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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Acredito, de verdade, que um dos (se não for o maior) maiores objetivos do Direito na modernidade seja a busca por uma maior segurança jurídica (e por quê não falarmos de mais previsibilidade?) no que diz respeito ao poder decisório do Juiz. O autor argentino Ricardo Luis Lorenzetti, por sua vez, ao tratar da decisão judicial, propõe, justamente, a busca por certa estabilidade nas decisões que façam o sistema previsível1. Daniel Kahneman, Oliver Sibony e Cass Sunstein, em sua obra chamada de Ruído (ou, para aqueles que prefiram, Noise), já denunciam o mesmo problema da disparidade de julgamentos em casos semelhantes. Em determinado momento, afirmam o seguinte: "A resposta não deveria depender do juiz específico a quem o caso foi designado, do clima no dia do julgamento ou da vitória de um time de futebol no dia anterior"2. Ou seja, esse é um problema que extrapola o campo do Direito, chegando a prejudicar a economia, saúde e as relações pessoais. Para fins de situar o leitor, no presente artigo, o enfoque será nas relações civis, deixando um pouco de lado as execuções fiscais e trabalhistas. O CPC/2015, em diversos momentos, tentou salientar essa preocupação, como na elaboração dos artigos 489, §1º e 926. No primeiro, o legislador buscou trazer à baila o mínimo necessário para que qualquer decisão judicial seja considerada fundamentada, enquanto no segundo tratou de criar uma obrigação aos Tribunais de uniformizarem a sua jurisprudência, afim de evitar que sejam proferidas decisões divergentes sobre a mesma situação fática. Um dos atributos do direito de propriedade é o poder de disposição assegurado ao titular do domínio. Mas o patrimônio do devedor é a garantia geral dos seus credores; e, por isso, a disponibilidade só pode ser exercida até onde não lese a segurança dos credores. A fraude, por sua vez, frustra a atuação da justiça e, por isso, é repelida imediatamente. Não há necessidade de nenhuma ação para anular ou desconstituir o ato de disposição fraudulenta. A lei o considera simplesmente ineficaz perante o exequente, e o juiz reconhece de plano a inoponibilidade do negócio, nos próprios autos3. Por isso, o negócio jurídico, que frauda à execução, diversamente do que ocorre na fraude a credores, gera pleno efeito entre alienante e adquirente. Apenas não pode ser oposto ao exequente. Nesse sentido, o art. 792, §1º, do CPC é expresso em asseverar que "a alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente". A recente MP 1.085/21 veio, em diversos pontos, tentar solucionar (ou, no mínimo, melhorar) alguns pontos ainda nebulosos para aqueles que atuem diretamente no Direito Imobiliário. Porém, um dos temais que mais chama atenção aos olhos do leitor é o da fraude à execução. O art. 792 do CPC, por sua vez, já tentou trazer maior segurança jurídica. Explica-se: o referido dispositivo legal faz a diferenciação entre bens passíveis de registro (incisos I, II e III) e de bens não sujeitos à registro (§2º). Quando estamos diante de bens passíveis de registro, parece que o legislador foi claro ao tratar da necessidade da averbação na matrícula, em casos de imóveis. Quando não for passível de registro, caberá ao terceiro adquirente fazer a prova de que adotou as cautelas necessárias (a famosa due dilligence), como certidões pertinentes obtidas no domicílio do vendedor e no local onde encontra-se o bem. Dito de outro modo, parece que o legislador, inclusive, estabeleceu os locais em que deve o adquirente terceiro fazer a sua due dilligence. Mas será que estamos perto do fim das auditorias imobiliárias? Oliver Vitale e Daniele Gazel já se posicionaram sobre essa temática, no sentido de que ainda são importantes e válidas, especialmente pela falta de segurança jurídica que, ainda, prospera4. A Medida Provisória, por sua vez, modificou o art. 54 da Lei n. 13.097/15, da seguinte forma: i) o inciso II, que prevê averbação, na matrícula do imóvel, da constrição judicial de que a execução foi admitida pelo Juízo (e não apenas ajuizada); ii) o inciso IV fez menção ao art. 792, inciso IV do CPC; iii) §2º, em que ficou delimitada a documentação a ser exigida dos adquirentes de imóveis, quais sejam a comprovação do pagamento do ITBI (quando for o caso), as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais. Fica dispensada a necessidade de apresentação de certidões forenses. A pergunta que fica: será que tais requisitos serão suficientes para os casos que virão? O questionamento parece válido, se levarmos em consideração a Súmula 375 do STJ e julgamentos recentes, como o REsp 1863952/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi5. A impressão que fica é que os casos envolvendo a temática da fraude à execução ainda sofrerão com um alto grau de discricionariedade, pois, a MP parece ter perdido a oportunidade de reforçar, ainda mais, os critérios trazidos pelo art. 792 do CPC que, ao que parece, apresenta os critérios mais definidos e claros. ______________ 1 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 157. 2 KAHNEMAN, Daniel. Ruído: Uma falha no julgamento humano. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021, p. 19. 3 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - vol. III. 50 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 322. 4 VITALE, Olivar; GAZEL, Daniele. Auditorias imobiliárias estão perto do fim? 5 REsp 1863952/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 29/11/2021
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Breves observações sobre o IVAR/FGV IBRE

Desde meados de 2021 o IGPM/FGV passou a sofrer críticas por alguns agentes do segmento locatício, ante o seu descolamento dos demais indexadores medidos pela própria Fundação ou pelo IBGE. As opiniões contrárias à manutenção do tradicional indexador do mercado desde 1989, não consignaram a mesma irresignação quanto a anos anteriores do IGPM. Em diversos momentos o Índice Geral de Preços de Mercado registrou taxas negativas (deflação) naturalmente por motivos opostos aos que se traduziram na sua elevação durante alguns meses de 2021. Neste cenário algumas iniciativas na esfera parlamentar tentaram conduzir o segmento à adoção do IPCA como índice ideal à correção dos locativos. Contudo, o mercado amadurecido encontrou nas negociações um solo fecundo para que as partes conseguissem ultrapassar os desafios comuns. Aliás, exemplo que se notabilizou deste o advento pandêmico que assola o Brasil e o mundo há dois anos, onde o diálogo e a parceria foram sublimes em adotar o equilíbrio econômico da relação locatícia como norte a ser perseguido. Basta observarmos o substancial decréscimo no volume de ações de despejo no Brasil no ano passado, se comparados aos números dos anos pré-pandemia. Boa constatação é que os nobres congressistas não se deixaram seduzir pelo discurso fácil ou de curto alcance. Passados poucos meses do ápice da suposta distorção, já se percebe um enorme arrefecimento do IGPM e alguns economistas já apontam que ele ficará abaixo do IPCA em poucas semanas. Correta então a medida que preservou a autonomia das partes na escolha do indexador que melhor lhes aprouver. De outro norte surge a inciativa da competente FGV - Fundação Getúlio Vargas de criar um novo índice à luz de tantos outros de seu controle, destinando-se a medir a evolução do mercado de locação residencial. Trata-se de um novo projeto, elaborado a partir da análise evolutiva de contratos de locação firmados em 4 capitais do Brasil, a saber São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Segundo a FGV IBRE o índice está sendo tratado com uma base de 10 mil contratos de locação em curso no Brasil e a julgar pelo agradecimento expresso na nota metodológica da Fundação, grande parte deste conteúdo advém da empresa 5º. Andar. Aliás, a conclusão é razoavelmente lógica vez que a referida administradora atua com afinco nestas regiões. Mas, independentemente da fonte ou das fontes, resta evidente que o índice apresentado não pode ser útil, ao menos no momento, diante de um país com dimensões continentais. Os mercados, embora do mesmo segmento, são muito amplos e a simples pesquisa em apenas 4 capitais no Brasil, são incapazes de bem representar a evolução ou involução dos valores locatícios ao ponto de credenciá-los a sua utilização em massa. É um enorme risco e temeridade aos atores deste segmento uma imediata alteração do indexador que parametriza o mercado há mais de 30 anos, por uma métrica que representa uma amostra muito insipiente e localizada em poucas cidades no Brasil. Embora sejam capitais de alta densidade locatícia, a sua amostragem concentrada em uma única empresa ou poucas, pode representar nefastas distorções a médio e longo prazo. Variáveis como qualidade construtiva, localização, tempo, conservação e idade do imóvel estão sendo consideradas? As questões métricas, ou seja, o tamanho e tipologia das unidades estão sendo depuradas diante da demanda por imóveis de menor porte, por exemplo? As variáveis de demanda e oferta estão na balança da medição? Porto Alegre e São Paulo, por exemplo, não sofreram uma queda significativa na oferta de imóveis destinados a locação. O mesmo não se verifica na maioria das capitais do Brasil onde o parque de imóveis residenciais destinados à locação encolheu cerca de 20% em 2021. Aliás, quem é do segmento imobiliário percebe que o maior desafio das administradoras é conseguir angariar mais imóveis para as suas carteiras. A demanda de 2021 foi extremamente forte e o crescimento das taxas de juros irá impulsionar ainda mais os negócios locatícios em 2022, desde que não faltem imóveis no mercado. Daí que em diversos Estados da federação a evolução dos aluguéis residenciais difere em muito do número postado pela FGV IBRE que apregoou uma variação negativa de 0,61% ao longo dos últimos 12 meses. A pesquisa FipeZap recentemente publicada aponta uma evolução no valor dos aluguéis residenciais na ordem de 3,87% no aspecto nacional1. Contudo, entre as Capitais, destacou os avanços observados em Curitiba (14,17%), Florianópolis (11,59%), Recife (11,19%), Fortaleza (9,55%) e Belo Horizonte (7,17%). Dados preliminares da RAL - Rede Avançada de Locação, entidade que congrega as principais administradoras de imóveis no Brasil, apresentaram uma evolução no DF (5,11% ), Curitiba (7,5%), Florianópolis (14%), Goiânia (14,69%) e Fortaleza (17%). Nos próximos dias, a RAL apresentará o cenário em outras capitais do país. A considerar a favorável evolução do mercado imobiliário em 2021, não restam dúvidas que eles irão igualmente apresentar números muito distintos dos divulgados pela FGV IBRE, nas regiões em que a pesquisa foi desenvolvida. Nossas observações não se prestam a ofuscar o brilhante trabalho da FGV IBRE e principalmente a sua iniciativa. Somos claros em admitirmos a nossa total incapacidade de sugerir a mínima censura aos Institutos em apreço que gozam de enormes e relevantes serviços prestados à nação brasileira, sempre com muita probidade e indiscutível qualidade. Inobstante, como operadores do mercado locatício em região não pesquisada, crucial provocarmos uma breve discussão quanto as conveniências de uma migração dos novos contratos ao recente indexador criado, diante de tantas distinções mercadológicas no Brasil. Ao menos até que tenhamos medições regionais o melhor negócio ainda é confiarmos nos demais indexadores e no velho e conhecido: diálogo negocial! _____ 1 Disponível aqui. 
A Medida Provisória 1.085/2021 institui o sistema eletrônico de registros públicos - SERP e altera a Lei de Registros Públicos com o propósito de viabilizar o fluxo de informações, documentos e dados entre os serviços de registros públicos, além de adequar outras normas visando reforçar a segurança jurídica dos atos vinculados ao sistema registral, simplificar procedimentos e reduzir custos. Nesse contexto, a MP introduz alterações na lei 4.591/1964, pelas quais dispõe sobre os documentos que instruem o Memorial de Incorporação e a função do seu registro; explicita que a afetação da incorporação é cancelada por efeito do registro de cada compra e venda ou promessa de venda, à vista da comprovação do "habite-se" e da quitação do financiamento da construção da unidade correspondente; disciplina procedimento especial de destituição do incorporador, nas hipóteses em que a lei a admite, além de instituir outras normas relativas a essa atividade. Em relação à função do registro do Memorial de Incorporação, as alterações introduzidas no art. 32, suas alíneas, bem como a inclusão do § 1º-A, são justificadas pela necessidade de superar dificuldades decorrentes da divergências normativas de natureza administrativa e elucidar dúvidas interpretativas, que obstaculizam a atribuição de direitos reais aquisitivos aos adquirentes, dificultam o exercício de suas prerrogativas e os expõe a risco, sobretudo em situações de crise da empresa incorporadora.1 Sabendo-se que a incorporação imobiliária é caracterizada pela alienação de frações ideais de terreno e construção de conjunto imobiliário, resulta claro que o exercício dessa atividade tem como óbvio pré-requisito a divisão do terreno e a qualificação das frações ideais daí resultantes como objeto de direito de propriedade, mediante registro do Memorial de Incorporação no Registro de Imóveis competente (lei 4.591/1964, art. 32). Esse requisito atende ao princípio da especialidade do sistema registral e visa assegurar a atribuição de direito real aquisitivo a cada um dos adquirentes, pois os contratos de alienação imobiliária só são passíveis de registro, que confere direito real, se neles constar a identificação do imóvel tal como qualificado no Registro de Imóveis, sob pena de serem considerados "irregulares" e, portanto, insuscetíveis de registro que confira direito real (lei 6.015/1973, art. 225).2 A constituição desse regime especial é o principal efeito do registro do Memorial de Incorporação, como salienta Caio Mário da Silva Pereira: "a grande inovação instituída pela lei 4.591/1964 foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação (destaques do autor).3 Refere-se Caio Mário ao regime condominial especial,4 caracterizado pela individualidade e autonomia de cada uma das frações em que o terreno é dividido,5 em oposição ao condomínio geral, pro indiviso (CC, arts. 504, 1.314 e ss), sendo irrelevante que o condomínio tenha por objeto a copropriedade de edificação com "habite-se" ou de "terreno onde não houver edificação" como previsto no art. 8º da lei 4.591/19646, ou, ainda, de lotes de terreno sem construção, como prevê o art. 1.358-A do Código Civil, pois, como bem ilustra André Abelha, "o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário."7 Essas disposições legais deixam absolutamente claro que pouco importa a composição física do imóvel, daí porque "a instituição de condomínio é compatível com os casos em que a construção está ainda por fazer-se",8 não havendo qualquer objeção a que o objeto do direito de propriedade seja terra nua ou terreno com edificação averbada, pois, em qualquer desses casos, a propriedade do imóvel pode ser atribuída sob regime de condomínio geral, pro indiviso, ou de condomínio especial, por frações autônomas.9 No curso da construção em terreno sob regime condominial por frações autônomas, as acessões aderem ao solo e, quando concluída a obra, formarão unidades imobiliárias submetidas ao regime condominial já constituído pelo registro do Memorial de Incorporação, por efeito natural da averbação do "habite-se". Afinal, as acessões incorporam o regime jurídico do solo a que aderiram, isto significando que, se duas pessoas forem proprietárias de um terreno sob regime condominial geral (CC, art. 1.314) e nele construírem, ambas continuarão proprietárias da edificação pelo mesmo regime condominial a que estava sujeito o terreno. E se essas mesmas pessoas resolverem dividir o terreno em frações autônomas sob regime condominial especial, com via comum de acesso à rua, e nele construírem, a edificação será averbada em nome de ambos sob o mesmo regime de condomínio especial.    A par da interpretação da mais abalizada doutrina sobre o sentido e alcance do art. 32 da lei 4.591/1964, outras disposições dessa mesma lei confirmam as frações autônomas identificadas em forma decimal ou ordinária na matrícula do terreno, por efeito do registro do Memorial, são qualificadas como direito real condominial, que confere efetividade à norma do art. 35, § 4º,10 da lei 4.591/1964, segundo o qual a averbação (rectius, registro) da promessa de venda, ou mesmo das "cartas propostas" ou dos "instrumentos de ajuste preliminar" em nome dos adquirentes "conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente." É ainda com fundamento nessa qualificação que o art. 1.488 do Código Civil11 excepciona a regra da indivisibilidade da hipoteca constituída sobre o terreno e acessões, nas hipóteses em que o incorporador tiver tomado financiamento para construção do empreendimento. Nesse caso, o art. 1.488 do Código Civil (i) permite que a dívida global contraída pelo incorporador para esse fim seja desdobrada na proporção das frações ideais do terreno e (ii) limita a responsabilidade de cada adquirente à parcela da dívida vinculada à fração ideal adquirida.12 Esses são apenas alguns dos efeitos da constituição do condomínio especial mediante registro do Memorial de Incorporação, que repercutem amplamente na dinâmica da incorporação imobiliária, seja em relação aos interesses particulares dos adquirentes ou aos da coletividade dos contratantes. Vejam-se as situações de crise da empresa incorporadora, entre elas paralisação ou atraso da obra e falência, em que os adquirentes substituem o incorporador na gestão da incorporação. Nesses casos, a comissão de representantes dos adquirentes assume a gestão do empreendimento com o encargo e as prerrogativas previstas no § 1º do art. 31-F e nos incisos VI e VII do art. 43 da lei 4.591/1964, mas essas medidas só terão efetividade se os adquirentes tiverem sido investidos nos respectivos direitos reais, pois é essa qualificação que os habilita a deliberar sobre as matérias de interesse do condomínio (que o art. 31-F chama de "condomínio da construção") e a praticar os atos necessários à preservação do respectivo patrimônio, inclusive o leilão de unidades de estoque do incorporador ou de adquirentes inadimplentes, cujos efeitos reais (transmissão ao arrematante) dependem, obviamente, da existência de qualificação das frações autônomas como objeto de direito de propriedade. Mas, a despeito da expressa previsão legal de criação desses direitos reais por efeito do registro do Memorial de Incorporação, fundada nos princípios do sistema registral relacionados à transmissibilidade de direitos reais aos adquirentes, há normas estaduais segundo as quais esse regime especial só poderia ser constituído após o "habite-se". Parte-se da equivocada premissa de que só existiria condomínio se houvessem unidades dotadas de habitabilidade e não frações ideais autônomas, como se o objeto do condomínio fossem coisas materialmente consideradas, e não o direito de propriedade sobre coisas.   Essas e outras normas que negam a existência de condomínio especial antes do "habite-se" dão origem a inúmeras situações que agravam o estado de vulnerabilidade da posição contratual e patrimonial dos adquirentes, privando-os do exercício das suas prerrogativas, como são, por exemplo, os obstáculos para obtenção de CNPJ em nome do condomínio durante a construção, necessário para prosseguimento da obra ou liquidação da incorporação em caso de destituição do incorporador, inclusive no curso de recuperação judicial da empresa incorporadora, ou em caso de falência (lei 4.591/1964, arts. 31-A, § 1º, e 43, VI e VII). Para afastar esses e outros obstáculos, instituir procedimentos uniformes para todo o país, desburocratizar e reduzir custos, as alterações introduzidas pela MP 1.085/2021 priorizam a constituição do condomínio por simples efeito do registro do Memorial de Incorporação, como requisito essencial da segurança jurídica dos adquirentes na comercialização de imóveis a construir. Nesse aspecto, a MP reforça o conteúdo normativo da lei 4.591/1964, que já contemplava a caracterização dessa propriedade condominial e já assegurava a atribuição de direitos reais aquisitivos sobre as frações, com a autonomia própria desse regime especial. Entre os dispositivos alterados, destaca-se o caput do art. 32,13 que identifica como objeto da alienação na atividade da incorporação imobiliária as frações ideais do terreno e acessões, ao substituir a locução "negociar sobre unidades" por "alienar ou onerar as frações ideais de terreno e acessões". Alinhada à qualificação do objeto de alienação, assim definida, a alínea "i" do art. 32 explicita que as frações resultantes da divisão do terreno são dotadas de autonomia, ao dispor que o Memorial será integrado por "instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas." E, mais, o § 1º-A, incluído no art. 32 pela MP 1.085/2021, qualifica o registro do Memorial de Incorporação como modo de constituição do condomínio especial, ao dispor que "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e respectivas acessões a regime condominial especial", pois esse ato reúne e identifica com precisão e completude todos os elementos de caracterização do condomínio edilício definidos pelo art. 1.332 do Código Civil. De outra parte, o § 15, também incluído no art. 32 pela MP 1.085/2021, dispõe que o registro do memorial e do condomínio sobre as frações "constitui ato registral único", indicando que se trata de mera explicitação do efeito único e natural produzido pelo registro do Memorial definido no § 1º-A. Embora exprima essa obviedade, há quem entenda que o § 15 estaria se referindo a dois atos de registro, mas trata-se de falsa impressão, pois esse parágrafo dispõe "o registro do memorial (...) e da instituição (...) constitui", referindo-se a um só ato, pois, se quisesse referir-se a dois atos, diria "o registro do memorial (...) e o da instituição (...) constituem...". Mas, além disso, se, em afronta ao que dispõe o § 1º-A do art. 32, se considerasse que se trataria de cobrança de emolumentos, o § 15 estaria desafiando o velho adágio segundo o qual a lei não contém palavras desnecessárias, pois a cobrança de ato de registro único nas incorporações imobiliárias já está regulamentada pelo art. 237-A da lei 6.015/1973, segundo o qual as averbações ou registros posteriores ao registro da incorporação e até o "habite-se" "serão considerados como ato de registro único, não importando a quantidade de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes."14  A par desse aspecto, importa ter presente que, a despeito de a MP explicitar com clareza o modo de constituição dos direitos reais a serem ofertados à venda sob regime condominial, a diversidade terminológica empregada para esse fim poderia suscitar controvérsias e comprometer a aplicação prática da lei, daí porque talvez seja conveniente afastar esse risco pela uniformização, mediante adoção da expressão "condomínio edilício", consagrada no Código Civil, em lugar de "regime condominial especial" (art. 32, § 1º-A) e "condomínio por frações autônomas" (lei 6.015/1973, art. 213, § 10, II) empregadas pela MP. Como se vê, as alterações introduzidas pela MP 1.085/2021 na Lei 4.591/1964 conferem efetividade às normas sobre outorga de direitos reais aos adquirentes, viabilizando, assim, o exercício de suas prerrogativas, sobretudo em situações de crise da empresa incorporadora. Nesse sentido, ao explicitar que o registro do Memorial de Incorporação importa, por si só, na instituição do condomínio especial por unidades autônomas, a MP preserva o conteúdo normativo da lei 4.591/1964 e o reforça, corrige distorções interpretativas, simplifica procedimentos e reduz custos da incorporação imobiliária, incorporando ao ordenamento novos e decisivos mecanismos de segurança jurídica capazes de assegurar a realização do programa contratual, no interesse da coletividade  dos contratantes. Justifica-se, portanto, a legítima expectativa de que, com ajustes de forma que eventualmente venham a se mostrar necessários no curso dos debates no Congresso Nacional, as disposições da Medida Provisória 1.085/2021 aqui consideradas sejam convertidas em lei. __________ 1 Os mecanismos de controle e segurança jurídica da incorporação imobiliária são apreciados em trabalho publicado aqui. 2 Segundo Afrânio de Carvalho, a existência legal dos imóveis, que os torna passíveis de disposição, é determinada pela identificação no Registro de Imóveis com "sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro" (CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247). 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Condomínio e incorporações. 14. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 284/285. 4 "Havendo incorporação, será necessário realizar também a instituição de condomínio? Isso seria absurdo, pois a incorporação contém todos os elementos exigidos pela instituição de condomínio (cfr. art. 7º e art. 32/al. 'i') e implica necessariamente a declaração de vontade de instituir a propriedade horizontal. A solução só pode ser esta: a incorporação engloba uma instituição de condomínio, mas é mais do que uma instituição" (ASCENSÃO, Maria Teresa Pereira de Castro; ASCENSÃO, José de Oliveira. Instituição, incorporação e convenção de condomínio. Revista de Direito Civil (RT), v. 10, out.-dez. 1979, p. 143 e seguintes). 5 Diz-se condomínio especial para designar aquele integrado por unidades autônomas, caracterizado pela conjunção da propriedade individual e da copropriedade, em oposição ao condomínio geral. Há algumas espécies de condomínio especial, mas o Código Civil o regulamenta em capítulo intitulado "do condomínio edilício" e seu art. 1.331 se refere ao condomínio "em edificações". Há que se ter presente, contudo, que o objeto do condomínio é o direito de propriedade sobre o bem, e não o bem fisicamente considerado, de modo que o condomínio diz respeito à propriedade sobre conjuntos de casas, apartamentos etc, lotes de terreno urbano ou até mesmo poder jurídico sobre frações de tempo relativas a imóveis (multipropriedade). Em qualquer dessas hipóteses o condômino é titular de frações autônomas. 6 Lei 4.591/1964: "Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte". 7 Disponível aqui. 8 "Pensa-se por vezes que a incorporação se faz quando o edifício não está ainda construído, e a instituição de condomínio após a construção. Mas esse critério de distinção não pode ser verdadeiro, porque logo o art. 8º da Lei 4.591 prevê a instituição de condomínio em terreno onde não houver construção e se pretender erigir mais de uma. Logo, a instituição de condomínio é compatível com os casos em que a construção está ainda por fazer-se" (ASCENSÃO, Maria Teresa Pereira de Castro; ASCENSÃO, José de Oliveira. Instituição, incorporação..., cit.). 9 Tratamos do tema em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 6ª edição, 2022, no prelo, itens 1.4.3 e 2.1.1. 10 Lei 4.591/1964: "Art. 35. O incorporador terá o prazo máximo de 45 dias (...), para promover a celebração do competente contrato relativo à fração ideal de terreno ... (...). § 4º Descumprida pelo incorporador e pelo mandante de que trata o § 1º do art. 31 a obrigação da outorga dos contratos referidos no caput deste artigo, nos prazos ora fixados, a carta-proposta ou o documento de ajuste preliminar poderão ser averbados no Registro de Imóveis, averbação que conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente." 11 Código Civil: "Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito." 12 Código Civil: "Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa em exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação." 13 Lei 4.591/1964, com a redação dada pela MP 1.085/2021: "Art 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terreno e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (...). i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão. (...). § 1º-A O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e respectivas acessões a regime condominial especial investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independente de anuência dos demais condôminos. (...). § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações autônomas constitui ato registral único."   14 Lei 6.015/1973: "Art. 237-A. (...). § 1o  Para efeito de cobrança de custas e emolumentos, as averbações e os registros relativos ao mesmo ato jurídico ou negócio jurídico e realizados com base no caput serão considerados como ato de registro único, não importando a quantidade de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes."
Humanidade1, O gene egoísta2, Chasing the scream3 e O andar do bêbado4 são livros maravilhosos que mergulham em assuntos completamente distintos, mas que possuem uma curiosa interseção: todos eles, recheados de exemplos históricos, de passagens cotidianas e de experimentos famosos desconstruídos, revelam, com socos acachapantes, como somos presas fáceis do nosso senso comum, que nos faz errar - e muito - na avaliação de fatos e fenômenos naturais, humanos e jurídicos. Não é mera coincidência que uma incansável e inconformada coluna assinada por Lenio Luiz Streck se chame Senso Incomum.  Ao longo das últimas décadas sedimentou-se como concreto armado o entendimento, aparentemente lógico, de que o condomínio edilício, em termos jurídicos, somente surge após a conclusão da edificação ou do conjunto de edificações da incorporação imobiliária.  De acordo com as Normas Extrajudiciais da CGJ/SP, a instituição de condomínio será registrada mediante "a apresentação do respectivo instrumento ... acompanhado... do projeto aprovado e do "habite-se", ou do termo de verificação de obras em condomínio de lotes" (item 219). Na mesma toada de São Paulo, a Consolidação Normativa Notarial e Registral da CGJ/RS, que no art. 780 proíbe "abrir matrículas enquanto não averbada a edificação e registrada a instituição de condomínio". Os parágrafos 1º e 2º do referido artigo contradizem o caput, e permitem a abertura de matrícula, com "a ressalva de que se trata de obra projetada e pendente de regularização registral quanto à sua conclusão".  As normas das corregedorias estaduais em matéria extrajudicial são fruto do entendimento de magistrados atuantes na seara notarial e registral, e por serem emanadas do mesmo órgão que fiscaliza e pune, elas exercem um comando poderoso sobre os cartórios, a ponto de informalmente se dizer que na área prevalece a pirâmide de Kelsen, só que invertida, com as normas no topo.  Se, então, o condomínio edilício, segundo tal compreensão, somente nasce após o habite-se, as unidades imobiliárias negociadas pelos incorporadores no estande de vendas seriam, consequentemente, bens imóveis futuros. Pois sem condomínio edilício instituído não pode haver unidades imobiliárias juridicamente existentes, nem suas respectivas matrículas. O art. 483 do Código Civil seria o seu fundamento legal, ao permitir que a compra e venda tenha por objeto "coisa atual ou futura".  Mas espere um momento! Como se sabe, em matéria registral imobiliária, nenhum oficial pode registrar a venda de um terreno ainda não desmembrado, nem a venda de um lote em loteamento a registrar, nem a alienação de uma unidade autônoma de condomínio edilício ainda não instituído. Pois nesses três casos, a propriedade ainda não foi fracionada, e o bem resultante dessa divisão (área desmembrada, lote, unidade autônoma) não existe. Em outras palavras, o art. 483 se aplica aos bens imóveis, só que estritamente na seara obrigacional, sem efeitos reais. A transmissão de um imóvel futuro não é registrável.  Para escapar desse beco, fez-se um puxadinho hermenêutico5, a fim de viabilizar a anotação da venda no registro imobiliário: "Recomenda-se a elaboração de uma ficha auxiliar de controle de disponibilidade, na qual constarão, em ordem numérica e verticalmente, as unidades autônomas" (Normas Extrajudiciais da CGJ/SP, item 220). O resultado prático pode ser exemplificado na matrícula abaixo, em que se vê a sequência incorporação (R.03), ficha (Av.40), construção (Av.43) e instituição (R-45):    É irresistível reparar, no ato Av.43, que o condomínio foi instituído por instrumento particular. Ora, em que lugar do texto o art. 1.332 do Código Civil excepciona o art. 108 da mesma Lei, que exige escritura pública para atos que visem a criar direito real sobre imóvel de valor superior a 30 salários mínimos?  Eis que a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil (RFB) nº 1.863/2018, que regula a obrigatoriedade de inscrição no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (CNPJ), surge como um oásis no meio do deserto. No Anexo VIII, ao cuidar do condomínio edilício, a norma permite que o CNPJ seja aberto mediante apresentação da convenção de condomínio registrada "ou certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio". Essa mesma possibilidade consta das instruções normativas que a antecederam (IN RFB nº 1.634/16 e anteriores).  Contudo, jogou-se areia na fonte d'água milagrosa. Em vez de se admitir o condomínio edilício pré-habite-se, defende-se a ideia do curioso "condomínio da construção", cuja expressão consta do art. 31-F, §1º, inserido na Lei nº 4.591/64 em 2004, pela Lei nº 10.931/046. Note-se, porém, que essa é uma previsão específica para a hipótese de insolvência do incorporador, a fim de viabilizar o prosseguimento da obra paralisada, não sendo capaz de criar um tipo condominial além daqueles já previstos no Código Civil: condomínios necessário, voluntário, edilício e em multipropriedade.  E nem se diga que a RFB teria reconhecido a figura do "condomínio da construção" na IN nº 2021/2021, pois o art. 7º, XI, ao conceituar a "construção de edificação em condomínio", a define como "a construção em imóvel objeto de incorporação imobiliária de que trata a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, sob responsabilidade dos adquirentes das unidades" tão somente para atribuir ao "condômino da construção em condomínio" a responsabilidade pela regularização da obra (art. 8º, IV).  Apesar disso, a moda emplacou a ponto de alguns empreendimentos utilizarem essa expressão na própria denominação do condomínio. Perceba, contudo, caro leitor, que no campo respectivo do cartão CNPJ a Receita Federal do Brasil, corretamente, classifica tal figura jurídica como condomínio edilício:    Nesse contexto em que durante a incorporação não existiria condomínio edilício, quando muito, um "condomínio da construção", até mesmo a definição dos objetos dos contratos de alienação de unidades na planta passou a ser um problema. Há quem diga alienar fração ideal "e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas", e há quem venda a unidade imobiliária "a ser construída", ou "em construção", e sua respectiva fração ideal.  É como se assistíssemos a um concerto de instrumentos improvisados tocando notas desarranjadas. Não se trata de mera discussão acadêmica. Este tema, tal como hoje majoritariamente concebido, gera consequências sérias, distorcendo o sistema e dificultando o registro de empreendimentos imobiliários que pretendam adotar certas estruturas que dependam do reconhecimento do condomínio na fase anterior ao habite-se. Todos perdem.  Como nadar contra essa violenta corrente da intuição? Seria muita presunção esperar que este artigo seja capaz de convencer alguém a mudar uma visão tão arraigada, quase pacífica e sedimentada em normas extrajudiciais país afora. Há, ainda assim, luz no fim do túnel.  A Consolidação Normativa da CGJ/RJ prevê, de modo alvissareiro, que "a matrícula de unidade autônoma condominial em construção ou a construir, decorrente de incorporação imobiliária, será aberta quando do primeiro registro a ela referente". Em Minas Gerais, o art. 1.038 do Código de Normas da CGJ/MG estabelece que a "instituição do condomínio prescinde da averbação da construção". Na Bahia, o art. 1.398 das Normas Gerais da CGJ/BA, que antes exigia o habite-se, foi alterado para retirar esse requisito7.  Isto é, ao menos em três Estados é possível criar matrícula de unidade autônoma durante a fase de construção, sem pendência de regularização (a exemplo do Estado do RS), como demonstra o exemplo a seguir:   Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia não estão sozinhos. O Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registro da CGJ/PA, prevê com todas as letras que "a instituição do condomínio prescinde da averbação da construção e deverá ser registrada até a data da consolidação da incorporação imobiliária, que se dará em caso de venda ou promessa de venda de ao menos uma das unidades autônomas, contratação da construção ou decorrência de prazo no registro do empreendimento sem que a incorporação tenha sido denunciada pelo incorporador" (art. 1.072).  Aliás, isso faz - ou melhor, deveria fazer - todo o sentido, porque a regra, disposta em lei federal - hierarquicamente superior a uma norma administrativa, segundo a clássica lição de Kelsen -, não exige a prévia conclusão da obra para a instituição do condomínio edilício. Assim era com o art. 7º da Lei nº 4.591/64, e assim permanece com seu sucessor, o art. 1.332 do Código Civil, que elenca três requisitos para o ato de instituição, nenhum deles referentes à construção.  O art. 44 da Lei nº 4.591/64, ao contrário do que uma interpretação literal poderia levar equivocadamente a crer, não trata da instituição do condomínio. O que se extrai desse artigo, em uma interpretação coerente com o sistema jurídico, é que a averbação do habite-se encerra a incorporação imobiliária e altera a qualificação registral das unidades autônomas. Apenas isso. O bem imóvel existente, presente e "a ser construído", transforma-se em bem imóvel existente, presente e construído. Da mesma forma que a pessoa jurídica não precisa de corpo físico, e sua "existência legal" começa "com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro" (CC, art. 45), o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário (CC, art. 1.332).  Durante muitos anos a possibilidade de uma incorporação imobiliária de condomínio de lotes foi controversa. O principal ingrediente nessa discussão era justamente o fato de as casas não estarem ainda construídas sobre os terrenos. Havia Estados como São Paulo que o proibiam, enquanto em outros lugares sua adoção era plenamente admitida. A insegurança jurídica imperava, e foi necessário o advento do art. 1.358-A do Código Civil, trazido pela Lei nº 13.465/17, para o reconhecimento nacional desse filho bastardo8.  Sim, podemos avançar para admitir de uma vez por todas a instituição do condomínio edilício pelo incorporador na fase anterior à construção. Sem inventar a roda. Na doutrina, encontramos ninguém menos que Melhim Chalhub, ombreado com José de Oliveira Ascensão, admitindo esse caminho, ao escrever que o condomínio "pode incidir sobre o terreno sem construção, como expressamente prevê o art. 8º, ao referir-se ao condomínio sobre 'terreno onde não houver edificação', deixando claro que a instituição do condomínio é compatível com os casos em que a construção ainda está por fazer-se"9.  Insisto neste ponto: é um fato incontroverso que as acessões a serem executadas no empreendimento são inequivocamente futuras. Porém, enquanto não realizadas pelo incorporador, estas não integram o bem principal, que é a unidade autônoma e sua respectiva fração ideal. No fundo, a discussão sobre o objeto da alienação (fração ideal e acessões que corresponderão às futuras unidades versus unidade a construir e sua respectiva fração ideal) é essencialmente semântica. Entretanto, tal semântica reforça precisamente o senso comum combatido neste artigo, e por isso, se ela pode ser evitada, é melhor que o seja.  Até mesmo o embate sobre o condomínio unipessoal já parece ter ficado para trás: na propriedade horizontal o que se exige é a pluralidade de unidades autônomas, e não de proprietários. O Enunciado 504 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na 5ª Jornada de Direito Civil, dispõe que "a escritura declaratória de instituição e convenção firmada pelo titular único de edificação composta por unidades autônomas é título hábil para registro da propriedade horizontal no competente registro de imóveis, nos termos dos arts. 1.332 a 1.334 do Código Civil"10.  Isto significa que, se superarmos o atual senso comum, incorporadores em todo o país poderão lançar os empreendimentos com os condomínios edilícios já instituídos, e poderão aprovar e registrar as convenções antes ou durante a obra. Isso dispensaria as fichas, permitiria a abertura de matrículas, tornaria inócua a discussão sobre a existência do "condomínio da construção", facilitaria a inscrição no CNPJ, simplificaria a abertura de contas bancárias e tornaria o sistema muito mais coerente, simples e eficiente, com benefícios para todos os interessados.  Se a incorporação não chegar ao fim, o que fazer com as matrículas de unidades a construir já abertas? Bem, nesse caso será preciso, após solução para os direitos já registrados, promover o cancelamento de tais matrículas, retornando-se ao status quo ante. Frise-se: não é preciso olhar para o futuro, já temos laboratórios a céu aberto funcionando há décadas, pois como já referido e exibido por imagem, em alguns Estados permitem-se as matrículas antes do habite-se, e o mecanismo nunca travou por conta disso.  No Pará aguarda-se o prazo da denúncia da incorporação para somente então autorizar o registro da instituição do condomínio. O espírito da regra, entretanto, é a eficiência administrativa, evitando-se a abertura de matrículas cujo cancelamento pode ocorrer com maior probabilidade, o que chega a ser louvável.  Enfim, por qualquer ângulo que se analise a questão, não consigo chegar a outra conclusão senão a de que a proibição administrativa, via norma extrajudicial, de registro da instituição do condomínio edilício antes da construção do empreendimento, é medida que precisa ser revista o quanto antes.  O que se, propõe, portanto, é que as normas extrajudiciais estaduais sejam adequadas para: (i) autorizar o registro da instituição do condomínio edilício na sequência do registro da incorporação imobiliária, tão logo encerrado o prazo de carência previsto no art. 34 da Lei 4.591/64, independentemente de habite-se; e (ii) determinar, em decorrência do art. 108 do Código Civil, que o ato de instituição seja celebrado por escritura pública. Se não podemos mudar a direção do vento, que façamos um pequeno ajuste de velas para navegarmos na direção correta.  Reparem que tal adequação pode ser promovida independentemente do entendimento sobre a natureza da unidade autônoma durante a fase de construção (se é bem presente ou futuro), pois de uma forma ou de outra o sistema pode funcionar bem. O essencial é o reconhecimento em todo o território nacional da possibilidade de instituição, na origem, do condomínio edilício.    E o melhor de tudo: como a solução já decorre do próprio ordenamento, nem sequer necessitamos de lei nova. O Conselho Nacional de Justiça, que hoje tem a competência para tanto11, pode editar um ato que permita a cada Estado ajustar sua própria norma, homogeneizando e simplificando procedimentos em todo o Brasil, e com isso promovendo o aumento da segurança jurídica e a melhora do ambiente de negócios, abrindo as portas para novas estruturas jurídicas nas incorporações imobiliárias. Ganharão o mercado e o Direito Imobiliário. Quem sabe um dia.    ______________ 1 BREGMAN, Rutger. Humanidade: uma história otimista do homem. São Paulo: Planeta, 2021. 2 DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 3 HARI, Johann. Chasing the Scream: the first and last days of the war on drugs. Londres: Bloomsbury Publishing PLC, 2019. 4 MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009 5 A expressão é de Anderson Schreiber, em seu livro Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: SaraivaJur, 2018, p. 247-248. 6 Art. 31-F (...) §1º. Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembleia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora. (g.n.) 7 Sublinhe-se que agora, mesmo quando a instituição do condomínio ocorre sem incorporação imobiliária, o habite-se deixou de ser exigido, bastando a apresentação (i) do memorial descritivo com as especificações da obra e individualização das unidade autônomas, (ii) do projeto arquitetônico aprovado pelo Município, (iii) do quadro de custos das unidades autônomas e a planilha de áreas e frações ideais, subscrita pelo engenheiro responsável pelo cálculo, elaborada de acordo com a norma técnica vigente, e (iv) da ART ou RRT relativa à execução da obra. 8 ABELHA, André. A nova lei 13.465/2017 (Parte I): o condomínio de lotes e o reconhecimento de um filho bastardo. Disponível aqui. Acesso em 13.12.2021. 9 CHALHUB, Melhim Namen. Incorporação imobiliária. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 63. O trecho de Ascensão mencionado pelo autor é o seguinte: "Pensa-se por vezes que a incorporação se faz quando o edifício não está ainda construído, e a instituição do condomínio após a construção. Mas esse critério de distinção não pode ser verdadeiro, porque logo o art. 8º da Lei 4.591 prevê a instituição de condomínio em terreno onde não houver construção e se pretende erigir mais de uma. Logo, a instituição de condomínio é compatível com os casos em que a construção ainda está por fazer-se" (Ob. cit., p. 38-39, nota de rodapé nº 8). 10 Pontes de Miranda há muito já defendia essa possibilidade: "A declaração de vontade para dividir em apartamentos o edifício pode ser unilateral, e não importa se o declarante é uma só pessoa, ou duas, ou mais" (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Civil. São Paulo: RT, 2012, t. XII, 1.335, 8). No mesmo sentido, Melhim Chalhub, logo antes de citar o mesmo Pontes de Miranda: "Nada obsta a que o proprietário único da totalidade de um edifício composto de várias unidades o divida em frações autônomas com suas correspondentes unidades imobiliárias e firme o respectivo instrumento de constituição" (Ob. cit., p. 38).   11 EC 45/2004, art. 5º, §2º c/c art. 8º, X, da Resolução CNJ nº 67/2009.
A regulação das águas públicas (mar, rios e lagos) enfrenta dificuldades conceituais e está imbricada com o polêmico tema dos terrenos de marinha e terrenos marginais, incertezas de limites entre o direito público e o privado e, ainda, conflitos de normas sobre a matéria. O uso do chamado espelho d'água é inerente a uma gama de atividades, exercidas notadamente nos portos, estaleiros, terminais pesqueiros, plataformas, marinas e clubes náuticos dotados de decks, atracadouros, píeres, fingers, dolphins, além de pontes e outras estruturas. O mar, lagos e rios são bens de uso comum do povo, conforme art. 99, I do CC e não dominicais (art. 99, III, do CC). O mar é de titularidade da União, assim como os rios e lagos federais, conforme artigo 20, incisos III e VI da CF/88.1 Pelo uso privativo dos espaços sobre águas públicas (ou apenas espelho d'água), a União cobra uma contraprestação dos particulares, além de multas para as obras e atividades consideradas irregulares, sem prejuízo das exigências para autorização dessas estruturas sobre as águas. A Instrução Normativa 87/20/SPU traz a regulamentação para as estruturas náuticas, enquanto a portaria 7.145/18/SPU regula os procedimentos específicos de intervenção sobre águas nos portos e suas instalações. Contudo, há falhas conceituais na regulamentação da União no que concerne aos critérios de cobranças, multas e exigências, bem como em relação aos atos normativos adotados, pois não é tema a ser tratado por simples instruções normativas e portarias. Sem embargo, no nosso entender há incompetência da SPU para regulação da matéria, por haver normas especiais que regem o tema, além da natureza jurídica do mar não condizer com as exigências impostas pela administração. De início, a União demonstra que não calibrou corretamente a regulamentação, pois as mesmas exigências para um empreendimento de grande porte são direcionadas a pescadores, marinas particulares e estruturas náuticas de menor vulto. Ademais, há graves impropriedades nas normativas editadas pela União, cuja análise aprofundada não é nossa pretensão nestas breves linhas.  Leis especiais e competência Especificamente na atividade portuária exercida nos portos organizados, a autoridade portuária é quem reserva, destina ou declara a disponibilidade do espelho d'água, conforme art. 7° da portaria SPU 7.145/2018. Nos chamados terminais de uso privativo, que são aqueles localizados fora da poligonal do porto organizado, a cessão é efetuada de forma individualizada. No que tange ao uso das áreas públicas e privadas ou alodiais, a competência para as aprovações e licenças no setor portuário é da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários e Agência Nacional de Transportes Aquaviários, conforme leis 11.518/07 e 12.815/13. Em relação às áreas em terra, é a SPU que possui competência em se tratando de terrenos de marinha e seus acrescidos, além dos terrenos marginais e outros imóveis de domínio da União, nos termos do decreto-lei 9.760/46. Antes mesmo da celebração do respectivo contrato com o poder concedente, a ANTAQ exige certidão de disponibilidade do espelho d'água, mediante apresentação de plantas e memoriais das poligonais, identificação das áreas secas e demais requisitos da portaria, a fim de mitigar discussões com titulares de áreas lindeiras e disputas pelo uso das áreas molhadas. Por seu turno, a instrução normativa SPU 87/20 (mais genérica que a portaria 7.145/18) não esclarece o que seriam estruturas náuticas propriamente ditas e o que seriam estruturas de apoio à navegação. Também não se sabe ao certo se o uso de águas públicas integraria ou não as áreas de fundeio, muitas vezes utilizadas para uma única operação pontual. Enquanto não há regulação clara, empreendedores não sabem sequer quais operações ou empreendimentos estão sujeitos à análise da SPU, o que gera o risco de multas, embargos e cobranças a título de contraprestação pelo uso de espaço sobre as águas através de procedimentos administrativos, inscrição em dívida ativa e contratos de cessão - na maioria das vezes onerosa - para as estruturas que a União entende regulares. Outra impropriedade reside no fato de haver lei Federal específica e ampla regulamentação das estruturas náuticas, como marinas, clubes, condomínios e hotéis, e que estão reguladas imprópria e genericamente pela IN referida. Assim, em se tratando de estruturas sobre as águas alheias à atividade portuária, a lei 9.537/97 é a norma de regência, com atribuições e competência da Marinha do Brasil fixadas em seu art. 4°2, além de meticulosa regulamentação pela NORMAM 03-DPC, dentre outras normas regulamentadoras. Nesse contexto, o art. 2°, §20 da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que, a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior, e na hipótese analisada não há sequer lei, mas simples portaria e instrução normativa. E o inciso X do art. 22 da CF/88 reza que compete privativamente à União legislar sobre regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial; e em decorrência dessa competência legislativa privativa é que foi editada a lei 9.537/97, atribuindo à Marinha do Brasil, e não à SPU a elaboração de normas sobre navegação, atracação e fundeio3, ex vi do seu art. 4°, inciso I e criteriosa regulamentação pelas NORMAM's, que incluem as estruturas construídas sobre o espelho d'água. Da natureza jurídica dos mares, rios e lagos A conduta da União fere a própria natureza jurídica das águas federais, pois trata tais bens como se dominicais fossem. O art. 2° do Código de Águas define o mar territorial como bem de uso comum do povo, assim como o art. 99, I do CC e artigo 20, incisos III e VI da CF/88. Já o art. 40 do Código de Águas reza que em lei ou leis especiais (e não em meras portarias e instruções normativas), serão reguladas a navegação ou flutuação dos mares territoriais das correntes, canais e lagos do domínio da União. E o acesso às águas, que pressupõe as rampas, atracadouros e demais estruturas é bem defendido por Afranio de Carvalho: "As águas públicas são de uso comum, pelo que seu acesso é livre a todos, desde que não alterem a sua quantidade e sua qualidade. A navegação, principal uso das águas, não altera nem uma nem outra."4 Não se discute a propriedade das águas públicas, cuja afetação ao domínio público independe de um ato da administração, bastando a verificação de sua natureza. Nesta quadra o entendimento de Garrido Falla: "No obstante, há de tenerse em cuenta que, em relación com los bienes de la primera de las citadas categorías (los destinados al uso público), puede hablarse en ciertos casos de uma afectacíon por razón de la naturaleza del bien. En estos casos basta con que la Ley declare el carácter de bienes de dominio público de los de una naturaleza determinada (zona marítimo-terrestre, ríos, minas...) para que todos los que participan de ella vengan a integrarse em el dominio. Para saber se uma corriente de agua es de dominio público nos es necesario indagar la existencia de un acto administrativo de afectación formal al uso público, sino que basta con que natulamente sea um río."5 Nessa esteira, conclui-se que a União somente possui o domínio político sobre os mares, rios e lagos. Não possui domínio patrimonial propriamente dito, pois o mar não é bem dominical, passível de cobranças como foros e taxas de ocupação. Aliás, não há correspondência da lei 9.636/98 com as águas públicas e seu domínio. Tudo isso é importante para entendermos que a retribuição pretendida pela União somente seria devida para atender despesas de conservação do bem, como no caso de uso de bens de uso comum do povo, como museus e parques, mas cujos valores podem ser destinados apenas à sua conservação, conforme art. 103 do CC. Quanto às águas públicas, será necessária uma construção firme da União para evitar mais insegurança jurídica, não sendo factível, tanto sob o ponto de vista jurídico, quanto pelo ponto de vista ético, tratar o bem de uso comum do povo como se um bem dominical fosse. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, bem define os bens dominicais, que são aqueles que possuem função financeira: "1 - comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; 2 - submetem-se a regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado."6 Acresce que tanto o STJ quanto os TRFs consideram válidas as cobranças de taxas patrimoniais (foro, taxa de ocupação e laudêmio) pelo fato de haver retribuição pelo uso do bem público dominical, nunca sobre bem de uso comum do povo. E para apurar o valor da retribuição pelo uso do espelho d'água, a SPU utiliza como critério a avaliação da área em terra do ocupante ou foreiro. Esse dito preço público - expressão contida nos próprios contratos de cessão - seria obrigatório aos olhos da União, vulnerando a jurisprudência do STF, firme quanto ao fato da cobrança ser facultativa nesses casos.7 Limites normativos de portarias e instruções normativas A cobrança criada por atos infralegais não pode recair sobre qualquer empreendimento, ainda mais sobre aqueles cujas atividades são inerentes ao uso dos espaços físicos em águas contíguas às áreas secas de titularidade de particulares, ainda que a título precário, ante os princípios da segurança jurídica e da intangibilidade do ato jurídico perfeito. Simples portarias e instruções não podem sobrepor-se a leis Federais, por serem normas internas e que não devem atingir particulares. Portaria não pode criar novos direitos ou obrigações não estabelecidos no texto legal. Sobre as portarias, Hely Lopes asseverou: "As portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração pública".8 Assim, devem ser levados em conta os estritos limites das normas infralegais e o estrago regulatório que a União criou com a edição desses simples atos administrativos, que criaram exação e maior insegurança jurídica a importantes setores de desenvolvimento. Conclusão A matéria é vasta e nosso objetivo não é esgotar o tema nestas breves linhas. Tanto os novos projetos quanto empreendimentos consolidados são alvo de ingerências da Secretaria do Patrimônio da União, que atrasa o desenvolvimento imobiliário e aumenta o risco e custo Brasil para setores estratégicos da economia, enquanto não editadas normas claras sobre o uso dos espaços em águas públicas, em consonância com a natureza jurídica do mar, rios e lagos federais, e respeito ao indissociável uso desses espaços em relação às respectivas áreas em terra. ______ 1 "Artigo 20: São Bens da União: III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio, ou que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. VI - o mar territorial;" 2 "Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: I - elaborar normas para: b) tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, bem como sua entrada e saída de portos, atracadouros, fundeadouros e marinas; (...) i) cadastramento e funcionamento das marinas, clubes e entidades desportivas náuticas, no que diz respeito à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação no mar aberto e em hidrovias interiores; VII - estabelecer os requisitos referentes às condições de segurança e habitabilidade e para a prevenção da poluição por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio;" 3 'Área de fundeio, também conhecida como atracadouro ou fundeadouro, pode ser definida como local pré-estabelecido e regulamentado pela autoridade marítima onde uma embarcação pode lançar âncoras.' - Fonte: disponível aqui.  4 Águas Interiores, suas margens, ilhas e servidões - São Paulo: Saraiva, 1986 - pág. 8 5Tratado de derecho administrativo. 11ª ed. Madrid: Tecnos, 2002 - p. 470 6 Direito administrativo brasileiro - 18ª, São Paulo: Atlas, 2005 - p. 492 7 RE 916809 AgR, Relator: EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 16-02-2016  PUBLIC 17-02-2016 8 Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192 9 Portaria 7.145 de 13 de julho de 2018. Disponível aqui.  10 Portaria 87 de 1 de setembro de 2020. Disponível aqui.  11 Portaria 404 de 28 de dezembro de 2012. Disponível aqui.  12 Lei 9.636 de 15 de maio de 1998. Disponível em aqui. 13 Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui.  14 Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível aqui.  15 Lei 11.518 de 05 de setembro de 2007. Disponível aqui.  16 Decreto-Lei 2.398/87. Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Lei 12.815 de 05 de junho de 2013. Disponível aqui.  19 STF - Pleno, RE 556.854, Min. Cármen Lúcia, DJ. 11.10.11 Disponível aqui. 20 RE 916809 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 16-02-2016  PUBLIC 17-02-2016. Disponível aqui.  21 CARVALHO, Afranio de - Águas Interiores, suas margens, ilhas e servidões - São Paulo: Saraiva, 1986 - pág. 8. 22 DI PIETRO, Maria Sylvia Zenalla - Direito administrativo brasileiro - 18ª, São Paulo: Atlas, 2005 - p. 492. 23 FALLA, Fernando Garrido - Tratado de derecho administrativo. 11ª ed. Madrid: Tecnos, 2002 - p. 470. 24 MEIRELLES, Hely Lopes - Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192.
Recente artigo publicado pelos professores Fernando Rodrigues Martins, Guilherme Magalhães Martins e Claudia Lima Marques1 nos dá conta de que tramitam no Poder Executivo Federal duas propostas de medidas provisórias, concebidas e gestadas no Ministério da Economia, que colocam em xeque o sistema registral imobiliário nacional, alteram a disciplina das garantias reais e vão de encontro à louvável e também recente iniciativa legislativa de combate ao superendividamento (lei 14.181/20212), abrindo caminho para uma "bolha imobiliária à brasileira", à semelhança da que se verificou nos Estados Unidos em 20073. Em busca de maiores detalhes sobre tais propostas, tivemos acesso às respectivas minutas e analisamos detidamente todos os dispositivos das pretensas medidas provisórias. A partir desse estudo, pudemos concluir, dentre outras coisas, que, além dos problemas apontados pelos referidos articulistas, há outros de ordem bastante prática e não menos importantes, a exemplo da dificuldade que a aprovação das duas medidas traria para a cobrança dos débitos relativos às contribuições condominiais, algo muito frequente nos médios e grandes centros urbanos. Antes de adentrarmos no problema envolvendo os condomínios edilícios, parece-nos importante registrar que, a despeito do que sugerem os mencionados professores que publicaram o artigo que despertou nosso interesse, os novos institutos jurídicos idealizados pelas duas propostas de medidas provisórias, a nosso ver, não introduziriam em nosso sistema o denominado home equity. No artigo em comento, seus autores afirmam que "há a expectativa do mercado de que o home equity (...) aumentará a segurança jurídica das instituições financeiras para o fornecimento de créditos aos consumidores, o que possibilitará, via de consequência, a sempre sonhada redução de juros no setor financeiro e imobiliário". Todavia, esse é um discurso que é reproduzido no Brasil há anos e que foi muito entoado - com poucos resultados práticos - especialmente na segunda metade da década de 90, com o advento da denominada Lei da Alienação Fiduciária - lei 9.514/19974. Ousamos afirmar que os novos institutos gestados pelas duas propostas de medidas provisórias não instituiriam no Brasil o denominado home equity porque, conforme afirmam os próprios articulistas, tal instituto seria um "empréstimo de pessoa natural garantido pelo imóvel residencial, mesmo que bem de família". Traduzindo para os institutos jurídicos brasileiros, podemos afirmar que, guardadas as particularidades dos ordenamentos jurídicos estrangeiros, notadamente o norte-americano, home equity não é uma novidade para nós, sendo uma modalidade de empréstimo há décadas utilizada em nosso país, antes por meio da hipoteca, e mais recentemente por meio da alienação fiduciária em garantia. Há sutis diferenças, é claro, até porque os Estados Unidos é um país de tradição jurídica alicerçada na common law, enquanto o ordenamento jurídico brasileiro é tradicionalmente calcado na civil law. Conforme as lições de Melhim Challub5, home equitiy, no jargão do mercado, são os empréstimos sem destinação específica, justamente dentro desse contexto em que o imóvel residencial do mutuário é dado como garantia do negócio. Fica claro, portanto, que se trata de um instituto desde há muito presente na realidade brasileira. Mas, afinal, do que tratam essas duas propostas de medidas provisórias que tanto desconforto têm provocado na comunidade jurídica, conforme facilmente pudemos constatar em conversas com colegas acadêmicos? A primeira das propostas procura criar o denominado serviço de gestão especializada de garantias, que viabilizaria a criação das chamadas IGG (Instituições Gestoras de Garantias), em síntese, instituições financeiras que, também no exercício de tal mister, ficariam subordinadas e seriam fiscalizadas pelo BC (Banco Central) e pelo CMN (Conselho Monetário Nacional). A segunda proposta busca criar um novo título de crédito, o chamado TPI (Título de Propriedade Imobiliária). Curiosamente, essa segunda proposta, em seu artigo 12, pretende alterar a redação do inciso I do artigo 2º da primeira proposta, a fim de que conste, em tal dispositivo, não apenas "gestão administrativa das garantias", mas "gestão administrativa das garantias constituídas diretamente sobre bens imóveis ou móveis, ou sobre títulos representativos de cotas de propriedade de bens móveis ou imóveis" como uma das atividades a cargo das IGG. De fato, é no mínimo curioso que, em se tratando de ainda propostas de medidas provisórias que se interrelacionam e se complementam, uma tenha que alterar a redação da outra. Ora, se são apenas propostas sendo gestadas e se estão intimamente ligadas uma à outra, em perfeita harmonia, por que já não dar a redação pretendida diretamente na respectiva proposta? Trata-se, a nosso ver, de mais uma das tantas mazelas do complexo e imperfeito processo legislativo brasileiro. Outro exemplo dessas mazelas é que os temas tratados nas duas propostas flagrantemente não preenchem os requisitos de relevância e urgência exigidos pelo artigo 62 da Constituição Federal de 19886, dispositivo esse que vem há décadas sendo violado impunemente pelo Poder Executivo Federal. Seja como for, o fato é que as duas propostas procuram criar um novo título de crédito, o TPI, que seria de fácil circulação no mercado de capitais, mediante a gestão especializada das IGG, subordinadas e fiscalizadas pelo BC e pelo CMN. Esse sistema desburocratizaria e tornaria mais dinâmica a circulação econômica do sistema de garantias creditícias, facilitando e dando mais segurança ao processo de concessão de financiamentos, o que, em última análise, reduziria - ao menos em tese - as taxas de juros, gerando mais negócios e aquecendo a economia. O que se tem alardeado na comunidade jurídica é que tais medidas praticamente eliminariam o atual sistema registral imobiliário brasileiro, exercido pelos Cartórios de Registros de Imóveis sob rigorosas normas e fiscalização do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça, transferindo-o para agentes do mercado financeiro, que estariam sob uma fiscalização muito mais flexível e juridicamente frágil, exercida pelo BC e pelo CMN. Com todo o respeito a quem pensa de modo diverso, não é bem disso que se trata, pois o artigo 6º da segunda proposta de medida provisória assim preceitua: Art. 6º A emissão do TPI deverá ser averbada no registro de imóvel competente que fará constar da matrícula do imóvel a sua emissão, a instituição do regime de depósito centralizado do TPI, bem como a transferência da titularidade do TPI para o depositário central. Como se vê, a emissão do pretenso novo título de crédito necessariamente teria de ser averbada no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar de tal averbação informações acerca de qual seria a IGG responsável pelo depósito e gestão do TPI. Não queremos com isso dizer que as propostas são boas e harmônicas com o nosso atual ordenamento jurídico, muito pelo contrário, mas nos parece excessivo dizer que os projetos em gestação simplesmente eliminariam o atual sistema registral imobiliário brasileiro, transferindo-o para agentes financeiros. De fato, as propostas nos parecem perigosas, pois flexibilizam o princípio da concentração dos atos registrais na matrícula do imóvel - consagrado pelos artigos 54 a 58 da lei 13.097/20157 -, assegurando que haja publicidade adequada apenas acerca da emissão de TPI onerando o imóvel registrado, mas retirando da matrícula do imóvel relevantíssimas informações, especialmente acerca da atual titularidade do título cambial em questão, já que a gestão e a escrituração da respectiva circulação estará a cargo do mercado financeiro, especificamente de uma IGG. Tais propostas certamente provocam insegurança jurídica e burocratizam a obtenção de informações essenciais sobre os imóveis, já que os interessados teriam de buscar tais dados não apenas no Cartório de Registro de Imóveis, mas também na IGG responsável pelo depósito e pela gestão do TPI emitido. Mas, em se tratando de processo legislativo brasileiro, nada é tão ruim que não possa piorar. O artigo seguinte da mesma minuta, ou seja, o artigo 7º da segunda proposta de medida provisória, assim preceitua: Art. 7º A partir da emissão da TPI todas as operações de crédito relacionadas ao imóvel associado ao TPI deverão ser registradas no sistema de depósito autorizado em que o título estiver escriturado e depositado, ficando vedada a negociação ou qualquer tipo de oneração do imóvel enquanto da existência do TPI e operações relacionadas, cabendo a realização de ônus e gravames sobre o imóvel, inclusive bloqueios administrativos ou judiciais ou quaisquer constrições decorrentes de quaisquer dívidas ou obrigações do proprietário do imóvel, exclusivamente com base nas TPIs, por meio do sistema de depósito (grifos nossos). Trata-se, a nosso ver, de uma verdadeira aberração jurídica, caracterizando inclusive uma flagrante ofensa ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, pois, dentre outras atrocidades, o dispositivo em questão sugere que uma penhora, por exemplo, não poderia ser averbada na matrícula do imóvel, devendo ser levada a efeito exclusivamente com base nos TPI, por meio do sistema de depósito, gerido pelas IGG. O que se percebe, portanto, é que as duas propostas de medidas provisórias sob análise efetivamente são perigosíssimas e estão em dissonância com o nosso ordenamento jurídico, mas não exatamente pelos motivos propagados até aqui, mas por outras e talvez até mais graves razões. Como um dos inúmeros exemplos dos impactos negativos que adviriam da aprovação dessas propostas, poderíamos citar os desafios que os condomínios edilícios passariam a enfrentar para promover a cobrança de débitos de contribuições condominiais, que, como sabemos, têm natureza propter rem. Com efeito, Flávio Tartuce8 leciona que "nunca se pode esquecer que as despesas condominiais constituem obrigações propter rem ou próprias da coisa, denominadas obrigações ambulatórias, pois seguem a coisa onde quer que ela se encontre". Além de ter de buscar informações sobre a titularidade dos direitos sobre o imóvel nos Cartórios de Registro de Imóveis, os condomínios edilícios teriam também de buscar informações junto às IGG, quando houver algum TPI emitido com lastro no imóvel em relação ao qual existiriam os débitos. Como se não bastasse, os condomínios edilícios ainda enfrentariam sérios entraves por ocasião da execução de seus créditos, tradicionalmente satisfeitos por meio da penhora e alienação em hasta pública do próprio imóvel que gerou os débitos. A partir da exegese do já referido e malfadado artigo 7º, tal satisfação teria que se dar por meio do sistema cambial de TPI, gerido por uma IGG. Em outras palavras, a garantia da satisfação dos débitos condominiais, antes consubstanciada no próprio imóvel, passaria a ser representada por um papel, por um título de crédito. Trata-se, a nosso ver, de um grande retrocesso, pois reinseriria no contexto da cobrança condominial a insegurança jurídica que já pairou, por exemplo, acerca de quem seria o responsável pelo débito condominial, se o titular do domínio no registro de imóveis ou o compromissário comprador, assim qualificado por um instrumento particular não levado a registro. Depois de muitas idas e vindas, o tema se pacificou em 2015, quando o STJ9 firmou a tese de que "havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto". Dúvidas e insegurança jurídica também já houve acerca de despesas condominiais envolvendo imóvel gravado por alienação fiduciária em garantia. A responsabilidade pelo pagamento seria do credor fiduciário ou do devedor fiduciante? A solução acabou sendo dada pelo § 8º do artigo 27 da já referida Lei da Alienação Fiduciária, parágrafo esse incluído pela lei 10.931/200410, que estabeleceu que o devedor fiduciante é o responsável, dentre outras, por tais despesas, até a data em que o credor fiduciário vier eventualmente a ser imitido na posse do imóvel. Todavia, para o nosso espanto ainda maior, o § 2º do artigo 10 da segunda proposta de medida provisória, que pretende criar o TPI, assim preceitua: "Não serão aplicáveis no processo de execução relacionados ao TPI os artigos 26, 26-A, 27 e 30 da lei 9.514, de 1997". Ou seja, acaso aprovadas as infelizes propostas de medidas provisórias sob análise, não mais se aplicaria, pelo menos não na execução de débitos condominiais envolvendo imóvel gravado por TPI, a solução quanto à responsabilidade do devedor fiduciante até a imissão do credor fiduciário na posse do imóvel, haja vista que tal solução está inserida justamente num parágrafo, o 8º, do artigo 27 da lei 9.514/1997. Em síntese, a eventual aprovação dessas duas propostas de medidas provisórias que estão em gestação no âmbito do Poder Executivo Federal, precisamente no Ministério da Economia, instaurarão não apenas o serviço de gestão especializada de garantias e o título de propriedade imobiliária, mas também um verdadeiro caos no que se refere à cobrança de despesas condominiais. Por essas e por outras, recomenda-se que a sociedade civil, especialmente a comunidade jurídica, esteja atenta e unida contra a aprovação desse verdadeiro "lobo sob a veste de cordeiro" - ou "retrocesso sob a aparência de modernidade" - representado por esses viciados institutos jurídicos que se pretende inserir no Direito Imobiliário e Condominial brasileiro. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. _______. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispões sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. _______. Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. _______. Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. _______. Lei 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. _______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.345.331/RS, 2ª Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.04.2015, DJe 20.04.2015. CHALLUB, Melhim. Desafios atuais da alienação fiduciária. Coluna Migalhas Edilícias. Portal Migalhas, 08 ago 2019. Disponível aqui. Acesso em: 23 out 2021. MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; MARQUES, Claudia Lima. O home equity e a bolha imobiliária à brasileira. Revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), 13 out 2021. Acesso em: 20 out 2021. NEGRÃO, Angela. A bolha imobiliária americana: um estudo de caso. Canal Brain, 20 jan 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - vol. 4 - 13 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. *Cesar Calo Peghini é pós-doutorando em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Professor titular permanente do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor convidado no curso de pós-graduação lato sensu em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro fundador e diretor de eventos do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Associado e diretor de eventos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM/SP). Associado ao Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo/SP. **Renato Mello Leal é mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo/SP.  __________ 1 MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; MARQUES, Claudia Lima. O home equity e a bolha imobiliária à brasileira. Revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), 13 out 2021. Acesso em: 20 out 2021. 2 BRASIL. Lei 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. 3 NEGRÃO, Angela. A bolha imobiliária americana: um estudo de caso. Canal Brain, 20 jan 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. 4 BRASIL. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispões sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. 5 CHALLUB, Melhim. Desafios atuais da alienação fiduciária. Coluna Migalhas Edilícias. Portal Migalhas, 08 ago 2019. Disponível aqui. Acesso em: 23 out 2021. 6 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. 7 BRASIL. Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. 8 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - vol. 4 - 13 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 442. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.345.331/RS, 2ª Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.04.2015, DJe 20.04.2015.   10 BRASIL. Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021.
Introdução  Analisando o imposto municipal sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU, surgiu a reflexão sobre a presença da proteção ambiental ao mesmo tempo em que há a incidência da norma tributária, reflexão esta, sobre a perspectiva da base de cálculo do imposto, com o objetivo de fomentar o debate sobre a justa tributação, frisando, desde logo, a importância e indispensabilidade da proteção ao meio ambiente para as presentes e futuras gerações conforme preconizado no art. 225 da Constituição Federal de 1988. O estudo proposto está longe de esgotar o assunto que constantemente é presente nos Tribunais do país e na Administração Pública, visando apenas trazer um ponto de vista pouco abordado quando se debate no âmbito administrativo ou judicial a tributação sobre a propriedade urbana atingida por restrições ambientais ainda que parcialmente. Frequentemente, a discussão gira em torno da existência ou não, de no mínimo dois melhoramentos públicos nos termos do § 1º, art. 32 do Código Tributário Nacional, ou, na perda da propriedade, inexistência de relação jurídica tributária e na aplicação de alíquota prevista na legislação local do ente tributante, sendo que por vezes, o contribuinte de mãos atadas, busca soluções prejudicais a si mesmo e ao direito de propriedade, como a doação do imóvel, dação em pagamento em favor da Fazenda Pública, ou simplesmente o não pagamento do tributo para ver a propriedade expropriada. Contudo, o enfretamento do tema sob a ótica da base de cálculo é pouco explorado, ensejando, assim, mais enfrentamento para que se possa evoluir na concretização de uma melhor política fiscal aliada com a igualmente relevante política ambiental. Nesse sentido, é importante a matéria para ambos, ou seja, tanto para o contribuinte, como também, para a Administração Pública Municipal, que não raramente tributa sem levar em considerações a existência ou não de restrições ambientais (total ou parcialmente) na propriedade urbana localizada em seu território e seus reflexos, principalmente, na base de cálculo. Assim, o estudo está dividido em três tópicos, o primeiro sobre as normais gerais que tratam do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, o segundo abordando a proteção ambiental e a base de cálculo do IPTU, e por último, o fechamento com as considerações finais.                                Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU  Partindo da norma suprema do ordenamento jurídico, ou seja, a Constituição Federal, temos a outorga da competência tributária1 aos municípios para instituírem o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana nos termos do art. 156, inciso I, corroborando, assim, a salutar autonomia financeira do ente federado, como bem frisado por Giovani da Silva Corralo: À luz da autonomia municipal, nas dimensões administrativa, política, financeira, legislativa e auto-organizatória, ressalva-se a importância capital da autonomia financeira, sem a qual as demais autonomias se encobrem nas trevas da dependência e da subserviência política.2 E nos limites dessa autonomia, o Município deve seguir a lei, sempre com observância aos preceitos constitucionais, sendo relevante destacar o disposto nos incisos I e II do § 1º do mesmo art. 156, pois fixam que o imposto poderá: "I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel".  Descendo ao plano infraconstitucional, pertinente mencionar a redação do art. 16 do Código Tributário Nacional, lei 5.172/66: "Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte". Nesse sentido, é importante lembrarmos que a espécie tributária imposto possui como fato gerador uma situação que não está ligada ou relacionada com qualquer atividade do Estado (lato sensu); como a própria redação do dispositivo legal define, seu fato gerador é independente. Abrindo um parêntese, a expressão "fato gerador" será adotada no presente estudo seguindo a menção feita na legislação, sem deixar de reconhecer que existe entendimento diverso sobre a melhor terminologia, conforme lecionado pelo jurista Geraldo Ataliba na obra singular Hipótese de Incidência Tributária: [...] denominando "hipótese de incidência" ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e "fato imponível" ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incidência.3                Adentrando ao tema, especificamente no Capítulo III, Seção II do Código Tributário Nacional (CTN), a norma tributária infraconstitucional trata do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana disciplinando no art. 32 e parágrafos que: Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II - abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. § 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior. Disciplina legal esta, base para a discussão jurídica que se propõe, pois especifica o fato gerador do tributo em análise, isto é, os fatos que se realizados tornam a pessoa contribuinte do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, qual seja, ter "a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física". Além disso, estabelece critérios para a definição do que seria área urbana no Município, devendo haver a definição por lei municipal, e a presença de no mínimo dois dos melhoramentos indicados nos incisos I ao V, § 1º, do art. 32. Como também, de grande importância é o disposto no § 2º, pois estabelece que poderá "a lei municipal considerar urbanas as áreas urbanizáveis ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior", ou seja, havendo tal definição legal e em razão dessas circunstâncias de fatos inerentes à localidade, mesmo não havendo o mínimo de dois melhoramentos dentre os elencados no § 1º, haverá a ocorrência do fato gerador e a tributação pelo fisco municipal no que tange ao IPTU, sendo inclusive matéria já sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça nos seguintes termos: Súmula 626 - A incidência do IPTU sobre imóvel situado em área considerada pela lei local como urbanizável ou de expansão urbana não está condicionada à existência dos melhoramentos elencados no art. 32, § 1º, do CTN. (SÚMULA 626, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018).4 E no tocante à base de cálculo do imposto em comento, o art. 33 do CTN é preciso ao estabelecer que a "base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel" (sem grifo no original), explicitando o art. 34 da mesma lei que o "contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título". Hugo de Brito Machado, na obra doutrinária Curso de Direito Tributário, pontifica: A base do cálculo do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana é o valor venal do imóvel (CTN, art. 33). Valor venal é aquele que o bem alcançaria se fosse posto à venda, em condições normais. O preço, neste caso, deve ser o correspondente a uma venda à vista, vale dizer, sem incluir qualquer encargo relativo a financiamento. À repartição competente cabe apurar o valor venal dos imóveis, para o fim de calcular o imposto, assegurado, entretanto, ao contribuinte o direito à avaliação contraditória, nos termos do art. 148 do CTN.5 Assim, ainda que brevemente, levando-se em consideração as normas gerais postas na Constituição Federal de 1988 e no Código Tributário Nacional, destacamos os pontos principais para o estudo que se apresenta referente ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana de competência dos municípios. É claro que cada Município possui seu Código Tributário Municipal, norma que em alguns pontos possui repetição em relação ao Código Tributário Nacional, contudo, possui as especificidades de cada localidade, principalmente no tocante às alíquotas. Como seria extremamente difícil abordar as normas locais, haja vista contarmos com 5.570 municípios na Federação Brasileira6, limitamo-nos aos aspectos gerais, que poderão servir de norte para reflexão no âmbito das Administrações Públicas e contribuintes interessados.                A proteção ambiental e a base de cálculo do IPTU                Desde logo, é importante deixar em evidência que o objetivo não está em questionar a proteção ambiental, pelo contrário, o que se traz para debate é a necessidade de interação do Direito Tributário com o tema, objetivando, assim, a convivência harmônica dentro do ordenamento jurídico para o melhor resultado em prol da coletividade. E o Superior Tribunal de Justiça já vem sinalizando nesse sentido, conforme depreende-se do julgamento proferido no AgInt no AREsp 1723597/SP, de Relatoria do Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ:                               TRIBUTÁRIO, AMBIENTAL E URBANÍSTICO. IPTU. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. ART. 32 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. LIMITAÇÃO AMBIENTAL AO DIREITO DE PROPRIEDADE. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA DE USO DA TOTALIDADE DO BEM PELO PROPRIETÁRIO. IMPACTOS TRIBUTÁRIOS DA NATUREZA NON AEDIFICANDI DE IMÓVEL URBANO. DIREITO TRIBUTÁRIO NO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL. PRINCÍPIO POLUIDOR-PAGADOR. EXTERNALIDADES AMBIENTAIS NEGATIVAS. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. [...] 6. Sobre a relação entre IPTU e Área de Preservação Permanente, o STJ já se pronunciou em outras oportunidades: "A restrição à utilização da propriedade referente a Área de Preservação Permanente em parte de imóvel urbano (loteamento) não afasta a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano, uma vez que o fato gerador da exação permanece íntegro, qual seja, a propriedade localizada na zona urbana do município. Cuida-se de um ônus a ser suportado, o que não gera o cerceamento total da disposição, utilização ou alienação da propriedade, como ocorre, por exemplo, nas desapropriações. Aliás, no caso dos autos, a limitação não tem caráter absoluto, pois poderá haver exploração da área mediante prévia autorização da Secretaria do Meio Ambiente do município" (REsp 1.128.981/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 25/3/2010, grifo acrescentado). Em sentido assemelhado: "não se pode confundir propriedade com restrição administrativa, pois esta não afasta o fato gerador do imposto e a titularidade para efeitos de tributação" (REsp 1.801.830/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 21/05/2019). Comparando a situação do ITR e do IPTU, confira-se: "o não pagamento da exação deve ser debatida à luz da isenção e da base de cálculo, a exemplo do que se tem feito no tema envolvendo o ITR sobre áreas de preservação permanente, pois, para esta situação, há lei federal regulando a questão. (artigo 10, § 1º, II, 'a' e 'b', da Lei 9.393/96)." (AgRg no REsp 1.469.057/AC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 20/10/2014). A jurisprudência do STJ, todavia, não há de ser lida como recusa de ponderar, na análise do fato gerador do IPTU e de outros tributos, eventual constrição absoluta de cunho ambiental, urbanístico, sanitário ou de segurança sobreposta sobre 100% do bem. Cobrança de tributo sobre imóvel intocável ope legis e, por isso, economicamente inaproveitável, flerta com confisco dissimulado. 7. O Direito Tributário deve ser amigo, e não adversário, da proteção do meio ambiente. A "justiça tributária" necessariamente abarca preocupações de sustentabilidade ecológica, abrigando tratamento diferenciado na exação de tributos, de modo a dissuadir ou premiar comportamento dos contribuintes que, adversa ou positivamente, impactem o uso sustentável dos bens ambientais tangíveis e intangíveis. 8. No Estado de Direito Ambiental, sob o pálio sobretudo, mas não exclusivamente, do princípio poluidor-pagador, tributos despontam, ao lado de outros instrumentos econômicos, como um dos expedientes mais poderosos, eficazes e eficientes para enfrentar a grave crise de gestão dos recursos naturais que nos atormenta. Sob tal perspectiva, cabe ao Direito Tributário - cujo campo de atuação vai, modernamente, muito além da simples arrecadação de recursos financeiros estáveis e previsíveis para o Estado - identificar e enfrentar velhas ou recentes práticas nocivas às bases da comunidade da vida planetária. A partir daí, dele se espera, quer autopurificação de medidas de incentivo a atividades antiecológicas e de perpetuação de externalidades ambientais negativas, quer desenho de mecanismos tributários inéditos, sensíveis a inquietações e demandas de sustentabilidade, capazes de estimular inovação na produção, circulação e consumo da nossa riqueza natural, assim como prevenir e reparar danos a biomas e ecossistemas. Um esforço concertado, portanto, que envolve, pelos juízes, revisitação e releitura de institutos tradicionais da disciplina e, simultaneamente, pelo legislador, alteração da legislação tributária vigente. 9. Agravo Interno não provido. (AgInt no AREsp 1723597/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 29/03/2021, DJe 06/04/2021).7 (grifamos). Destarte, a pretensão está em trazer a reflexão de que o Direito Tributário deve dialogar mais como o Direito Ambiental, visando à justa tributação com respeito à preservação e proteção do meio ambiente, pois "a sadia qualidade de vida só pode ser conseguida e mantida se o meio ambiente estiver ecologicamente equilibrado. Ter uma sadia qualidade de vida é ter um meio ambiente não poluído."8 Exemplificando a incidência do Direito Ambiental na propriedade, podemos citar o disposto na lei Federal 9.985/2000, que: "Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências". No art. 14, a citada lei apresenta rol das categorias de unidade de conservação: Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação: I - Área de Proteção Ambiental; II - Área de Relevante Interesse Ecológico; III - Floresta Nacional; IV - Reserva Extrativista; V - Reserva de Fauna; VI - Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e VII - Reserva Particular do Patrimônio Natural.9 Cada categoria desta, implica em uma maior ou menor restrição à utilização plena da propriedade, afetando o valor do imóvel, e consequentemente, a base de cálculo do tributo municipal IPTU. Evitando a citação demasiada de artigos da mesma lei referente à definição legal de cada unidade de conservação, apresentamos como exemplo apenas a definição legal da Área de Relevante Interesse Ecológico prevista no art. 16: Art. 16. A Área de Relevante Interesse Ecológico é uma área em geral de pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da biota regional, e tem como objetivo manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os objetivos de conservação da natureza. § 1o A Área de Relevante Interesse Ecológico é constituída por terras públicas ou privadas. § 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Relevante Interesse Ecológico.10 (grifamos) Acontece que, dependendo das condições geográficas do município e da sua organização territorial, tal categoria de unidade de conservação pode atingir imóveis/terras particulares localizadas na zona urbana, implicando em restrição total ou parcial ao seu uso, porém, tributada pelo Fisco Municipal, que deixa de levar em consideração a repercussão dessa circunstância na atividade administrativa de lançamento do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, tanto que, na Região do Vale do Ribeira, litoral sul do Estado de São Paulo, região riquíssima em biodiversidade e que merece a devida proteção e valorização, temos, por meio do decreto estadual 30.817/89 que "Regulamenta a Área de Proteção Ambiental da Ilha Comprida, criada pelo decreto 26.881, de 11/03/1987 declara a mesma APA como de Interesse Especial e cria, em seu território, Reservas Ecológicas e Área de Relevante Interesse Ecológico", a previsão no seguinte sentido: Artigo 11 - Fica declarada Área de Relevante Interesse Ecológico, nos termos do disposto no Decreto Federal n. 89.336, de 31 de Janeiro de 1984, a Zona de Vida Silvestre da APA da Ilha Comprida, delimitada no inciso V do artigo 2.º deste decreto. Artigo 12 - Na Área de Relevante Interesse Ecológico não será permitida qualquer atividade degradadora ou potencialmente causadora de degradação ambiental. § 1.º - Na Área de Relevante Interesse Ecológico é proibido o porte de armas de fogo e de artefatos ou de instrumentos de destruição da natureza. § 2.º - Na Área de Relevante Interesse Ecológico somente será permitida a construção de edificações destinadas à realização de pesquisas e ao controle ambiental, desde que aprovadas pelos Municípios.11 (grifamos) Ora, resta claro que as áreas privadas que se encontrarem nessa circunscrição da Área de Relevante Interesse Ecológico, não podem ser utilizadas para qualquer outro fim diverso do especificamente previsto na norma, ou seja, é permitida apenas a "construção de edificações destinadas à realização de pesquisas e ao controle ambiental, desde que aprovadas pelos Municípios". Isso, certamente, causa um impacto na avaliação imobiliária, isto é, sobre o valor do imóvel inserido nessas condições, que sequer possui valor comercial, e é isso que deve ser observado pela Fazenda Pública Municipal na definição do valor venal e posterior apuração da exação tributária. Nesse sentido, digamos, de afetação ambiental da propriedade privada urbana, ainda podemos mencionar as disposições da lei Federal 12.651/2012 (Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa), destacando-se:                Art. 2º As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem. § 1º Na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias às disposições desta Lei são consideradas uso irregular da propriedade, aplicando-se o procedimento sumário previsto no inciso II do art. 275 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos do § 1º do art. 14 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e das sanções administrativas, civis e penais. § 2º As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: [...] II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: [...] Art. 6º Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes finalidades: [...] Art. 7º A vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado. Art. 8º A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei. Art. 9º É permitido o acesso de pessoas e animais às Áreas de Preservação Permanente para obtenção de água e para realização de atividades de baixo impacto ambiental.12 (grifamos) Assim, imóvel nessas condições, possivelmente terá seu valor reduzido, ou ficará sem valor comercial algum, ante a impossibilidade de utilização pelo proprietário de forma plena. Contudo, o ente público federado Município vem tributando sem atentar para esse fato, tributando propriedade que sequer possui valor comercial, ou seja, com base de cálculo zero, atuando contrariamente à própria natureza da espécie tributária que incide sobre o conteúdo econômico auferível, conforme frisado por Roque Antonio Carrazza: Portanto, os impostos caracterizam-se não só pela fonte de legitimação - a posição de supremacia da pessoa política em relação ao contribuinte -, como, também, por encontrarem limites no princípio da capacidade contributiva, que exige venham levados em conta índices diretos e indiretos de riqueza, economicamente apreciáveis.13 Em pesquisa jurisprudencial, encontramos julgados recentes cujos fundamentos justamente abordam essa linha de raciocínio, isto é, tratam da necessidade de apreciação da matéria partindo da aferição da existência ou não de conteúdo econômico da propriedade afetada por restrições de ordem ambiental: APELAÇÃO - Ação declaratória com pedido de repetição de indébito e indenização por danos materiais e morais - IPTU - Imóvel localizado em Área de Relevante Interesse Ecológico/Zona de Vida Silvestre (ARIE/ZVS) - Restrição administrativa com perda do conteúdo econômico e dos direitos inerentes à propriedade - Artigos 5º, 11 e 12, do Decreto Estadual n. 30.817/89 - Repetição que deve ser liquidada conforme Súmulas 162 e 188 do STJ - Dívida de natureza tributária - Juros moratórios e correção monetária devidos nos moldes estabelecidos pelo STF, no RE 870.947/SE - Tema 810 e pelo STJ Tema 905 - Verba honorária majorada para 15% sobre o valor do proveito econômico obtido pela autora (CPC, art. 85, §11) - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1000402-55.2016.8.26.0244; Relator (a): Octavio Machado de Barros; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Iguape - 2ª Vara; Data do Julgamento: 24/09/2021; Data de Registro: 24/09/2021) TRIBUTÁRIO - APELAÇÃO - AÇÃO ORDINÁRIA - IPTU - MUNICÍPIO DE SÃO SEBASTIÃO. Sentença que julgou improcedente a ação. Recurso do autor. SUSPENSÃO DO FEITO - DESNECESSIDADE - Existência de ação civil pública em curso na qual foi requerido o cancelamento do loteamento onde está localizado o imóvel - No presente caso, discutem-se débitos de IPTU, de modo que os supostos fatos geradores já teriam ocorrido, independentemente de eventual cancelamento do registro do loteamento - Inexistência de impedimento à análise das alegações de inocorrência do fato gerador e de incorreção do valor venal atribuído ao imóvel. IPTU - As restrições ao exercício de propriedade, como no caso em que o imóvel está inserido em Área de Preservação Permanente, não retiram do contribuinte a condição de proprietário, mas apenas podem implicar a redução do valor venal do imóvel - No caso dos autos, foi concedida liminar em ação civil pública para impedir a construção e a alienação dos lotes, dentre outras restrições - A d. Turma Julgadora determinou a conversão do julgamento em diligência para a produção de prova pericial, ante a necessidade de se aferir precisamente os reflexos dessas restrições no valor venal do imóvel - Autor que deixou recolher os honorários periciais no prazo legal - Preclusão da prova pericial que foi declarada pelo d. Juízo a quo - Ausência de comprovação da inadequação do valor venal e da alíquota utilizada como parâmetro para o cálculo do IPTU - Sentença mantida. [...]. Sentença mantida - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1000383-53.2017.8.26.0587; Relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de São Sebastião - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/09/2021; Data de Registro: 14/09/2021).14 AGRAVO DE INSTRUMENTO - TRIBUTÁRIO - IPTU - INDEFERIMENTO DA SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO - IMÓVEL LOCALIZADO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - PREDICADOS DA PROPRIEDADE NÃO ALTERADOS COM A PROTEÇÃO AMBIENTAL IMPOSTA - RECURSO DESPROVIDO. "A restrição à utilização da propriedade referente a área de preservação permanente em parte de imóvel urbano (loteamento) não afasta a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano, uma vez que o fato gerador da exação permanece íntegro, qual seja, a propriedade localizada na zona urbana do município. Cuida-se de um ônus a ser suportado, o que não gera o cerceamento total da disposição, utilização ou alienação da propriedade, como ocorre, por exemplo, nas desapropriações". "Na verdade, a limitação de fração da propriedade urbana por força do reconhecimento de área de preservação permanente, por si só, não conduz à violação do artigo 32 do CTN, que trata do fato gerador do tributo. O não pagamento da exação sobre certa fração da propriedade urbana é questão a ser dirimida também à luz da isenção e da base de cálculo do tributo, a exemplo do que se tem feito no tema envolvendo o ITR sobre áreas de preservação permanente, pois, para esta situação, por exemplo, há lei federal permitindo a exclusão de áreas da sua base de cálculo (artigo 10, § 1º, II, 'a' e 'b', da Lei 9.393/96)" (STJ, REsp n. 1128981/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 18.3.10). (TJSC, Agravo de Instrumento n. 0009698-31.2016.8.24.0000, de Porto Belo, rel. Des. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmara de Direito Público, j. 13-06-2017). (TJSC, Agravo de Instrumento n. 4005974-14.2017.8.24.0000, de Jaguaruna, rel. Cid Goulart, Segunda Câmara de Direito Público, j. 22-05-2018).15 (grifamos) É claro que, esta análise sob a ótica da base de cálculo, não depende exclusivamente do magistrado(a) ou do Colegiado de Tribunal, cabendo também, ao(a) advogado(a) suscitar essa tese jurídica quando do ingresso da respectiva demanda judicial, como também, averiguar na legislação local hipótese de isenção referente a imóvel inserido em área de proteção ambiental (sentido amplo) com restrições à utilização da propriedade de forma parcial ou total, constatação que deverá ser colhida perante os órgãos ambientais competentes para subsidiar o pedido, ainda que na esfera administrativa. Por essa razão destacamos a importância do tema para os contribuintes, municípios e para o meio ambiente, haja vista que se não houver o tratamento devido pela legislação tributária municipal, o contribuinte poderá buscar a prestação da tutela jurisdicional no sentido de ver reconhecida a ausência de valor venal, ou a sua diminuição em razão das restrições de natureza ambiental incidentes sobre o imóvel, consequentemente, importando em não tributação ou redução significativa da cobrança, providência que, inclusive, poderia ser verificada de ofício pela autoridade fazendária ante as hipóteses de revisão do lançamento nos termos do art. 149 do CTN.                                Considerações finais                O exercício da capacidade tributária ativa16 deve respeitar a lei (art. 150, I, da CF/88), o Código Tributário Nacional estabelece no art. 33 que a "base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel", ato administrativo de competência da autoridade municipal que realizará o lançamento. Assim, na apuração do valor relativo ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU), há que ser analisada a hipótese de estarem presentes restrições ambientais de ordem parcial ou total que impliquem em alteração desse valor venal, inclusive com a possibilidade de não ter valor algum. Interessante seria a inclusão de norma no Código Tributário Nacional semelhante ao previsto na Lei Federal n. 9.393/1996 que dispõe sobre o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), precisamente o art. 10, § 1º, inciso II, e alíneas17, adequando-se, é claro, às especificidades do imposto municipal, impulsionando, assim, os municípios que ainda não possuem essa abordagem, que por meio da competência legislativa local incluam dispositivo semelhante nos respectivos Códigos Tributários Municipais, medida que dará segurança aos gestores e certamente ajudará e muito na tributação mais justa com harmonia à proteção ambiental que certamente não merece reparo, mas sim, todo o reforço e atenção possível, inclusive mediante a interlocução com os demais ramos do direito, no caso, o Direito Tributário. Não há como não levar em consideração a repercussão que o Direito Ambiental provoca na atividade estatal de tributar, como citado no julgamento proferido no AgInt no AREsp 1723597/SP, de Relatoria do Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ: "O Direito Tributário deve ser amigo, e não adversário, da proteção do meio ambiente". Do contrário, beira-se o confisco, evidentemente não admitido no Estado Democrático de Direito (art, 150, IV, da CF/88). Permanecendo como está, o cidadão proprietário de imóvel afetado por restrições ambientais continuará com a falsa impressão de que o injusto pagamento de IPTU é culpa da proteção ambiental, quando na verdade é da não observância dos preceitos de Direito Ambiental e seus reflexos na tributação sobre a propriedade imobiliária urbana. E isso contribui para o não pagamento do tributo municipal, aumentando o montante de inscrições em dívida ativa e no ajuizamento de execuções fiscais que já abarrotam o Poder Judiciário e acabam prescrevendo, ou sequer contendo localização do devedor, ocasionando apenas dispêndio de força de trabalho e recursos públicos, desde a interposição até o arquivamento. Além disso, o Município que não tributar corretamente a propriedade urbana localizada em área de proteção ambiental, sempre estará sujeito a ser demandado e a restituir os valores recebidos nos último cinco anos (art. 168 do CTN). Dessa feita, claro que é muito melhor tributar corretamente mediante a definição da base de cálculo real do imóvel, evitando um ciclo vicioso de prejuízos ao cidadão, Poder Público e à proteção ao meio ambiente, até porque, a definição da base de cálculo é ato administrativo, estando sujeito a apreciação pelo Poder Judiciário quando acionado, segundo já afirmado de forma sublime por Hely Lopes Meirelles:                Certo é que o Judiciário não poderá substituir a Administração em pronunciamentos que lhe são privativos, mas dizer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua competência, é função específica da Justiça Comum, e por isso mesmo poderá ser exercida em relação a qualquer ato do Poder Público, ainda que praticado no uso da faculdade discricionária, ou com fundamento político, ou mesmo no recesso das câmaras legislativas como seus interna corporis. Quaisquer que sejam a procedência, a natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a possibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimônio público, ficará sujeito a apreciação judicial, exatamente para que a Justiça diga se foi ou não praticado com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo ou interesses da coletividade.18 O ato administrativo de definição da base de cálculo do IPTU deve ter consonância com a realidade econômica imobiliária, havendo descompasso ou total desconexão, merecerá correção pelas vias legais e institucionais à disposição do contribuinte (art. 5º, XXXV, da CF/88). *Rodrigo Henriques de Araújo é advogado, pós-graduado em Direito Tributário e Direito Público.  Referências bibliográficas ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2021. BRASIL. Lei 9.393 de 19 de dezembro de 1996. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. BRASIL. Lei 9.985 de 18 de julho de 2000. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. BRASIL. Lei 12.651 de 25 de maio de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2021. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19 ed. 3a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 19 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007. CORRALO, Giovani da Silva. Município: autonomia na Federação Brasileira. 1 ed. 2a reimpr. Curitiba: Juruá, 2009.  MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2006. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2004. SÃO PAULO (Estado). Decreto 30.817 de 30/11/1989. Disponível aqui. Acesso em 30 set. 2021. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Consulta Processual. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de direito tributário. Florianópolis: Momento atual, 2003. __________ 1 "A competência tributária encontra direta ressonância com a atividade legiferante. Via de regra é conceituada como a aptidão para editar leis que, abstratamente, instituam tributos. É por intermédio do exercício da competência tributária que as Pessoas Políticas dão azo ao nascimento dos tributos originalmente previstos na Constituição, a qual não cria, antes, cinge-se a estabelecer o campo de competência de cada um. O exercício da competência tributária encerra-se juntamente com a edição da lei, isto é, após regularmente editada, a competência tributária cede lugar à denominada capacidade tributária ativa, que diz de perto com a arrecadação e fiscalização do tributo originariamente instituído. Já a titularidade do exercício da competência tributária, no Brasil, é reservada privativamente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e ao Municípios. Por quê? Porque somente as Pessoas Políticas é que possuem legislativo com representação própria". (TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de direito tributário. Florianópolis: Momento atual, 2003. p. 39). 2 CORRALO, Giovani da Silva. Município: autonomia na Federação Brasileira. 1 ed. 2a reimpr. Curitiba: Juruá, 2009. p. 179. 3 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 54. 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2021. 5 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 402. 6 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2021. 7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. 8 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 153. 9 BRASIL. Lei 9.985 de 18 de julho de 2000. Disponível aqui.htm Acesso em: 30 set. 2021. 10 Idem. 11 SÃO PAULO (Estado). Decreto 30.817 de 30/11/1989. Disponível aqui. Acesso em 30 set. 2021. 12 BRASIL. Lei 12.651 de 25 de maio de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. 13 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19 ed. 3a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 467. 14 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Consulta Processual. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. 15 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Consulta de Processos. Disponível aqui. Acesso em 30 set. 2021. 16 "O estudo da competência tributária é um momento anterior à existência mesma do tributo, situando-se no plano constitucional. Já a capacidade tributária ativa, que tem como contranota a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado no ensejo do desempenho das competências, quando legislador elege as pessoas competentes do vínculo abstrato, que se instala no instante em que acontece, no mundo físico, o fato previsto na hipótese normativa". (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 19 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 237). 17 Art. 10. A apuração e o pagamento do ITR serão efetuados pelo contribuinte, independentemente de prévio procedimento da administração tributária, nos prazos e condições estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, sujeitando-se a homologação posterior. § 1º Para os efeitos de apuração do ITR, considerar-se-á: [...] II - área tributável, a área total do imóvel, menos as áreas: a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012; b) de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas, assim declaradas mediante ato do órgão competente, federal ou estadual, e que ampliem as restrições de uso previstas na alínea anterior; c) comprovadamente imprestáveis para qualquer exploração agrícola, pecuária, granjeira, aqüícola ou florestal, declaradas de interesse ecológico mediante ato do órgão competente, federal ou estadual; d) sob regime de servidão ambiental e) cobertas por florestas nativas, primárias ou secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração; f) alagadas para fins de constituição de reservatório de usinas hidrelétricas autorizada pelo poder público". (BRASIL. Lei 9.393 de 19 de dezembro de 1996. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021). 18 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 205.
Figuram constantemente nos contratos imobiliários as chamadas cláusulas com condições resolutivas, nas quais se inserem eventos os mais diversos cuja ocorrência ensejaria a resolução da relação obrigacional. No entanto, há de se investigar se referidas cláusulas se qualificam, efetivamente, como condições resolutivas, ou se encerram, na verdade, condições suspensivas ou mesmo cláusulas resolutivas expressas. A análise não é meramente acadêmica ou desprovida de qualquer relevância prática. Ao contrário. A correta qualificação das cláusulas se afigura fundamental para que se identifiquem precisamente os efeitos jurídicos que delas defluem.   Sob o aspecto estrutural, a condição resolutiva e a condição suspensiva constituem elementos acidentais do negócio jurídico, uma vez que não integram o tipo abstrato do negócio, mas são apostas no concreto regulamento de interesse pela vontade das partes. A acidentalidade decorre, como aponta Cariota Ferrara, justamente, do "poder ser ou não ser":1 não é a lei, mas as partes, no exercício da autonomia privada, que as fazem constar do contrato. E, uma vez incluídas no ajuste, cessa a acidentalidade e transmuda-se a condição em elemento essencial do negócio celebrado. Significa, em verdade, que os elementos objetivamente acidentais são subjetivamente essenciais. Daí o porquê de a inserção de condição resolutiva ou suspensiva ilícita ou de fazer coisa ilícita conduzir à invalidade de todo o negócio (art. 123, II, CC), e não apenas da condição em si. A condição não é, pois, disposição acessória do negócio principal, mas parte incindível de um único negócio jurídico. Por outro lado, a cláusula resolutiva expressa, esta sim, encerra disposição acessória do contrato: é inserida pela autonomia privada e conserva, durante todo o desenrolar da relação jurídica, a característica da acessoriedade; é disposição que opera no plano da eficácia e segue o princípio da gravitação jurídica, pelo que eventual vício da cláusula não afeta a existência ou validade do contrato. No que tange ao suporte fático objetivo, a condição, seja resolutiva ou suspensiva, requer que o evento seja futuro e incerto. No direito brasileiro, a futuridade é requisito indispensável à condição. No entanto, é possível que certos aspectos do evento sejam passados ou presentes, mas que a sua completa conformação dependa de alguma confirmação futura, hipótese em que esse fato futuro (fato da confirmação) pode ser qualificado como condição. Nesses casos, portanto, a condição-fato não corresponde ao fato passado ou presente, mas sim, ao fato da confirmação do evento passado ou presente. Note-se que não se trata de incerteza relativa, isto é, de desconhecimento apenas pelas partes quanto à ocorrência, ou não, do evento passado ou presente, o que afastaria sua qualificação como condição; cuida-se de incerteza absoluta acerca da efetiva conformação do evento, cuja confirmação se requer. Pense-se em contrato de promessa de compra e venda de terreno por incorporadora que deseja ali desenvolver projeto imobiliário. No entanto, a incorporadora ainda não conhece plenamente os custos do empreendimento, de modo que não está segura quanto à sua viabilidade econômica neste momento. A fim de não perder o negócio, a incorporadora celebra o contrato com a proprietária do imóvel e apõe cláusula pela qual se ficar constatado, após levantamento junto ao mercado, que o custo da obra será superior a certo valor, o contrato será automaticamente resolvido. Neste caso, o negócio produz desde já todos os seus efeitos, que são resolvidos uma vez verificada a condição. Podem as partes, de outro lado, considerar o evento condição suspensiva, hipótese em que o negócio só produziria efeitos após o implemento da condição, ou seja, após constatar-se a viabilidade econômica do empreendimento; até este momento, as partes teriam apenas expectativa de direito. Seja a condição resolutiva ou suspensiva, o que importa sublinhar é que o evento encerra verdadeira condição, já que os custos da obra são presentes, mas dependem de verificação, de confirmação, havendo incerteza quanto ao seu efetivo valor. Para tratar-se de condição, deve, ainda, o evento ser externo ao negócio, e por isso não pode corresponder nem a elemento essencial do contrato, nem a momento típico do desenvolvimento do vínculo obrigacional. O evento há de constituir fato estruturalmente autônomo, a operar externamente ao negócio, não se relacionando diretamente à realização do programa contratual. E é por essa razão que o inadimplemento absoluto não constitui evento idôneo a figurar no contrato como condição resolutiva.2 A cláusula resolutiva expressa prevista no art. 474, ao contrário, contempla, de regra, eventos já alocados entre as partes. Referidos eventos podem ser inerentes ao contrato - inexecuções de obrigações que conduzem ao inadimplemento absoluto e vícios redibitórios que retirem a utilidade da coisa para o adquirente, por exemplo - ou podem ser a ele internalizados pela autonomia privada dos contratantes. Nesse último caso, mostra-se indispensável que o específico risco tenha sido expressamente assumido por um dos contratantes e que a sua superveniência conduza à impossibilidade ou inutilidade da prestação, consoante o concreto regulamento de interesses, a conduzir ao inadimplemento absoluto. Pense-se em contrato de permuta do qual conste cláusula em que se designa como condição resolutiva a não aquisição de terrenos contíguos ao do permutante pelo incorporador, até certa data. Nesse caso, a não aquisição dos imóveis resolverá automaticamente o contrato celebrado com o permutante. No entanto, se o incorporador houver assumido expressamente a obrigação de adquiri-los, a não aquisição poderá configurar inadimplemento absoluto, o que desqualifica referido evento como condição resolutiva e pode ensejar a qualificação da cláusula, a depender de sua redação, como cláusula resolutiva expressa, autorizando o permutante a resolver a relação obrigacional. Constatada a ocorrência do suporte fático da cláusula resolutiva expressa ou implementada a condição resolutiva, resolve-se a relação jurídica, conduzindo-se à ineficácia do negócio. No primeiro caso, faz-se necessária a declaração do credor dirigida à resolução.3 Na segunda situação, prevalece no direito brasileiro o entendimento segundo o qual a resolução é sempre automática, independente da vontade ou mesmo do conhecimento das partes.4 Ao propósito, impõe-se analisar com atenção certas cláusulas em contratos celebrados com permutantes de terreno que qualificam como condição resolutiva, por exemplo, a não obtenção do financiamento para a construção do empreendimento ou a não aprovação do projeto pelos órgãos responsáveis e, ao mesmo tempo, determinam que referidos entraves deverão ser superados em certo prazo, após o qual qualquer das partes poderá dar por "rescindido" o contrato mediante notificação à contraparte. Bem analisadas as referidas disposições, nota-se que não se trata, tecnicamente, de condição resolutiva, já que, pela redação empregada, o contrato não é resolvido automaticamente diante da não concessão do financiamento ou da não aprovação do projeto. Em verdade, a verificação de referidos eventos, se não superados, faz nascer para as partes o direito potestativo de extinguir o contrato. Nesse cenário, talvez se possa cogitar de condição suspensiva, cuja pendência suspenderia não a eficácia do contrato propriamente dito, mas do direito potestativo de extinguir o negócio. Por conseguinte, o contrato produziria regularmente todos os seus efeitos desde a sua celebração, afigurando-se irretratável e irrevogável. Contudo, uma vez implementada qualquer das mencionadas condições, as partes adquiririam o direito potestativo de extinguir unilateralmente o ajuste mediante simples notificação à contraparte.   Seja como for, importa sublinhar que a qualificação de certa cláusula como cláusula resolutiva expressa, condição resolutiva ou condição suspensiva há de ser realizada a partir da interpretação sistemática do específico contrato. Para tanto, o intérprete deve analisar, sobretudo, a natureza do evento que serve de suporte fático à cláusula (se se trata, por exemplo, da inexecução de obrigação assumida por uma das partes ou da ocorrência de evento externo ao negócio), os efeitos dele decorrentes (resolutivos ou suspensivos) bem como a forma pela qual tais efeitos se operam (automaticamente ou mediante interpelação da contraparte). De todo modo, o nomen iuris atribuído pelas partes à cláusula é, em definitivo, o aspecto de menor relevância para a sua qualificação. *Aline de Miranda Valverde Terra é professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Sócia de Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica. __________ 1 Luigi Cariota Ferrara. Il negozio giuridico nel Diritto privato italiano. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2011. p. 116, tradução livre. 2 Conforme afirma Francesco Santoro-Passarelli, "o inadimplemento não pode ser deduzido nem mesmo em condição resolutiva expressa, ou verdadeira, exatamente porque diz respeito ao funcionamento do negócio" (Dottrine generali del diritto civile. 9. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 2012. p. 199, tradução livre). 3 Sobre a possível automaticidade da resolução, confira-se Aline de Miranda Valverde Terra. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 141 et. seq. 4 João Manoel de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. 10. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1963. v. 8. p. 397.
Introdução  O presente artigo se destina a registrar o estudo que realizamos, para investigar se o proprietário do terreno, cedido para a incorporação imobiliária, pode vir a ser responsabilizado, solidariamente com o incorporador, perante os consumidores adquirentes prejudicados, pelas perdas e danos por estes sofridos, em decorrência de eventual insucesso do empreendimento. Nos detivemos a analisar as hipóteses, em que o proprietário firma, com o incorporador, um contrato de promessa de compra e venda ou de cessão de direitos sobre o terreno, para pagamento em prestações, ou um contrato de permuta, por meio do qual promete vender o seu imóvel para o incorporador, aceitando, como pagamento, total ou parcial, unidades autônomas do futuro empreendimento, a lhe serem oportunamente conferidas (artigos 32, "a" e 39 da lei 4.591/64, e 167, I, alíneas 9 e 30, da lei 6.015/73). Após estudo da legislação, doutrina e jurisprudência, chegamos à conclusão que o proprietário do terreno poderá, ou não, vir a ser responsabilizado, perante os consumidores prejudicados, solidariamente com o incorporador, e demais partícipes da incorporação imobiliária, pelo insucesso do empreendimento, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Responsabilidade do proprietário  A responsabilidade do proprietário surgirá se, além do contrato de promessa ou de permuta de seu terreno, firmado com o incorporador, vier a participar, de alguma forma, da incorporação, ou praticar atos próprios incorporativos.  Se o proprietário, no entanto, se restringir a firmar o contrato de alienação de seu imóvel com o incorporador, acreditamos não possa vir a sofrer tal responsabilização. Primeiro, porque o art.31, caput, da lei 4.591/64, é expresso em atribuir, ao incorporador, e não ao proprietário, a responsabilidade pelas incorporações imobiliárias. Em segundo lugar, porque o art.40, parágrafo 2º, do mesmo diploma legal, estabelece que em vindo a ocorrer a rescisão do contrato de alienação do imóvel, firmado entre o proprietário e o incorporador, a responsabilidade do primeiro, relativamente aos consumidores das unidades autônomas, deverá corresponder à devolução, aos mesmos, da parcela da construção acrescida à sua propriedade. Em vindo a malograr o empreendimento da incorporação imobiliária, e isto ocasionando a rescisão do contrato de alienação, firmado entre o proprietário e o incorporador, por falta de pagamento do preço ajustado do terreno, em favor do primeiro, sejam prestações e/ou  unidades autônomas, consolida-se, em favor do proprietário alienante, o direito sobre a construção porventura realizada em seu terreno, em decorrência do início das obras do empreendimento (art.40, § 1º, da lei 4.591/73). Como esta construção não existia, antes do contrato de alienação, e passou a existir, com o emprego das parcelas pagas pelos consumidores contratantes das unidades autônomas, é justo que estes recebam, de volta, o valor apurado da construção, evitando-se, assim, o enriquecimento sem causa do proprietário. Mas apurar, dividir e devolver o valor da construção, aos consumidores finais prejudicados, é uma obrigação limitada, não se confundindo com a reparação de todos os danos materiais e morais, que venham a sofrer, pelo insucesso da incorporação. Até porque esta construção pode nem sequer ter chegado a existir, hipótese em que nenhuma responsabilidade recairá sobre o proprietário, que agiu apenas como tal. Isto significa que, agindo como mero proprietário, o fundamento da responsabilidade deste último, perante os consumidores das unidades autônomas prejudicados, não é a relação contratual estabelecida entre estes e o incorporador, mas sim evitar o seu enriquecimento sem causa. Também o art.30 da Lei nº 4.591/64, ao elencar uma das hipóteses em que o proprietário deve ser equiparado ao incorporador, está a evidenciar que, para que tal equiparação ocorra, o proprietário precisa praticar atos que vão além do exercício dos poderes inerentes à propriedade, tal como construir edificações em sua propriedade, em regime condominial, iniciando suas vendas, antes de estarem prontas, atividade esta que, como se exporá mais abaixo, é típica da incorporação imobiliária. São nesse sentido os julgados que encontramos, do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da responsabilidade do proprietário, que apenas cede o seu terreno para a incorporação.1 No mesmo sentido, vem se posicionando o Tribunal de Justiça de São Paulo.2 Prosseguindo na análise da situação do proprietário, que se limita a ceder o seu terreno, para o incorporador, sem praticar atos de incorporação imobiliária, mas agora à luz do Código de Defesa do Consumidor - CDC (lei 8.078/90), é de se observar que, realmente, não chega a integrar a cadeia da relação de consumo, que culmina com a celebração dos contratos de promessa de compra e venda das unidade autônomas com os consumidores finais. Conforme ensina Cláudia Lima Marques3, fazem parte da cadeia da relação de consumo, todos os atores que unem esforços para uma "finalidade comum". A finalidade comum, no negócio da incorporação imobiliária, é a obtenção de lucro com o empreendimento, por meio da venda de frações ideais do terreno vinculadas a futuras unidades autônomas. O proprietário, que apenas cede o seu terreno para o incorporador, não adere a tal finalidade, sendo sua pretensão, única e exclusivamente, vender o seu imóvel e receber, por ele, o devido pagamento. Ou seja, não se torna o proprietário "fornecedor" no mercado de consumo, nos termos do art.3º do Código de Defesa do Consumidor - CDC, que considera como tal, apenas, aqueles que "desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". Nesse sentido, o posicionamento que encontramos, do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado na ementa do Resp. 686.198/RJ4 e na ementa a seguir: PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. INEXECUÇÃO CONTRATUAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO DO TERRENO. INAPLICABILIDADE DO DIREITO DO CONSUMIDOR. (...) 2. A Lei de Incorporações (Lei n. 4.591/1964) equipara o proprietário do terreno ao incorporador, desde que aquele pratique alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, atribuindo-lhe, nessa hipótese, responsabilidade solidária pelo empreendimento imobiliário. 3. No caso concreto, a caracterização dos promitentes vendedores como incorporadores adveio principalmente da imputação que lhes foi feita, pelo Tribunal a quo, dos deveres ínsitos à figura do incorporador (art. 32 da Lei n. 4.591/1964), denotando que, em momento algum, sua convicção teve como fundamento a legislação regente da matéria, que exige, como causa da equiparação, a prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, ou seja, da promoção da construção da edificação condominial (art. 29 e 30 da Lei 4.591/1964). 4. A impossibilidade de equiparação dos recorrentes, promitentes vendedores, à figura do incorporador demonstra a inexistência de relação jurídica consumerista entre esses e os compradores das unidades do empreendimento malogrado. 5. Recurso especial provido. (REsp 1065132/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/06/2013, DJe 01/07/2013). Realmente, responsabilizar o proprietário, pelo insucesso do empreendimento, quando tenha apenas cedido o seu terreno para o incorporador, seria o mesmo que responsabilizar o proprietário de um imóvel, que o aluga para um restaurante, pelos danos causados por este, a um consumidor final, por ter-lhe fornecido comida estragada. Não teria nenhum cabimento. Isto, evidentemente, pressupondo-se que o proprietário tenha tomado as cautelas devidas e de praxe, para evitar alugar ou vender o seu imóvel, para pessoas ou empresas inescrupulosas ou evidentemente incapacitadas. Situação diferente se verifica, no entanto, se o proprietário, além de ceder o seu terreno para o incorporador, vem a participar, de alguma forma, do próprio empreendimento, praticando algum ato típico de incorporação imobiliária. Importante aqui definirmos o que caracteriza uma atividade como sendo de incorporação imobiliária. Segundo Castro Filho5, o que caracterizaria tal atividade, seria a venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em condomínio edilício, em construção ou objeto de projeto de construção.               Castro Filho narra que Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto, que deu origem à lei 4.591/64, teria preferido conferir destaque à promoção da construção, ao invés da venda, para caracterizar a atividade de incorporação imobiliária, mas sua pretensão não fora acolhida, tendo sido aprovada a atual redação do art.29, caput,  da referida lei, segundo a qual: Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a têrmo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.  Assim, segundo Castro Filho, e outros doutrinadores por ele citados, a lei 4.591/64 teria optado por conferir, à venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em construção ou a serem construídas, o traço mais característico e identificador da atividade de incorporação imobiliária. No nosso entendimento, para se compreender, corretamente, a  atividade de incorporação imobiliária, deve-se conjugar o supra transcrito art.29, caput, que dá destaque à venda, com o parágrafo único do art.28, ambos da lei 4.591/64, referindo-se este último à incorporação imobiliária, como a atividade desenvolvida com o intuito de promover e realizar a construção de edificações, para a alienação de unidades autônomas. A incorporação se caracteriza, fundamentalmente, como uma atividade de comercialização de unidades autônomas, que estão sendo ou serão construídas, em edifícios, ou conjunto de casas, para funcionarem em regime condominial. Se verifica quando o consumidor é chamado, ou se propõe a comprar um imóvel na planta, que ainda não existe, pois se a venda das unidades ocorrer somente após a conclusão das obras, e expedição do habite-se, não mais se estará diante de uma atividade de incorporação imobiliária. Como ressalta Castro Filho6, é uma aquisição de risco para o consumidor, baseada na confiança, pois se compromete a comprar, e começa a pagar, por algo que ainda não existe. Tratar-se-ia, na verdade, segundo o autor, de captação antecipada de poupança popular, sem a existência de órgão específico para capacitar e fiscalizar o incorporador. Assim, e com razão, Castro Filho alerta para a necessidade do consumidor pesquisar muito bem a idoneidade do incorporador, a quantidade e a qualidade das obras por ele já entregues, antes de assinar o contrato. Mas, muito embora a incorporação imobiliária se caracterize, fundamentalmente, pela venda ou promessa de venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em construção ou a serem construídas, em regime condominial, trata-se de um negócio bem mais complexo, por envolver todas as atividades necessárias para a implementação do empreendimento, e para possibilitar a entrega das unidades autônomas, afinal, aos consumidores, na forma e no prazo prometidos nos contratos, na publicidade e nas ofertas realizadas. Assim, se inclui na atividade de incorporação imobiliária, a procura de um terreno apropriado para o desenvolvimento do projeto; a sua compra ou promessa de compra, junto ao proprietário, quando o incorporador não for o dono do terreno; a reunião da documentação necessária e a tomada de providências para obtenção do registro da incorporação, perante o Cartório de Registro de Imóveis competente (art.32 da lei 4.591/64); a divulgação do empreendimento; a construção da obra ou a sua contratação; a confecção e a assinatura dos contratos com os consumidores, e assim por diante. Ou seja, tudo que diga respeito ao empreendimento, e seja necessário para a sua concretização e comercialização, é atividade de incorporação imobiliária, ainda que haja delegação de sua execução para terceiros. Desta forma, se o proprietário do terreno vier a praticar atos típicos de incorporação imobiliária, não se restringindo a uma mera posição de vendedor do imóvel, responderá como se incorporador fosse, de forma solidária e objetiva, juntamente com todos os demais atores promoventes do empreendimento, pelos danos patrimoniais e morais sofridos pelos consumidores, pelo insucesso do negócio (artigos 7º, § único, 12º e 18º do CDC). Por exemplo, se o proprietário vier a providenciar o registro da incorporação imobiliária; a contratar a construção da obra ou a construí-la; a auxiliar na comercialização das unidades autônomas; a receber parte das parcelas pagas pelos consumidores; a divulgar o empreendimento e/ou a captar consumidores, etc. Em todas estas hipóteses, o proprietário passará a integrar a cadeia da relação de consumo, pois terá contribuído, com sua conduta, para o empreendimento, tornando-se "fornecedor" no mercado de consumo, com todas as responsabilidades e riscos advindos desta posição, nos termos dos artigos 3º, 7º, § único, 12º e 18º do CDC. Neste sentido é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, inclusive nos lembrando da importância da teoria da aparência, como um dos fundamentos para a responsabilização do proprietário que se apresenta como incorporador, perante o consumidor.7 O Tribunal de Justiça de São Paulo vem, da mesma forma, exigindo a prova da participação do proprietário do terreno, na incorporação imobiliária, para reconhecer sua responsabilidade, na reparação dos danos sofridos pelos consumidores das unidades autônomas.8 Conclusão Concluindo, para se poder aferir a existência de responsabilidade do proprietário, pelo insucesso do empreendimento, frente aos consumidores finais das unidades autônomas prejudicados, há que se analisar, caso a caso, se o mesmo participou, contribuiu ou praticou atos próprios de incorporação imobiliária, ou se se limitou a ceder o seu terreno para o incorporador. Na primeira hipótese, sua responsabilidade será solidária com o incorporador, e poderá ser cobrada em juízo, o mesmo não ocorrendo na segunda, quando sua responsabilidade se limitará a devolver, aos consumidores, o valor apurado de eventual construção realizada em seu terreno e incorporada à sua propriedade.  *Dora Bussab é graduada em Direito pela USP. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo - MPSP. Procuradora de Justiça aposentada da Procuradoria de Difusos e Coletivos do MPSP. Coordenou o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Consumidor, assessorou a Procuradoria Geral de Justiça, integrou o Conselho Superior e o Órgão Especial do MPSP. Advogada. Consultora jurídica.  Referências bibliográficas CASTRO FILHO, H. P. Breve estudo sobre a atividade de incorporação imobiliária. Jus Navegandi, 2011. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2021. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. BRASIL. Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Disponível aqui. Acesso em abr. 2021. BRASIL Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em abr. 2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em abr.2021. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em junho de 2021. FGV. Curso de Direito Imobiliário. Módulos I e II. Posse e Propriedade. Condomínio e Incorporações Imobiliárias. Abr.2021. __________ 1 REsp. 1537012/RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 20/06/2017, DJe 26/06/2017; REsp. 656.457/DF, Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07/10/2010, DJe 14/10/2010; REsp. 686.198/RJ, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/10/2007, DJ 01/02/2008, p. 1. 2 Apelação Cível 1003945-60.2015.8.26.0322, Relator Rodolfo Pellizari,  6ª Câmara de Direito Privado, Foro de Lins - 2ª Vara Cível, julgada em 23/09/2020, data do registro 23/09/2020; Apelação Cível 1015069-80.2016.8.26.0071, Relator Salles Rossi, 8ª Câmara de Direito Privado, Foro de Bauru - 7ª Vara Cível, julgada em 10/06/2020, data do registro 10/06/2020; Agravo de Instrumento 2191854-59.2017.8.26.0000, Relatora Christine Santini, 1ª Câmara de Direito Privado, Foro de Santos - 9ª Vara Cível, julgado em  03/04/2018, data de registro 04/04/2018.   3 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. Pag.402. 4 Vide nota de roda pé número 1. 5 CASTRO FILHO, H. P. Breve estudo sobre a atividade de incorporação imobiliária. Jus Navegandi, 2011. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2021. 6 CASTRO FILHO, H. P. Breve estudo sobre a atividade de incorporação imobiliária. Jus Navegandi, 2011. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2021. 7 REsp. 1360269/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 08/03/2019; Resp. 1536354/DF, Rel. Ricardo Vilas Boas Cueva, julgado em 07.06.2016, DJe 10/06/2016; REsp. 830.572/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/05/2011, DJe 26/05/2011. 8 Apelação Cível 0025027-92.2012.8.26.0477, Relatora Angela Lopes, 9ª Câmara de Direito Privado, Foro de Praia Grande - 2ª Vara Cível, julgada em 28/07/2020, data do registro 28/07/2020.
Na última semana, foi sancionada pelo Presidente da República o projeto de lei de conversão da Medida Provisória 1.040/2021, denominada de MP do Ambiente de Negócios. Agora, o texto foi integralizado na lei 14.195/21. Algumas novidades foram tratadas na referida lei, como a extinção das denominadas empresas individuais de responsabilidade limitada (Eireli), tendo em vista a criação da sociedade limitada unipessoal através da Lei da Liberdade Econômica. Outra novidade interessante, foi a criação do art. 206-A do Código Civil, que dispõe sobre a prescrição intercorrente: "A prescrição intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão observadas as causas de impedimento, de suspensão e de interrupção previstas neste Código e observado o disposto no artigo 921 da Lei 13.105 de 16/3/2015 (Código de Processo Civil)". No dia 30/08/2021, o Instituto Brasileiro de Direito Processual publicou em suas redes sociais Manifestação formal em sentido contrário à forma como fora criada a referida lei, sustentando que teria havido "violação aberta aos cânones do devido processo legislativo"1. No art. 58 da referida lei 14.195/21, o legislador estipulou a produção dos seus efeitos. No caso do art. 246 do CPC, salvo melhor juízo, já produz efeitos desde sua efetiva publicação. Em outras palavras, pode ser aplicado por parte do Poder Judiciário. Tentando evitar entrar no mérito sobre a forma como a lei fora devidamente constituída, o presente artigo visa fazer breves comentários sobre a criação do novo art. 246 do CPC que, por sua vez, determinou que as citações serão, a partir de agora, preferencialmente por meio eletrônico. Tal novidade legislativa afetará, de agora em diante, as construtoras, imobiliárias e empresas atuantes no mercado imobiliário. Feitas as considerações iniciais, passemos à análise do dispositivo legal em si. Dispõe o caput do art. 246 do CPC o seguinte: "A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça". No seu §1º, está prevista a obrigação das empresas públicas e privadas em manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio.  Porém, encaminhada a citação por meio eletrônico, se a empresa não encaminhar qualquer tipo de aviso de recebimento? Esta resposta está prevista no §1º-A do artigo: "A ausência de confirmação, em até 3 (três) dias úteis, contados do recebimento da citação eletrônica, implicará a realização da citação: I - pelo correio; II - por oficial de justiça; III - pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório; IV - por edital". Em outras palavras, sendo encaminhada a citação por meio eletrônico e a empresa não confirmando o recebimento, não será dada por citada. A parte autora, diante da inércia da contraparte, deverá requerer a citação pelas formas tradicionais elencadas pelo parágrafo acima indicado. Porém, sendo realizada a citação mediante um dos quatro incisos acima colacionados, o demandado poderá apresentar sua defesa. Nesse momento, nos termos do art. §1º-B, deverá apresentar justa causa para a ausência de confirmação do recebimento da citação enviada eletronicamente. Este ponto é crucial. O que é considerado, para o legislador, justa causa? Nesse ponto, voltaremos ao velho debate sobre a possibilidade de discricionariedade do julgador prevalecer. Infelizmente, o legislador, ao trazer essa novidade legislativa, optou por não elencar possíveis justificativas que poderiam evitar a penalidade prevista em lei (§1º-C do art. 246 do CPC). Deixou a critério do juiz, mediante o caso concreto, determinar quais serão os casos que se enquadrariam numa possível justa causa. O autor, em outros escritos, enfrentou essa temática. Recentemente, em artigo publicado com o Prof. Lenio Streck2, chegamos a indagar: qual é o limite interpretativa da lei? O juiz pode fazer coisas, mas não pode tudo. E as que pode, deve fundamentar. E essa fundamentação não pode ser qualquer uma. Ou nenhuma. Aliás, aqui basta fazer menção aos incisos do artigo 489, parágrafo 1º. do mesmo CPC. Feitas essas considerações, seguimos. O legislador, ao prever a penalidade pela não confirmação do recebimento da citação por meio eletrônico, dispôs o seguinte: "Considera-se ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% (cinco por cento) do valor da causa, deixar de confirmar no prazo legal, sem justa causa, o recebimento da citação recebida por meio eletrônico". Aqui, pode-se fazer outro comentário. Por quê o legislador não seguiu o mesmo parâmetro estipulado no art. 334, §8º do CPC (multa de 2% em caso de não comparecimento injustificado na audiência de conciliação ou mediação)? Parece que, no caso da citação por meio eletrônico, o legislador atribuiu maior importância. De que forma essa novidade legislativa pode afetar o Direito Imobiliário? Acredita-se que, a partir de agora, deverão as empresas criarem mecanismos para filtrarem e efetivamente receberem essas citações, seja com um endereço de e-mail específico, seja com um número de telefone celular cuja finalidade seja, justamente, estar cadastrado no banco de dados do Poder Judiciário. Esses cuidados são ainda mais importantes para aquelas grandes empresas que, costumeiramente, litigam em nossos Tribunais. A multa pode, num primeiro momento, não parecer muito significativa. Porém, se pensarmos em um universo de dezenas e centenas de ações, pode se transformar em algo impagável. Me encaminhando para o final, acredito que a intenção do legislador em criar o art. 246 do CPC foi válida. Porém, faltou um pouco de critério e parâmetros para a sua aplicação. No momento em que ele, em seu §1º-A retorna aos meios tradicionais, transparece uma falta de convicção que, infelizmente, pode resultar em um atraso ainda maior no processo. Novamente, antes de finalizar, o presente artigo não tem como objetivo esgotar o assunto (muito pelo contrário!). Apenas suscitar maior debate sobre a temática. *Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS, associado do IBRADIM e da AGADIE. Rede social: @demetriogiannakos. __________ 1 Disponível aqui. 2 A prescrição e o artigo 3º da Lei nº 14.010/2020: como interpretar?
Em quase vinte e cinco anos de vigência, não foram poucas as ameaças à exequibilidade da lei 9.514/97, especificamente ao instituto da alienação fiduciária de bens imóveis. Nestas mais de duas décadas o Poder Judiciário foi o responsável por algumas das alterações legislativas que sucederam decisões inovadoras e regraram o procedimento extrajudicial de excussão do imóvel, como por exemplo a obrigatoriedade de intimação pessoal do devedor sobre as datas do leilão (artigo 27 §2º-A), ou a faculdade do devedor de purgar a mora até momento anterior à assinatura do auto de arrematação (artigo 26-A §2º), disposições incluídas na lei após jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça. Atualmente tramita na Corte Superior o Tema 1.095 que visa definir sobre a prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia. O mote deste artigo, entretanto, não versa sobre o precedente vinculante que irá se formar com o julgamento do Repetitivo mas, apenas, sobre julgados isolados dos atuais Ministros do Superior Tribunal de Justiça que vêm atraindo a atenção dos advogados atuantes no contencioso imobiliário, que possam, talvez, futuramente se tornarem novas alterações legislativas. Recentemente, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu por negar provimento ao Recurso Especial nº 1.906.475/AM interposto pelo Banco Safra S.A., que, em resumo, objetivava a reforma de acórdão que negou provimento a apelo da própria instituição financeira, interposto contra sentença que decidiu dar provimento a pedido de anulação de leilão extrajudicial promovido por devedora fiduciante em razão da ausência de sua intimação pessoal sobre as datas dos leilões extrajudiciais. No caso em comento, a devedora fiduciante esquivou-se ao recebimento da intimação pelo cartório de notas por três vezes, fazendo com que o credor promovesse à sua intimação por edital. O fundamento do acórdão da Terceira Turma foi no sentido de que esta modalidade de intimação, pelo texto da lei, destina-se apenas a casos em que o devedor se encontre em local ignorado, incerto ou inacessível, o que não era o caso, e ainda, que a intimação por edital deveria ser precedida da tentativa de intimação via correspondência postal, o que também não havia sido tentado pelo credor. O cenário fático do caso é um manual de instruções ao devedor de má fé: empréstimo à pessoa jurídica garantido por alienação fiduciária de imóvel de propriedade de uma das sócias, a qual se furta ao recebimento da notificação, não permite que o oficial se dirija ao seu apartamento para intimá-la e nem que o porteiro receba a intimação. A despeito de o oficial do cartório de títulos e documentos ter fé pública, comumente presenciamos casos de nulidade de todo o procedimento pelo Poder Judiciário em razão de intimação "deficiente". No centro de tais discussões sempre reside a intimação por edital. A introdução do §3º-A ao artigo 26 pela lei 13.465/2017 acresceu à lei 9.514 a possibilidade de intimação por hora certa pelo oficial, e ainda o §3º já continha previsão de intimação via correio com aviso de recebimento. Tais medidas devem ser adotadas antes da intimação por edital a fim de evitar a nulidade posterior do procedimento. Outro julgado que merece análise de seus fundamentos sobre possíveis desdobramentos futuros é o Agravo Interno em Recurso Especial nº 1.873.334/SP. Neste julgado, sob a relatoria do Ministro Marco Buzzi, a Quarta Turma entendeu por excluí-lo como representativo da controvérsia levantada no Tema 1.095, antes citado, porque na hipótese o devedor fiduciante não havia sido constituído em mora, mas sim solicitado a resolução contratual antes da inadimplência. O ponto de atenção in casu seria a perigosa distinção realizada pela Turma a respeito da rescindibilidade a pedido do devedor daquela ocorrida pela inadimplência, indicando que haveria então possibilidade do STJ entender por equiparar a compra e venda garantida com alienação fiduciária a um compromisso de compra e venda. Ainda neste assunto, a Terceira Turma no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1757802/DF, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, entendeu por aplicar o Código de Defesa do Consumidor e autorizar a resolução da escritura pública de compra e venda de lote com alienação fiduciária em garantia, preterindo a lei 9.514/97, em razão da inadimplência da loteadora na entrega das obras, e desinteresse do adquirente na continuidade do contrato. O acórdão, da mesma forma que o julgado de relatoria do Ministro Marco Buzzi anteriormente citado, entendeu que a resolução contratual a pedido do devedor fiduciante escapa da aplicabilidade da lei 9.514/97 em razão da redação do artigo 26: Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante... Para os ministros, forma-se uma distinção da resolução contratual pela inadimplência do fiduciante, ocasião em que a lei 9.514 deve ser observada, e aquela pretendida antes da sua constituição em mora, quando então o contrato de alienação fiduciária seria passível de rescisão. Registre-se que em ambos os casos a alienação fiduciária foi firmada com a empresa incorporadora e loteadora, e não com instituição financeira, situação em que não seria possível voltar ao status quo ante. Em outra seara de discussão, o Ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto vencido no julgamento do Recurso Especial nº 1.395.275/MG, dava provimento a recurso interposto por devedores fiduciantes sob o argumento da impenhorabilidade de bem de família, ainda que tais devedores tivessem dado o imóvel em garantia a pagamento de empréstimo contraído por pessoa jurídica cujo um dos devedores era sócio. O julgado acima data de 2014. Em julgado mais recente, datado de 2019, o mesmo Ministro, como relator do Recurso Especial nº 1.595.832/SC, revisou seu posicionamento anterior e desta vez rejeitou a proteção de bem de família a imóvel oferecido como garantia fiduciária de empréstimo. Contudo, anulou todo o procedimento extrajudicial de excussão do bem em razão de erro material na qualificação do credor fiduciário na notificação à purga da mora. Explica-se: naquele caso concreto a Caixa Econômica notificou a devedora à purga da mora, porém, o instrumento de cessão de crédito com a instituição financeira financiadora que firmou o contrato com a devedora somente foi firmado e averbado na matrícula meses depois da notificação. A Caixa não era, formalmente, detentora do crédito à época do início do procedimento extrajudicial. Neste caso, o Ministro Salomão entendeu que a intimação deve seguir os mesmos requisitos intrínsecos ao processo, dentre eles, a legitimidade. A lição que se extrai destes entendimentos isolados dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça é a de que o exequente da garantia fiduciária deve estar atento aos procedimentos em seus detalhes mínimos, e antever possíveis alegações de nulidade, por vezes extrapolando as exigências legais, a fim de escapar de eventual invalidade completa do procedimento. Ocasião em que, inclusive, pode ocorrer a prescrição de parcelas executadas. Notadamente o maior ponto de reflexão reside na resolução do contrato de alienação fiduciária a pedido do devedor antes de sua constituição em mora. Caso se consolide o entendimento de que a alienação fiduciária é uma garantia apenas a um contrato de mútuo, e não também a um parcelamento do pagamento do preço pelo próprio vendedor, rasgando-se os ditames da lei, o próprio instituto da alienação fiduciária de imóvel em garantia, viabilizado pelas incorporadoras e loteadoras, restará ameaçado.
quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Leis anti-Airbnb - O que vem por aí

Quando ainda no Brasil analisamos as repercussões da decisão do Superior Tribunal de Justiça1 que possibilitou que condomínios residenciais decidam sobre a utilização das unidades para fins de hospedagem por intermédio de plataformas digitais, são muitas as cidades do mundo que nos últimos anos se ergueram contra este tipo de estadas de curta duração (short-stay ou short-term rental), aprovando leis e regulamentos que buscam proibi-las ou restringi-las, as novas leis que surgiram já são conhecidas como leis anti-Airbnb. Diga-se de passagem, que a decisão não autoriza a proibição de locações por aplicativos, mas, sim aquelas, que em razão da oferta de serviços possam desvirtuar o caráter residencial sendo passíveis de vedação pela convenção condominial.2 Contudo, o acordão solucionou a controvérsia pontualmente, não estando afetado como recurso repetitivo, portanto sem vincular a mesma solução para todos os casos análogos. Feito esse importante registro, prosseguimos.  1. Introdução Airbnb, fundada em San Francisco em 2008, se tornou em poucos anos uma das maiores empresas de turismo do mundo com presença global sendo um dos principais representantes da "economia do compartilhamento". Trata-se de uma plataforma de aluguel de hospedagens, que permite que qualquer pessoa disponibilize ou reserve acomodações ao redor do mundo. Nos últimos anos apareceram diversas plataformas digitais com o mesmo escopo de proporcionar mecanismos de locação/hospedagem, porém com nichos específicos de mercado, dentre outras podemos citar Booking, Casai, Charlie, Nomah, ou Housi com operação recorrente no Brasil. A facilidade de conectar locatários/hóspedes e locadores/anfitriões fazem dessas plataformas uma excelente alternativa para viagens, lazer ou até trabalho da nova geração nômada, mais apegada ao uso que à propriedade. Ademais trata-se de uma forma de valorização da propriedade e obtenção de renda suplementar para os proprietários de apartamentos, já que os valores e rentabilidade costumam ser muito mais altos nas curtas que nas longas estadas. A Lei do Inquilinato, permite a locação por temporada com estadas de até 90 dias, sem estabelecer um prazo mínimo, onde o locador poderá cobrar antecipadamente o aluguel. Expirado o prazo contratual, que não poderá exceder de noventa dias e não admite prorrogação ou aditivo, disporá o locador de até trinta dias para ajuizar ação de despejo, do contrário, há automática prorrogação de contrato, somente sendo possível a denúncia vazia depois de 30 meses.3 Há entendimentos de que a natureza jurídica do contrato envolvendo a plataforma Airbnb e similares seria híbrida ou mista, traduzindo-se num contrato sui generis por envolver aspectos da locação e da hospedagem, com preponderância desta última.4 Independentemente da natureza jurídica são muitos os condomínios que visando problemas de segurança ou convivência decidiram banir ou restringir este tipo de locações de curta duração (short-stay) nos últimos tempos. Em paralelo, duas cidades, Caldas Novas e Ubatuba, foram pioneiras no Brasil na criação de leis para regulação dos aluguéis de curta temporada tipo "hospedagem" exigindo o cadastro das unidades, recolhimento de impostos e taxas, assim como autorização na convenção de condomínio.5  2. Regulações internacionais O resto do mundo não é alheio a essa discussão e além do binômio propriedade-vizinhança atinge a preocupação pelo acesso à moradia e transformação urbana dos bairros. Dessa forma, urbanistas pleiteiam que nos bairros centrais das grandes capitais turísticas, a oferta de apartamentos para aluguel de longo prazo diminua, visto que unidades residenciais são usadas para acomodar visitantes temporários. A consequência imediata dessa redução da oferta é o aumento dos preços de aluguel e compra. Ademais, relatam consequências tangíveis e reais, sob a forma de gentrificação6, expulsão de população residente e, em última instância, perda de habitabilidade nos bairros pela substituição de moradores por turistas. Nos últimos anos dois novos vocábulos, turistificação e turismofobia, se popularizaram para definir essas novas situações.7 O primeiro deles, refere-se às cidades ou bairros invadidos pelo turismo de massas, levando à perda de identidade dos destinos urbanos, ou seja, o comércio, serviços, meios de transporte ou espaço público. Este fenômeno, que atualmente está derivando em problemas graves, afeta significativamente cidades como Veneza, Paris ou Barcelona entre outras. Devido à turistificação e à chegada massiva do turismo, existe uma aversão ou rejeição social do turismo por parte dos cidadãos locais; isso é conhecido como turismofobia. Principalmente, é causado pela falta de planejamento dos destinos turísticos e aparece quando a capacidade de carga de um destino é excedida, causando problemas de degradação urbana e ambiental, o que produz rejeição e desconforto por parte dos residentes. Com esse intuito, nos Estados Unidos várias cidades já impuseram restrições às locações de curta duração como Nova York, San Francisco, Santa Mónica, Las Vegas ou Nova Orleans entre outras. Para a municipalidade de Nova York, nesses bairros onde operam as plataformas com contratos de locação de curta duração (short-term rental), além de problemas de segurança e conforto, a oferta de moradias disponíveis diminui e o caráter distintivo da comunidade se transforma. Por tais razões, o tempo mínimo permitido de locação em Nova York é de 30 dias, caso se contrate por períodos inferiores, o proprietário precisa obrigatoriamente morar nesse local e estar presente durante toda a estada.8 Preocupada com a segurança dos apartamentos em caso de emergência ou incêndio, exige que as portas internas não tenham fechaduras que permitam aos hóspedes trancar os quartos, todos devem ter acesso a todos os quartos da unidade, de forma a não criar barreiras que dificultem a fuga. Os proprietários ficam responsáveis por garantir a segurança em conformidade com a normativa vigente estadual e municipal, sob pena de avultadas multas. Em 2019 sob o lema "você nunca pode saber quem tem a melhor pizza do mundo, mas você pode saber como prevenir aluguéis de curto prazo ilegais" lançou uma grande campanha de publicidade solicitando a colaboração dos próprios hóspedes e vizinhos para denunciar este tipo de locações de menos de 30 dias.9 Na Europa uma aliança de 22 cidades pressionou à Comissão Europeia por regras mais rígidas que regulem o mercado de aluguéis de curto prazo. Essas cidades alegam que a modalidade de aluguel de curta duração converte residências em hotéis e reduz drasticamente a disponibilidade de moradias disponíveis para locação convencional.10 De fato, o Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu conforme ao direito europeu a normativa francesa que somete a prévia autorização municipal, por meio de licença, às unidades destinadas a locação de curta temporada.11 Para a corte europeia de justiça a luta contra a escassez de habitação para aluguel de longa duração, com o objetivo de dar respostas à deterioração das condições de acesso a moradia e aumento das tensões no mercado imobiliário, constitui uma razão imperiosa de interesse geral que justifica essa regulamentação. A lei francesa prevê que a atividade de aluguel turístico mobiliado só pode ser exercida em instalações de uso residencial após obtenção pelo titular de uma autorização específica concedida pela câmara municipal.12 Os regulamentos aplicáveis para as locações de curto prazo (também chamados de "turísticos") diferem dependendo se é uma residência principal ou secundária. Assim Paris, só permite aos proprietários que aluguem sua residência principal durante 120 dias ao ano.13 Aqueles que ultrapassarem esse limite e aluguem a sua residência principal por mais de 4 meses nos últimos 12 correm o risco de uma multa de 5.000 a 10.000 euros. O processo de autorização é declaratório e permite obter imediatamente um número de registro que deverá ser exibido nos anúncios na internet. Além disso, o proprietário deverá pagar uma taxa de turismo. Quando se trate de segunda residência14 se estabeleceu um complicado mecanismo de compensação, nesse caso o proprietário deverá apresentar outras instalações não residenciais localizadas no mesmo distrito ou bairro, tais como escritórios ou lojas, e se comprometer a transformar em habitação cuja superfície seja o dobro do imóvel arrendado.15 Este requisito excessivamente restritivo serviu para desencorajar proprietários com vários imóveis e empresas que operavam nesse segmento em grande escala. Ademais, as multas consideráveis por incumprimento da legislação podem ser impostas tanto aos proprietários como às plataformas. Diante disso, Airbnb montou uma ferramenta que bloqueia automaticamente anúncios que excedam o limite legal de 120 dias. Barcelona é uma das principais cidades que mantém uma implacável guerra contra a plataforma Airbnb e com o bordão de fazer da cidade uma referência mundial do turismo sustentável impôs importantes multas à plataforma para obrigar a remover os anúncios daquelas hospedagens16 que não contavam com autorização municipal. Inclusive, culpou às plataformas pela concentração de turistas em determinados bairros, o excesso de barulho e festas, assim como do aumento do preço do aluguel. Todavia, a normativa municipal da Cidade de Barcelona, além da autorização, exige mais requisitos, como a adequação ao plano especial urbanístico (PEUAT), onde estabelece uma série de zonas específicas, nas quais, é limitado com mais ou menos intensidade a implementação e expansão das atividades turísticas.17 Além da normativa municipal deverá ser cumprida a estadual de uso turístico da Catalunha que estabelece um máximo de 15 hóspedes ou, caso seja inferior, o limite constante no certificado de conclusão (habite-se).18 A unidade deve estar suficientemente mobiliada e equipada com os eletrodomésticos e utensílios necessários para uma ocupação imediata. Aliás, o proprietário ou administrador deverá entregar aos usuários do imóvel documento que inclua as regras de convivência acordadas pelo condomínio. Este documento deve ser redigido, no mínimo, em catalão, espanhol, inglês e francês. Por outro lado, o proprietário, deve garantir um serviço de assistência e manutenção do apartamento, assim como um telefone para resolver de forma imediata possíveis incidências. Por sua vez, o apartamento deverá apresentar em local visível e de fácil localização o número de inscrição no registro de turismo de Catalunha. (NIRTC) Como se não bastasse, em fevereiro deste ano a municipalidade de Barcelona entendeu que o mercado estava saturado, e considerando que existiam suficientes unidades turísticas, suspendeu as novas licenças de hospedagens turísticos durante os próximos dois anos.19 Por seu turno, a cidade de Madri, com base em suas competências municipais em disciplina urbana e preocupada com os perigos e consequências do que chama de "turistificação" 20, isto é, a massificação de turistas com sobrecarga do espaço público e serviços pela população flutuante, aprovou em 2019 um plano especial de usos.21 O plano especial divide a cidade em zonas, delimitadas por três anéis concêntricos ou cinturões com diferentes limitações em relação à atividade de curta duração. Com esta divisão, Madri segue uma estratégia de descentralização na cidade e dispersão dos apartamentos de uso turístico afastando-os do centro urbano, quanto mais afastados, mais fácil será a obtenção da autorização municipal. Por outro lado, nas zonas centrais a regulamentação é mais restrita exigindo acesso independente e localização em plantas baixas e primeiros andares. Os apartamentos, ademais, necessitarão de uma licença turística para operar que será emitida a nível estadual pela Comunidade de Madri. 3. Conclusões   Em síntese, a discussão não se esgota aqui e nos próximos meses veremos avivar conflitos condominiais, assim como propostas de regulação para tentar banir ou restringir estadas de curta duração confrontando direitos de propriedade com direitos de vizinhança.22 No contexto internacional o assunto, como ficou demonstrado, se amplia com considerações urbanísticas que salientam a diminuição de locações tradicionais, aumento progressivo dos preços e a transformação dos bairros. Com independência das considerações jurídicas e específicas que atentem a classificar estas estadas como locação por temporada, hospedagem ou hospedagem atípica entendemos que no debate precisaremos ver, caso a caso, o que está sendo contratado assim como a vocação do prédio como um todo. Assim, nos últimos anos em São Paulo vêm surgindo grandes empreendimentos de uso misto, bem localizados, com apartamentos menores, dotados de serviços, para atender a este tipo de locações que entendemos nascem com essa consideração e vocação para responder ao mercado de locação de curta duração. Por outro lado, empreendimentos de caráter familiar com unidades maiores e com um predominante uso residencial, poderão ser objeto de certas restrições, na convenção condominial, uma vez que não foram concebidos para estadas de curta duração. Contudo, o diálogo é muito mais amplo e a construção de um marco regulatório será fruto da participação de todos os envolvidos que não podem dar as costas às novas tecnologias e tendências que chegaram para ficar. *Antonio Blanco é advogado. Mestre em Planejamento e Urbanismo pela Universidade Pontificia de Comillas (Madri, Espanha), Mestre em Administração de Empresas pelo Instituto de Empresa e pós-graduado em Direito Imobiliário pela FGV Direito- SP. __________ 1 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 1.819.075.  2 Terra, Marcelo. Ainda o STJ e o aluguel residencial por temporada. Fonte: Estadão em 30/08/2021. Disponível aqui.  3 Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Artigos 48º a 50º.  4 Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi e Maria Lígia Coelho Mathias. O sistema Airbnb e sua relação com o direito de propriedade e condomínio edilício. Revista Argumentum - RA, eISSN 2359-6889, Marília/SP, V. 20, N. 2, pp. 625-650, Mai.-Ago. 2019.  5 Lei 4140, de 25 de janeiro de 2019, disciplina a instalação e funcionamento do meio de hospedagem remunerado em residência com prestação de serviços no município de Ubatuba/SP, e dá outras providências e Lei Complementar 99/2017 que regulamenta a exploração de imóveis residenciais como meio de hospedagem remunerada no município de Caldas Novas (GO), e dá outras providências.  6 A socióloga britânica Ruth Glass criou o termo "Gentrification" (gentrificação) em 1964 para se referir às alterações no mercado imobiliário em certas áreas de Londres como causa ou consequência da chegada progressiva de populações de classe média e alta em bairros da capital que até então tinham sido ocupados por trabalhadores. O termo é derivado de "Gentry", que se refere à burguesia britânica.  7 González Fernández, Cristina. Gentrificación y turismofobia: el caso de Barcelona. Dissertação para a obtenção do título em Turismo pela Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales Universidad de León. 2018.  8 New York State Multiple Dwelling Law (MDL), Article 1, Sections 4-7, 4-8.a.  9 "You may never know who has the 'world's best pizza', but you can know how to prevent illegal short-term rentals". "If you're 'hosting' guests for less than 30 days and you're not home, your landlord could take legal action."   10 Disponível aqui.  11 Tribunal de justiça da União Europeia de 22 de setembro de 2020. Assuntos acumulados C-724/18 e C-727/18.  12 Code de la construction et de l'habitation. Article L631-7.  13 Informações disponíveis aqui.    14 Uma segunda residência é aquela ocupada por menos de 8 meses por ano. A lei considera que existe apenas uma residência principal e que, consequentemente, os outros imóveis são residências secundárias.  15 Règlement municipal fixant les conditions de délivrance des autorisations de changement d'usage de locaux d'habitation et déterminant les compensations en application de la section 2 du chapitre 1er du titre III du livre VI du Code de la construction et de l'habitation. Article 2º.  16 Utilizamos hospedagem aqui em sentido amplo, porém, a normativa de Barcelona diferencia entre: Habitatges d'ús turístic, Apartaments turístics, Llars compartides, Albergs de joventut e Residències colectives docents d'allotjament temporal.  17 Plan Especial Urbanístico para la Ordenación de los establecimientos de Alojamiento Turístico, Albergues de Juventud, Residencias colectivas de alojamiento Temporal y Viviendas de Uso Turístico (PEUAT 2019 e PEUAT 2021).  18 Decreto 75/2020, de 4 de agosto, de turismo de Catalunha.  19 Boletín Oficial de la Provincia de Barcelona de 1 de febrero de 2021.  20 "La turistificación es un fenómeno de expansión descontrolado del alojamiento turístico, sobre todo en aquellas zonas centrales de una ciudad, y que tiene o puede tener efectos muy negativos sobre la vida de sus ciudadanos. Las consecuencias de esta especialización de los barrios de una ciudad como Madrid, en base a la actividad turística, es la transformación del comercio; la masificación y el sobreuso del espacio público, con el coste añadido que tiene de cara a los servicios públicos; la sustitución de la vivienda permanente de los residentes habituales por población flotante, fundamentalmente turistas, y la expulsión de estos residentes; el deterioro de la convivencia vecinal y en última instancia, la pérdida de identidad de estos barrios". Em memoria do Plan Especial. PEH.  21 Plan Especial de regulación del uso de servicios terciarios en la clase de hospedaje (PEH). Boletín oficial de la Comunidad de Madrid (BOCM) del 23 de abril de 2019. 22 No âmbito federal o PL 2474, de 2019. Altera a lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 e exige expressa previsão na convenção de condomínio para a locação para temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação em condomínios.
Um fenômeno curioso vem sendo observado no mercado imobiliário brasileiro nos últimos tempos, notadamente no segmento da incorporação imobiliária, consubstanciado na crescente oferta pública de unidades imobiliárias futuras por meio de "Associações Pró-Construção".1  Em algumas cidades brasileiras já são milhares de unidades imobiliárias colocadas à venda no mercado nos derradeiros anos, o que merece, sem margem para dúvida, uma acurada análise dessa prática, das suas implicações e reflexos nos adquirentes e na sociedade como um todo.2  Inicialmente, é importante conceituar os institutos jurídicos, com o fito de estabelecer os seus limites e alcances, e, ainda, destacar as suas implicações práticas e riscos não só para os diretamente envolvidos nesse suposto "novo modelo de negócio", mas, também, para toda a sociedade.  Nos termos da legislação civil vigente3, uma associação é uma pessoa jurídica de direito privado, constituída pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos, ou seja, uma associação oferta produtos ou serviços aos seus associados, que titularizam posição jurídica de pertencimento, estabelecendo, por meio do estatuto, a forma de organização, participação e as respectivas contribuições para o alcance de uma finalidade comum, razão pela qual não se verifica a assimetria que é usual na relação polarizada entre fornecedores e consumidores no mercado para consumo. Não se pode olvidar que, nos casos mais típicos, as atividades desenvolvidas pela associação são determinadas, planejadas e executadas pelos próprios associados, o que nos faz concluir que o fluxo normal e esperado - sob uma perspectiva legal - de uma "Associação Pró-Construção" seria iniciado com a formação de um grupo, desenvolvimento e aprovação de projetos com seus respectivos custos e fluxo de desembolso, e, por fim, a execução da obra por meios próprios ou mediante a contratação de uma construtora, tudo isso sem fins econômico-lucrativos, e exclusivamente em benefício dos seus associados, sem oferta pública ao mercado.  Por outro lado, a incorporação imobiliária consiste na atividade empresarial complexa de promoção e realização de construção, para alienação total ou parcial de edificação ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas, nos termos do art. 284 da lei 4.591/1964, cuja definição de incorporador está prevista no art. 295 do mesmo diploma legal.  Melhim Namem Chalhub assim caracteriza as incorporações imobiliárias: "No campo dos negócios imobiliários, a expressão incorporação imobiliária tem o significado de mobilizar fatores de produção para construir e vender, durante a construção, unidades imobiliárias em edificações coletivas, envolvendo uma série de medidas no sentido de levar a cabo a construção até a sua conclusão, com a individualização e discriminação das unidades imobiliárias no Registro de Imóveis."6 Orlando Gomes e Maria Helena Diniz definem a Incorporação Imobiliária como a operação que "consiste em obter o capital necessário à construção do edifício, mediante venda, por antecipação, dos apartamentos de que se constituirá".7  Nesse sentido, no campo das responsabilidades do incorporador, quanto ao conteúdo, assume perante os adquirentes uma obrigação de resultado, quanto à natureza, consiste em uma obrigação de fazer, composta pela construção do empreendimento e transferência efetiva das unidades autônomas aos seus adquirentes, nos termos do art. 438 da lei 4.591/1964. Pois bem, o problema surge quando essas "Associações Pró-Construção" subvertem o curso legal e esperado de constituição de qualquer associação, notadamente quando são essas empresas que adquirem ou prometem adquirir o terreno, desenvolvem os projetos e seus respectivos custos e fluxos de desembolso, denominam os empreendimentos, criam o estatuto, celebram a assembleia inaugural de eleição do corpo diretivo, e, por fim, saem ao mercado fazendo oferta pública para atraírem adquirentes sob a denominação de "associados", por meio de ostensiva campanha publicitária nas redes sociais, stand de vendas, e, ainda, com a contratação e remuneração de corretores de imóveis e imobiliárias.  Essa oferta pública caracteriza-se pela publicização e prospecção de não associados, seja por meio presencial, anúncios na imprensa tradicional ou em redes sociais, veiculados com frases atrativas e com intuito de captar clientes sob a denominação de associados, como por exemplo: "breve lançamento", "faça a sua adesão", "venha conhecer o futuro empreendimento", dentre outros. Nessa quadra, a oferta pública acompanhada da reunião e coordenação dos fatores de produção com objetivo econômico descaracterizam e fulminam o preceito básico de uma associação, que consiste, como dito, na união de pessoas que se organizam para fins próprios e não econômicos, ou seja, uma "Associação Pró-Construção" tem como objetivo específico e inafastável a construção de unidades imobiliárias autônomas exclusivamente para os seus associados e não para o mercado como um todo. Com efeito, uma vez descaracterizada essa estrutura associativa, as empresas que atuam dentro dessa dinâmica devem ser enquadradas como Incorporadoras Imobiliárias, assumindo todos os riscos, custos e carga tributária aplicável a qualquer incorporadora do mercado imobiliário. Essa descaracterização implica, também, no reconhecimento dessas empresas como fornecedoras, submetendo-as, dessa forma, à legislação consumerista, e, por tratar-se de oferta de unidade imobiliária futura, também à Lei de Incorporações (lei 4.591/1964) e Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973). Qual é a relevância dessa conceituação? Em relação aos efeitos na seara consumerista, é preciso fazer as seguintes indagações: 1) Os associados/adquirentes são plenamente informados de que "não estão adquirindo um imóvel", e que estão, na verdade, "construindo um edifício", assumindo integralmente todo o "risco do negócio"? 2) Estão os adquirentes sendo informados de que, na hipótese de insolvência da Associação, eles podem responder inclusive com o patrimônio próprio? 3) Os associados/adquirentes são plenamente informados de que a empresa organizadora da Associação não prestará garantia ou assistência técnica pelos eventuais vícios construtivos e estruturais, de forma que qualquer problema superveniente deverá ser absorvido pelos próprios associados/adquirentes? Pois bem. Uma vez caracterizadas como fornecedoras, essas "Associações Pró-Construção" somente poderiam negociar unidades autônomas após o arquivamento, no competente cartório de registro de imóveis, do Memorial de Incorporação, nos termos do art. 32 da lei 4.591/19649, sob pena de sujeição às sanções penais previstas nos arts. 6510 e 6611 da Lei de Incorporações, por tratar-se de matéria de ordem pública, cujo bem jurídico tutelado é a economia popular. Com efeito, somente o registro do Memorial de Incorporação confere fé pública registral, assegurando aos adquirentes a legítima confiança sobre a idoneidade do incorporador para captação dos recursos, execução da obra, entrega das unidades e liquidação do passivo da incorporação, e ainda, é nesse documento que se encontra a perfeita e pormenorizada descrição do empreendimento e das unidades, com o seu respectivo orçamento e cronograma físico-financeiro. Nessa quadra, entendendo que as "Associações Pró-Construção" são, na verdade, incorporadoras, essas seriam obrigadas a responder pela qualidade, solidez e habitabilidade dos empreendimentos, obrigando-se a reparar, as suas próprias expensas, eventuais vícios construtivos, e, ainda, fornecer a devida assistência técnica aos adquirentes durante todo o período legal de garantia, assumindo exclusivamente a responsabilidade civil perante os adquirentes, terceiros e coletividade. No que toca à matéria de ordem econômica e tributária, Incorporadoras travestidas de "Associações Pró-Construção" não recolhem devidamente os impostos municipais, estaduais e federais aplicáveis a qualquer incorporadora - o que caracteriza prejuízo aos cofres públicos - e, ainda, violam a ordem econômica e concorrencial, cujo bem jurídico tutelado é a coletividade em si considerada12.  A outro giro, nesse modelo de negócio, repisa-se, nas hipóteses de incorporadoras disfarçadas de "Associações Pró-Construção", não há o correto recolhimento dos emolumentos cartoriais, o que impacta no orçamento do Poder Judiciário, especificamente no aprimoramento intelectual dos servidores e magistrados, e, ainda, na ampliação e construção de prédios, aquisição de equipamentos e investimento em tecnologia, ou seja, na melhoria constante dos serviços disponibilizados à coletividade, nos termos das legislações estaduais.  Ainda, as "Associações Pró-Construção" que promovem a oferta pública de unidades imobiliárias autônomas e futuras, aproximando clientes travestidos de "associados" e intermediando negócios imobiliários, sujeitam-se, em alto grau de risco, a incorrerem na contravenção relativa à organização do trabalho, consubstanciada no exercício ilegal da atividade de corretor de imóveis e violação da lei 6.530/1978.  Assim, não se trata de "um novo modelo de negócio", muito pelo contrário, essas "Associações Pró-Construção" tentam fazer uma remontagem do cenário caótico que precedeu a edição da lei 4.591/1964, em que os promotores do empreendimento atuavam sem limitações legais e sem assumirem os riscos do negócio, "nadando livremente neste mar sem controle"13, contudo, com pequenas alterações, consubstanciadas na transferência dos riscos do negócio aos adquirentes, viabilizada mediante adesão a "Associações Pró-construção", sem prévio registro de Memorial de Incorporação, em flagrante violação das normas de ordem pública instituídas pela Lei de Incorporação Imobiliária.  Por fim, a matéria é extensa e seus efeitos ultrapassam a esfera privada e as relações firmadas entre os associados/adquirentes e as "Associações Pró-Construção", de modo que resta imperiosa a atuação dos órgãos de controle, entidades de classes, poder público e toda a sociedade para identificar as burlas e fraudes, submetendo os responsáveis às medidas apuratórias e sancionatórias nas esferas administrativa, controladora e judicial. Referências bibliográficas AMARAL, Diego. Um risco incalculável: Cooperativas Habitacionais travestidas de Incorporadoras. Disponível aqui. Acesso em 31 ago. 2021. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2021. ________. Lei 4.591, de 16 de dezembro 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Diário Oficial da União, Atos do Poder Legislativo. Brasília, DF, 21 dez. 1964. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2021. ________. Lei 6.530, de 12 de maio 1978. Dá nova regulamentação à profissão de Corretor de Imóveis, disciplina o funcionamento de seus órgãos de fiscalização e dá outras providências. Diário Oficial da União, Atos do Poder Legislativo. Brasília, DF, 15 mai. 1978. Disponível aqui. Acesso em: 31 ago. 2021. ________. Lei 10.406, de 10 de janeiro 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Atos do Poder Legislativo. Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível aqui. Acesso em: 31 ago. 2021. ________. Lei 12.529, de 30 de novembro 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a lei 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da lei 8.884, de 11 de junho de 1994, e a lei 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Atos do Poder Legislativo. Brasília, DF, 15 mai. 1978. Disponível aqui. Acesso em: 31 ago. 2021. ________. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Ação Civil Pública nº 202010401173. 4ª Vara Cível da Comarca de Aracaju/SE. Disponível em: https://www.tjse.jus.br/portal/consultas/consulta-processual. Acesso em: 30 ago. 2021. CHALHUB, Melhim Namen. Incorporação imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019. GOMES, Orlando. Direitos reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 305; e DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 11ª ed. São Paulo: 1996. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. Rio de Janeiro: Forense, 3ª. ed., 1976. *Pedro Ernesto Celestino Pascoal Sanjuan é mestre em Direito. Especialista em Direito Imobiliário. Graduado em Direito. Graduado em Economia. Presidente da Comissão de Direito Imobiliário, Notarial e Registral da OAB/SE. Diretor em Sergipe do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM). Membro do Conselho Jurídico da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CONJUR/CBIC). Membro da Comissão de Direito Notarial e Registral do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM). Membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário do Conselho Federal da OAB. Membro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Aracaju (CONDURB). Pesquisador no grupo de pesquisa "Constitucionalismo, Cidadania e Concretização de Políticas Públicas". Advogado. Palestrante. Parecerista. Autor de livros e artigos jurídicos. __________ 1 Em Goiás, esse fenômeno vem sendo desenvolvido por meio de Incorporadoras travestidas de "Cooperativas Habitacionais", sobre esse assunto, consultar: AMARAL, Diego. Um risco incalculável: Cooperativas Habitacionais travestidas de Incorporadoras. Disponível em: https://emsuadefesa.com.br/um-risco-incalculavel-cooperativas-habitacionais-travestidas-de-incorporadoras/. Acesso em 31 ago. 2021. 2 Em Sergipe esse número ultrapassou 1.600 unidades, inclusive existe uma Ação Civil Pública em andamento discutindo esse modelo de negócio (Autos nº 202010401173 - 4ª Vara Cível de Aracaju/SE). 3 Lei 10.406/2020 - Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. 4 Lei 4.591/1964 - Art. 28. As incorporações imobiliárias, em todo o território nacional, reger-se-ão pela presente Lei. Parágrafo único. Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas, (VETADO). 5 Lei 4.591/1964 - Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a têrmo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas. 6 CHALHUB, Melhim Namen. Incorporação imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019. p.7. 7 GOMES, Orlando. Direitos reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 305; e DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 11ª ed. São Paulo: 1996. p. 493. 8 Lei 4.591/1964 - Art. 43. Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas. 9 Lei 4.591/1964 - 32. O incorporador sòmente poderá negociar sôbre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos. 10 Lei 4.591/1964 - Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sôbre a construção do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sôbre a construção das edificações. PENA - reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal vigente no país. 11 Lei 4.591/1964 - Art. 66. São contravenções relativas à economia popular, puníveis na forma do artigo 10 da lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951. 12 Lei 12.529/2011 - Art. 1º Esta Lei estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Parágrafo único. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei. 13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. Rio de Janeiro: Forense, 3. ed., 1976, p. 251.
Na semana passada, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, reformou aquela que, desde 1/10/2020, ficou conhecida como a primeira sentença proferida com base na Lei Geral de Proteção de Dados. No acórdão, proferido na sessão de julgamento realizada em 24/08/2021, a relatora, Maria do Carmo Honório acolheu as razões de apelação da empresa Cyrela para afastar a condenação que havia sido estipulada no ano anterior em razão de supostos danos morais que o autor, advogado especializado em propriedade intelectual, havia alegado ter sofrido em função de publicidade por mensagens de WhatsApp, e-mails e ligações que afirmou ter recebido. Em síntese, tentou imputar à empresa Cyrela a responsabilidade por tais contatos, alegando que referida empresa teria indevidamente divulgado seus dados de contato para terceiros e, por isso, pediu indenização de R$ 60.000,00 e liminar para que cessasse a suposta divulgação de seus dados e os contatos indesejados, sob pena de multa diária. Na sentença, a juíza da 13ª Vara Cível do Foro Central da Capital havia julgado procedentes os pedidos, porém condenando a empresa a uma indenização de R$ 10.000,00, tendo invocado para tanto a LGPD e o Código de Defesa do Consumidor. O acórdão, publicado ontem, 1/9/2021, é um marco extremamente importante não só para o mercado imobiliário - que tem como um de seus maiores ativos a confiança de seus clientes com o tratamento das informações por eles fornecidas - como, também, para a própria maturidade das relações B2C (business-to-consumer, em inglês, ou empresa-consumidor, em português), uma vez que estabelece importantes premissas a serem observadas na aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados. A primeira delas é o marco temporal a ser respeitado para a incidência da nova lei, ponto em que o acórdão foi cirúrgico ao afirmar que "embora a MM. Magistrada a quo tenha também aplicado a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD - lei 13.709/2018) ao caso em rela, não havia fundamento para tanto, eis que, quando da contratação do empreendimento da Cyrela pelo autor (10 de novembro de 2018 - págs. 55/106) e do suposto vazamento de dados, ela ainda não estava em vigor" (destaques nossos). Percebe-se, portanto, que foi confirmada, como regra de início incidência temporal, como não poderia deixar de ser, o momento da celebração da contratação, ou lato sensu, do começo da relação entre as partes; o que foi, inclusive, reforçado pela relatora com a citação de trecho do acórdão proferido no julgamento do REsp 1.694.405-RJ, no qual se concluiu que "a regra a ser utilizada para a resolução de uma dada controvérsia deve levar em consideração o momento de ocorrência do ato ou, em outras palavras, quando foram publicados os conteúdos infringentes"; arrematando, ainda, a relatora, quanto a esse ponto, dizendo que "a regra geral é, pois, a irretroatividade da norma". Outro ponto de suma relevância e que servirá de norte para a parametrização de julgamentos futuros e que fatalmente servirá de forte desestímulo à propositura de ações buscando indenização por danos morais com fundamento em atos corriqueiros da vida em sociedade é o fato de o acórdão ter estabelecido, também como regra a ser observada, a imprescindibilidade de existência nos autos de mais que meras alegações e argumentos para comprovar o dano. Isso porque expressamente o acórdão concluiu no caso em questão, que "não há prova inequívoca de que foi a requerida quem repassou os dados pessoais do requerente aos prestadores de serviços que o contataram por e-mail e mensagens de WhatsApp (págs. 107/146)" (destaques nossos). O acórdão foi ainda mais contundente ao destacar, em sua fundamentação, que "Em que pese a informação de uma das prestadoras que entrou em contato com o autor sobre o acesso a mailing por meio de 'portal de construtoras' (pág. 145), este fato, por si só, não identifica a ré como a responsável pelo alegado vazamento dos dados, máxime porque outra informou que trabalhavam 'com diversas parcerias', arrematando: 'não sei ao certo quem passou o seu Contato' (pág. 111)." (destaques nossos); bem como, no mesmo sentido, que, "as referências ao nome do empreendimento, por si só, não são suficientes para provar a autoria do suposto vazamento de informações" e que, por isso, "a prova não é segura no sentido de que foi a Cyrela quem repassou seus dados a terceiros, de tal modo que não é possível verificar o nexo de causalidade a justificar a condenação da requerida como pleiteado na petição inicial". O julgado se estabelece de fato como um marco jurisprudencial no tocante às relações jurídicas tuteladas pela LGPD e os limites e requisitos a ela aplicáveis, principalmente quanto à matéria probatória ao ter definido, de forma basilar, os parâmetros gerais a serem observados nesse sentido. Isso porque a relatora foi didática ao esclarecer que "não restou comprovado nenhum fato do qual se possa inferir o efetivo dano extrapatrimonial, muito menos por conduta ilícita da ré, e, sem a demonstração deste, não há fundamento para imposição da obrigação de indenizar" (destaques nossos), indicando claramente que o Tribunal Bandeirante está se alinhando no sentido de não permitir condenações com base em tal espécie de alegação sem que haja fatos que comprovem a real ocorrência de dano moral, mesmo sob alegação de suposta infringência à Lei Geral de Proteção de Dados. Também foi aplicado ao âmbito das supostas violações de intimidade o entendimento já praticado anteriormente pelo Tribunal de que o mero aborrecimento não gera dano moral, tendo assim expresso no recentíssimo acórdão: "As alegadas ligações, mensagens e e-mails recebidos pelo autor, ainda que de forma reiterada e apesar de causar incômodo, não caracterizam, por si só, violação de intimidade. Na realidade, nas circunstâncias apresentadas, elas não ultrapassaram a esfera do mero aborrecimento" (destaques nossos). Por fim, vale ressaltar trecho que deverá ressoar em julgamentos futuros envolvendo alegação de danos em função de contatos tidos por indesejados; trecho esse em que a relatora, de modo claro e preciso concluiu que "O consumidor, no caso, independentemente da autoria das mensagens, não sofreu nenhum ônus excepcional, a não ser aquele que todo ser humano tem que aprender a suportar por viver numa sociedade tecnológica, frenética e massificada, sob pena da convivência social ficar insuportável". Como se depreende dos trechos acima transcritos do recentíssimo acórdão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, com esse entendimento, mostra sua maturidade e plena capacidade de corresponder aos desafios que a nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais vem trazendo desde sua entrada em vigor, garantindo aos titulares dos dados a correta defesa de seus direitos sem por outro lado avançar sobre as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, devidamente protegidos neste que se torna o primeiro passo para o desenvolvimento de um efetivo sistema interpretativo da LGPD. Para um infográfico ilustrativo dos fatos, alegações e decisões relacionados ao processo, clique aqui. *Rubens Carmo Elias Filho é advogado com mais de 25 anos de experiência na área imobiliária, sócio responsável pelas áreas de direito imobiliário e contencioso cível imobiliário do Elias, Matias Advogados. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também obteve o título de especialista lato sensu em Direito Empresarial. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Professor de Graduação e Pós-Graduação em Direito Civil e Direito Notarial e Registral da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP. Presidente da Comissão de Condomínios do IBRADIM. Presidente do Conselho Deliberativo da AABIC. Professor e Palestrante em diversas instituições de ensino, entre elas PUC/SP, EPM, EPD, FGV e INSPER. Autor de dezenas de artigos jurídicos na área de Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário. **Ricardo Augusto de Castro Lopes é advogado associado do Elias, Matias Advogados, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de São Paulo, desde 2003. Atua no contencioso cível empresarial estratégico em direito imobiliário, Lei Geral de Proteção de Dados, propriedade intelectual e direito do consumidor. Bacharel em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, com master em Estudos da União Europeia pela Universidade Livre de Bruxelas - ULB e em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESP-SP.
Em 10 de agosto de 2021, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de resolução extrajudicial de compromisso de compra e venda na hipótese de exercício de direito decorrente de cláusula resolutiva expressa (art. 474 do Código Civil)1-2. No caso específico, o Superior Tribunal de Justiça entendeu ser possível a propositura de ação possessória sem a necessidade de ajuizamento prévio de ação de resolução, tendo em vista a regular constituição em mora do promissário comprador, o decurso do tempo sem o adimplemento e o exercício de direito decorrente da cláusula resolutiva expressa presente no compromisso. A decisão inova completamente o que era, até então, o entendimento da Corte. Há anos, o Superior Tribunal de Justiça se manifesta no sentido de que, ainda que existente cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel, seria necessária a resolução por meio do Poder Judiciário3: "a jurisprudência do STJ entende que é imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos. Precedentes" (AgInt no AREsp 1278577/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/09/2018, DJe 21/09/2018). Assim, para o ajuizamento de ação de reintegração de posse pelo promitente vendedor, ele deveria, em primeiro lugar, ajuizar ação de resolução, independentemente do exercício prévio de direito de resolução decorrente de cláusula resolutiva expressa, sob pena de extinção da ação possessória por falta de interesse de agir. Já tivemos a oportunidade de nos manifestar a respeito do tema, criticando o entendimento, tanto jurisprudencial quanto doutrinário4, no sentido de que, no ordenamento jurídico brasileiro, não seria possível a resolução extrajudicial do compromisso de compra e venda de imóvel5. Notadamente, tal entendimento esvazia por completo a eficácia da cláusula resolutiva expressa nesse contrato, cuja legislação específica apenas impõe a necessidade de interpelação para constituição em mora (mora ex persona)6, e não a vedação de resolução extrajudicial do compromisso7. Conforme pontua de maneira precisa Pontes de Miranda, a constituição em mora e a resolução consistem em "momentos inconfundíveis"8. Nesse sentido, ainda que a lei imponha o ônus de constituir em mora o promissário comprador que não paga o preço, isso não impede que o promitente vendedor, após a constituição em mora e verificado o decurso do prazo para sua purga, exerça o direito de resolução extrajudicialmente, caso se valha de cláusula resolutiva expressa. Embora nunca tenha havido proibição legal para que o compromisso de compra e venda de imóvel pudesse ser resolvido extrajudicialmente, por manejo da cláusula resolutiva expressa, o próprio legislador buscou meios de deixar essa possibilidade ainda mais clara, notadamente em razão de consolidado entendimento, tanto dos tribunais quanto da doutrina, em sentido contrário. A lei 13.097/2015 alterou o Decreto-lei 745/69, que dispõe sobre a mora do promissário comprador nos compromissos de compra e venda de imóvel não loteado, inserindo a seguinte previsão (art. 1º, parágrafo único): "Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora". Buscou-se, com a alteração legal, atender "às exigências de celeridade do mercado imobiliário"9, por meio da redução do dispêndio de tempo e de recursos para a obtenção de provimento jurisdicional declaratório ou constitutivo da resolução, permitindo - nos termos do que já previa o art. 474 do Código Civil - a resolução extrajudicial do compromisso. No entanto, mesmo após a mudança legislativa, ainda havia resistência ao reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda10. O recente posicionamento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o credor lesado pelo inadimplemento não necessita obter judicialmente a prévia resolução judicial do compromisso para reaver a posse de seu imóvel é, assim, importante conquista para o direito privado. O reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda dá maior autonomia às partes, que podem, por si próprias, obter a pacificação dos seus conflitos sem necessidade de provimento jurisdicional. Conforme bem apontou a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça: "a vantagem da estipulação expressa é que, ocorrendo a hipótese específica prevista no ajuste, o efeito resolutório da relação negocial disfuncional subsistirá independentemente de manifestação judicial, sendo o procedimento para o rompimento do vínculo mais rápido e simples, em prestígio à autonomia privada e às soluções já previstas pelas próprias partes para solução dos percalços negociais". Cumpre salientar, por fim, que o reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel não consiste em impedimento, ao promissário comprador, de acesso ao Judiciário. Conforme apontado pelo Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer a eficácia da cláusula nesse contrato: "em hipóteses excepcionais, quando sobressaírem motivos plausíveis e justificáveis para a não resolução do contrato, sempre poderá a parte devedor socorrer-se da via judicial a fim de alcançar a declaração de manutenção do ajuste (...)". Observa-se, portanto, que a decisão da Quarta Turma transfere ao promissário comprador o ônus de demonstrar situação excepcional que impede o exercício do direito de resolução extrajudicial, mas não impossibilita seu exercício de direito de defesa. É o caso, por exemplo, de pedido de concessão de efeito suspensivo em agravo de instrumento contra decisão que determinar a reintegração na posse, ou mesmo de ação autônoma visando à preservação do contrato após o recebimento de notificação extrajudicial do promitente vendedor para resolver o compromisso. Caberá à jurisprudência e à doutrina, agora, contribuir para deixar claros os parâmetros para aferir quais seriam essas "hipóteses excepcionais" que obstariam o exercício do direito de resolução extrajudicial do compromisso de compra e venda de imóvel, a fim de conferir a segurança jurídica necessária no mercado imobiliário e de consumo. *Bruna Duarte Leite é bacharel em Direito e mestranda em Direito Civil pela USP. Sócia do escritório Kairalla Advogados. __________ 1 Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial. 2 Informativo de jurisprudência n. 0704, disponível aqui. Acesso em 17/08/2021. 3 REsp 204.246/MG, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 24/2/2003; REsp 620.787/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/04/2009, DJe 15/06/2009; AgInt no AREsp 1278577/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/09/2018, DJe 21/09/2018. 4 Azevedo Jr., José Osório de. Compromisso de compra e venda de imóvel, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 150/152 e 178/179; Rizzardo, Arnaldo. Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano: leis 6.766/79 e 9.785/99. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 141; Venosa, Sílvio de Salvo. Compromisso de compra e venda com eficácia real. Direito do promitente comprador. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. ano 1. n. 1. Porto Alegre. Julho/agosto de 2004, p. 89. 5 Disponível aqui; Leite, Bruna Duarte. A eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel não loteado à luz do decreto-lei 745-69. In: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 3. Dez/2019. pp. 39/64. 6  Lei 6.766/79: Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor. Decreto-lei 745/69: Art. 1º  Nos contratos a que se refere o art. 22 do decreto-lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. 7 É  o que entende Aline de Miranda Valverde Terra: "Posto a operatividade da cláusula resolutiva expressa seja amplamente reconhecida pela jurisprudência, quando a demanda versa sobre promessa de compra e venda de imóveis, o cenário muda, e parte das decisões exige que a resolução se processe judicialmente.3 Todavia, não parece haver, nesses casos, fundamento jurídico que justifique o afastamento do regime legal da cláusula resolutiva expressa. Embora se reconheça que semelhantes contratações envolvem, muitas vezes, especial interesse do promitente comprador - aquisição da casa própria -, revestindo-se de relevância social justificadora da intervenção protetiva do Estado, é preciso considerar, como antes sublinhado, que a própria lei já flexibilizou a disciplina do Código Civil ao exigir a notificação do promitente comprador para constituição em mora, mesmo que do contrato conste termo para adimplemento. Todavia, a única peculiaridade que referidas leis impõem é a notificação para constituição em mora, após a qual, não havendo pagamento e presente a cláusula resolutiva expressa, a resolução se opera extrajudicialmente". Disponível aqui. 8 Tratado de Direito Privado, t. XIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, pp. 158/159. 9 Leite, Bruna Duarte. A eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel não loteado à luz do Decreto-lei 745-69. In: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 3. Dez/2019. pp. 39/64, p. 53. 10 Em agravo de instrumento julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o desembargador relator reconheceu a existência da alteração legal, mas afirmou ainda sim ser necessária a declaração judicial da resolução, com base nos princípios do contraditório e ampla defesa. Cf.: TJSP, AI no 2207849-49.2016.8.26.0000, 8a Câm. Direito Privado, r. Des. Silvério da Silva, j. 5.12.2016. Apesar da resistência, foi possível observar a alteração de entendimento em alguns julgados o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, reconhecendo a eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda, a saber: TJSP, AI no 2079575-67.2016.8.26.0000, 1a Câm. Direito Privado, r. Des. Rui Cascaldi, j. 6.7.2016; TJSP, AI n. 2146861-62.2016.8.26.0000, 1ª Câm. Direito Privado, r. Des. Rui Cascaldi, j. 13.12.2016; TJSP, AI no 20218665-21.2018.8.26.0000, 1a Câm. Direito Privado, r. Des. Rui Cascaldi, j. 10.05.2018.
Introdução Importante consulta foi formulada pelos Oficiais de Justiça Avaliadores da Subseção de Barueri nos autos do Processo SEI 0001579-79.2021-SUMA endereçada ao juiz federal corregedor da Ceman-Barueri. O cerne da discussão baliza-se no bom cumprimento dos mandados e diligências em geral a serem executados em relação a pessoas residentes ou bens situados em condomínios edilícios residenciais. Nas razões expostas na consulta, transcreveu-se a dificuldade no cumprimento de mandados cujos endereços se referem a condomínios residenciais, tendo sido aludidas as seguintes considerações e solicitações no contexto fático experimentado pelos oficiais de justiça, in verbis: Os porteiros, chefes de portaria e administradores das empresas de segurança desses locais tem se recusado a prestar informações sobre o fato de a pessoa mencionada no mandado residir ali ou não, sob o fundamento de estarem obrigados ao sigilo imposto pela Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2.018 - Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Obviamente, tais informações são essenciais para o cumprimento das determinações não só deste E. Juízo, mas também daquelas oriundas de cartas precatórias aqui recebidas. (...) Assim, SOLICITAMOS a Vossa Excelência providências no sentido de determinar que as Secretarias desta Subseção passem a constar nos mandados a INTIMAÇÃO dos Senhores Porteiros, Chefes de Segurança e Administradores dos Condomínios para que informem ao Oficial de Justiça Avaliador em diligência se a pessoa nominada no mandado reside no endereço ali indicado, ou em qualquer outro local daquele Condomínio. É o que cumpre a informar Oficiais de Justiça Avaliadores da Subseção de Barueri. Em resposta à consulta solicitada pelos Oficiais de Justiça, o juiz corregedor sinaliza que os mandados judiciais, cartas precatórias, cartas de ordem, cartas rogatórias e outras formas de determinação judicial dirigida àqueles, na qualidade de agentes públicos ao prestarem auxílio ao juízo e por expressarem a atuação jurisdicional por meio da execução concreta dessas comunicações processuais, deverão observar os termos dessa orientação. Em suas justificativas, reforçaram-se as atribuições de auxílio direto do juízo ao desempenhar o seu ofício respaldado no artigo 154 do Código de Processo Civil, extraindo-se da situação noticiada quatro questionamentos essenciais, sendo os três primeiros implícitos e o último expresso: Item (a) as convenções dos condomínios e loteamentos edilícios urbanos podem impedir, condicionar ou retardar o acesso de oficial de justiça àquele local, quando esse auxiliar do juízo nessa condição lá se apresenta para dar cumprimento à ordem judicial relacionada à pessoa ou a bem em tese localizável dentro do condomínio? Item (b) os porteiros, os seguranças, o chefe ou supervisor de segurança, o diretor de segurança, o síndico, ou qualquer outra pessoa que se apresente ou seja apresentada como representante, preposto ou responsável pelo controle de acesso a esses condomínios e loteamentos - sejam essas pessoas condôminos, autônomos contratados, empresas, empregados dos quadros próprios do condomínio, ou empregados de empresas terceirizadas - podem impedir, condicionar ou retardar o acesso do oficial de justiça àquele local, quando esse auxiliar do juízo nessa condição lá se apresenta para dar cumprimento à ordem judicial relacionada à pessoa ou a bem em tese localizável dentro do condomínio? Item (c) os porteiros, os seguranças, o chefe ou supervisor de segurança, o diretor de segurança, o síndico, ou qualquer outra pessoa que se apresente ou seja apresentada como representante, preposto ou responsável pelo controle de acesso a esses condomínios e loteamentos - sejam essas pessoas condôminos, autônomos contratados, empresas, empregados dos quadros próprios do condomínio, ou empregados de empresas terceirizadas - têm o dever jurídico de colaborar na prestação das informações necessárias, requisitadas pelo oficial de justiça, para o fim de identificação e de localização da pessoa ou bem objeto do ato judicial (prisão, citação, intimação, busca, penhora, avaliação, apreensão etc) sob cumprimento? Item (d) A Lei Federal nº 13.709, de 14 de agosto de 2.018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD, pode ser legitimamente invocada pelas pessoas descritas nos itens acima como fundamento jurídico legítimo impeditivo a que prestem informações requisitadas pelo oficial de justiça quando tais informações sejam relacionadas e necessárias ao eficiente cumprimento da ordem judicial objeto da diligência?" (Grifos nossos) As respostas aos questionamentos acima transcritos emitidas pelo juiz corregedor elucidam a atuação oficial do Poder Público de forma imperativa nos espaços territoriais sem qualquer limitação à jurisdição nacional, e ressalta que: A organização residencial ou comercial em condomínios serve, entre outros objetivos, para atuar no atendimento de interesses comuns legítimos de seus residentes, bem assim na garantia da segurança e da privacidade dessas pessoas e do patrimônio particular contra a ação de particulares, e não contra a atuação oficial do Poder Público. As estruturas de segurança dos condomínios e dos loteamentos evidentemente não podem servir de anteparo, de proteção, à eficiente atuação oficial do poder estatal. Esses espaços territoriais não estão, portanto, alheios à atuação oficial do Estado, representada por suas atividades jurisdicional, legislativa e executiva (executiva stricto sensu, de polícia ou regulatória). Assim, sobre não serem figuras constituídas e em funcionamento à margem do regramento e atuação oficial do Estado, os condomínios e loteamentos se sujeitam à atividade institucional dos entes e das entidades da Administração Pública, sem nenhuma distinção aos demais espaços territoriais em geral, independentemente de qualquer concordância ou de condicionamentos de acesso impostos pelos particulares que ali residem (condômino ou morador), ou pelos particulares que ali exercem atividade profissional (porteiro, chefe de segurança, administradores, síndico, etc.) (grifos nossos) Pelas fundamentações amplamente destacadas, entendeu-se por responder negativamente aos questionamentos constantes dos itens (a) e (b) e reverberou que, in verbis: O dispositivo da convenção condominial que de qualquer forma preveja condicionalmente a esse pronto acesso do oficial de justiça é nulo de pleno direito, pois que inquinado de inconstitucionalidade, por relativizar a característica da imperatividade da jurisdição, por relativizar o próprio poder estatal sobre todo o território brasileiro, por relativizar o dever de eficiência do serviço jurisdicional sob cumprimento e, ao fim e ao cabo, por negar ampla eficácia ao princípio do acesso material à atuação do Poder Judiciário. (Grifos nossos) Nesse contexto, alude ainda o juiz corregedor que tais impedimentos ou embaraços à ordem judicial sob cumprimento pelo oficial de justiça pelos representantes mencionados implicarão no crime de desobediência (art. 330 do Código Penal), além da responsabilidade civil do próprio condomínio ou loteamento pelos eventuais prejuízos causados pela atuação do preposto diante do imediato cumprimento da ordem judicial e pela eventual frustração da diligência. O estrito cumprimento do dever legal do oficial de justiça e o dever-poder de pronto acesso aos condomínios e loteamentos edilícios não o eximem de se anunciar ao agente de segurança da portaria mediante a apresentação de sua carteira de identificação funcional, a fim de permitir a aferição de sua identificação e o registro dos horários de entrada e saída no condomínio. Havendo resistência ao acesso ou saída do condomínio ou loteamento deverá o oficial de justiça solicitar imediatamente ao juiz expedidor da ordem, ao juiz deprecado ou ao juiz corregedor do Ceman, conforme o caso, autorização para a requisição de apoio da força policial disponível para o cumprimento da ordem judicial, nos termos do artigo 366 do Provimento Core TRF3 n. 1/2020. Nesse acompanhamento serão identificadas as pessoas responsáveis pelos atos de impedimento de acesso ou de saída do oficial de justiça, para fim de responsabilização futura de cada conduta pessoal. Definitivamente superados os pontos alhures indicados com respaldo na legislação vigente no ordenamento jurídico brasileiro, enfrentou-se o item (c) com base na análise do dever de colaboração da pessoa estranha (do terceiro) ao processo judicial objeto da diligência do oficial de justiça. Os atores citados que se apresentam como representante, preposto ou responsável pelo controle de acesso aos condomínios e loteamentos, apresentam-se como terceiros estranhos ao processo judicial objeto da diligência do oficial de justiça. Segundo as justificativas apresentadas pelo juiz corregedor: Nesse conceito inserem-se aquelas pessoas cujas esferas jurídicas não experimentam nenhum efeito decorrente da futura formação da coisa julgada de certo processo, pois não têm estabelecidos vínculos jurídicos com nenhuma das partes do processo nem com o objeto sub judice. Excluem-se dessa figura, em seu conceito estrito, aquelas pessoas que atuam em nome da própria pessoa jurídica objeto da diligência do oficial de justiça, nos termos do disposto no parágrafo 2º do artigo 248 do Código de Processo Civil. Nesse passo, o dever jurídico de colaboração processual com o juízo (e, por decorrência, com o oficial de justiça) desses agentes de segurança privada se evidencia no quanto disposto no parágrafo 4º do artigo 248 do Código de Processo Civil: Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a entrega do mandado a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência, que, entretanto, poderá recusar o recebimento, se declarar, por escrito, sob as penas da lei, que o destinatário da correspondência está ausente. Por essas razões, entendeu o juízo provocado, de forma acertada e balizada em preceitos legais que "quem tem o dever jurídico de receber ordens judiciais em nome do condômino, tem também o dever de auxiliar o oficial de justiça a cumprir diretamente a ordem em face do mesmo condômino", de modo que "tal dever de colaboração de terceiros no processo judicial é tema recorrente e pacífico, expressado sobretudo pela atuação processual das testemunhas, jurados, possuidores de documentos relevantes ao processo etc.". Por fim, cumpriu-se avançar a resposta ao item (d). Vejamos: Sem maneios, à colaboração não encontra nenhum amparo jurídico a oposição de terceiro (porteiro, chefe de segurança, administrador, diretor de segurança, síndico etc) fundada em limitação da convenção do condomínio ou no respeito à Lei n 13.709, de 14 de agosto de 2.018 - Lei Geral de Proteção de Dados. Esse diploma não se aplica para limitar a atuação eficiente do Estado, do Poder Judiciário, do Juízo emissor da ordem nem do oficial de justiça responsável pelo cumprimento de específica ordem judicial, a ser realizado dentro dos condomínios edilícios residenciais ou comerciais. A lei em questão não cria hipótese proibitiva de atuação colaborativa do terceiro no fornecimento de informações pontuais e essenciais requisitadas pelo oficial de justiça para o bom cumprimento da específica ordem judicial. Em sua justificativa o juízo sinaliza a impossibilidade do oficial de justiça exigir o acesso indiscriminado ao banco de dados sob a custódia da administração e por essa submetida a tratamento, ficando adstrito ao acesso de informações essenciais à eficácia do cumprimento da ordem, e à própria eficácia da atuação jurisdicional. Baliza as suas ponderações no artigo 1º da LGPD e pontua a consolidação do Egrégio Supremo Tribunal Federal acerca da inexistência de direitos e garantias constitucionais absolutos no MS 23.452, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, proferida no ano de 2000. Nesse esteio: [...] satisfação do interesse da atividade jurisdicional, representado pela efetividade da prestação jurisdicional e pela cogência da ordem judicial específica sob cumprimento, deve prevalecer na atuação do oficial de justiça junto a tais condomínios e loteamentos. Por decorrência, o item (d) recebe resposta negativa. (Grifos nossos) Pelas argumentações contundentes expostas, sugeriu-se a redação nos mandados a serem expedidos em cumprimento de suas ordens nos condomínios e loteamentos de acesso controlado nos moldes delineados ao longo desse texto como forma de amparar e tornar mais efetiva a atuação dos oficiais de justiça da Ceman-Barueri, quando em diligências nos referidos locais. A Lei Geral de Proteção de Dados e o acesso a informação lícita  A Lei Geral de Proteção de Dados representa um microssistema ao dispor sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, tendo por finalidade precípua a proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.  Extraindo-se o conceito de dado pessoal previsto no art. 5, inciso I, da lei 13.709, esse representa qualquer "informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável". No campo prático, esses dados pessoais são comumente utilizados em cadastros ao constar o nome, endereço, profissão, documento de identidade, além de outras informações úteis à individualização de uma pessoa natural (física) como, por exemplo, o conjunto de hábitos, comportamentos, preferências, registros eletrônicos (inclusive dado de acesso e uso de internet)1.  A par da indicação, pelo juiz corregedor, das abordagens legais conferidas pelo ordenamento jurídico brasileiro ao tema, as quais validam o acesso à informação dos condôminos ou moradores pelos Oficiais de Justiça com base nos princípios da finalidade, adequação e necessidade contidos no art. 6º da LGPD, cumpre-nos tecer algumas considerações extraídas dessa legislação.  As considerações estão apoiadas nos princípios acima listados e nas bases legais prevista no artigo 7º, inciso II, e no artigo 46, ambos da LGPD, por legitimarem o acesso lícito às informações específicas contidas no banco de dados dos condomínios residenciais e loteamentos de acesso controlado pelos Oficiais de Justiça.  O artigo 7º elenca de forma taxativa as hipóteses ou bases legais que legitimam o tratamento dos dados pessoais, cabendo realçar que todas as demais hipóteses delineadas nos incisos II a X são independentes do consentimento.  A utilização da base legal do cumprimento de obrigação legal ou regulatória será adequada sempre que o agente de tratamento necessitar tratar dados pessoais para cumprir obrigações que derivam da lei ou de outro instrumento normativo, além de ordens emanadas de autoridades competentes. Tais instrumentos ou ordens devem ser corretamente identificados e documentados para fins de comprovação2. É a chamada evidência documental hábil a rastrear o processo de adequação da informação.  E quais bases legais legitimam o cadastro de condôminos pelos condomínios edilícios? As disposições contidas nos artigos 1.348, inciso VII3, associada invariavelmente às matérias disciplinadas nos art. 1.3334 e 1.3345, §2, todos do Código Civil de 2002, ao identificar os titulares de direitos das unidades autônomas representados pelos proprietários, e a esse equiparados, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.  Conjuntamente com as disposições legais citadas na consulta emitida pelo juiz corregedor, não há qualquer ilegalidade no ato de comunicação da informação específica solicitada pelo Oficial de Justiça ao executar o cumprimento de ordem judicial.  Adotadas as medidas de segurança, técnicas e administrativas pelo agente de tratamento (condomínios edilícios e loteamentos de acesso controlado) quando da solicitação de comunicação das informações aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas prevista no art. 46 da Lei n. 13.709, atendeu-se o princípio da segurança disciplinado no art. 6º, inciso VII, do referido diploma legal.  No caso em comento citado na consulta correlata às objeções presentes nas diligências judiciais promovidas pelos colaboradores orgânicos ou terceirizados dos condomínios residenciais, cumpre ressaltar a necessidade de implementação das medidas administrativas no âmbito administrativo gerencial dos agentes de tratamento, a citar: a capacitação dos empregados cujas atividades envolvam o tratamento de dados e controle de acesso aos arquivos físicos6 e automatizados. Visa-se, portanto, minorar ou impedir os incidentes de segurança comumente ocorridos pela exploração maliciosa de fragilidades comportamentais de seres humanos, além dos ataques cibernéticos ocorridos em sistemas tecnológicos.  É evidente que os treinamentos não irão solucionar todas as questões que surjam no dia a dia, mas provocará nos colaboradores reflexões e maior grau de sensibilidade destes com relação ao assunto, para que estejam antenados quanto aos riscos e saibam identificar situações que merecem cuidado e cautela. Nesse contexto, trazem-se alguns exemplos de ações básicas a serem contempladas em plano anual de conscientização de uma organização submetida à LGPD7: i) Treinamento sobre privacidade e proteção de dados pessoais a novos colaboradores, com conteúdo setorizado por áreas, logo no processo de admissão (on-boarding); ii) Palestra anual sobre o tema para todos os integrantes da organização, a ser conduzida pelo encarregado ou palestrante contratado, abordando aspectos tanto jurídicos como técnicos. Importante envolver o alto escalão da organização, para demonstrar o comprometimento com o tema. iii) Criação de pílulas de privacidade, na forma de vídeos curtos ou imagens a serem exibidas em avisos eletrônicos em máquinas de trabalho ou espalhadas no ambiente físico de trabalho, com a devida renovação periódica; iv) Desenvolvimento de portal interno sobre o assunto, alimentando por banco de notícias, comunicados, FAQs, guias e infográficos; v) Investimento em formação constante do time de privacidade, com custeio de cursos e certificações. Nesse interim é de suma importância que no planejamento de conscientização seja ofertada a oportunidade para compartilhamento de opiniões e feedbacks não estruturados sobre o tema delimitado pelos colaboradores pautados no treinamento desenvolvido. Há uma linha de raciocínio a ser seguida, porém é plenamente aceitável o improviso e a condução por meio das respostas do outro a estimular a integração e o engajamento da organização nesse processo de padronização da privacidade e proteção de dados. O conteúdo objeto do treinamento de conscientização poderá ser debatido em um ambiente propício à exposição de dúvidas e citação de casos concretos hábeis a aumentar a absorção do conhecimento e o aprendizado assertivo de todos os envolvidos. Conclusão  A consulta em comento apresentada pelos Oficiais de Justiça Avaliadores da Subseção de Barueri foi muito oportuna por discutir temas práticos presentes na vida dos auxiliares do juízo e dos condomínios edilícios residenciais e comerciais e loteamentos de acesso controlado.  Como se denota, os efeitos promovidos pela legislação brasileira e em especial os princípios e mandamentos contidos na Lei Geral de Proteção na vida condominial reforçam ainda mais a necessidade da adequação e implementação do programa de privacidade e proteção de dados nessas organizações sociais.  A viabilização e conscientização dos preceitos jurídicos de segurança da informação e de governança de todos envolvidos no processo de tratamento de dados pessoais será a confirmação do enraizamento dessa legislação na sociedade brasileira.  Esse processo de mudança cultural se tornará ainda mais latente, necessário e urgente a partir de 1º agosto do corrente ano, marco temporal do início da vigência das sanções administrativas a serem aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados após prévia instauração de processo administrativo, medida esta já iniciada em alguns incidentes de segurança ocorridos em algumas empresas.   A importância da conscientização da proteção dos dados pessoais, apesar de desafiadora, deverá alcançar os colaboradores e todos que fazem parte da vivência condominial, pois os números consideráveis de incidentes8 de segurança de dados pessoais estão relacionados às pessoas que promovem o tratamento inadequado ou ilícito. *Sarah Jones é advogada, especialista em Direito do Estado, MBA em Direito Imobiliário e Negócios Jurídicos, Membro da Comissão Especial de Direito Condominial da OAB de Goiânia, Membro da Comissão Nacional de Direito Condominial da ABA - Associação Brasileira de Advogados; Membro da Comissão Nacional de Direito Digital da ABA - Associação Brasileira de Advogados; Membro do IBRADIM, palestrante e articulista. **Daniela Mota é advogada, palestrante e professora. Vice-presidente da Comissão Nacional de Direito Condominial da Associação Brasileira de Advogados - ABA; Membro Consultora da Comissão Especial da Comissão Especial de Direito Condominial do Conselho Federal da OAB. Membro do IBRADIM. Pós-graduada em Direito Notarial e Registral. Graduada em Pedagogia e Pós-graduada em Psicopedagogia. __________ 1 PALHARES, Felipe; PRADO, Luis Fernando; VIDIGAL, Paulo. Compliance Digital e LGPD. (Coleção Compliance; vol. V. Coordenação: Irene Patrícia Diom Nohara, Luiz Eduardo de Almeida). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 116. 2 PALHARES, Felipe; PRADO, Luis Fernando; VIDIGAL, Paulo. Compliance Digital e LGPD. (Coleção Compliance; vol. V. Coordenação: Irene Patrícia Diom Nohara, Luiz Eduardo de Almeida). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 168. 3 Art. 1.348. Compete ao síndico: VII - cobrar dos condôminos as suas contribuições, bem como impor e cobrar as multas devidas; 4 Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção. 5 Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará: § 2 o São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas. 6 MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato Opice (coordenadores). LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados comentada. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 334. 7 PALHARES, Felipe; PRADO, Luis Fernando; VIDIGAL, Paulo. Compliance Digital e LGPD. (Coleção Compliance; vol. V. Coordenação: Irene Patrícia Diom Nohara, Luiz Eduardo de Almeida). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 314 e 315. 8 Incidente de segurança com dados pessoais é qualquer evento adverso confirmado, relacionado à violação na segurança de dados pessoais, tais como acesso não autorizado, acidental, ou ilícito que resulte na perda, destruição, vazamento, alteração, ou qualquer forma de tratamentos de dados inadequada ou ilícita, os quais possam ocasionar risco para os direitos e liberdades do titular dos dados pessoais. 
quinta-feira, 5 de agosto de 2021

As cidades perdem quando os NIMBYs ganham

O Brasil e o mundo estão vivenciando uma epidemia de NIMBYS, um acrônimo de "Not In My Backyards", que significa "Não no meu jardim", em tradução livre. Resumidamente os NIMBYS podem ser definidos como as pessoas ou grupos de pessoas que se organizam para combater a realização de novos empreendimentos imobiliários ou obras de infraestrutura. Os NIMBYs nasceram como sinônimo de moradores de uma região que não queriam que um novo empreendimento ou obra fossem realizados perto de suas residências. Isso é muito comum nos Estados Unidos. Mas enquanto os NIMBYs são aqueles que acreditam que determinado empreendimento não é adequado para aquele local, existem outros "grupos" de pessoas ainda mais radicais. Um deles são os CAVE People, sendo que CAVE vem de "Citizens Against Virtually Everything", ou Cidadão contra praticamente tudo. Outro acrônimo utilizado com significado similar, mas mais irônico, é BANANA, ou "Build absolutely nothing anywhere near anything", que significa "Construa absolutamente nada perto de qualquer coisa". Mas também existem os LULUs (locally unwanted land uses, que significa Usos da terra localmente indesejados), que apesar de atuarem em qualquer frente, focam mais em iniciativas como lixões, prisões, indústrias, plantas elétricas e hospitais entre outros. Por fim, temos os SOBBYs, de Some other bugger's back Yard, que se traduz para algo como "O quintal de algum outro sujeito" e reúne aqueles que até acham que aquele projeto possa ser desejável ou necessários, mas desde que seja feito em outro lugar. Para efeito de simplificação, usarei nesse texto o termo mais conhecido, NIMBY. Todo empresário do setor imobiliário ou de construção, e até mesmo governos, já sofreram alguma vezes na mão deles. E ninguém sabe como lidar com eles, pois fazem muito barulho e obtém muita repercussão na mídia, que via de regra está alinhada ideologicamente com eles. Nos Estados Unidos existe inclusive um desvirtuamento do conceito dos NIMBYs, tendo sido formada uma indústria estruturadas e profissional de consultoria que são contratadas por moradores de uma região e até concorrentes para barrar a chegada de novos empreendimentos. Isso mesmo, você leu corretamente. Se um dono de supermercado ou restaurante percebe a chegada de um concorrente, ele contrata uma consultoria que faz um trabalho profissional de envolvimento da comunidade contra os novos entrantes. Já os moradores não querem que sejam realizados nos empreendimentos imobiliários porque com isso entendem que haverá maior concorrência e seus imóveis valorizaram menos, já que de acordo com a Lei da Oferta, quanto menor a oferta, maior o preço, tanto do imóvel, quanto do aluguel. Com o passar do tempo, o termo passou a abarcar inúmeros outros perfis de pessoas e grupos. Um deles é o de ex-socialistas que uma vez órfãos, passaram a adotar o ambientalismo como nova ideologia de vida. Um perfil mais próximo do NIMBY clássico é o público formado pelos primeiros clientes de um empreendimento imobiliário com várias fases. É muito comum que uma vez instalados, eles lutem com toda força para que os atributos positivos daquele empreendimento sejam usufruídos apenas por eles e passem a combater as futuras etapas do mesmo. Nesses casos, é fundamental haver um bom e cuidadoso planejamento jurídico, seguido da construção de um bom relacionamento com os clientes. Antigamente havia uma abordagem top down, com a prevalência do poder político e econômico e uma visão geral da sociedade de que desenvolvimento era uma coisa boa. Hoje em dia, o jogo virou e o desenvolvimento é visto como algo danoso. Existe um enorme preconceito da sociedade quanto aos empreendimentos imobiliários, novas indústrias e grande obras de infraestrutura. A abordagem top down também não faz sentido nos tempos atuais, pois além da sociedade estar mais organizada e com acesso às mídias sociais, existem órgãos como o Ministério Público, com independência funcional e forte pendor ideológico contra o setor produtivo, que atua em todas as obras que possam causar algum tipo de polêmica, sempre com viés contrário ao desenvolvimento e mesmo sem ter base técnica e jurídica para sua atuação. Um empreendimento pode ter dezenas ou centenas de técnicos que realizaram e analisaram estudos por anos a fio, mas nada disso importa se o Ministério Público tem uma opinião contrária ao resultado obtido tecnicamente. Uma técnica amplamente utilizada pelo Ministério Público é o assédio contra funcionários públicos dos órgãos responsáveis pelo licenciamento de obras e empreendimento através de suas recomendações e ameaças de ações civis públicas. Isso gera o famoso Apagão das canetas, onde esses funcionários preferem não assinar nada, com receio de sofrer as consequências, mesmo que ele tenha plena convicção que o projeto está correto legal e tecnicamente. Seu eu estivesse no lugar deles, certamente também agiria da mesma forma, pois nem apoio jurídico o Estado oferece. Ou seja, se ele aprovar qualquer projeto polêmico, ele não tem nada a ganhar e muito a perder. Mas também é importante ter em mente que, fora aqueles casos onde algumas pessoas querem tirar vantagem econômica da obstrução que fazem e dos casos baseados em ideologia, os NIMBYS têm realmente um receio que precisa ser entendido e respeitado. Um aspecto importante é que 100% das pessoas são a favor da construção de casas populares, novos hospitais e escolas, mas esses mesmo 100% são contrários a que elas sejam construídas ao lado de suas casas. Essa percepção nos leva à conclusão de que nem sempre os NIMBYs estão errados. Muitas vezes eles estão apenas defendendo interesses e privilégios que, mesmo sendo legítimos, são contrários aos interesses gerais da cidade. Por isso que, mesmo que eles consigam se mobilizar eficientemente e fazer muito barulho, sensibilizando políticos e a opinião pública, isso não significa que sua posição seja a melhor para a coletividade. Ao contrário, em muitos casos o que vemos são agendas ocultas, motivos egoístas e opiniões sem base na realidade e preconceituosas que acabam se transformando em argumentos tidos como socialmente justos para mascarar os reais objetivos por trás deles. É hora de começar a desmascarar esse tipo de atitude de quem só prejudica o interesse coletivo utilizando inadequadamente bandeiras justas. Passou da hora das decisões sobre novos projetos serem baseadas na legislação e em critérios técnicos e não em "opiniões" e achismo de grupos de interesse, pior ainda, de autoridades que deveriam salvaguardar a lei e os interesses da coletividade, mas fazem exatamente o oposto quando se tornam advogados desses mesmos grupos de interesses. *Felipe Cavalcante tem 26 anos de experiência nos mercados imobiliário e turístico, tendo realizado mais de 100 empreendimentos, incluindo o complexo ILOA em Alagoas. Fundou e presidiu por 13 anos a ADIT Brasil, entidade da qual é atualmente o Presidente de Honra. Como diretor da Matx, oferece serviços de captação de recursos para empreendimentos imobiliários, advisory, estruturação de negócios, mentoria, cursos e grupos Mastermind. É ainda apresentador do podcast Além da Curva, com foco nos mercados imobiliário, de multipropriedade e de investimentos imobiliários, e do podcast Somos Cidade, voltado para o desenvolvimento urbano. Responsável pela criação e organização dos maiores eventos nacionais de investimentos imobiliários (ADIT Invest); desenvolvimento urbano e comunidades planejadas (Complan); timeshare e Multipropriedade (ADIT Share); direito imobiliário (ADIT Juris); investimentos hoteleiros (ADIT Hotel) e atração de investimentos imobiliários e turísticos para o Brasil (Nordeste Invest).
"O jovem conhece as regras, mas o velho conhece as exceções" William Shakespear O problema Aceite o que não se pode mudar, e mude o que não se pode aceitar. A pandemia de Covid-19 afetou o mercado imobiliário, as empresas e as pessoas de todos os modos possíveis, em todas as direções. Nada será exatamente como antes. No turismo, os hotéis foram atirados em um jogo impossível para conseguir hóspedes. Em 2020 a queda foi vertiginosa1, chegando a assustadores 10% de ocupação, com empreendimentos fechando as portas país afora. Mesmo nas férias escolares a previsão de ocupação média ficou em 50%, a exemplo do Estado de São Paulo2. Para se adaptar e sobreviver, começou-se a estudar, em alguns casos, a conversão para uso residencial da totalidade ou de parte das unidades então disponíveis para hospedagem, como o Hotel Gloria e outros dez hotéis no Rio de Janeiro3. Outro efeito da pandemia, não inédito, foi o esvaziamento de bairros comerciais tradicionais, como o centro da cidade do Rio de Janeiro, cuja vacância de salas e lojas, em fevereiro/2021, já beirava absurdos 40%, sem nenhum sinal de arrefecimento da crise4. Para tentar reverter a tendência de degeneração desse importante espaço urbano, a Prefeitura do Rio lançou o Programa Reviver Centro, com o objetivo macro de atrair novos moradores e promover a recuperação urbanística, social e econômica da região5. Além de prever incentivos fiscais, o programa estimula a locação social, a construção de novas moradias e a conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou misto. Na mesma linha, o Prefeito de São Paulo sancionou a lei municipal nº 17.577, de 20 de julho de 2021, que trata do Programa Requalifica Centro, que também prevê incentivos a fim de atrair investimentos para a região.6 Planos como o Reviver Centro (Rio de Janeiro) e o Requalifica Centro (São Paulo), para serem bem-sucedidos, necessitam do óbvio: uma adesão relevante dos particulares proprietários das edificações locais, a ponto de realmente fomentar a transformação da região, e é neste ponto que surge um obstáculo relevante a ser ultrapassado. A maioria dos edifícios tem seu domínio pulverizado, com muitos donos, e os arts. 1.343 e 1.351 do Código Civil, geralmente, e sem reflexão, reforçados pelas convenções condominiais, exigem a anuência da unanimidade dos condôminos para se aprovar a alteração. Um quórum virtualmente impossível em muitos casos. Como, então, superar este desafio? Antes de avançarmos, porém, é preciso desviar a rota para não nos perdermos em uma perigosa salada conceitual, distinguindo-se três figuras distintas, que podem ou não estar juntas na remodelação de um edifício, e que influenciam diretamente as soluções propostas neste artigo: retrofit, criação (e/ou extinção) de unidades autônomas, e alteração de uso. 1.1. Retrofit O retrofit está definido na Norma de Desempenho NBR 15575-1, da ABNT, como a "remodelação ou atualização do edifício ou de sistemas, através da incorporação de novas tecnologias e conceitos, normalmente visando valorização do imóvel, mudança de uso, aumento da vida útil e eficiência operacional e energética"7, no âmbito de uma incorporação imobiliária ou fora dela. Sim, caro leitor: tais figuras nem sempre estão juntas, e nem sempre estão isoladas. E sua triagem nem é tão difícil. Basta nos guiarmos pela razão de ser da concepção dos artigos 28 e seguintes da Lei de Condomínios e Incorporações: a proteção, desde o longínquo ano de 1964, muito antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, do adquirente de unidade na planta, assim considerada aquela que ainda depende de relevantes intervenções construtivas e aprovação da municipalidade para estar apta ao uso do comprador. Então, sempre que o empreendimento se caracterizar pelo compromisso de entrega, aos adquirentes, de unidades imobiliárias e/ou áreas comuns a serem construídas ou substancialmente reformadas, o empreendedor, antes de iniciar a alienação dos imóveis, deve promover no cartório imobiliário o arquivamento dos documentos previstos no art. 32 da lei 4.591/648. O que isso tem a ver com o quórum de aprovação? Veremos adiante. Por ora, basta guardarmos o conceito. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Melhim Chalhub é membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil, da Academia de Direito Registral Imobiliário, Cofundador e Membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor dos livros Incorporação Imobiliária, Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário e Direitos Reais, entre outros. **André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Presidente do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ e do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário. __________ 1 Novo coronavírus impacta gravemente setor hoteleiro. Smartus. Matéria publicada em 25.mar.2020 com dados da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH Nacional) disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021. 2 Hotéis devem atingir até 50% de ocupação em julho no estado de SP, apontam dados do setor. Reportagem publicada e 9.jul.2021 em O Globo, com projeção da ABIH-SP. Disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021. 3 Confiram-se as seguintes reportagens: (i) Com menos hóspedes, 11 hotéis do Rio planejam transformar parte dos quartos em residências e escritórios. O Globo. Matéria publicada em 22.jun.2021. Disponível aqui; e (ii) Conversão de uso é alternativa para hotéis e lajes corporativas. GRI Club. Matéria publicada em 18.jun.2021. Disponível aqui. Ambos os acessos em 12.jul/2021. 4 Os dados variam em cada pesquisa, mas há consenso sobre uma vacância de pelo menos 30%: (i) Um em cada três imóveis para alugar no Centro do Rio está desocupado. O Globo. Matéria publicada em 27.mai.2021. Disponível aqui; e (ii) RJ tem quase 40% dos escritórios de alto padrão vazios - não só pela pandemia. CNN Brasil. Matéria publicada em 21.jan.2021. Disponível aqui.Todos os acessos em 11.jul.2021. 5 Prefeitura lança Reviver Centro, plano para atrair novos moradores e estimular a recuperação urbanística, social e econômica da região. Prefeitura Rio. Matéria publicada em 26.jan.2021. Disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021. Inteiro teor do PL aprovado na Câmara. Disponível aqui. Para mais detalhes sobre o Programa Reviver Centro. Todos os acessos em 24.jul.2021. 6 A referida Lei Municipal é objeto de pelo menos uma ação anulatória no TJSP (processo 1044733-40.2021.8.26.0053), ainda não julgada, sob o fundamento de supostos vícios legislativos, mas nenhum dos fatos alegados impacta o objeto deste artigo. 7 A versão mais atual, de 2013, está disponível para aquisição, mas a definição pode também ser encontrada em versão anterior, de 2010, disponível aqui (p. 7, item 3.26). Ambos os acessos em 12.jul.2021. 8 Eduardo Moreira Reis trata do tema em interessante artigo, e afirma o seguinte: "Em face de tais elementos, lança-se aqui a segunda pergunta deste breve ensaio: seria lícito ao empreendedor do retrofit voluntariamente atrair para si o regime jurídico das incorporações, aprovando perante a municipalidade seu projeto interventivo e obtendo o alvará da obra, registrando no Registro de Imóveis o memorial previsto no art. 32 da Lei 4.591/64, optando pelo patrimônio de afetação, nos termos do art. 31-A da Lei e requerendo ao Fisco o Regime Especial Tributário das Incorporações, nos termos da lei 10.931/2004 e legislação complementar? Nosso entendimento particular é que SIM, pois todos os princípios constitucionais e legais envolvidos na produção construtiva, especialmente a habitacional, como os de proteção à aquisição da moradia própria, de proteção ao consumidor, de proteção à ordem urbanística e tributária e de liberdade econômica são atendidos, em maior ou menor grau, pelo regime legal das incorporações. Não vislumbramos qualquer prejuízo público ou privado decorrente da aplicação das regras de tal regime, ao invés da aplicação das regras gerais dos contratos imobiliários. E a identidade entre o retrofit com venda prévia de unidades e a incorporação, criando uma "zona cinzenta" em termos conceituais, especialmente no caso de intervenções construtivas mais onerosas e complexas, nos parece plenamente justificadora da opção por tal regime, até que um regime legal próprio seja positivado". REIS, Eduardo Moreira. Os empreendimentos com retrofit e o regime das incorporações imobiliárias: alguns aspectos registrais e contratuais. In: Estudos de Direito Imobiliário: Homenagem a Sylvio Capanema de Souza. ABELHA, André (Coord.). Porto Alegre: Paixão Editores, 2020, p. 270-281.
O Direito está cheio de temáticas que, reiteradamente, resultam em posicionamentos díspares nos Tribunais, seja pela mudança da composição de alguns colegiados, seja pela mudança/transformação do Direito no tempo. Ou, ainda, seja pelo(s) equívoco(s) de algum julgador que, ao analisar determinada situação, pode, ao não ter tanta proximidade com determinado assunto, julgar de forma equivocada. Até então, nenhuma novidade. Porém, o que muitas vezes não é levado em consideração é o seguinte: de que forma essa ausência de segurança jurídica afeta os negócios imobiliários? Como o empresário, seja uma construtora, um investidor, um fundo imobiliário, ou até mesmo um locador de pequeno imóvel visualizam essa (in)segurança jurídica? Será que ela pode ser um incentivo (ou um desincentivo) à realização de novos negócios e empreendimentos? A partir do que prevê a Análise Econômica do Direito (popularmente chamada de AED), tentarei fazer algumas considerações. Antônio Maristello Porto e Nuno Garoupa afirmam que o processo judicial, sob a perspectiva dos custos sociais, é dispendioso. Para além das custas e dos emolumentos recolhidos pelas partes em uma ação judicial, o Poder Judiciário é custeado e mantido por toda a sociedade, que paga impostos para, por exemplo, prover os salários dos magistrados. Simplificadamente, os custos sociais inerentes ao processo judicial são de duas ordens: os de administração e os de erro1. Neste breve artigo, abordarei o "erro". Para os autores, custos de erro são aqueles assumidos pela sociedade quando, no processo judicial, os julgadores cometem erros na aplicação do direito. Quando ocorrem, acabam por desvirtuar os incentivos dos agentes no mercado e na vida social como um todo, e impõem uma série de custos às partes e à sociedade. Erros judiciários criam insegurança jurídica e incentivam o ajuizamento de mais ações judiciais2. Porém, de que forma esses erros podem influenciar a tomada de decisão das partes? Esse é o ponto. Vejamos alguns casos concretos. Peguemos o exemplo da impenhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação, seja comercial ou residencial. Em março de 2021, o STF reconheceu a repercussão geral em recurso interposto contra decisão proferida pelo TJ/SP que manteve a penhora em contrato de locação comercial (Recurso Extraordinário n. 1307334, que teve repercussão geral reconhecida pelo Plenário Virtual (Tema 1127)). O mesmo STF, anos antes, já tinha se manifestado sobre a matéria, em sentido favorável à penhora3. A pergunta que fica: o que mudou nesse período? Uma mudança do entendimento, na mesma Corte, poderia gerar uma instabilidade no mercado locatício? Sustento que sim. Explico: desde 1990, dispõe o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90 o seguinte: A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Em outras palavras, o legislador criou uma exceção à regra geral, no sentido de que o bem de família do fiador em contrato de locação (a lei não distingue contrato de locação comercial e residencial) poderá ser penhorado pelo locador, caso o locatário não cumpra com as suas obrigações contratuais. Agora, o STF pretende modificar essa regra, especialmente no que tange os contratos de locações comerciais. Dessa forma, caso o entendimento seja modificado, a fiança, como garantia, tende a perder força no mercado, consequentemente, a tendência é que os locadores exijam novas formas de garantias (muitas vezes mais custosas aos locatários) ou, em casos mais extremos, alguns locadores desistam de locar os imóveis. Porém, considerando que a lei é de 1990, o que mudou de lá pra cá? Dependendo do entendimento do STF, o artigo de lei seria inconstitucional? Se não for, será um dispositivo legal sem validade prática? Enfim, aguardemos os próximos capítulos. Em outras palavras, os incentivos gerados nos processos judiciais importam (e muito) ao mercado e aos particulares. Outro caso atual e muito sensível é a imunidade em relação ao ITBI prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal4. Recentemente, o STF, em Recurso Extraordinário n. 769.376, fixou a seguinte tese: "A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado." Porém, existe uma situação específica que ainda causa debate nos Tribunais, especialmente no que diz respeito aos prazos previstos no art. 37, §1º e 2º, da Constituição Federal5. Por exemplo, e se a empresa recém constituída, que possui em seu capital social bem ou bens devidamente incorporados em seu patrimônio, permanece inativa pelos próximos três anos? Deveria incidir o ITBI? Quanto a isso a jurisprudência varia. A 14ª Câmara de Direito Público do TJ/SP possui entendimento que mantém a isenção do imposto, por exemplo6. A 16ª Câmara Cível do TJ/RJ, da mesma forma, mantém a isenção7. Porém, a 6ª Câmara Cível do mesmo TJ/RJ possui entendimento diverso8. Vejamos, agora, o posicionamento do TJ/RS, por exemplo. A 21ª Câmara Cível possui entendimento recente contrário à isenção quando a pessoa jurídica permanece inativa pelo prazo legal9. No entanto, a 2ª Câmara Cível da mesma Corte gaúcha possui entendimento diverso, de forma favorável à isenção10. Ou seja, qual entendimento é preponderante? Essas situações, por certo, geram incentivos, especialmente negativos. Novamente, os mesmos autores apontam o problema: "Se, em um determinado tribunal, uma das câmaras julgadoras assumir um posicionamento sobre o tema X e outra posicionar-se em sentido contrário a respeito do mesmo tema, todos os interessados em causas semelhantes ver-se-ão incentivados a ir a juízo - tanto os que esperam um julgamento procedente quanto os que esperam um julgamento improcedente. A circunstância de o caso vir a ser julgado por uma ou outra câmara torna-se uma questão de sorte. Em havendo recurso, o sucesso na causa dependerá do sorteio (sorte!) da câmara que será designada para julgá-la"11. De novo, além do aspecto jurídico, os incentivos atingem a tomada de decisão por parte players. Esses, visualizando a insegurança jurídica criada pelos Tribunais, poderão pautar suas decisões de forma a, inclusive, negligenciar as regras do ordenamento jurídico, diante do erro judiciário12. Porém, os efeitos podem ir ainda mais longe. Peguemos um caso hipotético. Determinada construtora pretende construir um loteamento em uma cidade no interior do Estado do Rio de Janeiro. Para isso, identifica uma área em potencial e inicia negociações com o proprietário. Para a criação e execução do empreendimento, é comum, na prática, ser criada uma nova pessoa jurídica para a viabilização do empreendimento. Assim, é possível a incorporação do imóvel no capital social dessa nova empresa. A pergunta que fica ao empresário: se houver essa incorporação do imóvel ao capital social, haverá a cobrança de ITBI dos sócios? Essa pergunta, dependendo da localidade, pode ter mais de uma resposta, especialmente se levarmos em consideração o entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça daquele Estado. Dependendo da resposta, se positiva, por exemplo, pode ser determinante para a concretização ou não do tal empreendimento, resultando na perda de investimentos para toda uma comunidade. Portanto, os incentivos criados pelos Tribunais são importantes e, em locais de insegurança jurídica, podem ser cruciais para a concretização de investimentos para uma determinada região. Com isso, todos saímos perdendo. *Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS, associado do IBRADIM e da AGADIE. Rede social: @demetriogiannakos. __________ 1 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 316. 2 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317. 3 GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva; PEREIRA, Rafael Vieira Duarte. Penhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação e a sua aplicação jurisprudencial. Migalhas Edilícias, acesso: 12 jul. 2021. 4 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: § 2º O imposto previsto no inciso II: I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil; 5 Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição. 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo. 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição. 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data. 6 APELAÇÃO - AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL - ITBI - Pretensão à concessão de imunidade de ITBI diante da transmissão de bem imóvel para a integralização de capital social - Sentença de procedência - Pleito de reforma da sentença - Não cabimento - Imóvel transferido para a composição de capital social de empresa recém criada - Imunidade que é concedida à empresa que não tem como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição - Verificação da atividade preponderante da apelada que deve considerar os 03 (três) anos seguintes à aquisição dos bens - Empresa que permaneceu inativa desde a sua constituição - Fato que não induz à atividade preponderante que autorizaria a cobrança do tributo - Sentença mantida - APELAÇÃO e REEXAME NECESSÁRIO não providos. (TJ/SP; Apelação/Remessa Necessária 1022171-53.2018.8.26.0114; relator (a): Kleber Leyser de Aquino; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Campinas - 2ª Vara da Fazenda Pública; data do julgamento: 23/7/20; data de registro: 23/7/20). 7 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. ITBI. INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL COM TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE IMÓVEL. TRANSFERÊNCIA QUE NÃO SE CONCRETIZOU.  INCIDÊNCIA DO ARTIGO 156, §2º, I, DA CRFB/1988. NÃO SE PODE PRESUMIR QUE A INATIVIDADE DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA AUTORA CONFIGURA ILICITUDE.  RECONHECIMENTO DA IMUNIDADE DO ITBI QUE SE IMPÕE. EXTENSÃO DA IMUNIDADE AO OUTRO IMÓVEL. DECLARAÇÃO DE NULIDADE DA NOTA DE LANÇAMENTO nº 981/2012. RECURSO DOS AUTORES PROVIDO. RECURSO DO MUNICÍPIO PREJUDICADO. O fato gerador do ITBI só ocorre no momento da transferência efetiva da propriedade do bem imóvel, com o respectivo registro no cartório imobiliário, o que não ocorreu na espécie. Entendimento do STF no sentido de que "ainda que hipoteticamente confirmada a ausência de atividade econômica, tal circunstância poderia em tese ser atribuída a uma série de eventos, sem que se possa concluir que em todo e qualquer caso possível haveria propósito de desvio ilícito da proteção constitucional". De fato, não restou comprovada nos autos nenhuma ilicitude perpetrada pela sociedade empresária. Recurso da 1ª apelante provido para declarar a nulidade do débito tributário indicado também na Nota de Lançamento nº 981/2012, referente ao ITBI do imóvel situado na Rua Gilberto Amado, 970, apto 102, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Prejudicado o recurso do município. (0013926-55.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). LINDOLPHO MORAIS MARINHO - Julgamento: 21/05/2019 - DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL). 8 Direito Tributário. Execução fiscal. ITBI. R$ 26.849,54. Fato gerador. Lançamento do tributo. Execução fiscal. Embargos à execução. Pedido de anulação.  Rejeição. Recurso. Desacolhimento. Alegação de imunidade tributária não verificada. Transferência de bens para integralização de capital social. Incidência do artigo 156, §2º, I, da CRFB/1988. Concessão de imunidade sob condição resolutiva de verificação da atividade preponderante. Porém, no período de verificação da atividade a empresa manteve-se inativa. Trecho da sentença: "A regra constitucional visa a facilitar a formação, extinção e incorporação de empresas, protegendo a livre iniciativa e não a mera transferência de titularidade de propriedade imobiliária, ou seja, a finalidade da norma constitucional é fomentar a atividade empresarial, constituindo incentivo ao desenvolvimento econômico nacional". Precedente: (...). A empresa se manteve inativa durante três anos a partir da aquisição do imóvel. Hipótese que não se coaduna com o objetivo almejado pelo constituinte, que foi o de estimular o desenvolvimento de atividades econômicas e sociais para o progresso do país. A imunidade tributária não pode ser um incentivo à ociosidade. (...) 0044213-64.2015.8.19.0001 Apelação Des. Ricardo Rodrigues Cardozo Julgamento:11/04/2017. Desprovimento do recurso. Aplicação do previsto no § 11 do art. 85 do CPC 2015, sendo o valor da condenação a título de honorários advocatícios majorado para mais 5% (cinco por cento) sobre o valor da condenação. (0335640-95.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). NAGIB SLAIBI FILHO - Julgamento: 15/05/2019 - SEXTA CÂMARA CÍVEL). 9 APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. ITBI. MUNICÍPIO DE CAXIAS DO SUL. AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTO DE LANÇAMENTO DE DÍVIDA TRIBUTÁRIA. ITBI. PRETENSÃO DE DECLARAÇÃO DE IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS NO CAPITAL SOCIAL À ÉPOCA DA CRIAÇÃO DA EMPRESA. OBJETO SOCIAL. INEXISTÊNCIA DE RECEITAS OPERACIONAIS IMPEDITIVAS A ANÁLISE DA ATIVIDADE PREPONDERANTE E A CONCESSÃO DA IMUNIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. O artigo 156, § 2º, inciso II, da Constituição Federal prevê a hipótese de isenção no pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis - ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao capital da pessoa jurídica, excepcionando para quando a atividade preponderante da empresa "for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil". A interpretação a ser dada a "atividade preponderante", por sua vez, está descrita no artigo 37 do Código Tributário Nacional. 2. Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, para afastar a imunidade tributária sobre o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis - ITBI é necessário que seja demonstrado que a atividade imobiliária foi preponderante em um ano do prazo de três anos previsto no § 2º, do art. 37, do Código Tributário Nacional. Tal imunidade tributária, contudo, exige que tenha havido atividade/receita pela pessoa jurídica no período analisado, uma vez que a razão de ser da previsão é, em linha com a função social da propriedade, privilegiar e fomentar a geração de riquezas a partir da transferência de propriedade dos imóveis, o que evidentemente não ocorre quando inexistente qualquer atividade empresarial no período. Hipótese em que não preenchidos os requisitos para a concessão da imunidade, ante a ausência de atividade da empresa no chamado período de preponderância. APELO DESPROVIDO. UNÂNIME.(Apelação Cível, Nº 70082080342, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em: 21-08-2019). 10 DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. IMUNIDADE. INCORPORAÇÃO AO PATRIMÔNIO DA PESSOA JURÍDICA EM REALIZAÇÃO DE CAPITAL. ATIVIDADE PREPONDERANTE. 1. Imunidade referente à transmissão de bem imóvel para incorporação ao patrimônio da pessoa jurídica (art. 156, § 2º, da Constituição Federal). A ressalva feita pelo dispositivo constitucional é de que não haverá imunidade se a atividade preponderante do adquirente for compra e venda, locação ou arrendamento mercantil de imóveis. 2. Para que se caracterize uma atividade como preponderante, excetuando o direito à referida imunidade do ITBI, tanto o art. 37, §§ 1o e 2o, do Código Tributário Nacional quanto o art. 6o, IV, § 3o, da Lei Complementar Municipal 197/89 trazem dois critérios: um material, que consiste em como saber se a atividade é preponderante, e um temporal, relativamente a quando se deve verificar a atividade. 3. Inexistindo receita operacional no período de análise, não há como sustentar que mais de 50% decorreu de compra e venda ou locação ou arrendamento mercantil de bens imóveis. Precedentes. 4. Para a cobrança do crédito, o Município baseou-se apenas no objeto social da apelada, ainda que sem auferimento de receita no período. Critério que carece de fundamento legal, motivo por que não se presta a afastar o direito à imunidade tributária. Ônus sucumbenciais invertidos, observada a isenção do Município de Porto Alegre ao pagamento das custas processuais, exceto aquelas atinentes ao reembolso do despendido pela demandante. RECURSO PROVIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA.(Apelação Cível, Nº 70056535966, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Laura Louzada Jaccottet, Julgado em: 02-01-2016). 11 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317. 12 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317.
1. Introdução Promissor instrumento para fomentar o turismo no Brasil, a multipropriedade imobiliária finalmente recebeu tratamento normativo próprio através da lei 13.777/18, em vigor desde fevereiro de 2019. Merecedora de aplausos, a norma trouxe segurança jurídica para incrementar a exploração desse instituto, por meio do qual se concretiza uma relac¸a~o juri'dica real de aproveitamento econômico sobre um bem imóvel1, dividido em unidades fixas de tempo, de forma que múltiplos titulares possam utilizar-se da coisa de modo exclusivo e perpétuo, cada qual a seu turno.2 Trata-se de instituto que dialoga com a economia do compartilhamento, tema bastante em voga atualmente, voltado a ampliar o acesso e o uso eficiente e mais racional dos bens, especialmente em áreas de veraneio, recantos de repouso, férias e regiões turísticas em geral - estas abundantes em nosso país de dimensões continentais. Note-se que esse regime especial de condomínio se consubstancia ainda em interessante produto de investimentos mundo afora, em especial no Estados Unidos, o que evidencia seu inequívoco potencial. A respeito de sua disciplina normativa, verifica-se que ao mesmo tempo em que acalentou discussões, a lei suscitou dúvidas, pois se de um lado contém dispositivos que eliminam incertezas e trazem maior previsibilidade para empreendedores, adquirentes e investidores, configurando um importante incentivo ao setor imobiliário3, de outro, deixou margem a interpretações que podem comprometer sua eficiência, como por exemplo ocorre com o artigo 1.358-L, §2º inserido no Código Civil, objeto do presente estudo. Com efeito, se na multipropriedade, mais do que nas outras espécies de condomínio, a estrita observância dos deveres pelos condôminos é essencial para a eficiência do empreendimento, para a boa conservação do imóvel e para uso adequado do bem com vistas ao pleno atingimento de suas finalidades, especialmente diante da existência de múltiplos proprietários, cumpre à doutrina debruçar-se sobre o tema, a fim de pacificar discussões. Em vista de tanto, bem como do fato de que o inadimplemento nessa modalidade condominial pode assumir múltiplas facetas, dedicou-se o presente estudo à investigação acerca do regime de responsabilidade pelo pagamento dos encargos condominiais entre multiproprietários, bem como da sucessão dessas obrigações quando nascidas anteriormente à transmissão do direito real, a fim de analisar se a responsabilidade perante o condomínio será do alienante ou do adquirente. 2. Multipropriedade Imobiliária 2.1. Breve histórico e qualificação Expressão de uma relação jurídica complexa com grandes potenciais, a multipropriedade imobiliária, conforme se aludiu em sede introdutória, teve seu regime próprio instituído no Brasil pela Lei nº 13.777/18, que a definiu expressamente como sendo o regime de condomínio especial em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.4 Concebida na França no final da década de 60, num cenário de pós guerra em que a Europa se viu mergulhada em profunda crise econômica, a multipropriedade espraiou-se pelo velho continente e posteriormente pelos Estados Unidos como uma forma de permitir às camadas menos abastadas da população o acesso à segunda moradia em regiões turísticas, à casa de veraneio no campo ou nas praias, já que os elevados custos de aquisição e manutenção desses imóveis poderiam ser repartidos entre os múltiplos proprietários. Nos anos 80, assumiu a forma de investimento imobiliário para famílias de classes média e alta, incentivando a introdução de grandes cadeias imobiliárias e hoteleiras no mercado.5 Interessante notar que na experiência estrangeira, a multipropriedade foi e até hoje é explorada sob diferentes formatos, os quais poderiam ser agrupados em quatro espécies: a multipropriedade societária, por meio da qual os sócios de uma empresa têm o direito contratualmente assegurado de utilização de um bem por esta titularizado, durante temporada fixa, que se repete anualmente, por prazo indeterminado; a multipropriedade imobiliária, situada no campo dos direitos reais sobre bens imóveis, a qual oferece maior estabilidade e segurança pelas situações jurídicas de natureza real que enseja, objeto do presente estudo; a multipropriedade hoteleira, que não consiste propriamente numa espécie autônoma, já que se manifesta através de uma das primeiras, mas envolve uma estrutura hoteleira responsável por sua gestão e exploração, atraindo, por isso mesmo, disciplina jurídica própria; e, por fim, a multipropriedade como direito real sobre coisa alheia, caso em que o multiproprietário adquire o direito de utilização de certo bem imóvel por uma fração de tempo que se repete anualmente, contudo este bem continua sob titularidade do empresário responsável pela gestão do empreendimento.6 Na Itália, à guisa de exemplo, desenvolveu-se inicialmente sob o modelo acionário, com estrutura societária, que mais se assemelhava a multijouissance ou droit de jouissance à temps partagé do sistema francês, casos em que o direito de utilização do bem era assegurado por meio de contrato.7 Em Portugal, por sua vez, é até hoje explorada como direito real de habitação periódica, uma espécie de direito real limitado sobre coisa alheia, transmissível contratualmente, por meio do qual a pessoa física ou jurídica que promove o negócio é a proprietária do conjunto imobiliário sobre o qual incidem os direitos limitados (estes asseguram aos respectivos titulares a utilização da fração de tempo), reiteradamente, em caráter limitado ou perpétuo.8 Sem prejuízo dessa diversidade, verifica-se que o modelo mais bem sucedido foi inequivocamente o da multipropriedade imobiliária, explorado em países como Espanha, Bélgica e posteriormente na Itália9, por meio do qual restou privilegiada a situação jurídica de natureza real. Chegando ao Brasil nos anos 80, foi instalado no litoral norte de São Paulo o primeiro empreendimento multiproprietário10, existente e bem sucedido até os dias de hoje. Desde seu surgimento, revelou-se através de duas modalidades principais: como multipropriedade imobiliária e como multipropriedade hoteleira (organizada também sob a forma imobiliária) sendo que em ambas os multiproprietários, na qualidade de titulares de direito real sobre bem imóvel - tornando-se condôminos do prédio e de seus acessórios, inclusive móveis e utensílios, cabendo a cada qual uma fração ideal sobre o todo - vinculavam-se a uma escritura de convenção condominial11 e a um regulamento interno os quais definiam os direitos e obrigações de cada qual. Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
Afinal, o que é exatamente a incorporação imobiliária? No início da minha carreira e nos primeiros contatos com o direito imobiliário, confesso que tive muita dificuldade para realizar o correto enquadramento da incorporação imobiliária. Seria um tipo contratual? Incorporar é o mesmo que construir? A incorporadora e a construtora exercem atividades distintas?  O objetivo do presente artigo é apenas e tão somente conferir ao leitor uma introdução da incorporação imobiliária e aspectos práticos do seu desenvolvimento.  Em sentido geral, incorporação significa inclusão, união, introdução ou ligação de uma coisa no corpo de outra a que ficará pertencendo, ou agremiação, congregação, agrupamento promovido entre pessoas para a formação de um só corpo (do latim, incorporatio, de incorporare: dar corpo, juntar, unir1.  O conceito da incorporação imobiliário é trazido pela própria lei 4.591/1964. Segundo o artigo 28, parágrafo único, a incorporação imobiliária é "a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas". Preferimos, contudo, a definição de Melhim Chalhub2:  [...] a expressão incorporação imobiliária tem o significado de mobilizar fatores de produção para construir e vender, durante a construção, unidades imobiliárias em edificações coletivas, envolvendo a arregimentação de pessoas e a articulação de uma série de medidas no sentido de levar a cabo a construção até sua conclusão, com a individualização e discriminação das unidades imobiliárias no Registro de Imóveis.  A incorporação imobiliária, como se nota, é marcada sobretudo em razão da possibilidade de venda antecipada de unidades a construir. Tal permissão é imprescindível ao incorporador para obter os recursos necessários à concepção do empreendimento.  É natural que, ao permitir ao adquirente pagar o preço por algo que ainda será construído, a lei 4.591/1964 impôs a observância de uma série de obrigações ao incorporador. É relevante destacar, contudo, que antes da comercialização das unidades, há necessidade de o memorial de incorporação (uma espécie de dossiê documental que comprova técnica e financeiramente a viabilidade do empreendimento) estar devidamente registrado na matrícula do bem. Esse ato prévio traz maior segurança ao adquirente, uma vez que comprova ao menos que a incorporadora é titular de determinado terreno e possui um projeto construtivo aprovado pela municipalidade.  Para melhor compreensão da incorporação imobiliária, comecemos pela figura do incorporador. É ele quem faz a articulação de todas as medidas necessárias para viabilizar o futuro empreendimento. Segundo Caio Mário da Silva Pereira3, o incorporador é "a chave do negócio". Nesses termos, compete a ele planejar a obra, redigir as propostas e os contratos, obter o projeto arquitetônico, fazê-lo aprovar pela autoridade, tudo em termos tais que o edifício seja construído segundo o plano do incorporador e o condomínio constituído na forma da minuta da convenção condominial por ele redigida4. É o incorporador, portanto, quem planeja a construção do empreendimento que se pretende erigir.  Não se confunda o incorporador com os demais agentes que participam ativamente da incorporação imobiliária. É verdade que o incorporador pode ser responsável não apenas pela incorporação, mas também pela execução da obra. O incorporador também pode custear diretamente a construção ou financiar a aquisição da unidade autônoma, pelo comprador. Todavia, se assim não preferir, pode conferir a construção da obra para empresa especializada. Sem prejuízo, assim como ocorre na grande maioria dos casos, são as próprias instituições financeiras que acabam por conceder o crédito imobiliário, seja para a construção, seja para a aquisição das unidades.  A compra e venda das unidades, embora seja negócio jurídico celebrado entre incorporador e adquirente, também passa pela intermediação realizada por corretores de imóveis, tal como determinam a lei 6.530/1978 (artigo 3º) e o decreto 81.871/1978 (artigo 2º). O corretor de imóvel, portanto, é mais um importante partícipe da incorporação imobiliária. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 CHALHUB, Melhim. Incorporação Imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 9. 2 CHALHUB, Melhim. Incorporação Imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 7. 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 244. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 245.
Introdução  Este trabalho pretende esclarecer ao leitor a duração e abrangência da responsabilidade decorrente de vícios da construção para aquele que constrói ou aliena um imóvel, uma temática que nos parece ser repleta de dúvidas e controvérsias1. Adiantando tais discussões, pode-se afirmar, à primeira vista, em uma leitura apressada e isolada do art. 6182 do Código Civil - que trata da garantia legal da obra - que a responsabilidade do construtor é de 5 anos e, a partir de então, ele não responde por defeitos estruturais do imóvel. Seria, contudo, admissível que um prédio devidamente conservado se torne inabitável em virtude de falhas estruturais depois de 20 anos contados da entrega da obra e disto não decorra responsabilidade para o construtor, haja vista o encerramento do prazo de garantia legal? Evidente que não. Conforme veremos a seguir, o empreiteiro continua sendo responsável por força do regime geral da responsabilidade civil, cujo prazo prescricional se inicia a partir da ciência do vício oculto. Até quando, porém? A responsabilidade não pode, por evidente, ser eterna. E quanto ao vendedor de imóvel pronto e acabado, usado, com vícios ocultos, qual é a extensão da sua responsabilidade? A venda pode ser desfeita em caso de vício oculto? É cabível ação indenizatória neste caso, após ter sido ultrapassado o prazo previsto na lei para exercício de ação redibitória ou estimatória? Responderemos essas perguntas cientes de que elas não estarão livres de questionamentos e entendimentos diversos. Dividimos o presente trabalho da seguinte forma: no item 2, tratamos da responsabilidade do construtor ou incorporador por vícios da obra; no item 3, tratamos da responsabilidade do alienante de imóvel com vícios ocultos; no item 4, sintetizamos as principais conclusões deste trabalho. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. *Cristiano Schiller é mestrando em Direito Civil Contemporâneo pela PUC-Rio. Mestre em Construction Law & Dispute Resolution pela King's College London. Especializado em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Advogado. __________ 1 Demostrando as dúvidas e controvérsias sobre o tema, vide decisões judiciais do Foro de Santos, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com entendimentos diversos versando sobre o mesmo caso, envolvendo vício construtivo em empreendimento hoteleiro: (i) 1021977-96.2020.8.26.0562; (ii) 1027251-75.2019.8.26.0562; (iii) 2198903-49.2020.8.26.0000; e (iv) 2272551-62.2020.8.26.0000 2 "Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito."
A suspensão do uso dos aviões Boeing 737 Max 8 ao redor do mundo, por cerca de um ano e meio (entre 2019 e 2020), em razão de dois acidentes com aviões do mesmo modelo, deveria servir de exemplo para a engenharia civil e para a sociedade brasileira como um todo. Por que? Porque a criação e observância de procedimentos rígidos para a mitigação de riscos evita prejuízos desnecessários e, em diversas situações, pode salvar vidas, cujo valor é inestimável. A aviação civil está sempre preocupada em identificar tudo que possa interferir em sua atividade e leva a segurança a sério não só na teoria, mas também na prática. Havendo dúvidas sobre a segurança daquela aeronave, ela simplesmente deixou de voar. Não há um "talvez". E o setor como um todo concorda e segue incondicionalmente a diretriz adotada. Há um esforço conjunto para corrigir o que se apresenta como um potencial problema, independentemente de quem seja o responsável ou de quem sofrerá as consequências de um possível acidente. Segue-se a determinação e trabalha-se para a obtenção de soluções. Isso só se faz possível porque a aviação civil, em geral, trabalha muito bem com dois conceitos simples, que não podem se confundir: as figuras do perigo e do risco. O perigo das atividades desenvolvidas no dia a dia é inevitável. Perigo sempre existirá e está presente em tudo que fazemos em nossas vidas. O grande problema é como nos relacionamos com ele. O perigo está relacionado à natureza das coisas, sendo algo intrínseco à própria coisa ou atividade desenvolvida. O perigo é, de certa forma, inevitável. Mas, quando conhecemos o perigo e suas variáveis, podemos reduzir os riscos a que estamos expostos, tornando "administrável" o relacionamento mantido com ele. É o controle do perigo que traz segurança para nossas atividades. Daí a necessidade de procedimentos que sejam efetivamente respeitados. É aqui que entra a figura do risco. O risco está relacionado com a probabilidade de um acidente acontecer e varia de acordo com a exposição que se tem ao perigo. Ou seja, a probabilidade de ocorrer um acidente estará diretamente relacionada ao quanto você se expõe ao perigo sem os cuidados necessários. Tomemos o "fogo" como exemplo, que é inegavelmente perigoso. O contato da pele com o calor do fogo causa ferimentos e, fora de controle, o fogo é capaz de destruir dezenas de quilômetros quadrados de florestas (vide o ocorrido na região do Pantanal em 2020). Mas o fogo também foi algo imprescindível para a evolução da humanidade e, atualmente, todas as residências são guarnecidas com fogões, que levam o seu manejo para dentro de nossas casas. Isso quer dizer que o fogo é perigoso por natureza. Mas, observados certos procedimentos e cuidados, o risco representado pelo fogo é tranquilamente administrável pelas pessoas. No caso da aviação civil, o perigo é latente. Problemas durante o voo podem causar a morte de dezenas ou centenas de pessoas de uma vez só. Com esses fatores, é natural que haja uma preocupação absoluta com o manejo dos riscos envolvidos. Não é por outro motivo que, presente a figura do risco possivelmente relacionado diretamente a algum problema de um determinado modelo de avião, a sua utilização é imediatamente suspensa até que os riscos sejam reavaliados e novamente mitigados. Presente dúvida sobre a causa dos dois acidentes aéreos, entendeu-se por reduzir o risco a zero: o modelo daquele avião deixou de voar em qualquer parte do planeta. Esse tipo de preocupação a respeito do manejo de riscos deveria ser a prioridade do mundo contemporâneo. Mas a regra do que sê observa no Brasil, infelizmente, não é essa. A crença de que "Deus é brasileiro", de que tudo terminará bem e um desapego geral a regras e a procedimentos é a receita perfeita para acidentes como os que assombram o país de tempos em tempos, como no conhecido caso da "Boate Kiss", as repetidas tragédias de Mariana e de Brumadinho e o desabamento de edifícios inteiros, como no Rio de Janeiro (abril/2019) e em Fortaleza (dezembro/2019). E o que esses eventos têm em comum? Nada mais nada menos do que o desprezo por regras técnicas de mitigação de riscos. Infelizmente, na prática, a observância a procedimentos que contornariam ou reduziriam os riscos a patamares insignificantes fica relegada a planos de pouca ou nenhuma preocupação. Talvez uma mistura de falta de fiscalização com a alegria Tupiniquim decorrente da falta de educação básica da sociedade como um todo contribua determinantemente para esse contexto. Mas isso precisa mudar ou continuaremos vendo episódios trágicos com frequência. Essa é a crítica feita à engenharia, que assiste passivamente ao desrespeito de seus preceitos - que existem, mas não são cumpridos -, deixando a impressão de que está tudo bem. Disso já nos alerta Tito Livio Gomide, especialista em inspeções prediais, há bastante tempo! Em seus artigos intitulados "Tragédia anunciada", já profetiza um iminente desfecho trágico para as construções que nos rodeiam porque, em regra, não sofrem qualquer tipo de manutenção. Não deve ser novidade para ninguém que qualquer construção possui um prazo de vida útil e que, com o tempo, ela pode vir à ruína. Técnicas de manutenção periódica podem evitar o desgaste acelerado de estruturas e repor a sua funcionalidade ao longo do tempo. A preocupação que a sociedade tem com a manutenção e revisão dos automóveis, curiosamente, não tem qualquer aplicação aos imóveis. O sujeito cuida perfeitamente de seu veículo, faz constantes manutenções, todo ano retorna à concessionária para realizar uma revisão, porque, afinal, não pode perder a garantia que acompanha o seu bem. Mas esse mesmo sujeito compra um imóvel, que custa dez vezes mais do que um automóvel, e não é capaz de dedicar seu tempo para recompor o desgaste natural que o tempo provoca nesse bem que é tão caro ao brasileiro - "a casa própria". A engenharia, de fato, possui regras para evitar o caos profetizado. Mas precisamos cumpri-las, antes que seja tarde demais! Não adianta ter procedimentos perfeitos se não forem aplicados. E não adianta apenas lamentar. É preciso fazer com que as normas sejam cumpridas. Apenas como exemplo, podemos citar a NBR 5.674, válida desde 1999, e que trata do procedimento de "Manutenção de Edificações". "Esta Norma fixa os procedimentos de orientação para organização de um sistema de manutenção de edificações" e deveria servir como uma espécie de mantra para os condomínios. Mas aí surge a pergunta: quantos síndicos já ouviram falar desta norma? Quantos seguem algum procedimento de manutenção periódica e/ou preventiva no condomínio que administra? A sociedade precisa perceber que todos têm papel importante e decisivo para contribuir reciprocamente com a segurança. O construtor deve empregar as técnicas necessárias para que as pessoas possam morar nas edificações construídas por ele. Mas o morador não pode se esquecer de que a forma como ele se relaciona com a sua moradia impactará na integridade de sua moradia. A construção é como uma corrida de revezamento, onde o usuário pega o bastão das mãos do construtor, mas deve continuar em movimento, dentro daquilo que dele se pode esperar, para que a linha de chegada seja alcançada. Se algum risco não sopesado surgir no meio do percurso, medidas devem ser tomadas de forma breve e incisiva, para aquilo que já se sabe iminente não volte a ocorrer. Ilustrativamente, lembra-se o ocorrido em Londres, em 2017, em incêndio que destruiu um edifício residencial, deixando dezenas de vítimas fatais. Apurado que o revestimento utilizado na fachada, para dar maior conforto térmico à edificação, foi um grande vetor para as chamas, medidas imediatas foram adotadas por todo o território inglês. Nos dias que se seguiram ao incêndio, apurou-se que cerca de 600 edifícios possuíam o mesmo tipo de revestimento e uma força-tarefa foi constituída para que esses materiais fossem substituídos. Em poucas semanas, esse risco estava mitigado. Não foram apenas lamentos. As vozes técnicas foram ouvidas e respeitadas. Devemos parar de achar que Norma Técnica não precisa ser seguida. O risco banal deve ser mitigado. É necessário criar mecanismos para exigir o cumprimento de regras de manutenção e a engenharia precisa querer ser ouvida e respeitada. Ou veremos cada vez mais presente a ocorrência das ditas "tragédias anunciadas". *Fabio Tadeu Ferreira Guedes é mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Especialista em Processo Civil e em Direito Imobiliário pela PUC/SP. Fundador e colaborador do blog www.civileimobiliario.com.br. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM.
Direito e economia são ciências distintas, contando com regras, funções, estruturas e princípios igualmente diferenciados, mas há muito já se identificou repercussões recíprocas e conexões inegáveis. Malgrado o respeito do Poder Judiciário brasileiro às milenares categorias jurídicas do Direito Privado, não raro o magistrado é desafiado para solucionar questão jurídica com importantes reflexos econômicos, assim como o legislador que recentemente houve por bem editar a chamada Lei de Liberdade Econômica. Exemplo significativo dessa interseção é a contemporânea economia de compartilhamento que trouxe para a humanidade tecnologia e arranjo contratual apto a melhorar a circulação das pessoas nas cidades (Uber), multipropriedade imobiliária (lei 13.777/18), hospedagem diversificada e com preço mais em conta (Airbnb). Outras práticas podem ser lembradas e em todas se verifica intensa possibilidade de circulação de riquezas e geração de serviços que podem, por exemplo, complementar a remuneração do trabalhador, assegurar rendimentos para pessoa aposentada ou sem rendas formais, assim como proporcionar uma vida mais feliz. Em todas essas situações, temos exemplos de economia de compartilhamento. Para uma saudável e harmônica atividade negocial, a economia de compartilhamento necessita, sobretudo, de respeito à autonomia privada, ao direito de propriedade e segurança jurídica. Nessa toada, a atividade de hospedagem intermediada pelo AIRBNB une locadores e locatários, denominados pela plataforma como "anfitrião" e "hóspede", contados aos milhões em diversos espaços do planeta. Não raro, o destinatário de tais serviços, na qualidade de anfitrião, depara com uma delicada situação de insegurança jurídica, posto que o imóvel que pretende disponibilizar para o hóspede, mediante retribuição, constitui-se em uma unidade autônoma em condomínio edilício e, por vezes, o condomínio proíbe essa modalidade de utilização da propriedade privada. Daí, surge um dilema jurídico de difícil solução sob a ótica da ordem jurídica pátria: o condomínio edilício pode proibir os condôminos de alugarem as suas unidades pela via dos serviços prestados pelo Airbnb? Inexiste norma jurídica federal específica que resolva esse conflito. A propósito, se existisse e independentemente da opção adotada, dificilmente não seria posta à prova diante de um exame de sua constitucionalidade. Uma corrente de pensamento defenderia os valores, por exemplo, da autonomia privada, da livre iniciativa, na economia de compartilhamento com as suas vantagens para a sociedade e, sobretudo, no direito de propriedade com os seus poderes inerentes, enquanto outra orientação jurídica poderia buscar na função social da propriedade condominial outro resultado hermenêutico. À falta de um norte legislativo especial, vamos tentar buscar em outras fontes do Direito a resposta para a indagação acima, sobretudo na recente decisão, sobre o tema, do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete, à luz do texto constitucional, dentre outras relevantes funções, uniformizar a interpretação da lei federal. À guisa de exemplificação, trazemos decisão de junho de 2018, na qual a 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já reputou como válida cláusula que impõe obrigação de não fazer aos condôminos no sentido de proibir que o proprietário de unidade autônoma alugue imóvel para turistas pelo AIRBNB (TJRJ, AI 0064628-03.2017.8.19.0000, Rel. Des. Valeria Dacheux Nascimento). A despeito de nos parecer ser essa realmente o entendimento majoritário dos tribunais estaduais, na interpretação do artigo 1336, IV, do Código Civil, vamos encontrar decisões em sentido contrário, demonstrando o quão delicada é a questão aqui debatida como, por exemplo, a decisão a seguir oriunda do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Apelação Cível - Condomínio Edilício - Declaratória de nulidade de ato jurídico - Alteração da Convenção do Condômino - Proibição de locação por temporada inferior a 90 dias - Sentença de improcedência - Locação por temporada não desvirtua a destinação para residência prevista na Convenção - Inteligência do art. 45 da lei 8245/91 - Não configuração de contrato de hospedagem - Inteligência do art. 23, "caput", da lei 11.771/08 - Eventuais danos, perturbações ou infrações à Convenção ou Regulamento interno devem ser sancionadas nos termos daquelas, não sendo permitida a proibição de locação do bem como sanção - Inteligência do art. 1.337 do CC - Indevida limitação ao direito de propriedade, constitucionalmente garantido. Recurso provido". (TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Proc. nº 1008757-15.2018.8.26.2008, Rel. Des. Francisco Carlos Inouye Shintate, julg. em 01/02/2021). Diante dessa polêmica, adiro, à inteireza, ao bem lançado voto do eminente Ministro Luis Felipe Salomão (STJ, 4ª Turma, REsp nº 1.819.075/RS) que no dia 10 de outubro de 2019 deu início ao julgamento dessa questão no sentido de que os condomínios não podem proibir aos proprietários de realizar locação de curta temporada via Airbnb. Sua excelência afastou a conotação de hospedagem prevista na Lei 11.771/2008 que incluiria a prestação de diversos serviços, os quais não se verificam no Airbnb. Destacou que a economia de compartilhamento com a utilização de uma plataforma digital como são exemplos o Uber e o Airbnb, é uma realidade importante para os interesses do País, com grande soma de investimentos, não sendo razoável a sua proibição, nada obstante possa o condomínio adotar medidas para regular o seu funcionamento, como o cadastramento dos anfitriões na portaria, dentre outras. Na realidade, o contrato não é de hospedagem, mas sim de locação por temporada, nos moldes previstos na Lei 8.245/1991, com as diferenças típicas da pós-modernidade trazida pela economia compartilhada via plataforma digital. Decerto, o artigo 1335, I, do Código Civil assegura - e não poderia ser diferente sob a ótica da legalidade constitucional - o direito de usar, fruir livremente dispor das suas unidades e não vemos como razoável a referida limitação ao exercício do direito de propriedade. Releve-se que se configuraria irrazoável pensar em proibir o proprietário de unidade autônoma de alugar quarto em sua residência, ainda que situada em condomínio edilício. Dessa forma, como entender diferente na atividade de intermediação por meio de aplicativo digital entre aquele que pretende ceder onerosa e temporariamente a sua unidade autônoma e outro que a queira utilizar? Essa não foi, entretanto, a orientação adotada pelo eminente Ministro Raul Araújo que abriu a divergência, sendo acompanhado por outros dois julgadores na sessão do dia 20 de abril de 2021, formando a maioria no sentido da possibilidade de o condomínio edilício com previsão de destinação residencial das unidades autônomas proibir a realização de oferta de imóveis por meio de plataformas digitais via Airbnb. A despeito de ainda não ter sido disponibilizado o acórdão, verificamos que o colegiado, por maioria, considerou que se trata de contrato atípico de hospedagem regido com regulamentações específicas e, portanto, distinto da locação para fins de temporada regulada pela lei 8245/91. Foi destacado no voto vencedor, em análise do caso concreto, a existência de alta rotatividade no local sendo disponibilizados para várias pessoas em curto espaço de tempo, com oferta inclusive de serviços como lavagem de roupas. Na visada do ministro Raul Araújo, "tem-se um contrato atípico de hospedagem, expressando uma nova modalidade, singela e inovadora, de hospedagem de pessoas sem vínculo entre si, em ambientes físicos de padrão residencial e de precário fracionamento para utilização privativa, de limitado conforto, exercida sem inerente profissionalismo por proprietário ou possuidor do imóvel, sendo a atividade comumente anunciada e contratada por meio de plataformas digitais variadas". Ao concluir, disse o ilustre julgador que "o direito do proprietário condômino de usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos artigos 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da lei 4.591/1964, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício". Assim, o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi mantido, com a orientação de que a atividade desenvolvida pelo condômino seria comercial e proibida pela convenção do condomínio. Inegável que é fundamental a preservação da convivência harmônica entre os condôminos, equilibrando-se com justiça, para tanto, o direito da propriedade exclusiva do condômino com a propriedade condominial sobre as áreas comuns, os quais encontram no artigo 1336 do Código Civil importantes efeitos, além da própria convenção condominial e regimento interno, desde que tais restrições sejam razoáveis e não obstaculizem o exercício legitimo do direito de propriedade exercido com exclusividade na unidade autônoma. Por exemplo, o Tribunal da Cidadania, já tem uma orientação firme no sentido da nulidade de eventual cláusula que proíba a utilização de área comum por condômino inadimplente, assim como não vê correção em determinação cega de proibição de animais no interior das unidades autônomas, ou seja, estes somente serão proibidos se colocarem em risco o sossego, a segurança ou a saúde dos demais condôminos. A questão está longe de ser resolvida na jurisprudência, bastando para tanto observar o placar apertado de 3 a 2 na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, além do que o caso concreto tinha algumas peculiaridades apontadas pelo Tribunal de origem que são incomuns na maioria dos casos de ofertas de unidades autônomas em locação pela via de plataforma digital e, desse modo, há indicativo de que a decisão em comento não configure precedente para situações que, embora parecidas e referentes ao Airbnb, não possuam as mesmas particularidades concretas. Em nosso modo de ver, com a devida vênia aos entendimentos em sentido contrário, a proibição não se coloca como razoável, ofende o direito de propriedade, coloca em risco a segurança jurídica, a livre iniciativa e com ela a própria liberdade econômica, valores que encontram no capítulo dos direitos fundamentais, a sua fonte normativa. Em tempos de pós-modernidade, a dificuldade na identificação das categorias jurídicas - se locação por temporada ou contrato atípico de hospedagem - não pode ser óbice para uma prestação de serviços que tem atraído e felicitado os destinatários, conferindo à propriedade imóvel importante funcionalidade, além de estar movimentando fortemente a economia nacional. Situações de abuso do direito por parte dos condôminos e possuidores eventuais podem e devem ser corrigidas pontualmente, no âmbito da dialética do caso concreto, não sendo razoável, contudo, que, de forma abstrata e apriorística, se possa proibir tal modalidade de utilização compartilhada da propriedade imobiliária. Frise-se, por fim, que o anfitrião continua a ser condômino, tendo assim, que respeitar todas as regras de saúde, sossego e segurança que regem a vida condominial. O cumprimento desses preceitos é sua obrigação - devendo ser repassado aos hóspedes - sendo ele, condômino, o responsável por eventuais sanções previstas na convenção por mau exercício da posse por parte de hóspede. *Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do TJ/RJ, doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá. Titular de Direito Civil do IBMEC/RJ e emérito da EMERJ.
Quando Isaac Newton, ainda em 1687, publicou os três volumes do Principia, revelando, para um mundo assombrado, suas leis do movimento e da gravitação universal, quem poderia imaginar que Albert Einstein, após dois séculos e meio de verdades absolutas, demonstraria, com sua teoria da relatividade, que as coisas não eram bem assim? Por essas e por outras, o filósofo Karl Popper, também um gênio, dedicou parte de sua vida defendendo, com seu racionalismo crítico, que a lógica indutiva e as certezas dela extraídas são um mito, e que o erro é componente inevitável de toda teoria científica; é o motor pelo qual a ciência se move1. No Direito também temos nossas certezas, e precisamos revisitá-las de vez em quando. Este artigo, frise-se, não traz nenhuma descoberta revolucionária. Contamos a história acima apenas porque o exemplo extremado costuma servir bem à didática. Como se sabe, para vender sua fração ideal de um imóvel a estranhos o proprietário deve ofertá-la ao(s) seu(s) condômino(s) pelo mesmo preço e condições ajustados com o terceiro; e, em caso de violação dessa preferência, o condômino prejudicado tem direito à adjudicação compulsória da fração indevidamente alienada, desde que inicie a ação judicial ou procedimento arbitral no prazo decadencial de até 180 dias (art. 504 do Código Civil). A Lei de Locações traz regra parecida em favor do locatário, porém de maneira bem mais completa. Enquanto o Código Civil se omite, abrindo espaço para a regulação caso a caso em convenção condominial, a lei 8.245/91 é expressa em prever, além de outros aspectos: (i) o prazo decadencial de 30 dias para o locatário aderir à proposta do locador (art. 28); e (ii) o termo a quo do prazo de seis meses para a ação de preferência se conta "do registro do ato no cartório de registro de imóveis" (art. 33). Disto decorrem pelo menos duas regras gerais quanto ao prazo decadencial: (i) o locatário deve contar os seis meses a partir do registro do instrumento de alienação na matrícula do imóvel; e (ii) o condômino iniciará a contagem dos 180 dias no termo a quo previsto na convenção de condomínio, ou, em caso de omissão ou inexistência de convenção, também a contar do registro do instrumento de alienação, por aplicação analógica da Lei de Locações. Aqui, o dever ser. Porém, raramente as coisas são como deveriam ser, e o desrespeito à preferência acontece no mundo real. Uma primeira forma recorrente de violação é a simulação: o alienante oferta o imóvel por um preço, quando, sorrateiramente, ajustara com o comprador um valor menor2. Um segundo modo ilícito de agir é comunicar a intenção de alienar, mediante prévia notificação, e então, mesmo com a adesão do condômino ou do locatário à proposta, simplesmente ignorá-lo, seguindo em frente com a venda para o terceiro. Há ainda uma terceira, que está no foco deste artigo: o silêncio absoluto. Neste mau caminho, nada é dito ao preferente; nem antes, nem depois. Como raramente o condômino ou locatário monitora a matrícula imobiliária, a transmissão só vem à tona muitos meses, quiçá anos mais tarde, quando o prazo decadencial já se esvaiu. Sim, pois o art. 33 da lei 8.245/91 fixa o termo a quo do prazo decadencial da ação de preferência na data do registro. E não só a Lei. O Enunciado 545 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, na mesma linha, estabelece que o prazo para a ação anulatória de venda de ascendente a descendente, quando cabível, se conta "da ciência do ato, que se presume absoluto, em se tratando de transferência imobiliária, a partir da data do registro de imóveis". Presunção absoluta de ciência do ato? Eis a verdade sobre a qual precisamos refletir, senão para encontrar respostas, ao menos para levantar perguntas. Não se discute que o registro do negócio jurídico na matrícula do imóvel tem o condão de torná-lo público, acessível a todos, o que traz como essencial efeito a presunção de ciência por terceiros. O ato registrado pode não ser verdadeiramente conhecido de alguém, mas é indubitavelmente conhecível. A lei 8.245/91 e o Enunciado 545 do CJF partem precisamente dessa premissa, convenhamos, lógica e razoável. Contudo, precisamos ter cuidado com as consequências de tal publicidade sobre as pessoas. Quando o oficial conclui o registro na matrícula, não há intimação dos interessados afetados direta ou indiretamente pelo ato. Não há, por assim dizer, o que se denomina "publicidade ativa". A montanha não vai a Maomé, apenas espera por ele, caso ele decida ou precise vir. O ato será conhecido se e somente por quem pedir uma certidão da matrícula ou, por algum modo, tiver sido avisado do negócio. A compra, se não tiver sido feita pelo filho do Presidente da República ou por outro famoso de interesse da imprensa, ou se não estiver no bojo de uma megaoperação imobiliária, dificilmente virá à superfície, mantendo-se além do horizonte, fora do alcance dos olhos distraídos do locatário ou do condômino prejudicado, e quando ficar à vista, se ficar, provavelmente será tarde demais. A publicidade do ato registral é, assim, passiva e limitada. E por isso mesmo, em nome da coerência do sistema, seus efeitos devem ser interpretados na mesma extensão. Situações diferentes devem ser interpretadas distintamente. Você já se perguntou por que uma averbação premonitória, um registro de penhora ou de arresto, ou de existência de ação, produz plenamente seus efeitos contra terceiros? Que terceiros? Os bilhões de pessoas físicas e jurídicas restantes do planeta? Ao que parece, o terceiro a que a publicidade efetivamente se dirige é o possível adquirente do imóvel, o interessado que, espontaneamente, aliás, obrigatoriamente, obterá uma certidão da matrícula, com a chance real e concreta de descortinar, para sua surpresa, decepção ou indiferença, o gravame ali registrado3. E se no momento da aquisição a penhora, a averbação premonitória, o arresto, a menção à existência da ação ou a indisponibilidade ainda não estiverem na matrícula do imóvel? Ainda assim haverá fraude à execução? Ou, não havendo registro, não há publicidade nenhuma, e por isso, a presunção de boa-fé do adquirente é absoluta? Não há binarismo. Depende. A Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça responde a parte da pergunta. Segundo seu enunciado, o reconhecimento da fraude depende do registro da penhora, ou, não havendo registro prévio de penhora ou ato similar de publicidade, "da prova de má-fé do terceiro adquirente". Siga conosco: se a penhora (ou ato similar) está registrada, fica caracterizada a má-fé, isto é, o conhecimento da demanda ou da constrição; se não há registro, o exequente tem que provar que o adquirente sabia. Entretanto, pode ser que o ônus da prova caia sobre o adquirente; pois se este, por sua condição negocial habitual, deveria saber, ou ao menos, deveria ter sido diligente, não haverá aquisição de boa-fé, e o bem se sujeitará à execução, como o próprio STJ já decidiu mais de uma vez4. A jurisprudência, enfim, reconhecendo que a boa-fé objetiva é uma via de mão dupla, imputa ao adquirente empresarial a comprovação de que foi diligente na aquisição do bem, isto é, que cumpriu adequadamente o ônus de se informar5. Entre o branco e o preto há um mar de cinza na riqueza das situações concretas. Há outro caso que também nos ajuda a chegar onde queremos. O art. 8º da Lei de Locações trouxe a regra "venda rompe locação", ou seja, em caso de alienação do imóvel locado o adquirente tem direito a denunciar o contrato, mesmo aquele protegido pelo direito à renovação compulsória, a não ser que: (i) a locação esteja vigorando por prazo determinado;  (ii) haja cláusula de vigência de caso de alienação; e (iii) o contrato esteja previamente averbado na matrícula do imóvel. Três requisitos concomitantes, e o terceiro deles esbarra no tema tratado neste artigo: a presunção de conhecimento do ato registrado por terceiros. Contudo, embora a lei exija do locatário o preenchimento de três requisitos, o STJ analisou um processo em que o contrato não estava averbado, mas se provou que o adquirente, ao comprar o imóvel, sabia da locação. Isso foi o bastante para a interpretação teleológica do artigo: se a função da exigência de prévia averbação era permitir o conhecimento do contrato pelo terceiro, e se, mesmo sem a averbação, o objetivo estava alcançado, o adquirente não poderia se beneficiar dessa questão meramente formal para retirar o inquilino do imóvel6. Qual é o pano de fundo, o divisor de águas nas questões acima expostas sobre fraude à execução e venda rompe locação? A boa-fé objetiva. A boa-fé tem sido exaustivamente estudada pela doutrina e sistematicamente aplicada pela jurisprudência, especialmente no contexto de que a função de uma categoria jurídica é tão ou mais importante que sua estrutura, condicionando-a. Jogue um líquido amarelo num pote de tinta azul, e algo diferente sairá dessa mistura. Nessa perspectiva funcional e transformadora da boa-fé, uma cláusula geral, se extraem três papéis principais: (i) oxigenar a concepção do contrato e de cada obrigação nele contida, para modernamente enxergá-la como um processo, um encadeamento dinâmico de atos com um fim a tutelar: a legítima expectativa das partes (CC, art. 422)7; (ii) atuar no plano da interpretação das declarações negociais e das condutas das partes (CC, art. 113); e (iii) funcionar corretivamente, balizando o modo do exercício de um direito (CC, art. 187). A correção se opera, fundamentalmente, no plano das condutas, e no momento do exercício dos direitos, faculdades, pretensões, ações, exceções e ônus. Se, então, a boa-fé objetiva pode, deve, e vem sendo utilizada pelo próprio STJ para temperar sua Súmula 375 e o art. 8º da Lei de Locações, porque o mesmo não poderia ocorrer com o art. 33 da Lei do Inquilinato (ou com eventual cláusula convencional) em caso de alienação subterrânea, furtiva, sem qualquer aviso ao locatário ou condômino?8 Portanto, e rumo à conclusão, nos parece certo afirmar que nas alienações silenciosas, violadoras da preferência, o comportamento do alienante agride a boa-fé e fere a legítima expectativa do condômino ou locatário de que seria avisado da intenção de venda, o mesmo se dizendo do adquirente que, sabendo da existência de condômino ou de locatário, decide seguir em frente com a aquisição sem ao menos uma declaração do vendedor de que a preferência estaria sendo respeitada. Em tais casos, o efeito da publicidade passiva decorrente do registro deve ser mitigado, não ocorrendo a presunção de conhecimento pelo titular da preferência profanada, e o prazo decadencial não contará da data do registro da alienação. Sem a presunção militando em seu favor, caberá aos capciosos alienante e adquirente a prova de que o autor da ação teve ciência da transmissão em data anterior ao ajuizamento da ação ou da data por ele alegada, para fins de fixação do termo inicial da decadência. Naturalmente, tal mitigação é excepcional, e deve ser conservadoramente aplicada, levando-se em conta os seguintes critérios: (i) alienação sem prévio aviso: se o titular da preferência, comprovadamente, foi de alguma forma alertado, o dever de monitorar a matrícula permanece sobre seus ombros; (ii) circunstâncias do caso concreto: se, mesmo no silêncio absoluto, havia razões circunstanciais, como um fato notório, que justificassem a atenção do locatário ou condômino diligente, o dever de monitoramento registral igualmente existirá; e, finalmente, (iii) grau de profissionalismo do locatário ou do condômino: ocorrendo a venda silenciosa, não se pode tutelar a confiança de um fundo de investimento com a mesma intensidade de uma pessoa física leiga9. A confiança é o cimento, a base para qualquer convivência social e humana10; um dos fundamentos da boa-fé, que norteia a interpretação legal e contratual, estabelecendo um standard jurídico de probidade para o comportamento das partes e atuando corretivamente em caso de abuso do direito, a fim de tutelar a legítima expectativa. A boa-fé, enfim, funcionaliza e transforma as relações jurídicas contratuais e reais, sendo ingrediente fundamental na interpretação e aplicação das normas legais e cláusulas contratuais. Não podemos nos acomodar diante de certas verdades jurídicas esmagadoras, grandes ou pequenas, importantes ou não, revisitando suas premissas e questionando seu alcance. O direito de preferência, se visto e interpretado com as lentes da boa-fé objetiva, pode ter seu potencial elevado, contribuindo para negócios imobiliários cada vez mais impregnados de lealdade. Que assim seja.   *André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador, Vice-Presidente e Diretor Administrativo do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário. Sócio de Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados.  **Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS, associado do IBRADIM e da AGADIE. Instagram: @demetriogiannakos. __________ *Este artigo é uma versão desenvolvida a partir do texto publicado no Jornal do Notário nº 202, disponível aqui. Acesso em 23.abr.2021.  1 POPPER, Karl. R. A Lógica da Pesquisa Científica. 18. edição. São Paulo: Cultrix, 2012. 2 Neste sentido, confira a seguinte ementa de caso julgado pelo STJ: "RECURSO ESPECIAL. CIVIL. VENDA DE QUINHÃO DE COISA COMUM INDIVISA. DIREITO DE PREFERÊNCIA... INOBSERVÂNCIA AO DIREITO DE PREEMPÇÃO DOS DEMAIS CONDÔMINOS... RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO... Praticado preço simulado pelas partes, fazendo constar da escritura pública preço a menor, que não reflita o valor real do negócio, deve prevalecer aquele exarado na escritura devidamente registrada para fins do direito de preferência, sendo que o registro do título (que tem como atributo dar publicidade da alienação imobiliária a toda a sociedade, conferindo efeito erga omnes) é o ato substitutivo da notificação, que deveria ter sido anteriormente remetida ao coproprietário, mas não foi, não podendo o condômino alienante valer-se da própria torpeza, a qual denota o abuso do direito infringente da boa-fé objetiva.." (REsp 1.628.478/MG, Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª. Turma, j. em 03/11/2020, DJe 17/11/2020). 3 Apenas para exemplificar: "AGRAVO DE INSTRUMENTO... ANULAÇÃO ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. REGISTRO DA CITAÇÃO OCORRIDA EM AÇÃO REAL OU PESSOAL REIPERSECUTÓRIA NO ÁLBUM IMOBILIÁRIO. A determinação de registro da citação de ação real ou pessoal reipersecutória na matrícula junto ao registro de imóveis atende ao princípio da publicidade. A medida não constitui restrição ao direito de alienar o imóvel e evita o risco de lesão a terceiros de boa-fé interessados na aquisição do bem. No caso concreto, considerando a pretensão de nulidade da cessão de direitos hereditários, que poderá atingir os negócios jurídicos posteriores, o registro da citação deve recair sobre o imóvel descrito no R-2-5330, e não apenas sobre a meação da agravada. Agravo de instrumento provido" (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70058334566, 19ª Câmara Cível, Rel. Des. Marco Antonio Angelo, j. em 14.08.2014). Grifos nossos. 4 Confiram-se os seguintes trechos: (i) "Destaca-se que a presunção de  fraude  à  execução  quando a alienação  do  bem  do  devedor ocorre após a citação é relativa, ou seja, admite prova em contrário, sendo invertida pelo adquirente que comprova  que  agiu  com  boa-fé  na  aquisição  do  bem, mediante a apresentação  de  certidões  pertinentes  ao  local  onde se situa o imóvel,  além  de  demonstrar  desconhecer  a existência da Execução Fiscal ou da inscrição em dívida ativa em desfavor do alienante" (EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1225829/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1. Turma, j. 14/02/2017); (ii) "Está demonstrada a boa-fé do terceiro adquirente quando este junta aos autos certidões de distribuição cível e de protestos obtidas no domicílio da alienante e no local do imóvel. Não se pode exigir que o adquirente tenha conhecimento de ações ajuizadas em outras comarcas" (REsp 1015459/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 19/05/2009); e (iii) "Acrescente-se, apenas, que a boa-fé do adquirente não ficou demonstrada nos autos pois tinha sido cientificado da ação de despejo que poderia resultar em obrigações ao fiador/executado/alienante e especialmente porque dispensou as certidões dos cartórios distribuidores. Com efeito, só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé, o comprador que toma mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição" (AgRg no REsp 721.960/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª. Turma, j. 14/10/2014). 5 Rodrigo da Guia Silva e Gustavo Tepedino, com propriedade, sustentam que "incumbe ao credor, dentro das suas concretas possibilidades, o ônus de empreender esforço razoável para a obtenção - ou, ao menos, para a solicitação - das informações necessárias à formação do seu convencimento ou ao desempenho da prestação assumida no bojo do contrato", que "a postura diligente do credor apresenta-se como pressuposto para o legítimo exercício do seu direito à informação", e que, "dificilmente poder-se-ia concluir que age conforme à boa-fé objetiva o credor que deixa de buscar - ou, ao menos, de solicitar - as informações às quais razoavelmente poderia ter acesso sem esforço desmesurado". (SILVA, Rodrigo da Guia; TEPEDINO, Gustavo. Dever de informar e ônus de se informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. Acessado em 24 de abril de 2021). 6 Confira-se: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESPEJO. DENÚNCIA VAZIA. COMPRA E VENDA. MANUTENÇÃO CONTRATO DE LOCAÇÃO. AUSÊNCIA DE AVERBAÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO COMPRADOR... Na hipótese, trata-se de ação de despejo proposta por comprador de imóvel em face de locatário. Discute-se a possibilidade do comprador de imóvel locado proceder à denúncia do contrato de locação ainda vigente, com fundamento na inexistência de averbação da referida avença na matrícula do respectivo imóvel. 4. O Tribunal de origem, após analisar a documentação apresentada pelas partes, que retratava toda a negociação de compra e venda do bem, até a lavratura da respectiva escritura, entendeu que, não obstante ausente a averbação do contrato na matrícula do imóvel, o adquirente tinha a obrigação de respeitar a locação até o seu termo final. 5. Afastada a possibilidade da recorrente denunciar o contrato de locação com base na ausência da sua averbação na matrícula do imóvel porque ela tinha inequívoco conhecimento da locação e concordara em respeitar seus termos em instrumentos firmados com o locador e proprietário anterior... Negado provimento ao recurso especial" (REsp 1269476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 19/02/2013). 7 SILVA, Clovis Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 17. 8 Vitor Frederico Kümpel, ao criticar o Enunciado 545 do CJF, explica justamente a importância de se diferenciar as publicidades ativa e passiva, e que de acordo com o enunciado teria se "operado a decadência do direito dos descendentes, o que por si só é um absurdo" (KÜMPEL, Vitor Frederico. Publicidade passiva X publicidade ativa. Disponível aqui. Acesso em 8.mar.2021). 9 Novamente na lição de Rodrigo da Guia Silva e Gustavo Tepedino, a extensão do dever de informar haverá de ser investigada à luz, entre outros fatores, do grau de vulnerabilidade ou assimetria informacional das partes na relação contratual; por um lado, quanto maior a assimetria informacional, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar; por outro lado, quanto menor a assimetria informacional, menos intenso é o dever de informar e mais intenso é o ônus de se informar. Cumpre ao intérprete, portanto, investigar a existência e a exata medida da assimetria informacional entre as partes, por ser justamente essa disparidade originária de informações um dos principais critérios para a definição da intensidade do dever de informar e do ônus de se informar em cada caso concreto. (SILVA, Rodrigo da Guia; TEPEDINO, Gustavo, ob. cit.). 10 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé Objetiva e o Adimplemento das Obrigações. Revista Brasileira de Direito Comparado, v. 25, 2004, p. 229-284. A boa-fé subjetiva, por sua vez, é um estado psíquico, uma crença de estar agindo corretamente. Aqui, o direto protege a crença legítima na juridicidade de certos estados, fatos, atos ou comportamentos.
"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". Essa passagem, em tradução livre, contida no livro "Para Além do Bem e do Mal", de Nietzsche, representa a grande preocupação que a comunidade jurídica tem apresentado no combate do monstro da pandemia pelos poderes da República. A pandemia demonstrou o quanto pode se tornar maquiavélico o enfrentamento de um problema global, não em sentido pejorativo, mas sim de supressão de um racional na escolha dos meios, e sem solução aparente, nos remetendo aos mais primitivos temores da humanidade: a morte. Temos que constatar e reconhecer que, salvo raras exceções, falhamos ou tardamos em estabelecer estratégias eficazes para lidar com crises, o que se prova pela constante adoção de soluções que indicam curta visão e longos problemas. Feito este negativo preâmbulo, é de notório conhecimento a tramitação, no Congresso Nacional, do PL1026/21, que pretende pré-fixar o IPCA como índice de reajuste anual da locação residencial e comercial, sugerindo a inclusão de um parágrafo único ao art. 18 da Lei do Inquilinato: "Art. 18 ..................................................................................... Parágrafo único. O índice de reajuste previsto nos contratos de locação residencial e comercial não poderá ser superior ao índice oficial de inflação do País medido pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo), ou outro que venha substitui-lo em caso de sua extinção. É permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário."(NR) Aqui vale destacar alguns itens sobre os quais não se pretende a análise nestas linhas: (i) a incongruência da alteração, fixando o índice para depois tornar possível suposta dispensabilidade e (ii) a aplicação temporal da Lei, se aprovada (por mais que pareça clara a irretroatividade). Prosseguindo, como passaremos a esclarecer, se trata de mais uma intervenção inconstitucional na economia, ferindo de morte a parte final do art. 174 da Constituição da República Federativa do Brasil ("CRFB"). O Constituinte foi claro em dizer que o Estado, "agente normativo e regulador", será determinante para iniciativa econômica pública e indicativo para a privada. Mas o que isto significa? Parece adequado o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, para quem a intervenção estatal deve se ater a uma justificativa determinante, como o funcionamento anormal da iniciativa privada ou a necessidade de sua reorganização1. Ademais, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o Estado "deve para evitar intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade"2, mostrando-se compreensivo apenas na presença de justificativas sólidas e marcante interesse social3. Há alguns anos, vê-se um movimento, por parte do Poder Legislativo, de leitura míope da Constituição, em que se simula um confronto intransponível entre valores constitucionais, devendo um deles prevalecer pelo bem comum (seja lá qual for o seu significado). Como consequência, temos uma profusão de projetos de Lei demasiadamente intervencionistas. Tal fenômeno também se verifica no Poder Judiciário. Todavia, nestas linhas, deixaremos de lado a apreciação do seu papel na equação desse enclosure da iniciativa privada. A bem da verdade, essa polarização constitucional soa intuitiva. Na sua sustentação, apresenta-se comumente um discurso eloquente, moralmente afinado e capaz de carrear salvas de palmas, mas que pode impor danos irreparáveis ao tecido jurídico. É de sabença que a escolha de valores constitucionais para solução de questões, notadamente no campo legislativo, não pode ceder a uma opção discricionária entre eles. Assim, não se deve buscar a prevalência, mas sim a sua aplicação simultânea, compatibilizada e harmônica4. Sob a lente do equívoco da polarização constitucional, o PL debatido transforma o IGP-M em um "monstro-moinho" da pandemia, seu inimigo número um. Assim, em uma versão quixoteana do direito social à moradia e na sua necessária proteção, afirma, sem nenhuma base racional, que o IPCA é o índice eleito para supostamente salvaguardá-lo, sob a alegação de que o IGP-M se apresentou demasiadamente elevado no período pandêmico. Como dito, esta solução, oriunda de uma leitura enviesada da CRFB, ignora a premissa da ordem econômica levantada no princípio deste ensaio, que coloca o Estado no exercício das funções de fiscalização, incentivo e planejamento, mas não de interventor ilimitado5. É preciso respeitar a máxima de Carlos Maximiliano, repetida pela jurisprudência nacional6, que dizia que não se pode presumir a inutilidade das palavras na Lei, especialmente aquelas proferidas pelo Constituinte. É preciso respeitar, ao menos, o núcleo semântico do vernáculo. Ao afirmar que o Estado é indicativo para a inciativa privada, é aberrante imaginar que poderia o legislador intervir como quisesse em dinâmicas contratuais. Por óbvio, não se pode esquecer do direito social à moradia, devendo o Estado fiscalizar abusos, incentivar formas mais econômicas de locação (talvez a social) e planejar políticas públicas habitacionais. Porém, sua invocação não autoriza uma intervenção direta no plano legislativo sobre o preço e sua rentabilidade, aspectos pactuados pelas partes em um contrato civil, presumidamente paritário e, portanto, com igual proteção constitucional. Parece-nos adequada a seguinte conclusão: não cabe ao Estado ditar regras de preço ou definir índices de seu reajuste, para a iniciativa privada, quando se está diante de nichos não regulados ou na ausência de fundamentos que autorizem a excepcionalidade. E aqui é preciso afirmar que o mercado locatício não é mercado regulado, não se podendo admitir a interpretação de que a tipicidade contratual o elevaria a tal categoria. Claramente, não se nega a relevância social do contrato, mas tal constatação igualmente não autoriza a intervenção indireta na forma pretendida. Necessário rememorar, que o reajuste do preço do aluguel, previsto na Lei do Inquilinato e na Lei nº 9.069/95, tem por objetivo histórico manter em dia o racional econômico (posto pelas partes) do contrato civil, evitando seu rompimento e garantindo, aí sim, o direito social à moradia e a legítima expectativa econômica das partes. Não se pode admitir que, por uma argumentação populista, desprovida de razoabilidade ou proporcionalidade, se ignore o importante vetor econômico da locação imobiliária. Isto porque a locação de bens imóveis é um negócio típico, inserido em um mercado maduro, com práticas e costumes já consolidados. Obviamente, o legislador pode (e deve) abordar questões acessórias e periféricas: periodicidade, condutas abusivas e normas protetivas, mas nunca ditar ou limitar a rentabilidade de uma operação, mais uma vez, presumidamente paritária, inclusive por novel diploma infraconstitucional7. Sendo certo a imprescindibilidade de justificativa para a intervenção, nos deparamos com o fato de que não há fundamento jurídico em "congelar" o índice de forma perene, senão vejamos: (i) o IPCA é variável (podendo potencialmente ultrapassar o IGPM ou gerar deflação não esperada), bem como pode ter, a qualquer momento, seu método de cálculo modificado; (ii) não se pode equiparar os vetores econômicos da locação residencial e "comercial", ante a sua distinta natureza e razão econômica; (iii) a pandemia é circunstancial e passageira, por mais que não se possa precisar o tempo. É marcante a contatação de que a escolha do IPCA carece de razoabilidade na medida em que não apresenta solução juridicamente aceitável para os fins preconizados e admitidos pela CRFB8. A baixa variação do IPCA não o torna o índice mais adequado, até, historicamente, já esteve mais elevado que o IGP-M. Assim, o que de fato pretende o legislador é, única e exclusivamente, reduzir a rentabilidade da locação, o que não pode ser admitido. Um alerta: não se pode colocar panos quentes na verdadeira hecatombe que o COVID-19 se tornou, ceifando as vidas de milhares, sendo certo que qualquer medida que busque ironizar, menosprezar ou negar o seu significado e cicatriz na sociedade brasileira, beira atitude criminosa. Contudo, analisando com a serenidade necessária a medida legislativa proposta, constata-se que, para além de não resolver o problema, cria uma solução equivocada e desproporcional; em outras palavras, tenta vencer um moinho com uma lança. Noutro ponto, a irrazoabilidade do PL se caracteriza também no desprestigio dos remédios de intervenção judicial postos pelo legislador infraconstitucional para enfrentar eventuais descompassos produzidos por eventos imprevisíveis e extraordinários, com ampla aplicação concreta pelo Poder Judiciário. É preciso compreender que a pandemia deve ser combatida, não regulamentada. Pode-se vislumbrar um regime transitório, mas nunca um regime geral, com consequências nocivas a posteriori. Em uma abordagem mais consequencialista, pensando na política habitacional por exemplo, essa intervenção pode desestimular a oferta de imóveis para locação residencial, o que fortaleceria ainda mais as mazelas deixadas pela pandemia. Em conclusão, por mais nobre que possa ser o intento das Casas Legislativas, intervenções dessa natureza flertam perigosamente com a subversão do espírito constitucional, vocacionado, acima de tudo, ao equilíbrio dos valores e direitos cuidadosamente construídos pelos Constituintes. Devemos ser cautelosos e conscientes, pois o abismo tenta nos mirar e uma lança não vence moinhos. *Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Professor convidado dos programas pós-graduação da UERJ, NUFEI e UCAM. Secretário-geral da Comissão Especial de Direito Imobiliário e Direito Urbanístico da OAB/RJ. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Privado Patrimonial e Direito Imobiliário. **Vinicius Bragança é advogado. Presidente da Comissão de Litigation e Gestão de Contencioso da 57ª Subseção da OAB/RJ. OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Processual Civil. __________ 1 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226: 187-212, out./dez. 2001. Pág. 204-205. 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 958252 MG - MINAS GERAIS. 3 Idem. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE : ADI 1950 SP - SÃO PAULO. 4 SARLET, Ingo Wolfgang apud LIMA, George Marmelstein, A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navegandi. Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. 5 Disponível aqui. Acessado em 21/04/2021. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO: ARE 1002041-89.2018.8.01.0000 AC - ACRE. 7 Lei de Liberdade Econômica (lei13.874/2019). 8 BARROSO, Luís Roberto. "Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional". Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Revista dos Tribunais. 23 ed. 1998. Pág. 71.
Introdução A pandemia da Covid-19 exigiu dos governantes mundiais a tomada de medidas drásticas a fim de garantir o necessário distanciamento social da população, o que acarretou a suspensão de atividades comerciais não essenciais à sociedade, bem como a proibição de atendimento presencial em estabelecimentos comerciais. Nesse contexto, a pandemia tem sido responsável por uma crise econômica sem precedentes, que afetou as diversas indústrias brasileiras em diferentes níveis. Entre os setores afetados está o da construção civil que, embora tenha sido enquadrado como setor essencial da sociedade, tem visto o aumento constante de preços dos insumos necessários à sua consecução, principalmente em relação aos materiais de construção, com constante aumento da demanda1. A questão tem alcançado tamanha proporção que a falta ou o alto custo de matéria-prima foi considerado o principal problema enfrentado por empresários do setor ainda no quarto trimestre de 20202. Materiais como ferro, aço, alumínio, PVC e tijolos são alguns dos que tiveram oferta insuficiente nos últimos meses3, e a pouca oferta apresentou aumentos de 40 a 70% de seus preços em condições normais. Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) quantificou a dificuldade na aquisição de insumos: "Ao todo, 68% das empresas pesquisadas relataram dificuldades para comprar insumos no mercado doméstico. Ou seja, cerca de dois terços das indústrias. Pouco mais de 55%, que usam insumos importados, estão com dificuldades de comprá-los no mercado internacional. E, para piorar, mais de 80% das indústrias perceberam que os preços subiram. Cerca de 30%, inclusive, disseram que a alta foi acentuada. Está aí a prévia do IPCA 15 de outubro do IBGE que não deixa mentir.  A sondagem especial da CNI mostrou ainda que 44% das empresas estão com dificuldades de atender os pedidos dos clientes e as principais razões apontadas são falta de estoque (47%), demanda maior que a capacidade (41%) e incapacidade de aumentar a produção (38%). Sendo que a incapacidade de produzir mais vem por conta da falta de insumo e a falta de insumo vem por conta de que ninguém tem estoque, e assim vai num círculo vicioso. Nas previsões da CNI, a falta de produtos pode durar três meses ainda.4" Segundo o setor da construção civil, esta alta pode ser atribuída ao aumento do dólar e à escassez mundial de produtos, o que provoca a exportação de matéria prima mais atrativa para os fornecedores brasileiros. Fato é que o encarecimento expressivo dos insumos básicos à indústria da construção civil ocasiona o aumento do custo da obra, afetando os contratos firmados entre fornecedor e construtora, construtora e incorporadora, e, em última instância, prejudica a mantença dos contratos já firmados entre incorporadora e adquirentes. Tendo em vista tal cenário, esse arrazoado pretende tratar da recente situação de aumento expressivo do preço dos insumos em percentual acima do praticado nos últimos anos, em razão da escassez de produtos por conta da pandemia, e também diante de obras já contratadas, lançadas e com unidades vendidas, não se estendendo para hipóteses em que seja possível equilibrar as contas com o repasse ao consumidor final, isto é, antes do lançamento do empreendimento imobiliário. Isto porque, em que pese a possibilidade de pleito judicial de reequilíbrio de contratos já assinados, não se faz possível pleitear a redução de preços ofertados ao mercado em contratos ainda não firmados, por se tratar de tentativa de interferência na lei da oferta e da demanda, e até mesmo na interferência do Poder Judiciário na esfera econômica. Hipóteses Legais de Revisão Contratual A lei civil brasileira, inspirada por legislações estrangeiras, permite que em situações excepcionais a rigidez de um contrato celebrado entre partes igualitárias possa ser flexibilizada. Esta previsão encontra-se positivada no Código Civil em seus artigos 421-A, III de maneira genérica, 478 a 480, com o chamado instituto da "onerosidade excessiva", no artigo 317 quando se trata de correção do preço contratado, e, no que se refere à matéria específica objeto desta análise, no artigo 625, I nos contratos de empreitada. Há também a previsão de revisão contratual na legislação consumerista de forma mais ampla, apenas para o consumidor, em seu artigo 6º inciso V, o que será tratado mais adiante. a) Instituto da onerosidade excessiva O artigo 478 do Código Civil prevê a possibilidade de rescisão do contrato de execução continuada ou diferida caso a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, desde que cumpridos alguns requisitos. São estes requisitos: (i) que o contrato seja de trato continuado ou diferido; (ii) que a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa; (iii) que a outra parte da relação contratual receba uma extrema vantagem ao mesmo tempo, e; (iv) que a razão desta onerosidade excessiva seja por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. O artigo 579, seguinte, permite que a parte que recebeu a vantagem exagerada evite a rescisão contratual, desde que concorde em modificar equitativamente o contrato. Trata-se do restabelecimento do equilíbrio, ou da presunção de paridade prevista no caput do artigo 421-A. Em tese, as partes iguais têm, no momento da formação contratual, todas as informações e experiências necessárias para acordar as condições contratuais, sejam elas inerentes à sua parte na avença, ou externas mas que possam influenciar no desempenho contratual. Quando um evento externo e imprevisível, como inquestionavelmente a pandemia de Covid-19 é, ocorre e produz efeitos na relação contratual, o instituto da onerosidade excessiva permite que a parte que comprovadamente sofreu prejuízos expressivos resolva o contrato sem dever de indenizar. A revisão contratual pela parte que recebe a vantagem exagerada não se trataria de regra, mas sim uma faculdade. O Poder Judiciário, contudo, por muitas vezes ignora tal faculdade, e a interpreta como uma obrigação do credor em revisar os termos contratuais, fazendo isso por ele. Vejamos: Agravo de instrumento - locação de imóvel comercial - ação revisional de alugueres - insurgência contra r. "decisum" que trouxe indeferida tutela de urgência - pretendida redução nos locativos, dentro em o período de quarentena imposto pelo poder público, do equivalente a 50% (cinquenta por cento) - pandemia do coronavírus acomodada ao conceito de fato superveniente imprevisível desencadeador de onerosidade excessiva, e por isso a autorizar a revisão do contrato de locação - exegese dos artigos 317, "caput", e 478, "caput", ambos do Código Civil - aplicabilidade, ainda, da teoria da imprevisão - requisitos alicerçadores da excepcional medida evidenciados em sede de cognição sumária - redução dos locativos no percentual de 50%(cinquenta por cento) - distribuição equitativa dos prejuízos oriundos da conjuntura - decisão reformada - recurso provido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2119914-29.2020.8.26.0000; Relator Tercio Pires; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 10/09/2020) Revisional. Contrato bancário. Tutela deferida para suspensão das parcelas de contrato pelo prazo de 120 dias. Agravo de instrumento. Empresa que atua no ramo de educação ministrando cursos livres. Inteligência do art. 300, NCPC. Pandemia. Caso de força maior. Contexto econômico que impõe risco de dano irrecuperável ao devedor, diante do risco de quebra. Boa-fé contratual. Inteligência dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil. Possibilidade de se aplicar mudanças no instrumento contratual de modo equitativo a fim de evitar o rompimento do laço contratual. Medida transitória. Verossimilhança do direito alegado. Presença do 'periculum in mora'. Presentes os requisitos para a concessão da tutela provisória de urgência. Suspensão da cobrança de títulos e de juros e encargos decorrentes enquanto durar a suspensão das atividades decorrentes do Decreto Estadual de que estabeleceu a quarentena no Estado de São Paulo. Agravo de instrumento provido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2109131-75.2020.8.26.0000; Relator: Virgilio de Oliveira Junior; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 18/09/2020) Ainda que tecnicamente contestável aludido posicionamento do Poder Judiciário, fato é ser possível, desta forma, suscitar a onerosidade excessiva no rompimento e na tentativa de revisão contratual aos contratos em curso, desde que preenchidos os requisitos anteriormente citados, o que ocorre nas relações contratuais firmadas entre fornecedores, construtoras e incorporadoras. b) O artigo 317 e a correção monetária Em que pese o emprego comum pela jurisprudência pátria na fundamentação do deferimento da revisão contratual com a aplicação do artigo 317 do Código Civil, combinado aos artigos relativos à onerosidade excessiva anteriormente citados, as razões dos motivos do projeto de lei que se tornou o Código Civil, bem como a literalidade de seu texto, permitem a interpretação de que o legislador visava unicamente aplicar a devida correção monetária a prestações contratuais que, por motivos imprevisíveis, não foram atendidas, ou quando sua correção absolutamente não acompanhou corretamente a inflação. Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Conforme ensina José Fernando Simão, o objetivo do legislador foi "permitir, exclusivamente, que o juiz fixe correção monetária em contrato no qual as partes não avençaram". Todavia, tem sido admitida a aplicação mais abrangente do referido artigo como aponta o próprio Simão em Código Civil Comentado5: "A doutrina viu no dispositivo uma cláusula geral de revisão da prestação contratual que se altera entre o momento da formação do contrato (plano de existência) e o momento de sua execução ou cumprimento (plano de eficácia). Para que o juiz possa realizar a revisão contratual, deve haver i) manifesta desproporção entre o valor da prestação no momento da formação e execução e ii) a desproporção decorrer de motivos imprevisíveis." c) Suspensão dos contratos de empreitada Sem prejuízo da observância e suscitação judicial dos dispositivos anteriores, há especial previsão no Código Civil de suspensão das obras nos contratos de empreitada firmados, quando ocorrer algum motivo de força maior, ou quando sobrevierem dificuldades imprevisíveis que onerem a empreitada e o dono da obra rejeitar a possibilidade de revisão do preço. Art. 625. Poderá o empreiteiro suspender a obra: I - por culpa do dono, ou por motivo de força maior; II - quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços; In casu, o motivo de força maior a ser suscitado não haveria de ser o mero encarecimento de materiais, mas sim o agravamento da pandemia, que ocasiona a escassez de material, e por consequência o aumento abusivo e imprevisível de preços. As flutuações de preços do mercado são consideradas pela jurisprudência como fatos previsíveis e fortuito interno incapaz de afetar a base contratual, como se verifica pelos julgados abaixo. RECURSOS DE APELAÇÃO E EX OFFICIO EM AÇÃO ORDINÁRIA. ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. REEQUILIBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. 1. Contrato administrativo celebrado para execução de obra em regime de empreitada integral, descumprimento contratual da CDHU em reajustar os preços contratados em periodicidade anual, reajustes que foram realizados e aplicados no 13º mês, prejuízo configurado, compensação financeira devida. 2. Aumento dos insumos e mão de obra acima do valor médio de mercado, situação que configura mera flutuação de preço de mercado, inexistência de situação imprevisível, inevitável e extremamente onerosa ao contratado a autorizar o reequilíbrio econômico e financeiro do contrato. 3. Sentença mantida. Aplicação do disposto no art. 252 do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça. Recursos desprovidos  (TJSP; Apelação Cível 0009205-55.2004.8.26.0053; Relator Marcelo Berthe; Órgão Julgador: 3ª Câmara Extraordinária de Direito Público; Data do Julgamento: 25/11/2014) CONTRATO ADMINISTRATIVO. Fornecimento de madeiras. Descumprimento parcial do objeto contratual. Aplicação das penalidades de rescisão contratual, multa e suspensão de licitar e contratar com o Poder Público. Cabimento. Entrega dos materiais fora do prazo, por diversas vezes, de responsabilidade da autora. Ausência de Documento de Origem Florestal que deveria acompanhar a entrega. Previsão no edital e no contrato. Alegação de quebra do equilíbrio econômico-financeiro, em razão do aumento do preço dos insumos. Inocorrência. Variação dos preços de mercado que constitui fato previsível. Autora que, ciente, assumiu o risco inerente ao negócio à época da contratação. Penalidades legais e devidas, por descumprimento do contrato. Demanda improcedente. Recurso não provido.  (TJSP; Apelação Cível 0007809-53.2008.8.26.0554; Relator Edson Ferreira; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 15/12/2010) Contudo, o cenário atual, em que declarada calamidade pública, e as consequências recentes do agravamento da pandemia no cenário da construção civil conforme anteriormente delineados, desde que devidamente comprovadas as dificuldades de atendimento ao prazo de obra, como por exemplo com diário de obras ou outros elementos similares, constituem motivos de caso fortuito externo capazes de justificar a suspensão da execução da mencionada obra. A relação consumerista As relações entre fornecedores e consumidores têm proteção especial no Direito brasileiro, sendo reguladas pelo Código de Defesa ao Consumidor (CDC), o qual estabelece como direito básico do consumidor em seu artigo 6°, inciso V, a revisão de cláusulas contratuais por onerosidade excessiva, tendo como único requisito que essa seja causada por fato superveniente. A relação entre o adquirente da unidade e o incorporador merece distância de tratamento das relações entre fornecedor, construtor e incorporador, por se tratar, à luz da lei e da doutrina, de uma relação entre partes desiguais. Assim, de acordo com o CDC, a única possível revisão contratual haveria de advir em benefício do consumidor, e somente se requerida por ele. Isto porque a lei presume que a posição do consumidor seja a mais frágil da relação, e por isso faculta a este a possibilidade de equilibrá-la. Não nos parece haver empecilho, contudo, para a aplicação da teoria da onerosidade excessiva, insculpida nos artigos 478 e seguintes do Código Civil, caso o incorporador seja aquela parte mais prejudicada pelo fato superveniente e imprevisível. Por óbvio que neste caso possivelmente a jurisprudência se tornará mais rígida em averiguar a presença de todos os requisitos legais do artigo, os quais deverão ser cabalmente demonstrados em uma lide, a fim de possibilitar apenas a rescisão contratual, jamais a revisão de preços. Ou seja, o incorporador deverá abrir seus números para comprovar que quando o VGV do empreendimento foi montado, quando ocorreu o lançamento do empreendimento, e quando a unidade imobiliária foi precificada e vendida, era imprevisível a alta expressiva dos insumos, a qual foi motivada por sua escassez durante a pandemia. Será necessário comprovar, por meio de estudos fundamentados, que tal alta tem relação direta com o agravamento da pandemia, e que ao tempo dos eventos descritos no item anterior não era possível prevê-la. Deverá ainda demonstrar o incorporador que o consumidor irá adquirir uma unidade por preço inferior ao praticado nos novos lançamentos do mercado, que surgirão já prevendo a alta de preços em seu VGV, e isso colocará o consumidor em posição de extrema vantagem, em prejuízo igualmente extremo do incorporador. Ainda, nesse caso, entendemos que deverá se tratar de uma ação conjunta contra diversos consumidores, possivelmente separados por empreendimento, para demonstrar a globalidade do problema. De toda forma, invocando novamente o artigo 317 do Código Civil, poderá o fornecedor demonstrar, também por laudo fundamentado, que a correção monetária que gerou um aumento expressivo do valor final de mercado do produto antes vendido, não foi expressa no índice eleito no contrato firmado, motivo pelo qual, judicialmente, há que se corrigir corretamente o saldo devedor do preço ajustado, de modo a ser mantida a base contratual, evitando-se assim a sua resolução por onerosidade excessiva. Da perícia técnica a ser realizada, e do valor final a ser apurado para o convencimento do Juízo, ter-se-á o verdadeiro ajuste do preço combinado pelas partes à época da venda da unidade autônoma alienada, que será devido pelo adquirente, por força de decisão judicial.  Conclusão Diante deste cenário, é possível concluir que, guardada a paridade de relações, os contratos firmados no meio da construção civil são passíveis de revisão judicial, seguidos os trâmites e requisitos dos artigos 317, 478 e seguintes do Código Civil, desde que comprovada a anormalidade do aumento dos insumos, que não refletiria o cenário econômico, e nem seria possível a sua previsão quando da contratação entre as partes. *Olivar Lorena Vitale Junior é advogado, sócio fundador do VBD Advogados, Presidente do IBRADIM, Membro do Comitê de Gestão da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo (SMUL), Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo, Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP, Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário), Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção - IBDiC,  Professor e Coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da Especialização/MBA da POLI-USP, Professor da Escola Paulista de Direito - EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino. **Regina Céli Silveira Martins é advogada, associada no VBD Advogados, pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas, membro da comissão de Contencioso Cível no IBRADIM. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 SIMÃO, José Fernando. Código Civil Comentado. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 394 e 395.
A "rescisão" das promessas de compra e venda, em suas várias modalidades, é assunto recorrente na pauta do mercado imobiliário ao menos desde a segunda metade da década passada. Ainda que sem a observância da melhor técnica, convencionou-se chamar o desfazimento do negócio de "distrato". A lei 13.786 de 27 de dezembro 2018, que "altera as leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano" ficou conhecida simplesmente como "Lei dos Distratos". Assim, apenas para melhor compreensão e delimitação do objeto de estudo, cabe fazer um esclarecimento inicial. Para fins deste artigo, e sem qualquer pretensão de estudo amplo e aprofundado dos modos de extinção anormal dos contratos1 por causa superveniente à sua formação, consideremos que o desfazimento de um negócio pode ocorrer por resolução, distrato (por vezes também chamado resilição bilateral) ou resilição unilateral. A resolução é o que ocorre no caso de inexecução do contrato - voluntária ou involuntária, com ou sem culpa. O distrato é o acordo de vontades entre as partes contratantes para colocar fim ao negócio. Por fim, a resilição unilateral é o que ocorre no caso de desistência de um dos contratantes - e mais especificamente para os fins do presente estudo, desistência do adquirente em relação ao contrato de promessa de compra e venda, sem que haja culpa do incorporador pelo pedido de rescisão2. Embora o artigo 473 do Código Civil preveja que a resilição somente é cabível quando o contrato assim o permitir, expressa ou implicitamente, e a despeito da previsão de irretratabilidade e irrevogabilidade das promessas de compra e venda, é firme o entendimento jurisprudencial pela possibilidade de desistência pelo adquirente, que obterá a seu favor a restituição parcial dos valores pagos3. A questão que merece ser examinada é a seguinte: no caso de resilição do contrato (desistência do adquirente), qual o critério a ser utilizado a fim de averiguar a concursalidade do crédito (restituição parcial dos valores pagos) em caso de recuperação judicial do promitente-vendedor? A matéria é relevante porque a crise do mercado imobiliário fez com que algumas das maiores incorporadoras do país ingressassem, nos últimos cinco anos, com pedidos de recuperação judicial, como ocorreu por exemplo com os Grupos Viver, PDG, Tiner, Urbplan e Odebrecht. O artigo 49 da Lei de Recuperações Judiciais e Falências (lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005) estabelece que "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". A controvérsia residia em definir o que seriam os "créditos existentes na data do pedido"4. Recentemente, ao analisar o Tema 1.051 dos Recursos Repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça firmou tese nos seguintes termos: Questão submetida a julgamento Interpretação do artigo 49, caput, da Lei n. 11.101/2005, de modo a definir se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece. Tese Firmada Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador.                A orientação consolidada no repetitivo veio reafirmar o entendimento que há muito vinha prevalecendo no próprio STJ5-6 e em outros Tribunais7 (não só para os casos envolvendo compra e venda de imóveis, vale mencionar). A análise acerca da sujeição ou não do crédito à recuperação judicial depende do momento de ocorrência de seu fato gerador, sendo irrelevante o momento do trânsito em julgado de eventual decisão condenatória. Nos casos de demandas indenizatórias decorrentes de atraso na entrega do imóvel, por exemplo, o fato gerador é o atraso; sendo este anterior ao pedido de recuperação, o crédito estará a ela submetido8. A questão a ser respondida, então, é a seguinte: qual o fato gerador no caso de desistência do negócio por parte do adquirente (resilição por iniciativa do adquirente), qualquer que seja o motivo? Estamos convencidos de que a resposta, por sua vez, é a seguinte: é a própria celebração do contrato. A análise da ocorrência do fato gerador em tais situações retroage, necessariamente, ao momento da celebração do contrato, que servirá de marco temporal para definir a sujeição (ou não) do crédito à recuperação judicial. Existem alguns elementos que corroboram essa conclusão. Assim, vale destacar o que observou o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no voto condutor proferido por ocasião do julgamento do Tema 1.051 dos Recursos Repetitivos (grifamos): A existência do crédito está diretamente ligada à relação jurídica que se estabelece entre o devedor e credor, o liame entre as partes, pois é com base nela que, ocorrido o fato gerador, surge o direito de exigir a prestação (direito de crédito). [...] Na responsabilidade civil contratual, o vínculo jurídico precede a ocorrência do ilícito que faz surgir o dever de indenizar. Na responsabilidade jurídica extracontratual, o liame entre as partes se estabelece concomitantemente com a ocorrência do evento danoso. De todo modo, ocorrido o ato lesivo, surge o direito ao crédito relativo à reparação dos danos causados. Em outras palavras, os créditos submetidos aos efeitos da recuperação judicial são aqueles decorrentes da atividade do empresário antes do pedido de recuperação, isto é, de fatos praticados ou de negócios celebrados pelo devedor em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, excetuados aqueles expressamente apontados na lei de regência. [...] Nessa linha, foi editado o Enunciado nº 100 da III Jornada de Direito Comercial, que tem o seguinte teor: "Consideram-se sujeitos à recuperação judicial, na forma do art. 49 da lei 11.101/2005, os créditos decorrentes de fatos geradores anteriores ao pedido de recuperação, independentemente da data de eventual acordo, sentença ou trânsito em julgado." Em resumo, ocorrido o fato gerador, surge o direito de crédito, sendo o adimplemento e a responsabilidade elementos subsequentes, não interferindo na sua constituição.  Portanto, ocorrido o fato gerador, considera-se o crédito existente, estando submetido aos efeitos da recuperação judicial. Frise-se: o STJ concluiu que estão sujeitos à recuperação os créditos "decorrentes da atividade do empresário antes do pedido de recuperação", ou de "negócios celebrados pelo devedor em momento anterior ao pedido de recuperação judicial". Daí se poder afirmar que no caso de resilição de contrato celebrado antes do pedido de recuperação, o crédito titularizado pelo adquirente (referente à restituição parcial dos valores pagos) estará sujeito à recuperação judicial, devendo ser recebido nos moldes do plano aprovado. Sem dúvida, "a noção de crédito extraconcursal é reservada às obrigações constituídas pelo devedor durante o período de recuperação, visto que o objetivo deste novo regime jurídico é a preservação da atividade empresarial"9. O direito reconhecido ao adquirente de desistir do negócio nasce no instante imediatamente subsequente ao de sua celebração - sendo este, portanto, o fato gerador do crédito. Se o adquirente desiste do negócio 15 dias ou seis meses depois, o efeito jurídico produzido é o mesmo: desfazimento do negócio e restituição parcial dos valores pagos. Trata-se, todavia, de crédito sujeito a condição suspensiva, que somente será exigível caso o adquirente manifeste seu interesse no desfazimento do negócio; e ilíquido, a exigir a definição da quantia exata a ser efetivamente restituída (a depender do montante pago e da retenção aplicável). Ainda assim, trata-se de crédito existente na data do pedido, como prevê o art. 49 da lei 11.101 de 200510, e por isso sujeito à recuperação judicial11. Embora existam diversos precedentes que fazem menção expressa à data de ocorrência do fato gerador do crédito objeto de discussão, não há definição clara acerca de qual seria este fato gerador nas hipóteses de resilição unilateral por iniciativa do adquirente. Em algumas situações, o TJSP já adotou entendimento de que seria a data de ajuizamento da demanda12, o que parece equivocado. Na verdade, entendimento diverso do aqui sustentado conduziria a uma situação absolutamente ilógica e incompatível com a ordem jurídica. Explica-se. Como dito, no caso de resolução do contrato (rescisão por culpa do vendedor - como ocorre no caso de atraso, por exemplo), o fato gerador é o inadimplemento; sendo anterior à recuperação judicial, o crédito estaria a ela sujeito (seria concursal). Desse modo, adotar marco diverso (do momento da celebração do contrato) para definição do fato gerador no caso de resilição unilateral significaria garantir ao adquirente que injustificadamente desiste do negócio posição tida como mais benéfica que aquela do adquirente prejudicado pelo inadimplemento da parte vendedora. Ou ainda: imagine-se a situação de dois adquirentes de unidades em um mesmo empreendimento, que celebraram seu contrato no mesmo dia; meses após a celebração do negócio, ambos cessam os pagamentos das parcelas devidas. Um deles, entretanto, decide pela propositura da ação de rescisão do contrato (requerendo a restituição dos valores pagos) dias antes do pedido de recuperação judicial. O outro, por sua vez, embora também tenha cessado os pagamentos juntamente com o primeiro, somente propõe a ação semanas após o pedido de recuperação judicial. Parece absolutamente ilógico que apenas um deles tenha seu crédito submetido à recuperação judicial. Admitir situações tão incongruentes significa atentar contra a coerência do ordenamento jurídico. Vale observar que seria diferente a situação daquele que celebra o contrato após o pedido de recuperação judicial. Exigir que este crédito também se submetesse à recuperação (em caso de resilição) representaria absoluto desestímulo à celebração de qualquer negócio com a empresa em recuperação - frustrando os objetivos do próprio instituto. Conforme observado pelo professor Marlon Tomazette: Durante o processo de recuperação judicial a atividade do devedor normalmente prossegue e, consequentemente, são assumidas obrigações, as quais são classificadas como extraconcursais, para não prejudicar as pessoas que mantiveram a negociação com o devedor em recuperação judicial. Pelos mesmos motivos, os atos válidos praticados pelo administrador judicial durante o processo de falência também terão essa classificação. Se não fosse dado esse privilégio, ninguém praticaria tais atos13. Em síntese, é possível imaginar as seguintes situações e soluções:   Adquirente 1 Adquirente 2 Adquirente 3 Adquirente 4 Celebração do contrato Anterior ao pedido de recuperação judicial Anterior ao pedido de recuperação judicial Anterior ao pedido de recuperação judicial Posterior ao pedido de recuperação judicial Fundamento do pedido Inadimplemento do vendedor (resolução) Desistência do adquirente (resilição) Desistência do adquirente (resilição) Desistência do adquirente (resilição) Fato gerador Inadimplemento Celebração do contrato Celebração do contrato Celebração do contrato Ajuizamento da ação Anterior ao pedido de recuperação Anterior ao pedido de recuperação Posterior ao pedido de recuperação Posterior ao pedido de recuperação Conclusão Crédito submetido à recuperação judicial Crédito submetido à recuperação judicial Crédito submetido à recuperação judicial Crédito não submetido à recuperação judicial Somente desse modo é possível garantir tratamento verdadeiramente isonômico aos credores de uma mesma classe na recuperação judicial. A questão também foi analisada pelo Ministro Relator no voto do já citado Recurso Repetitivo, do qual se extrai o seguinte trecho: É oportuno consignar que esse entendimento é o que melhor garante o tratamento paritário entre os credores, pois se a existência do crédito dependesse de declaração judicial, algumas vítimas do mesmo evento danoso poderiam, a depender do trâmite processual, estar submetidas aos efeitos da recuperação judicial, enquanto outras não. Há, evidentemente, resistência do adquirente à sujeição de seu crédito ao concurso de credores. De fato, a submissão à recuperação judicial significa ingressar no final de uma fila (porque o crédito é quirografário) que pode incluir milhares (ou mesmo dezenas de milhares) de outros credores. Além disso, os planos normalmente preveem descontos sobre os créditos concursais e prazos alongados de pagamento. Apesar disso, exame mais cuidadoso permite concluir que a sujeição do crédito à recuperação judicial poderá ser benéfica ao adquirente. A uma, porque melhor atende às finalidades do processo recuperacional, possibilitando a efetiva retomada da atividade que irá permitir a quitação das obrigações pelo devedor; para o credor, é melhor que tenha efetivas condições de honrar com as obrigações assumidas, sem o que se instauraria processo de falência. A duas, por assegurar ao credor a possibilidade de requerer a convolação da recuperação em falência no caso de descumprimento da obrigação, conforme previsto no art. 61, § 1º da Lei 11.101/2005; essa possibilidade é uma importante ferramenta que serve de "incentivo" ao fiel cumprimento da obrigação pelo devedor. A três, porque a execução individual movida perante Juízo diverso do recuperacional seria absolutamente desprovida de enforcement, já que somente o Juízo da recuperação é competente para a prática de quaisquer atos de constrição patrimonial em desfavor do devedor14. De todo modo, há que se considerar que o processo recuperacional jamais pode ser examinado sob o prisma de interesses individuais considerados de forma isolada. A finalidade precípua do processo é a preservação da empresa mediante superação da crise econômico-financeira, conforme se depreende do artigo 47 da já citada lei 11.101 de 2005. Busca-se, portanto, um equilíbrio entre o exercício da atividade e o interesse de todo o contingente de credores, especialmente mediante tratamento isonômico àqueles integrantes de uma mesma classe. Por tudo isso, deverá ser tido como concursal (isso é, sujeito à recuperação judicial) o crédito decorrente de resilição de contrato de promessa de compra e venda celebrado anteriormente ao pedido de recuperação judicial, sendo que a data da celebração do contrato deverá ser considerada como o marco temporal para apuração do fato gerador da obrigação nessas situações. *Bruno de Souza Ferreira Ramos é advogado do Escritório Fazano & De Lucca Advogados. Master of Laws (LL.M) em Direito Societário pelo Insper (em andamento). Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito. Membro das Comissões de Negócios Imobiliários e de Contencioso Imobiliário do IBRADIM. __________ 1 Porque a extinção normal é o adimplemento. 2 A confusão terminológica foi bem explicada pelos brilhantes professores André Abelha e Olivar Vitale em artigo publicado anteriormente nesta coluna, cuja leitura certamente é mais que recomendável. ABELHA, André; VITALE, Olivar. Súmula 543 do STJ: por que revisá-la? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 08. abr. 2021. 3 Nesse sentido, por exemplo, a Súmula 1 do Tribunal de Justiça de São Paulo e a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça. Nesse particular, ainda que o Enunciado Sumular do STJ faça menção expressa à resolução do contrato, a prática evidencia sua ampla e irrestrita utilização também para os casos de desistência do adquirente. Sem prejuízo das discussões acerca da melhor interpretação e aplicação do entendimento, ou mesmo da revisão das Súmulas, é esse o cenário posto - e é a partir dele que se desenvolve o presente estudo. Também sobre isso, recomenda-se mais uma vez a leitura do texto publicado pelos professores Olivar Vitale e André Abelha (cit. nota 3). 4 O Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, relator dos recursos especiais agrupados para julgamento no Tema 1.051 dos Recursos Repetitivos, aponta em seu voto: "Diante dessa opção do legislador, de excluir determinados credores da recuperação judicial, mostra-se imprescindível identificar o que deve ser considerado como crédito existente na data do pedido, ainda que não vencido. A matéria ganha especial dificuldade no que respeita aos créditos que dependem de liquidação" (grifos do original). 5 Por todos: REsp 1447918/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 16/05/2016. No mesmo sentido: EDcl no AgInt no CC 152.900/SP, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES [Des. convocado do TRF 5ª Região], Segunda Seção, julgado em 08/08/2018, DJe 15/08/2018. 6 VALOR ECONÔMICO. Empresas em recuperação judicial vencem disputa sobre ações indenizatórias. Disponível aqui. Acesso em 07 abr. 2021. 7 Por todos: TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.18.117136-4/002, Relator(a): Des.(a) Pedro Aleixo, 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 17/06/2020, publicação da súmula em 18/06/2020. No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2157417-21.2019.8.26.0000; Relator (a): Maia da Cunha; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data de Registro: 11/09/2019. 8 Por todos: TJSP; Agravo de Instrumento 2187738-73.2018.8.26.0000; Relator (a): Coelho Mendes; 10ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 02/07/2019. No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2114096-33.2019.8.26.0000; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Data de Registro: 17/10/2019. 9 Decisão proferida no processo de autos n. 0049277-78.2020.8.26.0100, pelo juízo da 27ª Vara Cível, Foro Central Cível, Comarca da Capital, TJSP. Sem grifos no original. 10 Também seria ilíquido, por exemplo, o crédito [indenização por danos morais] eventualmente decorrente de inscrição indevida em cadastro de inadimplentes. O fato gerador nessa situação, todavia, já ocorreu: é a negativação. A iliquidez do crédito, por si só, não significa sua inexistência, tampouco modifica o regime a ser aplicado. 11 "Os direitos expectativos, por serem tuteláveis (art. 130 do CC/2002), submetem-se à recuperação judicial". AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas. 4. ed. [[VitalSource Bookshelf version]]. Retrieved from vbk://9788530991357. 12 A orientação foi adotada, inclusive, em acórdão recente, proferido em juízo de retratação após o julgamento do recurso repetitivo pelo STJ: "RESCISÃO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL C.C. RESTITUIÇÃO DE QUANTIAS PAGAS - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE EXTINÇÃO DO PROCESSO - Novo exame, com base no art. 1.030, II, do CPC - Promessa de compra e venda de imóvel - Rescisão do compromisso, por dificuldade financeira do compromissário comprador, com pedido de restituição de parte dos valores pagos - Tese fixada pelo Col. STJ, em julgamento de recurso repetitivo, segundo a qual "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador" - Segundo o Acórdão paradigma, a data do fato gerador do crédito não se confunde com a data da celebração do contrato entre as partes, sendo necessário analisar em cada caso em que consiste o mencionado fato gerador - No caso destes autos, o fato gerador do crédito perseguido pelo agravado somente nasceu com sua manifesta intenção em rescindir a promessa de compra e venda (o que se deu com o próprio ajuizamento da demanda, em 2019) - Antes disso, inexistia qualquer direito de crédito do agravado (que possuía, apenas, o direito de receber a propriedade do imóvel, desde que efetuasse o pagamento do preço) - Fato gerador que consiste no pedido de rescisão do contrato e negativa de restituição de valores pelas promitentes vendedoras - Fato gerador ocorrido em 2019 - Pedido de recuperação judicial postulado em 23/02/2017 - Crédito que não se submete à recuperação judicial, nos termos do art. 49 da lei 11.101/2005 - Desnecessária a modificação do v. Acórdão reexaminado, que fica mantido pelos seus próprios fundamentos - V. ACÓRDÃO OBJETO DE REEXAME, NOS TERMOS DO ART. 1.030, II, DO CPC, QUE FICA MANTIDO" (TJSP; Agravo de Instrumento 2236361-03.2020.8.26.0000; Relator (a): Angela Lopes; 27ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/03/2021). No mesmo sentido: "Processual. Execução fundada em título judicial. Impugnação da executada pretendendo a sujeição do crédito aos efeitos de sua recuperação judicial, com extinção da execução. Descabimento. Pedido de recuperação datado de fevereiro de 2017. Crédito em execução decorrente da resilição de contrato de compromisso de compra e venda imobiliário, com determinação de restituição de parte dos valores pagos. Demanda ajuizada em setembro de 2017, posteriormente portanto ao requerimento de recuperação, e julgada em agosto de 2018. Constituição dos créditos, de modo a perquirir de sua concursalidade ou não, a ser verificado no mais das vezes no plano da relação material entre as partes, não no momento em que proferida a decisão judicial que reconhece sua existência, muito menos no do respectivo trânsito em julgado dessa. Exceção decorrente de decisões de natureza desconstitutiva, que modificam situações jurídicas, como na hipótese dos autos, em que delineado o crédito em execução a partir da desconstituição do contrato de compromisso de compra e venda. Ajuizamento da demanda, de toda forma, que igualmente foi posterior ao pedido de recuperação. Extraconcursalidade reconhecida, à luz do art. 49, caput, da Lei nº 11.101/2005. Possibilidade de prosseguimento da execução. Decisão de rejeição da impugnação ao cumprimento de sentença confirmada, por outros fundamentos. Agravo de instrumento da executada desprovido, com observação" (TJSP; Agravo de Instrumento 2039845-10.2020.8.26.0000; Relator (a): Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/06/2020, sem grifos no original) 13 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial. Vol. 3. Falência e recuperação de empresas. 8. ed. [[VitalSource Bookshelf version]]. Retrieved from vbk://9788553616749. 14 Trata-se de entendimento amplamente consolidado na jurisprudência: "PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DE DIREITO E JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI N. 11.101/05). AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. VALOR DA CONDENAÇÃO. CRÉDITO APURADO. HABILITAÇÃO. ALIENAÇÃO DE ATIVOS E PAGAMENTOS DE CREDORES. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRECEDENTES DO STJ. 1. Com a edição da lei 11.101/05, respeitadas as especificidades da falência e da recuperação judicial, é competente o respectivo Juízo para prosseguimento dos atos de execução, tais como alienação de ativos e pagamento de credores, que envolvam créditos apurados em outros órgãos judiciais, inclusive trabalhistas, ainda que tenha ocorrido a constrição de bens do devedor. 2. Após a apuração do montante devido, processar-se-á no juízo da recuperação judicial a correspondente habilitação, sob pena de violação dos princípios da indivisibilidade e da universalidade, além de desobediência ao comando prescrito no art. 47 da Lei n. 11.101/05. 3. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro (RJ)" (CC 90.160/RJ, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Segunda Seção, julgado em 27/05/2009, DJe 05/06/2009, sem grifos no original). Ainda: "EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO CARACTERIZADA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITO DE NATUREZA EXTRACONCURSAL. MEDIDAS DE CONSTRIÇÃO DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS. 1. Os embargos de declaração objetivam sanar eventual existência de obscuridade, contradição, omissão e/ou erro material no julgado (CPC, art. 1022). 2. Os atos de execução dos créditos promovidos contra empresas falidas ou em recuperação judicial, sob a égide do Decreto-Lei n. 7.661/45 ou da Lei n. 11.101/05, bem como os atos judiciais que envolvam o patrimônio dessas empresas, devem ser realizados pelo Juízo universal. 3. Ainda que o crédito exequendo tenha sido constituído anteriormente ou após o deferimento do pedido de recuperação judicial (crédito extraconcursal), a jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que, também nesse caso, o controle dos atos de constrição patrimonial deve prosseguir no Juízo da recuperação. Precedentes. 4. Embargos de declaração acolhidos para sanar omissão e determinar que os atos de constrição ao patrimônio da empresa em recuperação judicial devem ser submetidos ao juízo recuperacional" (STJ, EDcl no AgInt no AREsp 1416008/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/09/2019, DJe 30/09/2019, sem grifos no original).
Referente à presente questão, existem três situações que envolvem o tema sobre os animais em que as ocorrências pertinentes à convenção condominial determinam a posição proibitiva, permissiva ou silente, como será visto a seguir. É neste sentido que são apontadas três situações que envolvem polêmicas pertinentes às normas condominiais e a posse ou guarda de animais nas dependências do condomínio: 1) convenção que proíbe a estada de animais; 2) convenção que omite as condições da posse ou guarda de animais dentro do condomínio; 3) convenção que permite a posse ou a guarda de animais nas áreas condominiais. Em regra, a omissão e a permissão quanto à posse ou a guarda de animais dentro do ambiente condominial, não expressas em convenção, traduz-se em liberdade, observando a exceção ao se tratar de animais que perturbem ou sejam incompatíveis com o bem-estar e a boa convivência entre os condôminos. Conforme se verifica na doutrina e na jurisprudência, é possível que haja vedação de animais em áreas comuns ou ainda dentro da unidade autônoma. Todavia, a questão vai além e deve ser debatida quanto ao nível de sossego, insalubridade e periculosidade (artigo 1.336, IV, Código Civil), bem como da livre disposição quanto à sua unidade autônoma (artigo 1.335, IV). Sendo assim, deve-se ponderar que a vedação de animais sem fundamentação na legislação civil é abusiva por não ser a mais justa. Toma-se como exemplo o caso de um portador de deficiência visual ter necessidade em adquirir um cão Labrador, bem como um aquário com um peixe Beta, segundo consta na Apelação Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: Ação cominatória - Condomínio - Criação de animal em apartamento - Ausência de prova da perturbação ao sossego, saúde e segurança dos demais condôminos - Proibição contida em norma interna - Inaplicabilidade. O condomínio pode estabelecer regras limitativas do direito de vizinhança, conforme autoriza a Lei 4.591/1964. A regra interna do Condomínio que proíbe a criação de animais deve ser interpretada teleologicamente, apenas se aplicando quando restar demonstrado que está ocorrendo perturbação ao sossego, saúde e segurança dos demais moradores. - Inexistindo provas de que tais danos estão ocorrendo, permite-se a criação dos animais, não se justificando a aplicação de qualquer penalidade por esse motivo (Tribunal de Justiça de Minas Gerais - Processo TJ/MG 2.0000.00.488929-4/000(1) - Rel. Des. Heloísa Combat - j. 09.03.2006). Neste sentido, foi apresentado por esse colunista e aprovado o Enunciado 566 do Conselho da Justiça Federal, da VI Jornada de Direito Civil, que dispõe: "A cláusula convencional que restringe a permanência de animais em unidades autônomas residenciais deve ser valorada à luz dos parâmetros legais de sossego, insalubridade e periculosidade." A referência legislativa consta do Código Civil, artigo 1.335, I, e lei 4.591/64, artigo 19. Cabe, neste momento, fazer uma observação para os casos de animais domésticos. Apesar de alguns condomínios determinarem as regras para os animais domésticos, a lei não proíbe que os condôminos os tenham. Outra questão está relacionada ao evento causado por animal em condomínio, como segue: INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE PELO FATO DA COISA. Ferimento no abdômen e região genital de funcionário de condomínio causados por ataque de cão da raça pitbulL Responsabilidade objetiva dos donos do animal Proprietários que descumpriram o dever de guarda e vigilância de seu animal feroz. Evento danoso causado por culpa exclusiva dos donos do animal Sentença que condenou no pagamento das despesas médicas e ressarcimento dos custos causados ao condomínio pela falta do funcionário. Recurso desprovido. (TJSP; APL 994.05.110189-8; Ac. 4374942; Santos; Quarta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Teixeira Leite; Julg. 11/03/2010; DJESP 12/04/2010 ). Então, o Superior Tribunal de Justiça já determinou que, ainda que seja estabelecida a proibição em convenção condominial, os animais domésticos devem ser admitidos, desde que haja respeito à determinação legal no que concerne ao sossego, à segurança e à saúde dos demais condôminos, condição que, em ocorrendo violação, deverá ser rechaçada e passível de multa. A justificativa pelo enunciado supramencionado trata do assunto da seguinte forma: A proibição prevista na convenção de condomínio à presença de animais em unidades autônomas residenciais deve ser analisada de acordo com os níveis de sossego, saúde e segurança do condomínio, bem como com as especificidades do caso concreto, como por exemplo, a utilização terapêutica de animais de maior porte. Evita-se, assim, a vedação abusiva na convenção. Com este norte, no que diz respeito à presença de animais domésticos em condomínios, entende-se que, anteriormente, dependia da posição determinada pela convenção condominial, ou seja, da proibição, da permissão ou da omissão. Atualmente, porém, a jurisprudência entende que os animais domésticos devem ser permitidos, ainda que a convenção condominial proíba, observando que esta é uma cláusula considerada ilegal e inconstitucional, haja vista afrontar o princípio da propriedade protegida pelo artigo 5º, XXV, da Constituição Federal e artigo 1.228 do Código Civil.Como bem acrescenta a doutrina: (...) Se a convenção veda apenas a permanência de animais causadores de incômodos aos demais moradores, a norma condominial não apresenta, de plano, nenhuma ilegalidade. Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio. (...) Os acórdãos e as lições expostas tornam a convenção letra morta, em prol de uma interpretação mais condizente com os valores coletivos e sociais (funcionalização social). (...) Na doutrina consolidada tem-se entendido de forma semelhante. Tanto isso é verdade que, na VI Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado n. 566, de autoria do Professor Cesar Calo Peghini (...). A justificativa do enunciado doutrinário menciona as "especificidades do caso concreto, como por exemplo, a utilização terapêutica de animais de maior porte. Evita-se, assim, a vedação abusiva na convenção"1. Corroborando esta mesma posição doutrinária, assevera-se que: Outra discussão relevante nesse campo diz respeito à possibilidade de regimento interno vedar completamente a criação ou guarda de animais domésticos nas unidades autônomas. O STJ já decidiu, acertadamente, que tais restrições se estabelecidas de modo genérico, afiguram-se desarrazoadas, devendo-se sempre considerar o risco à segurança e à tranquilidade dos demais moradores como critério legitimador de eventuais proibições regimentais. Essa interpretação se harmoniza com a já apontada tendência contemporânea de se atribuir um regime diferenciado aos animais, especialmente aqueles objetos de afeição humana, contribuindo para a realização dos interesses existenciais da própria pessoa natural.2 Em suma, a questão dos animais no ambiente condominial é uma história sem fim? Nos parece que não, pois nota-se que a jurisprudência e a doutrina seguem a mesma perspectiva no que diz respeito à permissão da permanência de animal nas dependências condominiais, desde que respeitados os direitos dos coproprietários em ter preservado o sossego, a saúde e a segurança. Sendo assim, ainda que na prática a questão ainda verifique muitos debates, a questão nos parece já delineada tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina. Referências SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020. *Cesar Peghini é advogado especializado em atividade Condominial. Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Européia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, Toledo/ES. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino ITE. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito - EPD. Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Professor Titular permanente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu (mestrado) da Faculdade Escola Paulista de Direito - EPD. Professor dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola Paulista de Direito - EPD; Professor convidado no curso de pós-graduação lato sensu em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Professor visitante em cursos de pós-graduação lato sensu. __________ 1 TARTUCE, 2020. Op. cit., p. 1526 e 1527. 2 SCHREIBER, 2020. Op. cit., p. 1109.
Estas primeiras linhas não têm como razão apreciar tema relacionado à possibilidade ou impossibilidade quanto a realização das assim nominadas assembleias virtuais em condomínios edilícios disciplinados pelos artigos 1331 e seguintes do Código Civil, isto é, sua legalidade ou ilegalidade. O recorte que propõe a abordagem parte de premissa de que, superadas as avaliações precedentes, decidiu-se por sua realização. E ao assim decidir, determinadas premissas devem ser observadas, rigorosamente, a partir, inclusive, da elaboração do edital de sua convocação de maneira que nulidades ou anulabilidades não se verifiquem. Mas, antes da observação das cautelas práticas necessárias à sua formulação, formalização e divulgação, alguns pontos e relacionados à função de uma assembleia geral devem ser coloridos de maneira a iluminar e conduzir o pensamento. Isso, pois, seja física ou virtual, tal colorido deverá ser observado. Desde a muito se discorre acerca da função de uma assembleia geral. Em apertada síntese serviria de fórum institucional de discussão e deliberação de temas afetos às relações estabelecidas entre os titulares de direito sobre a coisa imóvel em regime de condomínio edilício. Neste sentido, seu fundamento, isto é, sua razão de existir é a formação da vontade de um determinado grupo a partir das vontades de cada um daqueles que dele participa. Cada manifestação, portanto, se faz importante. Desde aquela de isolada pessoa, recém chegada ao condomínio edilício, até daquelas que há anos nele reside; assim como daquele que sempre se manifesta isoladamente, como daqueles que sempre formam a maioria necessária para a aprovação de suas decisões. E assim se justifica, talvez, por conta daquilo que Ortega y Gasset coloca como sendo inerente ao humano, ou seja, suas circunstâncias vividas e observadas que, por vezes, são capazes de influenciar outros. Assim, neste ambiente conformado por apresentações, indagações, observações, relacionamentos, tons de voz, gesticulações (pois o corpo fala!), argumentações, discursos, ideias variadas, por vezes concordantes e, outrora, conflitantes, entendimentos são conformados, mantidos, adaptados e, em outras circunstâncias, completamente reformulados. Não raras vezes, inclusive, se depara com ideia até então impensada, mas que, por conta da ambiência democrática, da livre exteriorização do pensamento, constrói-se e, assim, convence, se não a todos, a grande parte. Situação essa que, no silêncio das ideias, poderia até ser alcançada, mas, com maior sofrimento do espirito. Surge, assim, do conflito e da conjugação de ideias, a formação da vontade, não individual, mas coletiva, amparando as decisões constituídas, legitimamente, em foro adequado à discussão. Vontade esta conformada em linha com um interesse, qual seja, o condomínio edilício e, portanto, em contradição às vontades egoísticas de poucos, mesmo que, de alguns. Há, assim, neste contexto, de regular assembleia, a formação da assim chamada vontade soberana, emanada através de órgão originário e cujo poder de assim decidir não depende de qualquer outro. E, por conta de sua soberania, em regra, obriga não apenas os presentes, mas, inclusive os ausentes e que dela não participaram por qualquer motivo. A assembleia geral, assim, ao aprovar ou reprovar determinada matéria submetida à sua apreciação, conforma a vontade e as direções a serem observadas quando da gestão da coisa coletiva, como autêntico órgão legiferante de normas (sic!) e condutas a serem observadas, assim como fiscalizando a legalidade tudo quanto se fez e fará naquele condomínio edilício. Há, certamente, limites às decisões assembleares, mas, estes, demandariam variadas outras observações não contidas no recorte destas primeiras linhas. Percebe-se, portanto, em face destas circunstâncias, a importância do processo de formação da vontade. Vontade esta que se forma e conforma pelo direito de voz, pelo direito de ouvir, pelo direito de ser ouvido, pelo direito de debater, pelo direito de concordar, pelo direito de discordar, pelo direito, enfim, de manifestar-se através de qualquer meio e da maneira mais ampla e irrestrita possível; sempre com o devido acatamento. E, mesmo após larga participação, pode o condômino decidir por, simplesmente, calar-se, isto é, não exercitar o seu direito de votar. Assim, pois, direito seu, também, de manifestar-se conclusivamente, ou não. Neste contexto, portanto, em que a preservação da construção das ideias é da essência de uma assembleia geral, todo e qualquer sistema informatizado deve ser detidamente avaliado sob o manto de sua observância. Dito de outra forma, a plataforma escolhida deve ser capaz de proporcionar e, para a ambiência de uma assembleia geral virtual, tudo quanto foi esclarecido, sempre em tempo real, isto é, "ao vivo e a cores", admitindo-se, apenas, certa organização das falas durante o procedimento e, sempre, desde que de qualquer forma não comprometa os direitos assegurados por sua função da qual decorre sua essência. Desta feita, escolhido determinado sistema, devem ser observados e, durante todo o prazo de duração da assembleia, sem qualquer interrupção, sem qualquer interferência, sem qualquer espécie de controle, sem a existência de qualquer ambiente privado ou de qualquer forma controlado e, portanto, com ampla publicidade de tudo o quanto é nela debatido e colocado por cada um e por todos, cada um dos direitos alhures relatados. Atuar de maneira diversa significaria o comprometimento do esperado resultado de uma ambiência, sob seu aspecto formal e, portanto, passível de ser declarada sua nulidade. A assembleia virtual, portanto, deve ocorrer como que em natural transposição do ambiente físico ao virtual, significando reprodução fiel de ambiente democrático. Em face deste cenário, quando da elaboração dos editais de convocação para uma assembleia geral, deve-se ter em mente estas primeiras linhas, tudo de maneira que não sejam estabelecidos procedimentos que de alguma forma comprometam os direitos relacionadas à essência de uma assembleia geral, tais como: (i) que manifestações de condômino somente serão visualizadas e, portanto, acessadas, por grupo determinado de pessoas, tais como as integrantes da administração do condomínio (i.e. Síndico, Conselhos e Administradora) que, em entendendo pertinente, responderão; (ii) que o direito de voz não será permitido, isto é, os condôminos não terão acesso a microfones; (iii) que o direito de ver pessoas e de ser visto enquanto pessoa não será admitido ou, em sendo, assim o será parcialmente a critério da presidência da assembléia; (iv) que somente serão admitidas manifestações escritas e por meio dos assim nominados Chat's e, (v) que inexistirá o direito de indagar e debater, durante a assembleia, qualquer tema relacionado à sua ordem do dia havendo, apenas, o voto de aprovação ou reprovação. Estipulações como essas ferem a função de uma assembleia geral em condomínio edilício. Representam autêntico espirito ditatorial avesso à formação de uma vontade democrática e, portanto, deliberações assim realizadas, são nulas de pleno direito uma vez inexistir ambiente formador de uma vontade que, apenas assim se qualifica, se livre. De outro lado, importa iluminar que não se pode admitir, inclusive, qualquer procedimento, seja através do edital de convocação, seja durante a assembleia geral, que venha a afrontar e, por conta desse fato, reduzir ou de qualquer forma, limitar, a possibilidade de participação de todo e qualquer condômino interessado, desde que apto e habilitado legalmente. A este respeito, cabe atenta e diligente observação dos termos da lei e da convenção de condomínio edilício uma vez que as assembleias se operacionalizam na forma e através do modo estabelecido, especialmente, na respectiva convenção de condomínio. A lei e a convenção constituem a base que deve ser observada. Nem mais, tampouco menos. Desta forma, inclusive, a divisão de poderes e de competências através delas insculpidos e estipulados devem ser estritamente observados. Neste sentido, não é válido estabelecer, dentre outras variadas estipulações e, em contradição ao quanto estipulado em Convenção de Condomínio que (i) os interessados à Presidência de determinada assembleia geral deverão se candidatar até determinada data, não se admitindo candidaturas posteriores ou ao momento em que será realizada a assembleia geral; (ii) aqueles que forem representar outras unidades autônomas deverão encaminhar, obrigatoriamente, os respectivos mandatos até determinada data, sob pena de não ser aceita a apresentação, por tardia, de procuração no momento da assembleia geral; (iii) haverá plantão de dúvidas, acerca dos temas da ordem do dia, em determinado intervalo de datas e horários, sendo que apenas em tal momento serão prestados esclarecimentos e, portanto, inexistindo no horário da assembleia geral. Importa iluminar que não se esta a discutir acerca da conveniência de qualquer uma de mencionadas estipulações de forma a, de alguma maneira, tornar a assembleia geral mais efetiva. O que se discute é acerca da legalidade de sua obrigatoriedade quando em contradição ao quanto estabelecido por determinada Convenção de Condomínio Edilício. Assim o sendo, é possível o estabelecimento das mesmas, enquanto uma faculdade e, não, como obrigação, pode conduzir a caminho de maior efetividade. Em face, portanto, da lapidação deste cenário que teve por finalidade, apenas, realizar um recorte de maneira a iluminar e assim discutir determinados aspectos das assembleias gerais realizadas em ambiente virtual é que se encerram estas primeiras linhas. Isso tudo, pois, como coloca Platão, na República [2014, p. 315], "a dialética é o único processo investigatório que [...] suprimindo hipóteses [...] oferece segurança e confirmação." Estão abertas, portanto, as portas para os contrários, mesmo que em todo ou parte. Marcelo Barbaresco é doutorando em Direito Comercial pela PUC/SP. Mestre em Direito Político e Econômico. Pós-graduado em Direito Empresarial, em Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, em Direito Processual Civil, em Direito do Consumidor e em Direito Imobiliário, com capacitação para Mediador. Professor na FGV Direito SP - FGV Law, na FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado, na Faculdade Baiana de Direito, assim como em outras instituições de ensino superior. Fundador do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, exercendo uma de suas vice-presidências, estando presidente da Comissão de Estudos de Shopping Centers. Membro da Mesa de Debates de Direito Imobiliário (MDDI) de São Paulo. Membro Efetivo da Coordenadoria da Comissão de Locação, Shopping Center e Compartilhamento de Espaços da OAB/SP.