Quando a proteção vira insegurança: O efeito das decisões judiciais sobre distratos no mercado imobiliário
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado em 20 de agosto de 2025 14:44
O debate sobre os distratos imobiliários no Brasil, especialmente nas aquisições de imóveis ainda em construção, parece girar em torno de um único eixo: a proteção do consumidor. Sob essa ótica, o Poder Judiciário tem flexibilizado, de forma sistemática, as penalidades e os prazos para a restituição dos valores pagos ao incorporador, previstos nos contratos de compra e venda de imóveis quando do distrato. Tal postura, em evidente contraste com as disposições do art. 67-A da lei 4.591/1964, introduzido pela lei 13.786/18 (a chamada lei dos distratos), vem reforçando a percepção de um protecionismo irrestrito ao adquirente, mesmo quando isso se dá em afronta ao próprio contrato assinado e à própria legislação vigente. Essa premissa pode parecer justa sob o olhar do senso comum, mas será que é realmente eficiente à luz da AED - Análise Econômica do Direito?
O referido art. 67-A da lei de incorporações imobiliárias institui um procedimento específico para disciplinar o desfazimento de contratos de aquisição de imóveis firmados exclusivamente com o incorporador. O dispositivo detalha as regras para a devolução das parcelas pagas, aplicando penalidades proporcionais e fixando prazos distintos para a restituição, conforme a existência ou não de patrimônio de afetação no empreendimento. Nos projetos com patrimônio de afetação, a penalidade pode chegar a 50% dos valores pagos, com devolução em até 30 dias após o "habite-se" ou a revenda da unidade. Nos casos sem patrimônio de afetação, a multa é limitada a 25%, e a devolução ocorre em até 180 dias após o distrato, salvo antecipação em caso de revenda. A norma busca garantir previsibilidade e equilíbrio contratual, assegurando a devolução de valores ao adquirente, mas preservando a viabilidade financeira dos empreendimentos e a proteção da coletividade de compradores adimplentes.
Ocorre que, quando judicializados os desfazimentos contratuais no bojo de incorporações imobiliárias, o Poder Judiciário, mesmo após seis anos da entrada em vigor da lei dos distratos, desconsidera os ditames legais com que os compromissos são formulados e, com base no art. 413 do Código Civil brasileiro, reduz os patamares de multas e altera os prazos para a restituição das parcelas pagas aos adquirentes. Na Corte Paulista, há o entendimento, inclusive, de que "A multa/retenção de 50% para empreendimentos com regime de afetação de patrimônio sempre foi, e continuará sendo, abusiva."1. Nestes termos, a AED nos ensina que o Direito não pode ser avaliado apenas pelo viés moral ou distributivo. Ele deve ser examinado também sob a ótica dos incentivos e dos custos sociais que produz. Aparentemente, o Judiciário brasileiro tem desconsiderado esse aspecto essencial.
Isso porque quando o comprador pode distratar o contrato com baixa penalidade e restituição antecipada dos valores pagos, cria-se um incentivo perverso: o contrato passa a ser tratado como uma escolha sem custo, como se o comprador pudesse decidir depois se quer ou não seguir no negócio, sem precisar pagar por essa possibilidade. O consumidor assume o contrato apenas se o mercado estiver favorável. Se o preço do imóvel cair ou se ele repensar sua decisão, pode desistir sem arcar devidamente com os custos econômicos dessa ruptura, deixando o ônus para o incorporador e, por extensão, para toda a cadeia produtiva e para os compradores adimplentes que permanecem no empreendimento.
Essa é a essência do problema: o incentivo gerado por decisões judiciais contrárias à lógica contratual e à legislação específica desequilibra o mercado e impõe custos sociais relevantes. O aumento do risco contratual precisa ser compensado, e as incorporadoras o fazem elevando os preços dos imóveis ou restringindo o acesso ao crédito. A conta, no fim, recai sobre todos os consumidores, inclusive os que agem de boa-fé.
Sob a ótica do Teorema de Coase, quando os direitos são bem definidos e as partes operam em um ambiente com custos reduzidos de transação, a tendência natural é que elas alcancem soluções eficientes por meio da negociação, independentemente da alocação inicial dos direitos. No mercado imobiliário brasileiro, no entanto, a intervenção judicial frequente nos distratos cria um ambiente de incerteza jurídica e desorganiza as expectativas das partes. Ainda que os custos de transação diretos não sejam necessariamente elevados, dado que a jurisprudência já define o padrão de alocação de riscos, o efeito mais relevante está nos incentivos criados para comportamentos oportunistas por parte dos compradores, que passam a internalizar a possibilidade de rescisão vantajosa como parte da estrutura do contrato. Esse ambiente desestimula a alocação eficiente de recursos, eleva os riscos sistêmicos e, paradoxalmente, prejudica o próprio consumidor que se pretende proteger. Em situações como a aqui analisada, decisões judiciais que alteram a distribuição contratual de riscos e encargos tendem a ser ineficientes, pois desorganizam o mercado ao invés de proteger, de fato, o grupo social que se busca amparar.
Mais grave ainda: ao desconsiderar as regras do referido art. 67-A, o Judiciário ignora que a penalidade para o distrato foi calibrada para proteger não apenas as incorporadoras, mas a coletividade de adquirentes adimplentes. O mercado imobiliário, sobretudo em empreendimentos submetidos ao patrimônio de afetação, depende do cumprimento contratual para manter o fluxo de caixa saudável, e para assegurar a entrega das unidades. Foi com base nessa sistemática que se criou a regra de devolver as parcelas pagas somente após a conclusão das obras afetadas, a fim de preservar o fluxo financeiro do patrimônio de afetação, pois é dele que sairá o valor das restituições a serem feitas aos adquirentes que distratarem. Quando muitos são os distratos judicializados, faltará recursos no caixa do empreendimento, e isso poderá atrasar a entrega das construções, quando não levar a incorporação a um cenário de completo déficit financeiro.
É importante ressaltar que, segundo estudos da AED, a imposição de penalidades adequadas ao rompimento de contratos não tem caráter meramente punitivo, mas é um mecanismo de precificação eficiente dos riscos. Quando o custo do distrato é reduzido artificialmente por intervenção judicial, o mercado perde a capacidade de internalizar esses riscos. O resultado é um ambiente de incentivo ao oportunismo e à contratação irresponsável. Em crises econômicas, como a vivenciada a partir de 2014, esse desequilíbrio ficou evidente: altos índices de distratos, falências de incorporadoras, paralisação de obras e milhares de compradores adimplentes prejudicados. É um ciclo destrutivo que pode ser mitigado respeitando-se integralmente as penalidades legais.
O Judiciário precisa reconhecer que, sob a ótica da AED, a proteção desproporcional do consumidor individual pode gerar efeitos adversos para toda a coletividade. O excesso de tutela cria incentivos oportunistas e compromete a eficiência do mercado, aumentando os riscos e afetando a precificação dos contratos. O custo dessa desorganização não é isolado: ele é socializado, com imóveis mais caros, menor oferta e maior insegurança jurídica para todos os agentes envolvidos. O Teorema de Coase nos lembra que mercados eficientes dependem de um ambiente previsível, no qual as partes possam negociar racionalmente. A segurança jurídica, portanto, não é um obstáculo à proteção do consumidor, é justamente o que garante um mercado mais acessível, estável e benéfico para todos.
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1 TJ/SP, Apelação Cível 1018599-32.2021.8.26.0002, julgada em 31/08/2022, Relator Desembargador Ferreira da Cruz, V. U.
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NOVO, Márcia Giangiacomo Bonilha. Poque a penalidade prevista no art.67-A da lei 4.591/64 deve ser inexorável? In: LOPES, Nathalia Lima Feitosa; SAMMI, Priscila Mie Gomes (coord.). Incorporações imobiliárias - estudos aplicados. São Paulo: Almedina, 2024, pgs. 142 a 166.
PORTO, Antônio M.; GAROUPA, Nuno. Curso de Análise Econômica do Direito. Rio de Janeiro: Atlas, 2021. E-book. Pgs. 181 a 204. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559771394/. Acesso em: 29 jun. 2025.