequentemente indenizável, o desenvolvimento da Síndrome de Guilhan-Barré após a ministração da vacina contra o vírus da Influenza. Tocante ao evento adverso pós-vacinação inesperado, isto é, aquele que não foi identificado pelo fabricante tampouco pelo importador, tem-se um exemplo de risco de desenvolvimento que, na unidade civil-constitucional, não é considerada uma hipótese de exclusão da responsabilidade.16 Assim, é cabível a responsabilidade civil da União como gestora do PNI e da entidade federativa que adquiriu o imunizante, se a vítima tomou o imunizante por ela importado, na forma das leis 14.124/2021 e 14.125/2021. Entende-se, igualmente, pela responsabilidade solidária do fabricante, ainda que o contrato com ele celebrado preveja uma cláusula de não indenizar que, no Brasil, é considerada abusiva nos termos do art.51, do Código de Defesa do Consumidor. Ao cabo e ao fim, os imperativos da solidariedade social e do direito à saúde serão assertivos na fundamentação do dever de indenizar. Não sem razão, a lei 14.125/2021 autorizou à União, Estados, Municípios e Distrito Federal a possibilidade de contratação de um seguro de responsabilidade para o enfrentamento dessas questões, sem detalhar amiúde os valores, o prazo de cobertura securitária, legitimados etc. Contudo, independentemente da cobertura securitária, as questões atinentes à responsabilidade civil não estaria todas resolvidas e a temática ainda nos renderá profícuas discussões. *Joyceane Bezerra de Menezes é doutora em Direito pela UFPE. Professora titular da Universidade de Fortaleza. Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Direito (Mestrado/Doutorado) da Universidade de Fortaleza. Professora associada da UFCE. Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPQ: Direito Civil na Legalidade Constitucional. __________ 1 Instrumento jurídico internacional, disciplinado pela Resolução WHA58.3, aprovada na 58a Assembleia Mundial da Sau'de, de 2005, para orientar as ações contra a propagação internacional de enfermidades. Vincula cerca de 196 países em todo o mundo, incluindo aqueles Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Reglamento Sanitario Internacional (2005). Tercera edición. Disponível aqui. Acesso em 17/05/2021. 2 Status of COVID-19 Vaccines within WHO EUL/PQ evaluation process. Disponível aqui. Acesso em: 18/05/2021. 3 BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. Disponível aqui. Acesso em: 19/05/2021. 4 A legislação também previu a possibilidade de importação do imunobiológico por pessoas jurídicas de direito privado, devendo as aquisições serem repassadas gratuitamente ao SUS até a completa vacinação dos grupos prioritários (art.2º, lei 14.125/2021). Após atendidos esses grupos, o repasse passará a ser de 50% (cinquenta porcento). 5 BRASIL. Anvisa. Resolução no.476, de 10 de março de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20/05/2021. 6 O Sistema Nacional de Vigilância de EAPV, instituído em 1992 para integrar o Programa Nacional de Imunizaçao do Ministério da Saúde, se compõe de órgãos das esferas da federação e de alguns setores da sociedade civil. 7 CAMPOS, Adriano Leitinho; DÓREA, José Garrofe; SÁ, Natan Monsores. Judicialização de eventos adversos pós-vacinação. Rev. bioét. (Impr.). 2017; 25 (3): 482-92 . Disponível aqui. Acesso em 21/05/2021. 8 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. Manual de vigilância epidemiológica de eventos adversos pós-vacinação [recurso eletrônico]. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. - 4. ed. - Brasília. Disponivel aqui. Acesso em: 20/05/2021.  9 De acordo com o informe técnico da  23a Campanha Nacional de Vacinação Contra a Influenza, o imunizante pode estar associado à posterior manifestação da Síndrome de Guillain-Barré (SGB), evento que também pode ser deflagrado pelo próprio vírus. Segundo o Informe, "Geralmente, os sintomas aparecem entre 1 a 21 dias e no máximo até 6 semanas após a administração da vacina. É importante citar que o próprio víus influenza pode desencadear a SGB, e que a frequência de 1 caso por milhão de doses administradas, encontrada em alguns estudos, é muito menor que o risco de complicaçõess da influenza que podem ser prevenidas pela imunização. (Brasil. Ministério da Saúde. Informe técnico da 23ª. Campanha Nacional de Vacinação Contra a Influenza. Disponível aqui. Acesso em: 19/05/2021, p.23.  10 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de vigilância epidemiológica de eventos adversos pós-vacinação. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. - 3. ed. - Brasília: Ministério da Saúde, 2014, p.74.  11 Para Tula Wesendonck, o risco de desenvolvimento resulta em "fato do produto ou do serviço" sendo albergado pela cláusula geral de responsabilidade objetiva do art.931, do Código Civil, cujas excludentes são o caso fortuito externo, a força maior, o fato de terceiro ou a culpa exclusiva da vítima. Ainda que o estado da arte da ciência não permita a sua identificação, ao tempo do fornecimento, o risco já existia (Art. 931: repetição ou inovação? In Revista de Direito Civil Contemporâneo |. vol. 3/2015, p. 141 - 159 | Abr - Jun / 2015 DTR\2015\6572. Sob esse entendimento é a decisão do STJ, REsp 971.845/DF (2007/0157382-1). E bem mais recentemente, no REsp. No. 1.774.372 - RS (2018/0272691-3), o risco de desenvolvimento foi considerado fortuito interno, justificando a reparação aos herdeiros da vítima, usuária do medicamento SIFROL, que a vista do uso, desenvolveu o chamado jogo patológico. 12 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4a ed. São Paulo: RT, 2017, p. 646.  13 MENEZES, Joyceane B.; SERPA, Jamila Araújo. Responsabilidade civil da União pelos danos causados pela vacina contra a Influenza - Síndrome Guillain-Barré. Responsabilidade Civil e Medicina. Organizadores: ROSENVALD, Nelson; DADALTO, Luciana e MENEZES, Joyceane B. Indaiatuba: Foco, 2021.  14 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos a` pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.179.  15 USTARROZ, Daniel. Responsabilidade por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014. 16 Enunciado 43, da I Jornada de Direito Civil, dispôs que "A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento." Coube ao Superior Tribunal de Justiça acolher a tese do risco de desenvolvimento como um caso fortuito interno que não configura excludente de responsabilidade. (REsp no. No 1.774.372 - RS (2018/0272691-3).
terça-feira, 25 de maio de 2021

Liberdade de imprensa e responsabilidade civil

Em frase que se tornou famosa e é frequentemente citada quando se trata da liberdade de imprensa, Thomas Jefferson declarou: "Se me fosse dada a decisão sobre se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo eu não hesitaria um momento em preferir a última".1 A frase dá a dimensão da fundamentalidade da imprensa para a democracia. Não qualquer imprensa, mas de uma verdadeiramente livre, não submetida às pautas e aos interesses do governo. Uma imprensa livre, juntamente com o princípio geral da liberdade de expressão, é condição necessária à existência e à manutenção de um Estado democrático, porque é, principalmente, através de notícias e matérias veiculadas nos meios de comunicação de massa que os cidadãos têm acesso a informações e opiniões sobre fatos de interesse público e sobre práticas do governo e seus agentes. Tais informações são essenciais para que os cidadãos tenham condições de realizar escolhas mais conscientes de seus representantes políticos e influir nas decisões governamentais. O direito de informar vem acompanhado do correlato dever de prestar informações claras e verdadeiras. Do contrário não haverá informação, mas deformação.2 A liberdade de imprensa, pelo prisma amplo da liberdade de comunicação social, tem no direito à informação o seu conteúdo ou núcleo principal, compreendendo os direitos fundamentais de informar, de se informar e de ser informado. Essa liberdade encontra seus limites na própria Constituição Federal, na proteção dos chamados direitos da personalidade, tais como a honra, o nome, a privacidade e a intimidade de terceiros, contra manifestações e publicações que violem esses direitos. É bom lembrar que a liberdade de expressão, da qual a liberdade de imprensa é uma derivação, também se insere dentro do conjunto de direitos da personalidade, constituindo, mesmo, um dos mais importantes direitos para o desenvolvimento humano. Os diversos direitos fundamentais, por integrarem um sistema jurídico-normativo que se pretende harmônico e coerente, limitam-se mutuamente, em uma relação dialógico-interpretativa de princípios. Aquilo que se diz ou escreve muitas vezes pode ser desairoso ou negativo para a reputação de alguém, sem que, necessariamente, se possa falar em "violação" ou "ofensa" à honra, mas apenas em atingimento ou afetação desse direito, como consequência do exercício legítimo-constitucional da liberdade de expressão.3 Assim, por exemplo, quando a publicação tem como personagens agentes do governo, ou quando envolva temas de interesse público, é fundamental que o tema seja debatido da forma mais ampla e aberta possível, mesmo quando isso signifique atingir ou afetar a reputação alheia. O interesse coletivo, nessa hipótese, sobreleva o interesse individual. Ao profissional de jornalismo impõe-se o dever de cautela e prudência na checagem da veracidade da notícia e da idoneidade das fontes antes da divulgação da informação. Espera-se, em todos os casos, que a informação publicada seja verdadeira. Esse ideal de prudência, contudo, esbarra no sentido de urgência e fluidez da informação jornalística. Já se disse que o jornal de hoje é o papel para embrulhar peixe de amanhã, para fazer alusão à velocidade da notícia, que se tornou ainda mais vertiginosa na chamada era da informação por meio digital, na qual um fato muitas vezes é divulgado praticamente em tempo real pela internet, por profissionais da imprensa e por cidadãos em geral.4 Como a pressa é inimiga da perfeição, a maior velocidade da informação acaba, com frequência, levando à divulgação de notícias que, quando não inteiramente falsas ou equivocadas, contém imprecisões ou, simplesmente, não conseguem ser comprovadas. Quando isso ocorre, jornalistas e cidadãos correm o risco de responsabilização (civil e criminal) por danos à reputação de terceiros. É inquestionável que a publicação de notícias intencionalmente falsas deve gerar responsabilidade daqueles que a publicaram, quando causar danos. Mas e nos casos em que não há má-fé? E naqueles em que não há prova suficiente sobre a veracidade da informação, muitas vezes obtida de fonte anônima, acerca da qual a própria Constituição assegura o direito ao sigilo? A exigência de comprovação cabal de todos os fatos noticiados acaba por impor aos jornalistas e aos veículos de comunicação um ônus pesadíssimo, praticamente impossível de atender, enfraquecendo em grande medida o princípio constitucional da liberdade de imprensa. O receio de responsabilização civil, com o pagamento de indenizações elevadas, acaba por provocar, como consequência, a autolimitação ou autocensura da imprensa, criando uma espécie de efeito silenciador (chilling effect), com prejuízo para a própria democracia. Buscando impedir o efeito silenciador que poderia ser provocado por condenações ao pagamento de indenizações vultosas, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no julgamento do caso New York Times v. Sullivan, estabeleceu os standards a serem seguidos em casos de notícias falsas e lesivas à honra (defamation) de agentes públicos. Considerou que a garantia constitucional da liberdade de expressão e de imprensa impõe o estabelecimento de uma regra limitadora do direito de indenização aos agentes públicos por declarações falsas contra sua conduta oficial. Apenas as declarações ou afirmações feitas com "malícia real" (actual malice), ou seja, com conhecimento de que eram falsas (knowledge of the falsity) ou feitas com descaso ou indiferença acerca da veracidade (reckless disregard for the truth), podem levar a uma condenação por defamation.5 Na prática, isso significa que cabe à parte autora, que alega ser vítima de defamation, o ônus da prova de que a empresa jornalística ou o jornalista que escreveu a matéria tinham ciência da falsidade da notícia ou agiram com grave negligência ao publicá-la, sem mostrar preocupação com a sua veracidade. Em decisões posteriores, a Suprema Corte dos Estados Unidos explicitou o conceito de agente público e de conduta oficial, estendendo a aplicação da regra da actual malice para agentes privados considerados "figuras públicas", distinguindo-os das pessoas comuns ou não-públicas, em relação às quais prevalece a regra geral de que, para o reconhecimento da responsabilidade civil, basta a culpa simples do réu que publica a informação falsa e ofensiva à honra. Esses e outros standards foram forjando os limites da liberdade de imprensa nos Estados Unidos, trazendo maior segurança jurídica para o exercício da atividade jornalística. Para muitos, o julgamento do caso New York Times v. Sullivan foi a mais importante decisão proferida pela Suprema Corte americana acerca do alcance da Primeira Emenda da Constituição, por conferir uma robusta e necessária proteção às liberdades de expressão e de imprensa. Além disso, é de grande importância distinguir o que é fato e o que opinião. Isso porque, embora em relação aos fatos haja o dever de veracidade, o mesmo não ocorre em relação às opiniões. Não há que falar em opiniões verdadeiras ou falsas. As opiniões podem ser boas ou más, mas não se submetem à prova da verdade, de modo que não poderiam, em linha de princípio, gerar responsabilidade civil do órgão de imprensa ou do jornalista. Essa é a doutrina que prepondera na jurisprudência norte-americana, que admite ação por defamation apenas nos casos de declarações falsas a respeito de alguém, aptas a causar dano à honra subjetiva ou à reputação. As opiniões, pela sua inerente subjetividade, ainda que extremamente críticas, desairosas, derrogatórias e até com o uso de expletivos e expressões insultuosas, estão especialmente resguardadas pelas garantias das liberdades de expressão e de imprensa, não dando ensejo a ação de responsabilidade civil. A jurisprudência brasileira, em geral, não tem estabelecido diferenças entre os agentes públicos e os particulares para o fim de responsabilização civil em casos de danos à honra pela imprensa, havendo já precedentes do Superior Tribunal de Justiça que entenderam pela não aplicação no direito brasileiro da doutrina da actual malice.6 Uma pesquisa mais aprofundada na jurisprudência do STJ demonstra que notícias e manifestações críticas contra figuras públicas trazem um grande risco de condenação para empresas de comunicação, jornalistas e cidadãos em geral.7 Já o Supremo Tribunal Federal tem sinalizado no sentido de reconhecer uma proteção mais alargada e robusta das liberdades de expressão e de imprensa, com menção, em alguns julgados mais recentes, à doutrina da actual malice.8 Além disso, o STF tem se posicionado no sentido de que a liberdade de expressão, no conjunto de direitos fundamentais, constitui um "direito preferencial".9 Conferir uma posição preferencial à liberdade de expressão significa impor um ônus argumentativo mais pesado para quem deseje restringir ou suprimir essa liberdade, que, prima facie, pela sua importância para o indivíduo e para o estado democrático de direito, deve prevalecer. De um ponto de vista jusfilosófico, essa posição preferencial se justifica pela importância da liberdade de expressão para o descobrimento da verdade, para a realização da democracia e para o próprio desenvolvimento da personalidade humana. Pelo prisma do sistema jurídico constitucional brasileiro, a posição de destaque atribuída à liberdade de expressão decorre, dentre outras razões, da forma ampla, enfática e até redundante pela qual o texto constitucional tratou desse princípio, nos artigos art. 5º, IV e IX, e 220, os quais são expressos na rejeição de qualquer tipo de censura, prévia ou posterior. Apesar disso, em razão da falta de parâmetros jurisprudenciais seguros e sedimentados, tem havido um crescente número de casos de jornalistas e articulistas alvos de investigação e de ações de natureza civil e penal da parte de agentes públicos, que alegam ser vítimas de ofensas à sua reputação. Em muitos desses casos, as manifestações apontadas como ofensivas nem mesmo se referem a afirmações de fatos, constituindo apenas opiniões críticas, embora severas, muitas vezes acompanhadas de expressões hiperbólicas e adjetivos insultuosos, como os que com frequência são veiculadas na imprensa e nas redes sociais contra o presidente da república e outros agentes oficiais. Em junho de 2020, por exemplo, o Ministro da Justiça, com base na Lei de Segurança Nacional, pediu a abertura de inquérito criminal pela publicação de uma charge crítica ao presidente da república. Essas ações têm por objetivo calar manifestações contrárias aos atos do governo e de seus agentes, provocando um movimento de autocensura e inibição do debate em assuntos de interesse público, com graves riscos para a democracia. As nossas cortes de justiça devem se basear em critérios objetivos e estritos acerca dos limites das liberdades de expressão e de imprensa, de modo a conferir mais segurança à atividade jornalística. Esses limites não podem depender da régua e do compasso de cada julgador. É essencial que se crie uma cultura da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, com o estabelecimento de parâmetros jurisprudenciais objetivos que preservem essas liberdades, essenciais para uma democracia que se pretenda digna desse nome e não constitua uma mera promessa escrita em uma folha de papel. *André Gustavo Corrêa de Andrade é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, doutor em Direito pela UNESA, professor do PPGD da UNESA e da FIOCRUZ, Presidente do Fórum Permanente de Liberdade de Expressão, Liberdades Fundamentais e Democracia da EMERJ. __________ 1 A frase constitui trecho de carta enviada por Jefferson a Edward Carrington, em 16 de janeiro de 1787. 2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 247. 3 Nesse sentido, MELLO, Rodrigo Gaspar de. Liberdade de Expressão, Honra e Censura Judicial. Uma defesa da incorporação da doutrina da malícia real no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2019, p. 34. 4 A era da informação digital fez surgir o chamado "jornalismo cidadão", em que a coleta, análise e disseminação de notícias e informações é feita por pessoas sem formação jornalística e sem vinculação com alguma empresa de comunicação de massa. 5 Para um resumo descritivo do caso New York Times v. Sullivan, veja-se: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. Rio de Janeiro: GZ Editora. 2020, p. 29; e MELLO, Rodrigo Gaspar de. Op. cit., p. 57. 6 O STJ já se posicionou contrariamente à doutrina da malícia real nos seguintes julgados: REsp 1.408.120/DF, Resp 680.794/PR, Resp 1594865/RJ, Resp 1369571/PE e AgInt no AREsp 1120731/RJ. 7 Para uma apanhado da jurisprudência do STJ sobre o tema, veja-se MELLO, Rodrigo Gaspar de. Op. cit., p. 134. 8 Vejam-se: ADPD 601 MC; Rcl 30105; Tcl 43190 MC; Rcl 44590 MC; Rcl 44411 MC e Recl 16434 MC. 9 A posição preferencial da liberdade de expressão no direito constitucional brasileiro foi afirmada pelo STF nos julgamentos da ADPF 130, da ADPF 187/2011, da ADI 4815/2015 e da Reclamação 18.638/2018. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 
Um dos temas relativos à responsabilidade civil do Estado que vem despertando polêmica é o da compatibilidade do art. 28 da LINDB1 com o que estabelece o §6º do art. 37 da Constituição2-3. Isso porque enquanto o último dispositivo prevê expressamente a prerrogativa de a Administração, condenada a ressarcir dano imputado a seus serviços, voltar-se em regresso em face do seu servidor, isso sempre que este tenha operado com dolo ou culpa no desempenho de suas funções, o primeiro determina que o agente público só responderá pessoalmente pelos prejuízos que causar em caso de dolo ou erro grosseiro. Dessa forma, questiona-se se o legislador ordinário poderia restringir o alcance do §6º do art. 37 da Constituição no que diz respeito à disciplina do exercício do direito de regresso do Estado. A nosso ver o art. 28 da LINDB poderia encontrar em nosso ordenamento uma hipótese de aplicação plena e outra de incidência modulada. A plena refere-se a situações em que o terceiro lesado resolve ingressar com ação de reparação não só em face do Estado como também do servidor que lhe causou o dano. Apesar de a matéria ser maltratada em nossa doutrina, entendemos, na linha do que já defendemos em outra oportunidade4, que em regra não é possível a vítima de um evento lesivo imputado à Administração simplesmente escolher, a seu talante, acionar a pessoa jurídica de direito público interno e seu órgão, ou seja, a pessoa física que titulariza uma unidade de ação estatal. Como a atuação do agente, no exercício das competências que lhe são atribuídas por lei, é imputada ao Estado5, não se verifica razão jurídica pela qual este possa ser chamado a responder com seu patrimônio próprio por atividade que é desenvolvida, não por satisfação pessoal, mas sim em prol do interesse público. Note-se que pensamento diverso inclusive colocaria o servidor público em uma situação mais arriscada, sob a perspectiva da manutenção dos seus meios de subsistência, que a experimentada por qualquer cidadão que, para o desempenho de uma atividade econômica, constitua uma microempresa de modo a separar a parte do seu patrimônio que se dispõe a comprometer para a exploração de uma iniciativa lucrativa. Como o servidor, na condição de órgão estatal, se relaciona com terceiros em nome do Estado (e não em nome próprio), eventuais prejuízos gerados por ocasião desses vínculos (assim como as vantagens respectivas) são suportados pela pessoa jurídica de direito público interno a qual ele está adstrito. Essa é a regra, que, vale dizer, atende aos anseios da sociedade por uma função pública exercida de modo impessoal e perseguindo a satisfação dos interesses gerais da comunidade, o que inclusive pode exigir atuação destemida contra poderosos, estejam estes operando no setor público ou privado. Imagine-se, por exemplo, um fiscal do meio ambiente lavrar uma multa milionária em face de um grande desmatador e o infrator, até como meio de intimidar o órgão estatal que lhe está causando embaraços, ingressar com uma demanda contra o Estado e o seu agente buscando a anulação da sanção e reparação em perdas e danos. Faria sentido em se admitir um expediente de tal tipo em nosso sistema jurídico, isso a partir de uma leitura "por tiras" dos artigos do Código de Processo Civil que dispõem sobre a formação de litisconsórcio passivo? Entendemos que não. Pois bem. E a regra de não responsabilidade direta do servidor perante terceiros admite exceções? Já defendemos que sim, em duas circunstâncias. Em havendo dolo, ou seja, intenção de o agente causar dano a terceiro, situação pode justificar o rompimento da ideia de imputação, já que o preposto do Estado estaria, com sua conduta, não realizando a missão pública a seu encargo, mas sim dando vazão a uma vontade exclusivamente sua. E em havendo erro grosseiro, acompanhado de prova pré-constituída a respeito. Numa atuação em indisfarçada violação de deveres funcionais, com menosprezo ao risco gerado a bens jurídicos alheios e às orientações existentes para a prática de uma dada tarefa, o espectro da responsabilização do servidor diretamente pelo lesado poderia ser conveniente para estimular uma postura mais cautelosa da parte daquele no cumprimento de suas atribuições. Com o art. 28 da LINDB, essa nossa posição sobre a possibilidade de terceiro litigar diretamente com o servidor que teria, com sua ação ou omissão, causado-lhe dano, ganha um argumento legal expresso. Afora essa possível aplicação, digamos "plena", do art. 28 da LINDB, ainda seria plausível vislumbrar sua incidência modulada no que se refere à ação de regresso promovida pela Administração em face do servidor que, por dolo e culpa, tenha lesado terceiros. Em que pese o §6º do art. 37 da Constituição não ter apresentado distinção acerca do grau de culpa a embasar pleitos de ressarcimento movidos pela Fazenda em face de seus prepostos, não nos parece que o legislador ordinário, numa política de promoção de uma atuação mais proativa de determinados agentes, não pudesse estabelecer parâmetros para o exercício de tal prerrogativa. Se, por um lado, pode parecer despropositado impedir que a Administração cobre de um motorista de viatura oficial os danos que este causou ao patrimônio público ao envolver-se em um acidente de trânsito por negligência ou imprudência, por outro pode ser razoável que em situações nas quais se exija uma atuação mais assertiva e ousada por parte dos prepostos estatais o Poder Público se autolimite quanto ao exercício do direito de regresso (o que poderia se dar, por exemplo, quando um policial, em perseguição de meliantes, acabe por danificar patrimônio alheio). Note-se que, nessa segunda categoria de casos, também se enquadrariam hipóteses em que se pretenda conferir maior segurança jurídica a servidores incumbidos de formular políticas públicas, campo normalmente próprio à experimentação, e no qual cada vez mais se exige adesão do setor público à inovação. Não é raro ouvir de gestores envolvidos nesse tipo de missão justificativas para inação em circunstâncias que recomendariam seu pronto agir sob a escusa de ausência de lei expressa autorizativa, ou então de receio de penalização por órgãos de controle, dentre os quais destacam-se os Tribunais de Contas. Trata-se do conhecido "apagão das canetas", contra o qual o legislador buscou oferecer contramedidas6, isso tendo a cautela de ressalvar o erro grosseiro como inadmissível, do que é ilustração patente uma tomada de decisão que se dê fora da processualidade exigida para qualquer exercício de poder estatal, em descompasso as melhores evidências científicas levadas ao conhecimento do decisor público. Diante de um cenário com tantos matizes, embora nos pareça excessivo defender a aplicação indiscriminada do art. 28 da LINDB na relação entre Administração e servidor à vista da dicção do §6º do art. 37 da Constituição, acreditamos que o dispositivo possa servir de argumento para o estabelecimento de parâmetros para uma política de regresso pelo Poder Público em que sejam previstas hipóteses nas quais este, considerando os melhores interesses do serviço público, só será exercido quando a conduta ilícita do seu preposto estiver revestida de dolo ou culpa grave (ou seja, erro grosseiro). Se isso, a nosso ver, já seria possível sob a égide do quadro normativo vigente pré-lei13.655/2018 via regulamento interno (autolimitação), com maior razão o será via aplicação parametrizada pela Administração do comando legal expresso no art. 28 da nossa Lei de Introdução.  *Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho é mestre e doutor em Direito do Estado, associado ao IBERC e juiz de Direito em SP. __________ 1 Art. 28 do Decreto-lei nº 4.657/1942 - O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro (com a redação que lhe foi dada pela lei 13.655/2018). 2 Art. 37, § 6º da CR - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 3 Manifestando-se pela inconstitucionalidade do dispositivo, confira-se, por exemplo, DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil do agente público. O art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) in CUNHA FILHO, Alexandre J. C. da; ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W..(coord.). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - anotada, p. 401-407, São Paulo: Quartier Latin, 2019. 4 CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da. Responsabilidade pessoal do servidor por dano causado a terceiro no exercício da função administrativa in Revista Brasileira de Estudos da Função Pública - RBEFP I Belo Horizonte, ano 3, n. 7, p. 85-112, jan.-abr. 2014. 5 E aqui temos a teoria do órgão, de ampla difusão entre nós para explicar, juridicamente, a imputação de uma conduta da pessoa física a uma entidade ideal que encontra amparo no nosso Direito, no caso, o Estado. Segundo Hely Lopes MEIRELLES, interpretando a formulação de Otto Gierk sobre o assunto, pela teoria do órgão "as pessoas jurídicas expressam sua vontade através de seus próprios órgãos, titularizados por seus agentes (pessoas humanas), na forma de sua organização interna. O órgão - sustentou Gierk - é parte do corpo da entidade, e, assim, todas as suas manifestações de vontade são consideradas como da própria entidade" (Direito Administrativo Brasileiro, 16. ed., São Paulo: RT, 1990, p. 58).   6 Fazendo essa leitura da introdução do art. 28 na LINDB, ver BINEMBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Art. 28 da LINB - a cláusula geral do erro administrativo in Rev. Direito Adm., Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, Rio de Janeiro, nov. 2018; MARQUES NETO, Floriano de A.; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018, Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 129 e ss.  
Recentemente, noticiou-se1 que médicos que atuam na linha de frente da Covid-19 constataram empiricamente a ocorrência de intoxicação de pacientes por excesso medicamentoso, provocada pela administração do chamado kit Covid, cujos efeitos mais graves aos usuários são lesões no fígado e sobrecarga da função renal, principalmente em pessoas com doenças preexistentes ou predisposição para essas lesões. Os mencionados profissionais também referiram que a contaminação, pelo coronavírus, dos pacientes cujo organismo tenha sido previamente castigado por excesso medicamentoso, poderia ensejar agravamento do estado clínico, com elevação dos riscos de entubação e de letalidade.2 Não bastasse isso, a imprensa difundiu a morte de pacientes após nebulizarem hidroxicloroquina, atendendo a indicação médica3. O uso de cloroquina e de hidroxicloroquina foi objeto de manifestação por parte do Conselho Federal de Medicina, no Processo-Consulta n. 8/2020 - Parecer n. 4/20204, o qual propôs considerar a sua administração, a critério do médico, em indivíduos com sintomas leves no início do quadro clínico ou naqueles com "sintomas importantes, mas ainda não com necessidade de cuidados intensivos", "em decisão compartilhada com o paciente", mediante consentimento livre e esclarecido ou autorização dos familiares, conforme o caso. Embora se trate de um parecer e não de uma resolução, essa manifestação do CFM foi interpretada como uma espécie de imunidade concedida a médicos prescritores, quanto à possibilidade de serem acusados de infração ética perante o referido órgão. Porém, a opinião daquele órgão não é decisiva para o fim de afastar eventual responsabilização penal ou civil. Ademais, tal manifestação foi emanada à luz do conhecimento científico então existente, levando também em consideração as incertezas daquele período. Tanto que a Associação Médica brasileira - AMB, em julho de 2020, afirmou que os médicos deveriam ter autonomia para receitar medicamentos, e, em março de 2021, passou a não recomendar o uso de remédios sem eficácia comprovada para tratar a Covid-195. Isso ocorreu porque estudos posteriores demonstraram que a cloroquina não traz benefícios e que o tratamento com hidroxicloroquina está associado ao aumento da mortalidade de pacientes com Covid-196. A questão que se coloca - e que certamente será discutida em processos judiciais no futuro próximo - diz respeito a responsabilidade do médico que prescrever esses medicamentos e vier a ser constatado que não só foram ineficazes para a prevenção da doença ou para a sua menor virulência, como ainda acarretaram danos colaterais importantes aos usuários. Para tratar dessa responsabilidade, devem ser apontadas algumas premissas quanto ao que será objetivamente exposto e defendido nesse texto: 1º. O médico tem o dever de exercer a sua profissão "dentro de parâmetros reconhecidos e estabelecidos pela lex artis"7. Em geral, não há obrigação de cura, mas de cuidado adequado segundo as boas práticas8, além do dever de informar e esclarecer.9 2º. O médico deve estar atualizado quanto ao conhecimento científico que envolve a sua especialidade10 (princípios fundamentais V e XIX do Cap. I do Código de Ética Médica-CFM) considerada a época da prescrição e, se não puder acompanhar o que há em outras especialidades para as quais possa prestar atendimento, poderá recusá-lo, se houver disponibilidade por parte de outros profissionais da área na mesma localidade. 3º. Não é considerado válido o consentimento do paciente quanto a atos profissionais que não constituam boas práticas11, inclusive as não respaldadas cientificamente. 4º. Ao início da pandemia, quando o vírus e a doença eram desconhecidos, permitia-se que médicos tentassem, via prescrição off-label, atenuar ou suplantar a doença. Atualmente, existem estudos que indicam com maior precisão o que é admissível e o que não é, em matéria de prescrição para Covid-19, inclusive considerando as diferentes fases da doença e o estado clínico do paciente. 5º. Tentativas de uso off-label de alguns medicamentos ao início da pandemia foram não só toleradas, mas incentivadas por órgãos de controle sanitário em todo o mundo, o que ainda persiste quanto a certos medicamentos, como os anticoagulantes, os anti-inflamatórios e os antibióticos.12 Algumas dessas tentativas envolveram os remédios componentes do kit-covid e, como visto, tiveram sua eficácia descartada em posteriores estudos científicos publicados em periódicos qualificados13. Assim, o médico: (1) sem haver estudos, pode realizar prescrição off-label em casos extraordinários que demandem intervenção (situação presente ao início da pandemia), desde que seja cientificamente aceitável segundo o conhecimento científico existente ao tempo da prescrição; (2) a partir do maior conhecimento a respeito da doença e do seu tratamento, o médico poderá estar sujeito a responsabilidade civil se agir sem respaldo científico, inclusive se realizar ou determinar a execução de prática indevida.14 Quanto a esse ponto, não mais é admitido o tratamento experimental sob uma indevida roupagem de prescrição off-label. Nesse contexto, a Resolução CFM n. 2.292/2021, publicada em 13/05/2021, classificou como procedimento experimental a "administração de hidroxicloroquina e cloroquina em apresentação inalatória", a qual somente pode ser implementada "por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/CONEP"15. Desse modo, a salutar liberdade de atuação médica depende do necessário ancoradouro na ciência, ou seja, na medicina da evidência, bem como dos ditames regulamentares pertinentes. Após as pesquisas de acompanhamento atestarem a ineficácia de determinados tratamentos, a atuação médica deixa de ter respaldo científico e, portanto, a insistência em prescrever remédios não eficazes e com potenciais efeitos colaterais sérios, poderá acarretar a responsabilidade médica e, no caso de atendimento público, ensejar a responsabilidade civil do próprio Estado, considerando-se o teor do Tema n. 940 do STF16. Depois da conclusão de estudos de acompanhamento de milhares de pacientes tratados com essas alternativas terapêuticas, em diversos lugares do mundo, com publicação das pesquisas em respeitadas revistas científicas, não há mais espaço para que o médico possa entender que "talvez funcione". Se o esculápio insistir nesse tratamento e se o paciente vier a sofrer efeitos colaterais, poderão estar presentes os requisitos da responsabilidade civil médica: uma conduta do médico prescrevendo remédios, sua ineficácia comprovada, a superveniência de danos à saúde do seu paciente e um nexo de causalidade entre a ingestão medicamentosa e os danos sofridos. Os médicos que insistem em tais tratamentos, invocando sua experiência clínica, no sentido de terem assim agido e colhido bons resultados, confundem correlação com causalidade. De fato, boa parte dos contaminados pelo coronavírus desenvolve sintomas leves ou é assintomática. Pelos dados divulgados, um grupo de aproximadamente 20% desenvolve sintomas mais sérios17. Deste, uma parte menor ainda necessita de internação e um pequeno percentual, de entubação. Lamentavelmente, dos pacientes entubados, substancial maioria acaba falecendo. Isso é estatisticamente verificável, independentemente do que cada um deles vier a tomar18. Para usar um exemplo de mais fácil assimilação, se 100 contaminados pelo coronavírus tiverem o hábito de tomar chá de carqueja duas vezes por dia e 80 deles passarem incólumes, sem efeitos sérios, haveria uma mera 'correlação' entre tomar tal chá e o efeito de passar incólume. Não foi 'por causa' do chá que tiveram bom resultado, pois isso ocorreria de qualquer forma. A verdadeira causalidade científica só pode ser aferida por estudos científicos sujeitos a cânones metodológicos reconhecidos, tais como a existência de grupo de controle, sistema do "duplo cego", em que nem os pacientes, nem os responsáveis pelo estudo clínico, sabem quem tomou o medicamento em teste ou o placebo, para não se sugestionarem. A reidentificação só é feita ao final do estudo. Por fim, meta-análises são realizadas, tendo como base a reunião e profunda aferição dos vários estudos efetuados em distintos centros clínicos do mundo, para checagem do rigor metodológico das pesquisas e para a extração de conclusões universalmente válidas. Submetidas à revisão duplamente cega por pares, normalmente cientistas especializados e prestigiados, os estudos são finalmente publicados nas mais prestigiadas revistas cientifícas, como a The Lancet e a New England Journal of Medicine. Assim, a causalidade só pode ser aferida por meio desses estudos científicos, de alto rigor metodológico, com conclusões idênticas alcançadas em vários centros de pesquisa, pois a simples constatação de aparente resultado positivo no uso de medicamentos off-label equivale a uma correlação, não a um juízo de causalidade científica. De outro lado, nem sempre será juridicamente eficaz a justificativa médica de consentimento do usuário, mediante prévia informação sobre potenciais benefícios e riscos associados ao remédio objeto da prescrição. Isso porque, em momento de pânico e histeria (justificável) emergente da pandemia, além da larga disseminação de fake news, de informações contraditórias e de afirmações atécnicas oriundas de pronunciamentos estatais, o médico não tem apenas o direito de autodeterminação técnica na atividade de prescrição, ele tem sobretudo o dever de cumprir o princípio bioético primum non nocere. Aliado ao princípio jurídico da boa-fé, impõe-se ao profissional o cuidado de não prescrever ao paciente, que se encontra vulnerável pela doença, algo que, além de não lhe beneficiar, poderá prejudicá-lo. O paciente deposita a sua confiança no esculápio, no sentido de que será atendido de modo tecnicamente adequado. Metaforicamente, o médico deve vestir um "manto de eticidade" ao exercer a sua profissão, pois o direito protege a legítima expectativa do paciente de "receber o melhor tratamento possível à luz da ciência contemporânea" e, ao aplicar método experimental, o referido profissional "deverá arcar com os riscos do procedimento, isto é, sua conduta poderá ser mais severamente analisada".19 É sabido que a lei 13.979/2020, autorizou medidas excepcionais para o enfrentamento da emergência de saúde pública, dentre as quais a possibilidade prescrição, pelo médico, de medicamentos ainda não aprovados pela Anvisa. Prevê, porém, no §7º-B, do art. 3º, que "o médico que prescrever ou ministrar medicamento cuja importação ou distribuição tenha sido autorizada na forma do inciso VIII do caput deste artigo deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal que o produto ainda não tem registro na Anvisa e foi liberado por ter sido registrado por autoridade sanitária estrangeira" (dispositivo incluído pela lei 14.006/2020). No entanto, no §1º desse mesmo art. 3º, ressalta que tais medidas "somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública".20 Destarte, a análise de eventual responsabilidade médica por prescrição off-label de medicamentos que tenha causado efeitos colaterais danosos aos pacientes no contexto da pandemia, deverá ser analisada à luz da época em que a prescrição se deu. No período inicial, de dúvidas e incertezas, tal prescrição era aceitável, na desesperada tentativa de enfrentar eficazmente a doença. Todavia, após a ampla divulgação dos estudos que não convalidaram tal esperança e, ao contrário, apontaram para a ineficácia de certos tratamentos, o médico que insistir na prescrição poderá vir a ser civilmente responsável por danos causados que sejam causados ao paciente. Ressalva-se, porém, ser permitido ao médico justificar a sua opção, à luz das peculiaridades da situação do seu paciente, do conhecimento científico disponível e das circunstâncias que envolveram o atendimento, tudo a ser avaliado casuisticamente. O encerramento deste texto contempla um retorno ao seu título: a liberdade de prescrição do médico está circundada pelas boas práticas, pelos princípios de ética médica, além das determinações legais pertinentes, mas será convertida em responsabilidade caso prejudique indevidamente o paciente. *Eugênio Facchini Neto é doutor em Direito Comparado (Florença/Itália), mestre em Direito Civil (USP). Professor Titular dos Cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da PUC/RS. Professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS. Desembargador do TJ/RS. **Flaviana Rampazzo Soares é mestre e doutora em Direito pela PUC/RS. Especialista em Direito Processual Civil. Advogada e professora. __________ 1 Disponível aqui. 2 Esse kit é composto por cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, e foi recomendado pelo Ministério da Saúde para uso nas fases leve e moderada da doença, notadamente por meio do aplicativo (atualmente inoperante) TrateCov, bem como da Nota Informativa n. 17/2020 SE/GAB/SE/MS. Segundo a reportagem, o aplicativo referido também indicava o uso de Ivermectina, Dexametasona, Doxiciclina e Zinco. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. Quanto a sua inadequação formal, vide DADALTO e MASCARENHAS. 5 Disponível aqui. Nessa mesma linha: BMJ 2021;372:n858. Aqui. 6 Por exemplo: Axfors, Cathrine, Schmitt, Andreas M., Janiaud, P. et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of randomized trials. Nat. Commun. 12, 2349 (2021). Aqui. 7 DANTAS, Eduardo. Direito médico. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 182. 8 KFOURI NETO, Miguel; DANTAS, Eduardo; NOGAROLI, Rafaella. Medidas extraordinárias para tempos excepcionais: da necessidade de um olhar diferenciado sobre a responsabilidade civil dos médicos na linha de frente do combate à COVID-19. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 512. 9 O critério para informar é, em uma primeira etapa, o do paciente em abstrato e na etapa subsequente a adaptação considerando o paciente em concreto. FACCHINI NETO, Eugênio. Consentimento e dissentimento informado - limites e questões polêmicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora RT. Vol. 102. p. 223-256. Nov./Dez./2015. 10 "(.) a desatualização do profissional pode, eventualmente, ensejar responsabilidade civil, se causar dano." ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil na área médica. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (org.). Direito privado e contemporaneidade. Desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Vol. 3. Indaiatuba: Foco, p. 27. 11 SOARES, Flaviana R. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. p. 226. 12 SOARES, Flaviana R.; DADALTO, Luciana. Responsabilidade médica e prescrição off-label de medicamentos no tratamento da COVID-19. Revista IBERC, v. 3, n. 2, p. 1-22, 26 jun. 2020. 13 O médico infectologista Esper Kallás, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP declara: "cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina não mostraram efeito benéfico no tratamento da doença. E não dispomos sequer de um único estudo convincente sobre a eficácia antiviral da ivermectina." 14 Se o médico prescrever generalizadamente um medicamento ou tratamento não aprovado ou indicado para tratamento da COVID para um conjunto de pacientes, conforme as circunstâncias, sua conduta poderá ser vista como pesquisa clínica irregular, diante do não atendimento de protocolos específicos que regem a matéria. Sobre o tema: CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos: aspectos bioéticos. São Paulo: Saraiva, 2012; PEREIRA, Paula Francesconi de Lemos. Responsabilidade civil nos ensaios clínicos. Indaiatuba: Foco, 2019 e DALLARI, Analluza. Contrato de pesquisa clínica. São Paulo: RT, 2019. 15 Disponível aqui. Os medicamentos Remdesivir e Regn-CoV2, além dos anticorpos monoclonais banlanivimabe e etesevimabe estão aprovados para uso emergencial pelo Ministério da Saúde. 16 STF. Tema 940. "A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." 17 Disponível aqui. 18 Segundo pesquisa, 16% dos falecimentos no Brasil são creditados à Covid-19 (causa básica), em taxa de mortalidade de 119,9 por 100 mil habitantes. SANCHEZ, Mauro, et al. Mortality from Covid-19 in Brazil: analysis of death's civil registry from 2020 January to 2021 February. Aqui. 19 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe P. Responsabilidade civil na área médica. cit. p. 26 e 37. 20 FACCHINI NETO, Eugênio. Responsabilidade médica em tempos de pandemia: precisamos de novas normas? Revista IBERC, v. 3, n. 2, p. 93-124, maio/ago. 2020, p. 113/114. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
A extensão da proteção à liberdade de expressão frente a outros direitos, notadamente os direitos da personalidade, não é a mesma em diferentes tradições jurídicas, o que gera evidentes repercussões no papel da responsabilidade civil em face da manifestação de ideias e ao trânsito dos discursos, notadamente aqueles francamente ofensivos, o que inclui os qualificáveis como discursos de ódio. Nos Estados Unidos da América, a freedom of speech, ainda que não seja ilimitada, ocupa posição de evidente primazia, sendo admitida a sua restrição apenas em casos excepcionais. Fora dessas hipóteses de absoluta exceção, prevalece a liberdade de discurso. Essa liberdade, na construção jurisprudencial norte-americana, se estende, inclusive, a discursos ofensivos ou, mesmo, aqueles francamente inseridos no conceito de discursos de ódio. Winfried Brugger traz interessante comparação entre as respostas oferecidas pelo Direito frente aos discursos nos ordenamentos jurídicos norte-americano e alemão.1 Ele descreve a hipótese em que um cidadão, portando um cartaz com um desenho francamente degradante retratando o presidente da República, se coloca diante do Capitólio, em Washington, bradando vulgares ofensas morais ao chefe do Poder Executivo, proferindo frases racistas, negando o Holocausto na Alemanha Nazista e a escravidão negra na história dos Estados Unidos da América. O autor aponta que, no Direito Americano, mesmo essa conduta seria compreendida como protegida pela freedom of speech prevista na Primeira Emenda. Todavia, igual conduta, se praticada em frente ao Reichstag, em Berlim, ensejaria, conforme Brugger, até mesmo persecução penal, uma vez que "Na Alemanha, como na maioria dos outros países, o instinto básico coletivo refletido no direito é que o discurso do ódio é perigoso e deveria ser efetivamente eliminado". Com efeito, na Alemanha, a liberdade de expressão, apesar de dotada de intensa proteção constitucional, não apresenta primazia frente a outros direitos constitucionalmente assegurados. Na mesma linha, constata Daniel Sarmento que o discurso de ódio, no sistema Americano, é lido, em regra, como parte integrante da livre difusão de ideias, sendo inviável, na racionalidade daquele sistema, admitir que alguém possa sofrer sanção pela sua manifestação pública, por mais abjetas e ofensivas que sejam.2 O limite se coloca nas hipóteses das chamadas fighting words, que consistem nos discursos com aptidão para gerar imediata reação violenta de seus destinatários. O valor protegido, nesses casos, todavia, não é a personalidade das vítimas do discurso de ódio, mas, sim, "a garantia da ordem e da paz públicas".3   No Brasil, a leitura do Supremo Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão aponta, de modo coerente com o que emerge do texto constitucional, uma "posição preferencial"4, prima facie, ainda que relativa, que pode ceder a posteriori, na constatação de violação de outros direitos. Trata-se do pressuposto que serve de alicerce à vedação à censura prévia à expressão do pensar, mas não descura da resposta coerciva posterior, em caso de violação a outros direitos fundamentais, por meio do abuso da liberdade de expressão.5 Não se confunde, pois, com a posição de proeminência quase inabalável que a freedom of speech detém no Direito americano, mas, ao mesmo tempo, apresenta uma posição preferencial prima facie que não se identifica no sistema alemão.   Um debate relevante que se impõe diante dessa construção jurisprudencial é se, no sistema jurídico brasileiro, diante dessa primazia prima facie, discursos ofensivos seriam admitidos como passíveis de controle somente ex post, ou se, pela gravidade da violação por eles perpetradas a princípios constitucionais, poderiam ser coibidos ser coibidos ex ante, em inversão da regra de primazia - aqui, de modo especial, no caso dos discursos de ódio propriamente ditos. Ou seja: trata-se de questionar se, no campo dos discursos ofensivos, a primazia prima facie cederia automaticamente, em todos os casos, ou se ela se manteria, em regra, hígida, sendo excepcionada, porém, em situações limite, nas quais a violação a princípios jusfundamentais seria de tal modo grave e autoevidente que a prévia restrição à expressão seria justificada em não constituiria censura. A ordem constitucional aponta para uma relevante pista, ao criminalizar o racismo, no inciso XVII do art. 5º, e ao repudiá-lo no inciso VIII do artigo 4º. Há, aqui, evidente repulsa constitucional a um típico discurso de ódio, que não goza de qualquer proteção constitucional no Brasil. É coerente com a ordem constitucional a não admissão de que discursos racistas integrem a liberdade de expressão. Outros discursos ofensivos, porém, quiçá não recebam o mesmo tratamento constitucional, mantendo hígida a primazia prima facie da liberdade de expressão.  Há, porém, outra questão a formular - e que é antessala relevante para se pensar sobre a responsabilidade civil.  Trata-se de saber se, e (em caso positivo), em que medida, seria possível admitir, sob a égide da liberdade de expressão, a proteção constitucional a algum discurso ofensivo - e, portanto, se discursos ofensivos poderiam ser protegidos mesmo ex post, afastando, pois, respostas coercivas posteriores ao exercício da liberdade de expressão. É necessário, destarte, refletir sobre as balizas para definir o que, a par do evidente repúdio ao racismo e à apologia à violência, deve mesmo ser compreendido como um discurso de ódio propriamente dito.6 Isso pode demandar a construção de uma distinção entre discursos ofensivos, como um conjunto mais amplo, no qual estão, em um subconjunto, os discursos de ódio propriamente ditos - estes últimos a ensejar franco rebaixamento ou negação da dignidade do outro, ou, no limite preconizando sua aniquilação. Daniel Sarmento, com acerto, coloca o tema do discurso de ódio e de sua relação com a liberdade de expressão no campo do debate sobre os limites da tolerância. O tema desafia os espíritos liberais, uma vez que a ampliação da coerção é, prima facie, indesejável em uma sociedade livre. Todavia, a indiscriminada admissão de discursos que humilham e tolhem as possibilidades de os vulneráveis integrarem a ágora comunicativa com igual dignidade são, também, formas de coerção. Não por acaso, Karl Popper admite, ao versar sobre o "paradoxo da tolerância", que a "tolerância ilimitada deve levar ao desaparecimento da tolerância", de modo que "se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque do intolerante, então o tolerante será destruído". O grande pensador não está a defender, como ele mesmo afirma, que se deva sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes, uma vez que, "desde que possamos combatê-los por meio de argumentos racionais e mantê-los sob controle pela opinião pública, a supressão certamente seria muito imprudente". Isso não afasta, porém, a possibilidade de inserir a intolerância no campo da ilicitude, quando necessário a assegurar que não aniquile as condições de liberdade do próprio discurso e da sociedade.7 Há, como se observa, de um lado, a admissão de que discursos intolerantes possam ser proferidos, controlados e respondidos no campo do debate público. De outro lado, há, também, a admissão de sua supressão, como condição de possibilidade para a manutenção da própria tolerância. Sem embargo, a advertência de Bobbio em "A Era dos Direitos" também merece ser lembrada: "Não estamos afirmando que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente o valor ético do respeito às ideias alheias. Mas é certo que o intolerante perseguido e excluído jamais se tornará um liberal".8 A pretensão de, por meio da atuação do Poder Judiciário, efetuar a sanção a todo e qualquer discurso que possa vir a ser reputado como ofensivo pode ser atitude que não apenas restringiria desproporcionalmente a liberdade de expressão, mas pode se revelar inócua e, mesmo, politicamente perigosa, especialmente diante dos riscos de um efeito backlash, que, em dada extensão, pode colocar em xeque importantes conquistas civilizatórias, construídas sob o pálio desse irrenunciável universal a que chamamos cidadania.  Diante disso, como se situa a responsabilidade civil frente a esse perfil constitucional da liberdade de expressão? Cabe não descurar do fato de que, ainda que possa exercer uma função social relevante, a responsabilidade é, por excelência, um instituto de Direito Privado, e, como tal, seu locus é a intersubjetividade individual.9 É, pois, necessário que a responsabilidade civil não seja empregada como instrumento de controle do pensar e do manifestar pelo Estado-Juiz, como uma atípica ferramenta de moralização social em contraposição ao livre trânsito de ideias. Não há espaço, no âmbito constitucional da liberdade de expressão e no lugar ocupado pela responsabilidade civil no ordenamento, para uma pretensão de emprego desse instituto de Direito Privado para a supressão ou a imposição de sanção a toda e qualquer manifestação que possa vir a ser reputada ofensiva, especialmente quando dirigida a coletividades abstratas (como por exemplo, pretensões de definição pret-à-porter de quais seriam os valores caros a coletivizações identitárias, ou, mesmo, à artificial personificação corporativa de categorias profissionais). Nessa linha, a responsabilidade civil não tem o papel de, por meio da controversa10 - ainda que consagrada - figura do dano moral coletivo, moralizar discursos e eliminar a expressão do incivilizado. Se a Constituição afasta inequivocamente a proteção a discursos que define como inadmissíveis, como o da discriminação racial e o da apologia da violência - e, aqui, a intolerância com o intolerante é mandamento constitucional, a atrair não apenas a responsabilidade civil, mas a responsabilidade penal -, a expansão dos lugares de coerção para o atendimento de outras pautas de reconhecimento revestidas de pretensões coletivizantes pode se converter no avesso da cidadania, que, ao fim e ao cabo, é a síntese universalizante do lugar do indivíduo livre e merecedor de igual consideração na vida em uma sociedade republicana. As pretensões de reconhecimento, que transcendem a mera tolerância, são, seguramente, tuteladas em uma ordem constitucional que almeja a uma sociedade livre justa e solidária. São, porém, pretensões que, a rigor, somente fazem sentido como expressões individuais de cidadania, refletidas na igual dignidade de todos os cidadãos, e, nessa medida, no dever de a todos tratar com igual consideração, e não como fragmentação do tecido social em coletivos autorreferentes e, paradoxalmente, totalizantes no abstrato desenho de suas próprias identidades.  Não se advoga, por evidente, a lassidão frente à emergência da intolerância que humilha e suprime o igual lugar de expressão e de dignidade dos demais cidadãos, especialmente quando esta se apresenta na ofensa a indivíduos e, ainda mais, indivíduos vulneráveis. O que não se pode descurar, porém, é a lição de Bobbio, para quem "é melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver". Como ensina o filósofo italiano, "somente uma liberdade em perigo é capaz de se renovar", e "uma liberdade incapaz de se renovar transforma-se, mais cedo ou mais tarde, numa nova escravidão".11 É na expansão da liberdade que deve se encontrar a chave para o balizamento do papel da responsabilidade civil frente aos discursos ofensivos, desafiando a diferenciação concreta entre o que soa odioso, mas, a despeito disso, se situa nos custos morais de manutenção de uma sociedade livre, e aquilo que, efetivamente, fomenta o ódio e desconstrói a subjetividade da vítima, a demandar respostas coercivas, inclusive do Direito Privado.    *Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk é professor associado de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito Civil pela UFPR. Advogado.    __________ 1 BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Revista de Direito Público, Brasília, v. 15, n. 117, jan.-mar. 2007, p. 119. 2 Assim Daniel Sarmento explica a prevalência da liberdade de expressão nos Estados Unidos, a proteger até mesmo os discursos de ódio: "Assim, nem a difusão das posições racistas mais radicais e hediondas pode ser proibida ou penalizada. Isto porque, entende-se que o Estado deve adotar uma postura de absoluta neutralidade em relação às diferentes idéias presentes na sociedade, ainda que considere algumas delas abjetas, desprezíveis ou perigosas". SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006. 3 SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006. 4 Explica Ingo Sarlet: "Todavia, mesmo que, em um primeiro momento, a CF assegure um idêntico status protetivo a privacidade e a garantia da liberdade de manifestação e expressão, percebe-se que, em relação à segunda, o texto constitucional entendeu por bem ser mais explícito e detalhista no que se refere aos critérios de controle e de restrição dessa liberdade, tal como se vê das regras constitucionais contidas nos artigos 220 e 221. Isso porque a CF, além de fixar de antemão impedimentos legislativos (§ 1º e § 3º do artigo 220), entendeu por bem já prever a proibição categórica à censura (§ 2º do artigo 220), assim como fixar princípios diretivos que deverão guiar a produção publicitária, de rádio e de televisão (§§ 4o, 5º e 6º do artigo 220 e artigo 221). Tal opção constitucional pode ser interpretada como sendo um sinal de que o Constituinte foi mais seletivo no que se refere às restrições que poderão ser aplicadas à liberdade de imprensa, de manifestação de pensamento e de expressão do que foi  em relação à proteção da intimidade e da privacidade, a qual deverá contar com uma ponderação a posteriori para identificar as situações de grave e intolerável interferência na esfera de proteção privada. Essa opção do constituinte de 1988 pode ser interpretada como indicando a escolha constitucional por tratar restrições à liberdade de manifestação e expressão como sendo algo excepcional, exigindo que eventuais restrições adicionais necessitem de um esforço argumentativo diferenciado e mais intenso que consiga justificar a necessidade particular de uma nova limitação." SARLET, Ingo Wolfgang. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O PROBLEMA DA REGULAÇÃO DO DISCURSO DO ÓDIO NAS MÍDIAS SOCIAIS. REI - REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, [S.l.], v. 5, n. 3, p. 1207-1233, dez. 2019. ISSN 2447-5467. Disponível aqui. Acesso em: 12 maio 2021. 5 O leading case a consolidar essa interpretação foi a ADPF no 130, Rel. Min. Ayres Britto, DJE: 6/11/2009. 6 O problema, que não é, por certo, de fácil solução, é apontado como relevante por Ingo Sarlet, nos seguintes termos: "Nesse contexto, por sua vez, assume particular relevo a adoção de uma compreensão mais ou menos restritiva da definição jurídica do discurso de ódio, ou seja, dito de outro modo, a decisão a respeito de quais manifestações podem e quais não podem ser tidas como assim enquadradas e se - e até que ponto - podem ser reprimidas". SARLET, Ingo. Op. cit., p. 1213. 7 POPPER, Karl. The Open Society and its Enemies. Vol. 1. London: George Routledge & Sons, p. 226. 8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 214. 9 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. As fronteiras da Responsabilidade Civil e o princípio da Liberdade. In: ROSENVALD, Nelson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo (coord.) Novas Fronteiras da Responsabilidade Civil: Direito Comparado. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 51.   10 Refinada doutrina critica a qualificação do chamado "dano moral coletivo" como dano moral propriamente dito, haja vista se referir a uma abstração coletiva. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 489.  11 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 214. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
O provedor de registro e a invocação de um falso paradigma para atribuição de sua responsabilidade (REsp nº 1.695.778/RJ) Uma recente polêmica envolve o Marco Civil da Internet, especialmente em relação a um dos atores da rede mundial de computadores. Enquanto aos provedores de acesso, provedores de busca e provedores de conteúdo há, pelo menos, uma diretriz a ser observada nos artigos 18 e 19, em relação às instituições responsáveis pelo registro de nomes de domínio - que, no caso do domínio ".br" fica a cargo do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) - começa surgir dissonâncias a respeito do correto enquadramento jurídico de sua responsabilidade.  O NIC.br é o órgão escolhido para administrar o sistema de registro de nomes de domínio ".br" no Brasil, função antes exercida pela FAPESP. Ocupa uma posição peculiar no âmbito da internet brasileira. Segue a Resolução do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.br (Resolução 2008/008) e, mediante solicitação prévia de qualquer interessado, confere a este o uso de uma determinada expressão linguística como nome de domínio para seu uso exclusivo. Não é sua atribuição conferir qualquer conteúdo objetivo ou subjetivo do interessado em registrar a expressão linguística como nome de domínio na rede mundial de computadores, quiçá prever o que esse interessado irá fazer após o obter o uso de uma expressão linguística como nome de domínio. Tampouco está apto a fiscalizar atividades subjacentes ao registro exercidas pela pessoa, empresário ou não, que solicitou o assentamento do nome na rede. Não faz apreciação finalística sobre a expressão linguística escolhida pelo interessado, salvo quando existir conflito com expressão anteriormente requerida, observado o princípio da anterioridade. Segue-se, portanto, o princípio universal denominado first come, first served: o nome de domínio será conferido ao primeiro que solicitar. Sua atividade se delineia em inserir uma determinada expressão como nome de domínio numa tabela mundial de endereços e garantir o seu funcionamento lógico e localização.  Considerando a situação peculiar do NIC.br como verdadeiro provedor de registro ou de assentamento de nomes de domínio numa tabela lógica de nomes existente na rede mundial de computadores, seria correto lhe imputar responsabilidade objetiva, pautada em eventual risco por atos subjacentes e posteriores dos titulares do domínio, bem como pelos danos que estes eventualmente causam a terceiros (consumidores)? Até pouco tempo atrás essas dúvidas sequer eram suscitadas. Quaisquer demandas promovidas em face do NIC.br eram extintas sem resolução de mérito (ou julgadas improcedentes), não havendo sentido lhes impor condutas prévias ou posteriores de persecução investigativa contra os donos de sites e titulares de nomes de domínio, considerando não só a neutralidade da rede mas, efetivamente, a possibilidade de colapso de um sistema que recebe mais de 30 mil pedidos de registro de domínio por mês.  Ocorre que a desejada estabilidade deste modelo começa a ser ameaçada a partir da invocação de um "falso" paradigma do STJ, em que se mencionou, nas razões de decidir a aplicação da responsabilidade civil objetiva pelo risco de atividade ao NIC.br. Em situação anterior ao marco civil da internet (sentença de 2012), no Recurso Especial nº 1.695.778/RJ ("Caso Carolina Ferraz"), o STJ, por maioria (vencida a Min. Nancy Andrighi), atribuiu responsabilidade solidária ao NIC.br pelo não congelamento do site pornográfico quando provocado pela atriz, em afronta ao seu direito de personalidade, entendendo-se que naquele caso teria assumido um risco de atividade. Naquele julgado, o que se estava em questão era se o provedor de registro também deveria ser incluído na responsabilização dos danos a pessoa notoriamente conhecida, à luz de provocações extrajudiciais antecedentes da atriz.  E para proteger o seu direito da personalidade, considerando a ciência prévia, entendeu-se que NIC.br teria assumido um risco do empreendimento, invocando-se, o § único do artigo 927 do Código Civil. Ocorre que, a partir deste julgamento, algumas decisões estaduais começaram a expandir, erroneamente, a leitura do aludido julgado, ignorando a superveniência da própria lei 12.965/2014, aplicando-se, de maneira totalmente acrítica, equivocada e indiscriminada, o artigo 927, § único do Código Civil aos provedores de registro, como se este exercessem uma super função no âmbito da internet ou que estariam aptos a arcarem com a seguridade de danos no sistema, criando-se, de maneira velada, uma indevida situação de responsabilidade integral a quem é apenas mais um provedor na rede e que, além de assegurar a neutralidade e eficiência, tem o dever de atuar, hoje, apenas após provocação judicial.    Inaplicabilidade do § único do artigo 927 do Código Civil aos provedores de registro. Para se aplicar o § único do artigo 927 do Código Civil, indispensável que o julgador avalie e discrimine a atividade normalmente desenvolvida pelo provedor. Não se avaliará uma conduta isolada, mas sim a atividade como conduta reiterada, habitualmente exercida, organizada de forma profissional ou empresarial para realizar os fins. E nesta avaliação deve se perguntar: o provedor de registro controla conteúdo de site? Não. Referenda bons e maus fornecedores de serviços aos consumidores?  Fiscaliza a qualidade e entrega de mercadorias? Tem como função checar previamente a titularidade de razão social ou marca? Não. Então como lhe imputar um risco - responsabilidade por danos causados a consumidores pelos fornecedores de produtos e serviços em sites da internet - se sua atividade não se relaciona, nem de longe, com a relação entre fornecedor e consumidor? Da mesma forma que o locador de imóvel não residencial não é responsável pela solidez, segurança e pela entrega de bens vendidos pelo locatário do imóvel, o provedor de registro não pode ser responsabilizado por danos praticados pelos titulares do domínio, afinal, sua missão não é de persecução penal ou fiscalizador de atividades empresariais destas pessoas. Também não pode ser obrigado a se imiscuir nas atividades empresariais subjacentes e desenvolvidas pelos titulares do domínio, nem mesmo a avaliação jurisdicional prévia de colidência de expressões linguísticas com razão social ou marca de quem quer que seja. Defender diverso seria ruir o sistema e adotar um caso isolado de responsabilidade integral, criando-se, aliás, um perverso estimulo reverso, fazendo com que os provedores de registro atue fora das limitações regulamentares e, em nome da equivocada precaução de sofrer a imputação objetiva, não mais atribuir nomes de domínio, congelar os já existentes sem prévia provocação, bem como interferir em conteúdo e atividades de terceiro, algo que, segundo o próprio STJ, feriria, de morte, a neutralidade da rede. Obrigá-los a fiscalizar vícios de produtos e serviços em situações de e-commerce ou atribuir-lhe prévia análise sobre eventual violação a proteção de bens imateriais praticados por terceiros e perfeitamente identificados não é aplicar corretamente o § único do artigo 927 do Código Civil, mas imputar a alguém um dever totalmente extrínseco a sua atividade, tornando-o verdadeiro segurador universal de danos no ambiente da rede, o que  nunca foi pensado ao sistema e, exatamente por isso, poderá gerar seu colapso. Indispensável, assim, o enquadramento destes provedores ao microssistema pensado pela lei 12.965/2014. Não há sentido em se criar um grau de responsabilização maior e mais severo  ao provedor de registro que, como vimos, é o que mais está distante da atuação dos titulares de nome de domínio, enquanto para os outros provedores, incluindo até mesmo o provedor de busca - que atuam diretamente  na, digamos, dinâmica da internet, indicando o site para eventuais clientes, fornecendo meios de pagamento e até logística de entrega, tem se sujeitado a incidência da responsabilidade subjetiva. Ademais, falar-se em responsabilidade subjetiva (hoje tendo a figura da culpa interpretada à luz da boa-fé objetiva) não significa abrandamento. Como tem orientado o STJ, a adoção da responsabilidade aquiliana dos provedores não significa um protecionismo, mas sim uma forma de se coibir empoderamento excessivo dos agentes da internet que acabariam por decidir ou censurar o que é ou não disposto na internet, bem como para afastar o risco de supressão das inovações veiculadas na web, uma vez que a análise prévia de cada informações e publicação registrada mudaria por completo o ritmo da comunicação digital. Criar-se um dever de checagem prévia - sob pena de responsabilidade objetiva - seria legitimar a interferência indevida em liberdades e na própria autonomia das atividades empresariais. Conclusão: indispensável delimitação da responsabilidade subjetiva aos provedores de registro e aplicação do Marco Civil da Internet. Passados mais de 18 anos do advento do Código Civil - e, porque não dizer, da descoberta concreta jurisdicional de novas atividades de risco - parece-nos que o ímpeto da objetivação da responsabilidade não deve romper com a previsibilidade pensada ao microssistema do Marco Civil da Internet, seu sistema de aferição de culpa, pautado na boa-fé objetiva, que atenua comportamentos voltados a censura ou quebra de fluidez da rede. Tal raciocínio se confirma especialmente se considerarmos que o precedente erroneamente invocado em algumas decisões (REsp nº1.695.778/RJ), além de anterior a Lei, envolveu à época discussão sobre a necessidade de notificação prévia ao provedor de registro para o cancelamento de domínio de site que abrigava conteúdo pornográfico e homônimo ao da notória atriz, que pleiteava aquela tutela extrajudicial. Temos que o STJ não delineou a atividade do provedor de registro à luz do Marco Civil da Internet, muito menos sua responsabilidade por atos subjacentes, em especial, comércio eletrônico dos titulares de domínio. Logo, diante de tal precedente, um provedor de registro deveria sofrer responsabilização integral por atos empresariais praticados por titulares de um domínio (ou site) na internet e subjacentes ao registro, por vícios causados aos consumidores adquirentes de produtos na internet, pelo simples fato de ser o ator responsável pelo registro de nomes de domínio? Seria o caso então de reconhecer e exigir-lhe um dever de persecução prévia e posterior fiscalizatória da licitude dos conteúdos e dos atos empresariais praticados pelos titulares dos sites, contrariando suas funções delimitadas e, por que não dizer, ao Marco Civil da Internet, impondo-lhe, portanto, uma inequívoca responsabilidade integral e irrestrita por atividades que não exerce, ou fora do seu campo de atuação,  e sob a qual não tem nenhum controle, contrariando o sentido e ao alcance dos artigos 186 e 927, parágrafo único do Código Civil, bem como os precedentes do STJ a respeito da responsabilização civil dos provedores de conteúdo no Marco Civil da Internet? Obviamente que não. Obrigá-los a fiscalizar atos de terceiros, vícios de produtos e serviços de sites de compra e venda é responsabilizá-lo por algo extrínseco a sua atividade, atribuindo-lhe risco integral, incentivando instabilidades e incertezas normativas após amplo debate consolidado no âmbito do STJ e, por que não dizer, desvirtuando o verdadeiro propósito do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. *Diogo Leonardo Machado de Melo é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Pós-doutor em ciências jurídico-civis pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor de Direito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Associado fundador do IBERC. Diretor Administrativo do IASP. Advogado. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Tipificado como crime pela lei 14.142/2021, o stalking consiste na perseguição reiterada praticada contra alguém, por qualquer meio, com capacidade de ameaçar-lhe a integridade física ou psíquica, restringindo sua capacidade de locomoção, ou de qualquer forma invada ou perturbe sua liberdade ou privacidade. A palavra inglesa Stalk remete à caça predatória, onde o predador aproxima-se silenciosamente, em uma contínua perseguição, assédio ou vigilância sobre a vítima1. Tamanha a importância do valor fundamental do bem tutelado, que o direito penal se preocupou em tipificar o ilícito, que já era objeto de tutela pelos demais ramos do direito, notadamente pelo Direito Civil2. Tendo em vista a independência entre instâncias, uma pessoa pode ser responsabilizada através de um sistema complexo e organizado para equilibrar as relações sociais, podendo imputar-lhe responsabilidade penal, civil, administrativa e laboral concomitantemente. Sendo a responsabilidade um sistema de justiça, o braço direito do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito cujo fundamento é a dignidade humana, de forma protetiva e promocional, garante-se a todos a tutela de sua integridade psicofísica, além de condições de vida para que a pessoa exerça sua liberdade para projetar e dirigir sua existência. Esse sistema baliza-se a partir da solidariedade social em articulação obrigatória entre o individual e o coletivo, na busca do bem comum, repudiando e prevenindo danos injustos, patrimoniais ou extrapatrimonais3. O fenômeno não é recente, já considerado um ilícito civil, observado, por exemplo, como forma de assédio moral trabalhista; bullying escolar e universitário, em relacionamentos abusivos passados ou atuais ou mesmo entre pessoas desconhecidas a partir da ocorrência de um fato que desencadeie comportamento obsessivo sobre outra pessoa. A motivação do stalking varia, muitas vezes por sentimento de inveja, vingança, obsessão, preconceito ou ódio gratuito, materializado por práticas diversas, como ligações inoportunas; envios contínuos de mensagens ou emails; publicações de fatos íntimos ou boatos; remessas de presentes; frequentar os mesmos locais e horários em que saiba que se encontra a vítima, perguntar sobre sua rotina para pessoas próximas, gravar mensagens e ligações sem o devido aviso, dentre outras. Ainda que o ofensor tenha algum poder legítimo sobre a vítima, ou que tenha a liberdade de coletar informações públicas ou estar coincidentemente nos mesmos ambientes que a vítima, este poder ou esses direitos deverão ser exercidos dentro dos limites do ordenamento, especificadamente pelos direitos fundamentais, não podendo configurar abuso de direito. Desta forma, tem-se os elementos clássicos para a configuração da responsabilidade civil: O dano, o nexo de causalidade e o elemento volitivo, que no caso é o dolo4. Embora o stalking físico ainda seja muito comum para manipular a vítima ou prejudica-la em seu sossego e sua paz, na atual sociedade hiperconectada, com o surgimento de novas tecnologias, inicialmente incentivadas pelo anonimato, alargaram-se os meios de assediar, intimidar e monitorar as vítimas dentro do ambiente virtual, ocasião conhecida como cyberstalking. Na era da "cultura do cancelamento", em que muitas pessoas discordam de opiniões de modo desproporcionalmente agressivo, promovendo verdadeiras campanhas para promoção de boicote ou agressão gratuita à vítima, torna-se ainda mais cruel, podendo ocasionar perda de trabalhos, contatos sociais e danos à sua imagem e de sua família. Ainda mais grave quando o stalker coleta informações anteriores, tirando-lhes do contexto original, deturpando-as com o propósito de atingir a reputação da vítima, demonstrando conduta prejudicial, intencional e violenta, capaz de espalhar rumores maliciosos e mentiras, no sentido de violar sua honra, intimidando-a, dentro de uma relação desigual de poder que poderá desencadear sentimentos de angústia, tensão, ansiedade, medo e até depressão5. Como conduta ameaçadora, configura real possibilidade de mal grave e injusto, sendo natural a geração de um temor pela segurança da vítima ou de outras pessoas, decorrente de um controle, subjugando-a de modo que não consiga desconectar de sua preocupação, afetando sua vontade e atingindo decisões comportamentais, podendo inclusive ocasionar mudanças de hábitos e escolhas, degradando sua condição humana, gerando danos temporários ou permanentes. Essa intimidação pode se manifestar pelo modo de tratar, falar, gesticular, escrever, de modo a exercer tal pressão psicológica que a vítima tenha real ciência de que está sendo habitualmente perseguida, através de atos sequenciais, não necessariamente diários, mas capazes de causar-lhe perturbação física e emocional que poderá evoluir para problemas psíquicos ou mesmo físicos, como é o caso da síndrome de Burnout6. Por conta disso, um dos pontos mais controversos sobre o stalking é relacionado à questão probatória, em relação à demonstração não apenas do dano, mas do nexo de causalidade, como perseguição capaz de atingir efetivamente a paz da vítima, não sendo um mero incômodo ou desconforto por quem lhe acompanhe ou admire. Isso se deve ao fato das provas, nesse caso, serem predominantemente indiciárias ou indiretas, por não configurar conduta de fácil comprovação, já que o stalker não persegue sua vítima de modo evidente, utilizando-se de subterfúgios, terceiras pessoas, perfis falsos, invasões a dispositivos conectados à internet para obter informações. O direito brasileiro adota a liberdade probatória, podendo-se provar o alegado por todos os meios em direito admitidos e a viabilidade da presunção sobre o nexo causal, em juízo de probabilidade a partir de uma relação de causa e efeito entre o fato e o dano7. Nesse sentido, ainda que se possa cogitar a quebra de sigilo de dados para a identificação do perseguidor ou comprovação da importunação, seja pelas operadoras de telefonia ou pelos provedores de internet, essa possibilidade ainda é polêmica e muitas vezes negada pelo Poder Judiciário. Desta forma, é conveniente guardar todos os meios de provas explicitamente abusivas ou ameaçadoras, realizando-se Boletim ou Termo Circunstanciado de Ocorrência criminal para uma investigação mais profunda que forme lastro probatório também para uma ação civil. Todos os meios de prova são importantes nesse momento, sejam testemunhas, Prints de telas, gravações ambientes, perícias, atas notariais, dentre tantos outros, podendo ser requerida, também, audiência de justificação em eventual requerimento de tutela de urgência. Esse foi o entendimento do Acórdão Nº 71009850959 (Nº CNJ: 0001645-35.2021.8.21.9000) de 25 de fevereiro de 2021, da Terceira Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul8 que unanimemente reformou a sentença de improcedência do juízo de primeiro grau, que havia entendido não haver prova material direta sobre o ilícito de stalking que fundamentava o pedido de responsabilização civil por danos morais em que a vítima demonstrava receber reiteradamente mensagens e e-mails ofensivos e perturbadores da parte ré. Considerou a corte que, sobre esse tipo de conduta, há um emprego de inteligência e esforço para se manter em anonimato, característica que mantem o caráter injusto da conduta, encobrindo rastros e vestígios de identificação de autoria, indicando má-fé da parte ofensora, através da capacidade de planejamento, antevisão e persistência. No caso, levou-se em consideração a improbabilidade da autora lançar-se em uma custosa e desgastante aventura processual contra a ré, contratando advogado para o acompanhamento dos boletins de ocorrência policial anteriores à ação civil, os quais concluíram serem as mensagens originadas de números pré-pagos utilizado em um mesmo aparelho celular pela parte ré direcionados à autora da ação. Alguns desses números estavam registrados inclusive com o CPF da autora, como forma de afirmar ser a mesma autora das mensagens. A Turma destacou ainda a seriedade das providências tomadas pela autora que indicavam uma perturbação real e concreta, não aparentando o dispêndio de tempo e valores para mera simulação. Com razão houve a reforma da sentença de primeiro grau, mesmo porque atualmente sustenta-se que entre a prova e a verdade existe uma relação teleológica, relacionando o fato com sua causa final, deslocando-se para o raciocínio epistemológico e para o raciocínio de probabilidade. Assim, a verdade possível no processo é a probabilidade lógica, em formulações adequadas da hipótese e sua confrontação para fins de confirmação e não refutação9. Nesse sentido, sobre o ilícito de stalking, depender-se-ia da aceitação de provas indiciárias, retirando-lhe o caráter de provas subsidiárias, podendo o juiz, em seu livre convencimento motivado, considera-la apta para a procedência ou improcedência do pedido, como prova condenatória que mais se aproxime à verdade, concluindo que supervalorizar a prova formal como incontestável, muitas vezes seria impor à vítima um encargo enorme e invencível. Assim, considera-se a importância de reconhecer a força probandi das provas indiciárias à conduta de stalking, tanto para a configuração do an debeatur quanto do quantum debeatur, sob pena de esvaziar seu sentido protetivo. *Agatha Gonçalves Santana é advogada civilista, mestre e doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professora titular da Universidade da Amazônia - Grupo Ser Educacional, onde ministra aulas na graduação e pós stricto senso. Lider. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade da Amazônia. Associada titular do IBERC. __________ 1 CASTRO, Ana Lara; SYDOW, Spencer. Stalking e Cyberstalking: obsessão, internet, amedrontamento. Belo Horizonte: D' Plácido, 2017, p. 53 2 MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 32-33. 3 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 5 ed. Salvador: Juspodvm, 2020, p. 629-630. 4 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 18 5 SANTANA, Agatha Gonçalves. A responsabilidade dos pais do menor agressor no caso de bullying: Uma decorrência direta das relações de poder. In: LEAL, Pastora do Socorro Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. São Paulo: Gen Método, 2014, p. 354-355. 6 DIAS, Sandra. Assédio Moral e suas novas formas. São Paulo: Gestae, 2014. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021. 7 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 5 ed. Salvador: Juspodvm, 2020, p.470 8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CAT Nº 71009850959 (Nº CNJ: 0001645-35.2021.8.21.9000) 2021/CÍVEL. Relator Cleber Augusto Tonial. Porto Alegre: 25 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021. 9 MITIDIERO, Daniel. Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p.198-200.
O debate acerca do risco de uma atividade para fins de imputação do dever de indenizar tem sido caracterizado por dificuldades significativas no campo da teoria do Direito, e na prática judiciária. Se por um lado a teoria o risco vem crescendo vertiginosamente no campo da responsabilidade civil, a percepção de que o seu tratamento pelo judiciário e pela doutrina vem se tornando, ao mesmo tempo, mais fluida e mais incerta, o que contribui para decisões que, se por um lado, no afã de proteger a vítima, buscam sua proteção, por outro, podem abrir espaço para uma insegurança jurídica o que, em última instância, poderia levar a uma completa responsabilização. A questão ganha contornos ainda mais dramáticos diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) que, mais uma vez, alerta a todos nós dos riscos globais a que estamos submetidos. Não apenas quanto aos riscos inerentes à própria doença, que vem devastando vidas e sistemas públicos e privados de saúde ao redor do mundo, mas, também, quanto às soluções aventadas pelos mais variados setores da sociedade e que trazem consigo riscos. O caso mais emblemático talvez seja sobre a imputação de danos causados pela utilização de vacinas contra a COVID-19, tida como o único caminho para pôr fim à crise sanitária mundial, mas que, ao mesmo tempo, pode produzir resultados danosos indesejados, tema que já foi enfrentado nessa coluna1. Pretende-se com o presente texto dar contornos mais claros sobre o que risco pode significar para o campo das ciências jurídicas. A dificuldade é patente: desde a própria terminologia até a sua conceituação, não há unanimidade entre os autores2. O seu conceito ambivalente, plural e quase infindável afeta o uso metodológico e operacional do termo nas ciências naturais, biológicas e sociais. Nesse ponto, as ciências jurídicas também não permaneceram à margem do debate, apesar de sua relativa demora em decorrência das peculiaridades que são inerentes à teoria do Direito. O desenvolvimento tecnológico veio a produzir um impacto significativo no âmbito da reparação dos danos, sobretudo na questão da responsabilidade pelo risco, cujo desenvolvimento foi intensificado em virtude do aumento exponencial dos prejuízos. Com a evolução tecnológica, as atividades humanas foram se expandindo e se tornando menos controláveis e os riscos foram se multiplicando: o prejuízo deixou de ser uma fatalidade e passou a ser uma probabilidade3. O surgimento desenfreado dos danos implicou numa mudança da consciência jurídica e humana para evitar o "cometimento de injustiças"4 e, consequentemente, o fundamento clássico da culpa tornou-se insuficiente para abarcar todas as situações desse novo mundo, pois ela abandonava a vítima e permitia que esta ficasse irreparada em inúmeras situações5. Esse avanço construído pela jurisprudência e pela doutrina, nacional e estrangeira, foi historicamente importante para que a teoria da reparação dos danos pudesse alcançar novas funções e assegurar integralmente a reparação da vítima de uma atividade potencialmente danosa. Entretanto, não há clareza sobre o que é o risco do ponto de vista jurídico. Os textos normativos e doutrinários, em geral, costumam reconduzir a noção de risco à teoria do risco conceituando-o como um perigo especial de certas atividades que acaba por criar determinados riscos típicos, justificando a imputação do dever de indenizar àquele que domina a fonte de risco6. A partir dessa ideia, surgem inúmeras configurações do que caracteriza o risco, com especial relevância para alguns mais difundidos na cultura jurídica: o risco proveito, o risco criado, o risco profissional, o risco administrativo e o risco integral. O risco proveito se qualifica pela ideia de que aquele que retira o proveito ou vantagem do fato de ser causador de um dano, fica obrigado a repará-lo7. A teoria do risco criado trata de uma concepção genérica que abarca um maior número de situações, pois exige, para sua configuração, o mero exercício de uma atividade perigosa8. No risco profissional a obrigação de reparar os danos decorre do desempenho de uma atividade profissional, ou laborativa. Tal risco poderia ser inserido, por exemplo, nos casos de acidentes de trabalho ou, ainda, nas hipóteses em que o empregado causa danos a terceiros9. Fala-se, ainda em risco administrativo, diretamente ligado às pessoas jurídicas de direito público. Por fim, é comum referir-se às hipóteses de risco integral: influenciada pelo campo do direito ambiental, consistiria numa obrigação de indenizar que não admite a exclusão da responsabilidade civil e, por via de consequência, obriga o sujeito a indenizar a vítima, ainda que os prejuízos sejam provenientes de causas estranhas à ação ou omissão. Trata-se de uma responsabilidade civil objetiva agravada10. Embora as ciências jurídicas tenham se empenhado em definir um critério para explicar a teoria do risco a ponto de fazer incidir a responsabilidade definitiva, criando diversas modalidades de risco para as mais variadas situações, parece-nos que nenhuma dessas configurações se afigura adequada na realidade atual. Os modelos de risco até então presentes nas ciências jurídicas mantém um viés claramente ligado à noção de industrialização, profundamente enraizada ao final do século XIX e início do século XX. Seja o risco criado, proveito, profissional, administrativo ou integral, todos eles caminham na mesma direção: reconhecer o fenômeno da industrialização nos séculos antecedentes e, portanto, imputar a responsabilidade a quem desenvolve uma atividade perigosa. De certo que todos os modelos têm importante valor teórico e não podem ser desconsiderados, especialmente o conceito de risco criado que, de todos, é o que ainda guarda maiores aplicações no ordenamento jurídico brasileiro. A tema é ainda mais delicado quando se tem em conta que a assunção de riscos em nossa sociedade é um elemento nuclear de uma economia dinâmica e de uma sociedade inovadora. Afinal, como lembra Anthony Giddens, é preciso ser ousado no apoio à inovação científica e outros meios de mudança, trazendo o debate dos riscos à arena política de modo mais direto11.  Nesse ponto, parece interessante a distinção traçada na década de 70 pelo Tribunal Constitucional Alemão, quando do julgamento da histórica Decisão Kalkar. O referido Tribunal buscou diferenciar o que seria risco residual ou tolerável, risco intolerável e risco. O primeiro é caracterizado como um risco que não se pode eliminar, isto é, insuprimível numa sociedade tecnológica. Consiste num risco aceito pela sociedade que aprecia o progresso e o acréscimo do bem-estar produzido pela tecnologia. O risco intolerável pode ser entendido como a possibilidade de ocorrência de danos que uma sociedade, temporalmente identificada, rejeita em razão de uma ética vigente. E, por fim, o risco tout court, correspondente à margem de incerteza relacionada com a utilização da tecnologia pela sociedade, que traz benefícios gerais, mas pode acarretar danos graves. No caso, discutia-se a constitucionalidade do art. 7, § 2º, nº 3, da Lei de Energia Atômica em decorrência da anulação judicial de uma autorização administrativa para implantação de um novo reator na central nuclear de Kalkar. O Tribunal Constitucional, considerando que compete à Administração a avaliação e a gestão do risco, definido a partir da cláusula do "estado da técnica", que operacionaliza uma "proteção dinâmica" dos direitos fundamentais, permitindo uma técnica de minimização de riscos, entendeu que o risco residual constitui um preço civilizacional e um garante da liberdade do espírito humano. Assim, consequentemente, nenhuma responsabilidade poderia advir dele. Ao seu lado, decidiu o Tribunal, contrapõe-se o risco intolerável, cuja gestão é de competência da Administração12. Embora todas as teorias anteriormente expostas sejam louváveis, elas não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança jurídica o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade considerada tecnicamente perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Qual seria o risco tolerável e o risco intolerável? Tal fato é extremamente relevante, pois implicará na possibilidade, ou não, de exoneração do agente que explora a atividade perigosa. O conceito de risco vem sendo alterado radicalmente e acaba sofrendo influência de aspectos objetivos e subjetivos. Embora o tema do risco tenha sido tratado basicamente do ponto de vista estatístico13 e econômico, as últimas décadas foram profícuas no campo da sociologia, antropologia, psicologia e das ciências políticas. Consequentemente, visualiza-se uma nova configuração social, que traz no seu bojo a consciência de que a sociedade não tem mais como evitar o risco, mas apenas escolher quais assumir14. O risco deve ser tratado não apenas nas perspectivas tecnocientíficas, pautadas pelo aspecto objetivo das probabilidades, mas, especialmente, nas perspectivas socioculturais, que se valem do contexto social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado. Diante desse cenário, é possível perceber que os riscos são construídos enquanto fatos sociais, na medida em que se tornam conceitos cada vez mais centrais na existência humana e que devem ser, também, gerenciados e tratados pelos seus produtores15. O risco, portanto, não é um mero debate acidental nas sociedades, mas aspecto central, objeto de estudo, mensuração e controle, que afeta decisivamente o campo normativo. As novas definições de risco foram incorporadas pelos ordenamentos jurídicos, notadamente no campo da reparação dos danos. O contínuo desenvolvimento tecnológico trouxe a reboque das forças produtivas inúmeros riscos decorrentes desse processo de modernização, caracterizando uma ameça aos interesses juridicamente protegidos no ordenamento, o que exige uma postura ativa e crítica na análise do conceito de risco. O reconhecimento de que o homem é o produtor dos próprios desastres16 reforça a noção de que os riscos a que estamos expostos decorrem, em grande parte, da ação humana direta ou indireta. Nesse ponto, a causalidade passa a ser profundamente afetada, exigindo um repensar sobre como identificar quais riscos se encontram na esfera jurídica do criador de uma atividade perigosa, mas que não necessariamente guardam uma conexão clara e evidente, em virtude da ausência de informação técnica suficiente para conhecer as possíveis consequências do desenvolvimento da referida atividade. O risco passa a ditar os caminhos da reparação dos danos. Percebeu-se, então, que o conceito de causalidade até então debatido pelas ciências jurídicas não eram aptas a dar conta de toda a multiplicidade de situações decorrentes dos novos riscos criados, levando ao aprofundamento da complexidade causal. É preciso buscar o equilíbrio jurídico e a segurança, necessários aos desconhecidos e graves desafios da atualidade. O reconhecimento do risco influenciado pelas ciências sociais, poderá ajudar a superar os profundos entraves dessa cultura de irresponsabilização dos produtores de riscos. Embora importante, especialmente para fins de políticas públicas e de regulação, o cálculo probabilístico falha do ponto de vista social17, pois na análise social, todas as eventualidades restam abertas para o caso concreto e, por conta disso, no plano da reparação dos danos justifica-se um conceito de risco pautado por aspectos sociológicos que permitam depurar de forma mais adequada o conteúdo da atividade perigosa, construção essa que dependerá necessariamente de um esforço da doutrina e da jurisprudência. *Rafael Viola é doutorando em Ciências Jurídico-Civis pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor do Curso de Direito do Ibmec/RJ. __________ 1 EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Afinal, de que responsabilidade estamos falando? Breves notas sobre a eventual imputação de danos causados pela utilização de vacinas contra a Covid-19. Disponível aqui, acesso em 01.05.2021. 2 Como lembra Caio Mário Pereira da Silva, risco "é um conceito polivalente". (SILVA, Caio Mário Pereira da. Responsabilidade civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 369). 3  RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bookseller, 2002, p. 213. 4 LIMA, Alvino, Culpa e Risco. 2ª edição revista e atualizada pelo Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 1998, p. 114. 5 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p.163. 6 MONTEIRO, Jorge Sinde. Estudos sobre a responsabilidade civil. Coimbra, 1983, p. 19. 7 SILVA, Caio Mário Pereira da. Op. cit., 2012, p. 372. 8 UEDA, André Silva Rasga. Responsabilidade civil nas atividades de risco - um panorama atual a partir do código civil de 2002. São Paulo: Arte & Ciência, 2011, p. 171. 9 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil objetiva e risco - a teoria do risco concorrente. São Paulo: Método, 2011, p. 162. 10 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 485. 11 GIDDENS, Anthony. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio deJaneiro: Editora FGV, 2000, p. 148. 12 Sobre o tema, sugere-se a leitura de GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Dissertação de doutoramento em ciências jurídico-políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Edição da Autora, 2012. 13 Nesse campo, o risco é tratado como um produto das probabilidades e consequências de um evento adverso, muito utilizado na área de seguros. Sobre o tema, v. LUPTON, Deborah. Risk. 2nd ed. London: Routledge, 2013. 14 KAPLAN, Stanley et GARRICK, B. John. On the quantitative definition of risk. In: Risk analysis. Vol. I, nº 1, 1981, p. 11. 15 LUPTON, Deborah. Op. cit., 2013, p. 37. 16 BECK, Ulrich. The brave new world of work. Cambridge: Polity Press, 2000, Ebook reader, p. 23.   17 DOUGLAS, Mary, e WILDAVSKY, Aaron. Risco e cultura: um ensaio sobre a seleção de riscos tecnológicos e ambientais. Trad. Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 184.