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Extinção do patrimônio de afetação e cláusula penal nos casos de extinção contratual por desistência ou inadimplência do comprador

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Atualizado em 17 de setembro de 2025 10:20

Introdução

Após anos de discussões no Poder Judiciário a respeito do percentual a ser restituído em caso de rompimento do vínculo contratual por desistência imotivada do adquirente, foi promulgada a lei 13.786/18, que estabeleceu regras claras a respeito, inserindo e alterando dispositivos legais da lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64). A lei ficou conhecida como "lei dos distratos" - embora regule situações diversas do desfazimento bilateral do negócio celebrado entre as partes, como a resilição unilateral e a resolução.

Uma das alterações foi a inserção do art. 67-A na lei 4.591/64 para prever expressamente que, em caso de extinção contratual por desistência do adquirente, a restituição será parcial, facultando-se ao incorporador a dedução da parcela correspondente à comissão de corretagem e a aplicação de cláusula penal (pena convencional) de até 25% da quantia paga1.

O §5º do citado art. 67-A, entretanto, estabeleceu exceção à regra geral para tratar dos casos de empreendimentos submetidos ao regime do patrimônio de afetação, prevendo a possibilidade de fixação de uma pena até o limite de 50% das quantias pagas - cujo pagamento seria devido no prazo de até 30 dias após a expedição do habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão municipal2.

Ocorre que, com certa regularidade, após a conclusão da obra do empreendimento e extinção do patrimônio de afetação, são propostas demandas judiciais por adquirentes que buscam o desfazimento do negócio afirmando não terem mais condições de honrar com o pagamento das parcelas do preço - resilição unilateral, portanto.

Uma das principais questões acerca da aplicação deste dispositivo diz respeito à possibilidade de aplicação da cláusula penal de 50% após a extinção do patrimônio de afetação; ou se, nestas situações, aplicar-se-ia a regra geral que estabelece o percentual de retenção máximo de 25% dos valores pagos. 

Patrimônio de afetação na incorporação imobiliária

Como se sabe, "o patrimônio de afetação possibilita ao incorporador a separação de uma massa patrimonial destinada à consecução de uma finalidade específica - realização de determinado empreendimento imobiliário"3. O art. 31-A da lei 4591/64 (incluído pela lei 10.931 de 2004) estabelece que, a critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. O §1º enuncia a finalidade principal de sua constituição ao estabelecer que o "patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva"

De outro lado, as formas de extinção do patrimônio de afetação são previstas no art. 31-E da lei 4.591/64, segundo o qual, "com o fim da incorporação imobiliária, por meio da averbação da construção e transmissão da propriedade ou do direito de aquisição das unidades autônomas para os respectivos adquirentes, e quando for o caso, no pagamento contraído pelo incorporador junto a instituição financiadora do empreendimento (art. 31-E, I). Além disso, também pode se extinguir pela revogação, caso exista denúncia da incorporação, depois de restituídas as quantias dispendidas aos adquirentes (art.31-E, II) e pela liquidação deliberada pela assembleia geral dos adquirentes (art. 31-E, III)"4

A lei 14.382, de 2022, incluiu no texto do art. 31-E os §§ 1º, 2º e 3º para detalhar e especificar as condições para a efetiva extinção do patrimônio de afetação. 

O §1º faz referência ao inciso I, tratando das situações nas quais a extinção ocorre pela conclusão da incorporação imobiliária e possibilita a extinção individual, para cada unidade autônoma, ao prever que "uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica"

Já o §2º se refere às unidades que se mantiveram no estoque da incorporadora e estabelece que "quando da extinção integral das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento e após a averbação da construção, a afetação das unidades não negociadas será cancelada mediante averbação, sem conteúdo financeiro, do respectivo termo de quitação na matrícula matriz do empreendimento ou nas respectivas matrículas das unidades imobiliárias eventualmente abertas"

Assim, em um mesmo empreendimento já concluído, poderá haver unidades não mais submetidas ao patrimônio de afetação e outras ainda submetidas a tal regime, apenas enquanto não quitadas as obrigações junto à instituição financiadora da obra.

A leitura dos dispositivos legais permite afirmar que, a princípio, não basta somente o preenchimento de apenas um dos requisitos para a extinção do patrimônio de afetação, sendo necessária a conclusão da obra, com a respectiva averbação do certificado de conclusão na matrícula do imóvel e, para os imóveis não comercializados em definitivo, a quitação das obrigações junto à instituição financiadora da obra.

A cláusula penal após a extinção do patrimônio de afetação

O debate que se coloca, como já apontado, envolve os efeitos da extinção do patrimônio de afetação no que diz respeito à aplicação da pena convencional em seu patamar superior (50%). A questão a ser respondida é a seguinte: nos casos em que a resolução por inadimplemento do adquirente ou resilição por sua iniciativa ocorre após a extinção do patrimônio de afetação, ainda seria possível aplicar a regra especial? 

As incorporadoras imobiliárias, diante da desistência de adquirentes, em geral, sustentam que a extinção da afetação não altera o regime jurídico do contrato, em especial no que diz respeito à cláusula penal aplicável. Ao defender sua tese, sustentam que a extinção não se daria tão somente pelo término da obra e respectiva averbação da conclusão na matrícula do imóvel, mas especialmente pela satisfação de todas as obrigações garantidas, incluindo-se o crédito da instituição financiadora da obra e, eventualmente, as demandas judiciais envolvendo a Sociedade de Propósito Específico e vendedora do empreendimento. Até porque, como já evidenciado, a finalidade do patrimônio de afetação é, exatamente, garantir a reserva e o destacamento de patrimônio suficiente para suportar eventuais passivos decorrentes da realização do empreendimento e, assim, tem como característica a sua incomunicabilidade com outras dívidas ou créditos da Incorporadora Imobiliária.

Por consequência lógica, a extinção do patrimônio de afetação não desnaturaria a aplicação estrita da norma, que não faz a ressalva quanto a aplicação do percentual de 50% a título de pena convencional apenas para os casos de empreendimento com patrimônio de afetação não encerrado.

Esta não tem sido, todavia, a orientação prevalecente nas Câmaras de Direito Privado do TJ/SP, que - em inúmeros precedentes5 - têm declarado a extinção do patrimônio de afetação a partir da mera averbação da construção e decidido pela limitação da pena convencional, nessas situações, ao percentual de 25%, nos termos do art. 67-A, II. Assim, comprovada a conclusão da obra e, especialmente, houver a averbação específica da extinção do patrimônio de afetação na matrícula do imóvel, ainda que haja obrigações pendentes de cumprimento pela vendedora do imóvel, entende-se, geralmente, pela aplicação do percentual de 25% a título de pena convencional6.

A orientação prevalecente, todavia, nos parece manifestamente equivocada, já que a extinção ou não do patrimônio de afetação é elemento absolutamente irrelevante para análise da matéria.

O regime jurídico a que se submete o contrato está definido no momento de sua celebração. É justamente por isso, por exemplo, que o STJ afastou a possibilidade a aplicação da lei dos distratos aos contratos celebrados em momento anterior à sua promulgação.

É neste momento, de formação do contrato, que as expectativas legítimas das partes são definidas, a partir da base objetiva, orientando sua conduta. Com efeito, o negócio jurídico é celebrado sobre uma base negocial, que contém aspectos objetivos e subjetivos, base essa que deve manter-se até a execução plena do contrato, bem como até que sejam extintos todos os efeitos decorrentes do contrato (pós-eficácia). Por base do negócio jurídico devem se entender todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em conta ao celebrar o contrato, que podem ser vistas nos seus aspectos subjetivo e objetivo7.

Se no momento da celebração do contrato existe patrimônio de afetação constituído para o empreendimento, as partes esperam - e orientam seus comportamentos a partir dessa expectativa - que a retenção em caso de desistência imotivada (resilição unilateral) será de até 50% dos valores pagos. Daí se poder afirmar (ou repetir): a extinção ou não do patrimônio de afetação é irrelevante para a análise da matéria, importando apenas se existia ou não patrimônio de afetação no momento da celebração do contrato.

A tese adotada na jurisprudência conduziria a situações absolutamente esdrúxulas e compromete a integridade do sistema, tornando impossível às partes antever qual a norma que será aplicada no momento de (eventual) desfazimento do negócio. 

Afinal, qual seria o instante de apuração acerca da existência ou não de patrimônio de afetação? A propositura da ação? A sentença? O trânsito em julgado? O primeiro inadimplemento de uma das parcelas? E se o patrimônio de afetação é extinto no curso do processo, entre a propositura da ação e a sentença, qual a regra aplicável? O mesmo critério poderia ser aplicado nos casos em que o patrimônio de afetação é constituído após a celebração do contrato? A parte que fica inerte por mais tempo, aguardando a extinção do patrimônio de afetação (que, presume-se, irá ocorrer em algum momento) obtém para si situação mais vantajosa que a parte que ajuizou a ação em momento anterior? 

Imagine-se, então, dois contratos celebrados numa mesma data tendo como objeto unidades de empreendimento submetido a regime de afetação. Os adquirentes, colegas de trabalho, são demitidos cerca de 1 ano após a celebração do negócio, enquanto as obras ainda estavam sendo realizadas. Um deles (A), percebendo não possuir mais condições financeiras de manter o compromisso que assumiu, busca se desobrigar, requerendo o desfazimento do negócio. Para este, não haveria dúvida acerca da possibilidade de retenção de até 50% dos valores pagos. O outro (B), entretanto, embora também não possua condições de arcar com as prestações, não pede o desfazimento do negócio no primeiro momento e decide aguardar a conclusão da obra e extinção do patrimônio de afetação, para só depois pedir o desfazimento. Por que seu tratamento seria (substancialmente) diferenciado em relação ao primeiro? 

A norma legal não traz qualquer distinção quanto aos percentuais aplicados antes e depois da conclusão da obra e extinção do patrimônio de afetação; sob que fundamento o julgador poderia fazer tal diferenciação - que a lei, repita-se, não fez? 

O que se tem, nestes casos, é que o vago pretexto de proteger a parte hipossuficiente e vulnerável da relação conduz a soluções casuísticas cuja fundamentação não se sustenta, porque não serve para outros casos semelhantes - levando à incerteza e insegurança jurídica. A preservação da coerência e integridade do sistema exige a construção de fundamentos jurídicos minimamente estáveis, a partir de premissas fundamentais que não se desintegram diante das contestações mais superficiais e, por essa razão, entende-se que percentual de retenção de 50% das quantias pagas, a título de clausulas penal, deve ser aplicado, ainda que haja a extinção do patrimônio de afetação no curso do cumprimento do contrato.

_____________________

1 Art. 67-A . Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: I - a integralidade da comissão de corretagem; II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga.

2 §5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga.

3 Disponível aqui.

4 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Incorporação Imobiliária, in Curso de Direito Imobiliário Brasileiro, 2021, p.438

5 Neste sentido são as decisões proferidas nos seguintes casos, dentre tantos outros: Apelação Cível nº 1083278-07.2022.8.26.0002, 29ª Câmara de Direito Privado, Relator(a) Des. José Augusto Genofre Martins, 28 de julho de 2024. Apelação Cível nº 1026915-26.2024.8.26.0100, Relator(a) Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara de Direito Privado, 9 de setembro de 2024. Embargos de Declaração Cível nº 1001258-54.2023.8.26.0541/50000, Relator(a) Des. Antonio Rigolin, 31ª Câmara de Direito Privado, 10 de julho de 2024. Apelação Cível: 1000509-09.2022.8.26.0400, Relator(a) Des. Claudio Godoy, 1ª Câmara de Direito Privado, 15/02/2024.  Apelação Cível 1009289-34.2022.8.26.0562, Relator Des. Sergio Alfieri, 27ª Câmara de Direito Privado, 23/02/2023.

6 Neste momento, não foram localizadas decisões colegiadas no Superior Tribunal de Justiça acerca da questão. Mesmo as poucas decisões monocráticas encontradas não abordaram a matéria, já que a análise normalmente se limita a aspectos processuais. 

7 LEÃO, Luis Gustavo de Paiva. A quebra da base objetiva dos contratos. Mestrado - Direito Civil, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.