A Conta Notarial e o novo papel do tabelião na segurança dos negócios privados
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
Atualizado às 07:22
O Direito brasileiro acaba de dar um passo silencioso, mas potente, rumo à sofisticação das garantias privadas: nasce a Conta Notarial, também conhecida como "Escrow Account" ou Conta Caução. Uma ferramenta discreta, de operação técnica, mas com potencial de reconfigurar a forma como lidamos com risco, confiança e segurança jurídica em negócios entre particulares.
Afinal, quantas vezes as partes hesitam diante de uma transação porque não sabem a quem confiar o dinheiro? A assinatura do contrato de compra e venda de um imóvel, o início de uma obra de alto custo, a divisão de bens em um divórcio. Tudo isso exige mais do que cláusulas bem redigidas e exige confiança operacional. E é aí que entra o notariado.
A lei 14.711/23, conhecida como "Marco legal das garantias" promoveu inovações na lei 8.935/94 e implementou, especificamente no art. 7º-A da lei 8.935/94, a criação da "Escrow Account", a qual foi recentemente regulamentada pelo provimento 197/25 do CNJ. A Conta Notarial permite que o tabelião de notas atue como administrador de valores vinculados a um negócio jurídico. Mais do que lavrar atos, o notário passa a exercer, com respaldo legal e bancário, um papel de custódia qualificada, imparcial e verificadora de condições objetivas para liberação de recursos quando cumpridas as condições estabelecidas pelas partes.
O que é e como funciona a Conta Notarial?
Imagine a seguinte situação: Pedro é proprietário de um imóvel urbano e deseja vendê-lo para Paulo por R$ 300.000,00. As partes concordaram com o preço e com todas as demais condições, porém, existe um impasse: Pedro não quer assinar a escritura pública de compra e venda antes de receber o valor integral e Paulo não quer transferir o dinheiro antes de ter certeza de que o imóvel será formalmente transferido em seu nome.
O tabelião de notas, ciente da recente alteração trazida pela lei 14.711/23, que trouxe a ampliação de sua atuação como intermediador de valores ligados a diversos negócios jurídicos, propõe a utilização da Conta Notarial.
Na prática, funciona assim: as partes definem, em instrumento contratual, as condições que autorizam o repasse de determinado valor. O montante é então depositado numa conta bancária vinculada, sob administração do cartório, e permanece intocado até que o tabelião, com fé pública e respaldo técnico, certifique o cumprimento das condições acordadas. Não há espaço para subjetivismos. Tudo deve ser mensurável, verificável, auditável.
A robustez do serviço se ancora na tecnologia do Banco Safra, instituição conveniada com o CNB/CF - Colégio Notarial do Brasil, e no ecossistema digital do e-Notariado, plataforma digital que viabiliza a realização de atos notariais pelos usuários dos serviços de forma online em todo o Brasil, como testamentos eletrônicos e autorizações de viagem e doações de órgãos. Agora, soma-se a isso a Conta Notarial, ampliando a atuação do notariado brasileiro como agente de desjudicialização, racionalidade contratual e proteção patrimonial, uma vez que o modelo garante que os valores fiquem protegidos durante todo o curso do negócio, alheios a constrições judiciais, execuções fiscais ou outros riscos externos.
Aplicabilidade e cenários de uso
Os usos são diversos e reveladores da relevância da ferramenta. Em operações de compra e venda de imóveis, por exemplo, o comprador pode depositar o valor total, liberando-o apenas após a transferência do bem, o registro da escritura ou a entrega das chaves. Em contratos de empreitada, os repasses podem ser fracionados conforme a evolução física da obra, evitando tanto inadimplência quanto adiantamentos desnecessários. Já em sucessões e divórcios, a conta pode ser usada para garantir pensões, cauções ou partilhas condicionadas, por exemplo.
Tudo isso, com segurança jurídica, imparcialidade e rastreabilidade. O tabelião não representa nenhuma das partes, não decide sobre a validade do negócio, nem interfere em sua eficácia. Seu papel é o de fiel depositário do pacto. Em caso de dissentimento, lavra ata para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais, suspende o repasse e orienta a busca de solução consensual ou judicial. Simples e revolucionário em termos de governança contratual.
Aspectos formais e procedimentais
A Conta Caução também inova ao reduzir riscos operacionais. Sua abertura é realizada a partir de requerimento formal apresentado ao cartório, com identificação das partes, dados do negócio jurídico, descrição clara das condições para liberação dos valores, conta destinatária, prazo de vigência e análise das certidões exigidas pela norma.
Os valores depositados não podem ser penhorados, desviados ou confundidos com outros ativos, constituindo verdadeiro patrimônio segregado, o que garante maior confiabilidade dos usuários a remessa e retenção do capital. Permanecem alocados em conta específica, por prazo máximo de 180 dias (prorrogáveis por mais 30 dias com justificativa), e sua movimentação exige documentação precisa, certidões atualizadas e verificação de eventuais restrições judiciais ou indícios de fraude. Passado esse prazo sem cumprimento das condições, os valores retornam ao depositante originário.
Como parte do procedimento, a ata notarial será lavrada, a requerimento das partes, pelo tabelião, com o objetivo de verificar o sucesso ou a frustração das cláusulas acordadas e, subsequentemente, procederá ao repasse do valor alocado ao destinatário, considerando a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado.
Custos e remuneração
E toda essa segurança possui um custo baixo, uma vez que a remuneração é repartida entre o banco, o cartório e o CNB/CF, com tarifas proporcionais ao valor administrado e sem ônus direto ao tabelião. A taxa mínima de operação é de R$ 50,00, o que torna o serviço acessível mesmo a negócios de menor porte.
O tabelião, inclusive, não arca com nenhum custo operacional e é remunerado pela instituição financeira, além dos emolumentos legais aplicáveis aos atos notariais adicionais eventualmente lavrados.
Considerações finais
A Conta Notarial representa uma mudança de paradigma: sai o modelo de confiança tácita entre partes privadas e entra um terceiro imparcial, técnico, fiscalizador, com fé pública e responsabilidade civil objetiva, propondo-se de forma bem-sucedida a mediar transações, conferir idoneidade às operações, revolucionar o mercado das negociações e consequentemente mitigar os riscos correlacionados ao sistema econômico nacional.
Num país que ainda carece de soluções práticas para mitigar riscos privados sem judicialização, a presença do tabelião neutro como gestor financeiro vinculado a condições contratuais pode ser um divisor de águas. É mais uma expressão da maturidade do notariado brasileiro, cada vez mais digital, próximo do cidadão e protagonista na transformação da cultura jurídica nacional.
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BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Dispõe sobre serviços notariais e de registro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994. Disponível aqui.
BRASIL. Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures; altera as Leis nºs 9.514, de 20 de novembro de 1997, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 13.476, de 28 de agosto de 2017, 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 9.492, de 10 de setembro de 1997, 8.935, de 18 de novembro de 1994, 12.249, de 11 de junho de 2010, 14.113, de 25 de dezembro de 2020, 11.312, de 27 de junho de 2006, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e 14.382, de 27 de junho de 2022, e o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969; e revoga dispositivos dos Decretos-Lei nºs 70, de 21 de novembro de 1966, e 73, de 21 de novembro de 1966. Disponível aqui. Acesso em: 9 ago. 2025.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento nº 197, de 13 de junho de 2025. Dispõe sobre a regulamentação da conta notarial vinculada, nos termos do §1º do art. 7º-A da Lei nº 8.935/1994. Disponível aqui.
COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. Ministro Mauro Campbell anuncia o Provimento nº 197/25 e institui a conta notarial. 2025. Disponível aqui.
COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. Conta Notarial (Escrow Account) - Esclarecimentos gerais. 2025. Disponível aqui.
COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. 2025. Disponível aqui.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de direito notarial: da atividade e dos documentos notariais. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.