A fragilidade das fachadas ativas: Reflexões jurídicas no âmbito da responsabilidade do permutante do terreno
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado em 18 de novembro de 2025 12:43
Nos últimos anos, incorporadoras vêm adotando com frequência crescente o modelo de fachadas ativas em edifícios residenciais. A proposta inicial desse instrumento urbanístico era promover o dinamismo dos passeios públicos por meio da interação entre pedestres e atividades comerciais instaladas nos térreos, evitando a monotonia das chamadas "paredes cegas". Essa diretriz foi consolidada no Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo, durante a gestão do prefeito Fernando Haddad, em 20141.
O objetivo central da política era claro: estimular a vitalidade em bairros de baixa movimentação, reforçar a segurança urbana pela ocupação qualificada do espaço público e integrar o uso residencial ao comercial. A lógica urbanística era simples e eficaz: áreas mais visíveis, movimentadas e habitadas tendem a sofrer menos com vandalismo e criminalidade.
A distância entre teoria e prática
A execução, contudo, revelou resultados bem distintos. Multiplicaram-se as chamadas fachadas inativas ou subutilizadas, marcadas por imóveis comerciais vazios e sucessivas placas de "aluga-se" ou "vende-se", na constatação de Thais Soares2. Em uma metrópole com mais de 12 milhões de habitantes, o cenário idealizado de dinamismo urbano deu lugar a lojas fechadas e espaços economicamente inviáveis.
Grande parte desse insucesso decorre de projetos mal planejados. Talvez porque muitos empreendimentos foram concebidos por construtoras habituadas apenas ao setor residencial, sem domínio das especificidades de espaços comerciais, a quiçá conduzir esse fracasso. O resultado foram lojas pouco funcionais, muitas vezes projetadas como "sobras" do empreendimento3, o que as tornou pouco atrativas ao mercado. Surge então a pergunta: existe um culpado?
Como observa Victor Hirata, gerente sênior da empresa imobiliária CBRE, a ausência de planejamento de longo prazo foi determinante: diversos projetos limitaram-se a atender exigências legais ou a atrair grandes redes no momento da entrega, sem considerar a sustentabilidade econômica. A aposta exclusiva em grandes varejistas, sem abertura para a diversidade de ocupantes, resultou na queda dos valores de locação e na frustração das expectativas, sobretudo dos permutantes que cederam terrenos em troca de unidades comerciais.4
Dados recentes reforçam essa realidade. Segundo reportagem do Estado de São Paulo de 7/10/25, do repórter Lucas Agrela, pesquisa da ACSP - Associação Comercial de São Paulo, apurou que entre 60% e 80% desses espaços encontram-se vazios. Os bairros com maior índice de ocupação são Vila Mariana, Ibirapuera, Perdizes, Vila Madalena, Santo Amaro e Av. Rebouças, com predominância da ocupação por redes de varejo de conveniência, como Oxxo e Carrefour Express, e agências bancárias.
Importante destacar que muitos desses espaços nunca foram ocupados, demonstrando que não se trata de esvaziamento, mas de ausência de ocupação desde a própria construção, singela inviabilidade da destinação dessas áreas. A pesquisa revela um perfil restrito de locatários e evidencia que a vacância decorre da falta de planejamento estrutural, incluindo a análise relativa ao público-alvo. A idealização do projeto visava não apenas os moradores do edifício, mas também o fluxo de pedestres da região, evidencia que teria sido ignorada.
Muitos entendem que a responsabilidade pela realização da pesquisa de campo e pela análise de viabilidade deveria recair exclusivamente sobre a incorporadora. Afinal, ao ter em mente os benefícios do empreendimento, deveria estudar tecnicamente se tal empreendimento "ficaria em pé", funcionaria adequadamente com todas as suas características: quantidade de unidades, equipamentos, pavimentos e... lojas no térreo.
Mas, diante desse cenário, mais realista seria concluir que a responsabilidade é compartilhada, não recaindo sobre um único ator. A Prefeitura, como órgão planejador, autorizador e fiscalizador exerce papel fundamental. O permutante do terreno, por sua vez, pode agir motivado por vantagens econômicas muito distintas da situação de um vendedor do imóvel, cuja participação se esgota no recebimento do preço e entrega do terreno. Já a incorporadora deve conduzir o negócio cumprindo os requisitos de seu mister, atentando ao que se exige de empreendedores, agindo de boa-fé, fornecendo informações precisas, realizando estudos sobre o fluxo de público e avaliando a infraestrutura urbana, como transporte e estacionamento, planejando, enfim, um prédio adequado ao local.
Obvio, embora a falha seja muitas vezes coletiva, (o Estado planejou, o Incorporador concretizou) ela recai de forma mais latente sobre a empreendedora, que fez seus cálculos e atendendo aos pressupostos legais e exigências urbanísticas, acreditou e materializou o prédio, objetivando, é natural e justo, seus lucros.
A "permuta financeira" em negócios imobiliários
Nesse contexto, a análise de André Luis de Sá Carlos Portela5, em sua pesquisa de mestrado sobre a Permuta Financeira6 em Negócios Imobiliários, oferece reflexões relevantes. O autor observa que, embora largamente difundida, a prática carece de regulamentação específica e de maior atenção acadêmica.
De acordo com Portela, a "Permuta Financeira" consolidou-se como um dos principais mecanismos de viabilização de incorporações no Brasil, configurando-se como alternativa estratégica diante da complexidade do setor.
Nessa modalidade, o terrenista transfere o imóvel ao Incorporador e, em contrapartida, recebe um percentual do VGV - Valor Geral de Vendas do empreendimento. Trata-se de uma conversão do valor do terreno em expectativa de receita futura, que desloca o risco para o sucesso da comercialização das unidades, e não somente fixando o risco na capacidade econômica da empreendedora.
Ao incorporador, a vantagem é evidente: evita a imobilização de capital na compra do terreno e preserva recursos para novos projetos. Já o terrenista se beneficia da valorização potencial de seu bem, sem precisar arcar com a construção e comercialização das unidades diretamente, aspecto que diferencia a permuta financeira da permuta física, em que recebe unidades prontas e ao incumbir-se da venda, assume riscos de comercialização, mas não diretamente do empreendimento. Em resumo, numa alternativa o permutante se liga ao incorporador e com ele percorre todo o caminho do empreendimento; na outra, o permutante recebe unidades, para então definir a que as destinará.
Apesar das lacunas regulatórias e dos questionamentos fiscais que cercam o tema, Portela conclui que a permuta financeira constitui um instrumento pragmático de simplificação das relações entre terrenista e incorporador, equilibrando interesses e ampliando a viabilidade econômica dos empreendimentos.
Contudo, ainda que o conceito apresentado pelo autor seja coerente e bem fundamentado, na prática observa-se um descompasso. A dinâmica desses negócios certamente voltada ao lucro, tem contribuído para o surgimento de áreas urbanas subutilizadas, uma cidade que cresce, mas permanece vazia, sem cumprir plenamente sua função social, tal como idealizada pelos princípios constitucionais e urbanísticos. Tal se dá em especial quando se constata a existência das lojas ("fachadas ativas") desocupadas, vale dizer, resultantes de falhas no planejamento.
A responsabilidade do permutante
Se de permuta se cogita ("pura" ou "financeira"), teria o permutante responsabilidade pelo empreendimento? Seria também responsável pela fachada ativa frustrada? Isto é, o terrenista, ao permutar com objetivo de participação na venda de unidades que se beneficiarão (ou existirão) também graças à construção da "fachada ativa", será responsável pelo resultado da obra?
Permutante e incorporador são personalidades jurídicas distintas, embora, em determinadas circunstâncias, possam se confundir na mesma figura. Como bem observa Caio Mario da Silva Pereira, "toda pessoa física ou jurídica, independentemente de sua anterior profissão, torna-se incorporador pelo fato de exercer, em caráter permanente ou eventual, uma certa atividade, que consiste em promover a construção da edificação dividida em unidades autônomas"7. Ou seja, o permutante pode assumir também o papel de incorporador.
A partir disso, surge a questão central: até que ponto o proprietário do terreno (permutante) responde por eventuais prejuízos causados ao adquirente das unidades? Para que essa responsabilização exista, é necessário que ele se enquadre, de fato, na figura do incorporador e que sua conduta revele participação ativa na incorporação ou na comercialização das unidades.
Vale lembrar de Antônio Chaves: "A situação da proprietária do terreno é das mais complexas. Não pode manter-se mais, como ocorria antes da Lei n. 4591 de 16/12/1964, numa atitude de simples expectadora dos conflitos que fatalmente surgiriam entre os impacientes adquirentes das unidades autônomas e as rés tão lerdas na execução"8
A compreensão de Jaques Bushatsky parece exata, quando escreveu: "Ora, é nesta linha lógica que se infere a responsabilidade do dono do terreno que ajusta "permuta no local": ele (é razoável supor) objetiva na modalidade de negócio que enceta, um benefício que não se confunde com a singela venda de seu imóvel e sim, certa participação na incorporação, muito embora distintas as características inerentes ao contrato de permuta e ao de incorporação"9
Ainda, prossegue o autor sugerindo cautelas: "a responsabilidade do permutante, questão importante e que merece, por óbvio, mais e melhores estudos. De prático, sabido que a declaração de eximentes nos contratos celebrados não arredará a responsabilização, cumprirá ao proprietário que objetivar negócio dessa espécie, assegurar-se a respeito da fiel execução do contrato, do exato desincumbir-se da incorporadora, de seu perfeito desempenho, ajustando para tal, as garantias mais e mais utilizadas hoje, pelo mercado."
De modo geral, não se admite a responsabilização do permutante quando este apenas cede o terreno e não participa da incorporação ou da comercialização das unidades, tampouco interfere nas relações contratuais estabelecidas entre o incorporador e os adquirentes. Nesses casos, a relação jurídica se desdobra em dois eixos autônomos.
Por outro lado, quando o permutante participa ativamente do planejamento da divulgação, comercialização ou intermediação das vendas, ainda que não figure formalmente no contrato de compra e venda, passa a integrar a cadeia de empreendimento, respondendo solidariamente pelos vícios e danos decorrentes da incorporação.
A lei 4.591/1964, em seu art. 29, parágrafo único, estabelece presunção nesse sentido ao dispor que há vínculo entre o alienante de frações ideais do terreno e a atividade de construção quando, ao tempo da alienação, o projeto de construção já estiver aprovado, em vigor ou pendente de aprovação. Nessas hipóteses, o alienante é equiparado ao incorporador e, portanto, assume as responsabilidades inerentes a essa condição.
Trata-se, em regra, das situações em que o proprietário do terreno já deu início ao processo de incorporação, submetendo o projeto à aprovação e, posteriormente, opta por celebrar contrato com terceiro para a execução do empreendimento. A jurisprudência tem reconhecido, com frequência, a intenção implícita de incorporar, responsabilizando o proprietário que, embora não figure formalmente como incorporador, demonstra interesse direto e efetivo no êxito do empreendimento.
Nesse sentido, já decidiu o TJ/RJ, ao afirmar ser responsável o "proprietário do terreno que tem interesse direto na realização e no sucesso do empreendimento (pois alardeou que concebeu e estava executando em seu terreno um projeto que implicava na construção de um conjunto arquitetônico com edifícios chamados inteligentes), mas tenta disfarçar essa condição com o artifício de prometer vender o terreno a outra firma que assume a aparência de verdadeira incorporadora".10
Por sua vez, o STJ (REsp 1.065.132/RS) afasta a solidariedade quando o proprietário não desempenha funções próprias da incorporação, ou, assim se preferindo, quando ele, terrenista, permutante não concretize "prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa".
PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. INEXECUÇÃO CONTRATUAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO DO TERRENO. INAPLICABILIDADE DO DIREITO DO CONSUMIDOR.
(...)
2. A Lei de Incorporações (Lei n. 4.591/1964) equipara o proprietário do terreno ao incorporador, desde que aquele pratique alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, atribuindo-lhe, nessa hipótese, responsabilidade solidária pelo empreendimento imobiliário.
3. No caso concreto, a caracterização dos promitentes vendedores como incorporadores adveio principalmente da imputação que lhes foi feita, pelo Tribunal a quo, dos deveres ínsitos à figura do incorporador (art. 32 da Lei n. 4.591/1964), denotando que, em momento algum, sua convicção teve como fundamento a legislação regente da matéria, que exige, como causa da equiparação, a prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, ou seja, da promoção da construção da edificação condominial (art. 29 e 30 da Lei 4.591/1964).
4. A impossibilidade de equiparação dos recorrentes, promitentes vendedores, à figura do incorporador demonstra a inexistência de relação jurídica consumerista entre esses e os compradores das unidades do empreendimento malogrado.
5. Recurso especial provido. (REsp 1065132/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/06/2013, DJe 01/07/2013).
A propósito, de acordo com o art. 40, §2º da lei 4.591/1964, em caso de rescisão dos contratos de alienação das unidades autônomas, em razão de descumprimento contratual do incorporador ou da frustração do empreendimento, a responsabilidade do proprietário do terreno limita-se à devolução ao adquirente (consumidor final) da parcela da construção incorporada à sua propriedade. Caso a edificação não possa mais ser concluída, os valores devem ser restituídos, sob pena de caracterização de enriquecimento sem causa. Ressalte-se que essa devolução não se confunde com eventual reparação por danos materiais ou morais decorrentes do fracasso do empreendimento, tratando-se de obrigação limitada e objetiva.11
Em síntese, o proprietário do terreno somente assume responsabilidade perante os adquirentes se atuar como incorporador, ou seja, se participar da execução das obras ou da comercialização das unidades. A análise deve, portanto, recair sobre o comportamento efetivo do permutante: se ele se limitou à permuta, à troca do terreno por imóveis, não lhe cabe responsabilidade; se, ao contrário, assumiu obrigações típicas da incorporação ou participou de atos que revelam corresponsabilidade pelo empreendimento, responderá nos mesmos termos do incorporador.
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1 GESTÃO URBANA SP. Fachada Ativa. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, [s. d.]. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.
2 SOARES, Thaís. As fachadas ativas estão virando fachadas fantasmas. Metro Quadrado, São Paulo, 10 abr. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.
3 SOARES, Thais Quanto vale uma fachada ativa? Nem as incorporadoras sabem. Metro Quadrado, São Paulo, 09 set. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025
4 PORTELA, André Luis de Sá Carlos. Permuta Financeira em Negócios Imobiliários. São Paulo, 07 set. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.
5 Impossível deixar de anotar que essa terminologia fere o conceito jurídico da "permuta", mas a novidade terminológica existe.
6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 248.
7 INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 498, abr. 1977, p. 34.
8 BUSHATSKY, Jaques "Observações sobre a responsabilidade do proprietário do terreno, que o permuta por futuras unidades a serem erigidas no local, perante os adquirentes de unidade destinadas ao incorporador, prometidas à venda e não entregues". In: TUTKIAN, Cláudia Fonseca; TIMM, Luciano Benetti; PAIVA, João Pedro Lamana (coord.). Novo Direito Imobiliário e Registral. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 412.
9 RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 1999.002.04963, Capital, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Dauro Ignacio da Silva, julgado em 14 out. 1999, por maioria.
10 BUSSAB, Dora. Responsabilidade civil do proprietário do terreno cedido para a incorporação imobiliária. Migalhas Edilícias, São Paulo, 30 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.

