Vozes silenciadas: As faces da violência infanto-juvenil
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Atualizado em 10 de junho de 2025 10:21
A violência é um fenômeno muito complexo que atinge crianças e adolescentes de qualquer classe social e em qualquer lugar e, não raramente, está relacionada a fatores culturais, sociais e socioeconômicos.
Segundo a OMS (2022), violência é definida como qualquer uso de forca física ou do poder real ou ameaça, contra si ou outra pessoa, um grupo ou uma comunidade, que possa resultar ou que tenha a possibilidade de lesões, morte, dano psicológico deficiência de desenvolvimento ou privação.
Os tipos de violências são diversos, mas a lei federal 13.431/171, conhecida como lei da Escuta Protegida, os definiu da seguinte forma: 1. Violência física - ação que impacte negativamente a integridade ou saude corporal ou cause sofrimento físico; 2. Violência Psicológica - Discriminação, ameaças, constrangimentos, humilhações, manipulações, isolamento, xingamentos, ridicularização, indiferença, entre outros, que prejudicam seu desenvolvimento mental e emocional; 3. Violência Sexual - ação que force a criança ou adolescente a praticar ou presenciar ato sexual, de modo presencial ou virtual. A violência sexual inclui o abuso sexual, a exploração sexual comercial e o tráfico de pessoas; 4. Violência Institucional - ação praticada por funcionário público que prejudique o atendimento à criança ou adolescente vitima ou testemunha de violência; 5. Violência Patrimonial - retenção ou destruição de documentos pessoais, bens e recursos, incluindo os necessários para as necessidades básicas.
Independente de qual o tipo e, sob qual circunstância, a violência impacta não somente a saúde física, psicológica e emocional da criança ou do adolescente, impacta significativamente seu desenvolvimento e suas relações interpessoais.
Pode, resultar em lesões físicas, ist's - infecções sexualmente transmissíveis, ansiedade, depressão, ideação suicida ou mesmo a morte, além de tantas outras consequências negativas. Além disso, causa sérios impactos comportamentais, como aumento da agressividade, introspecção e comportamentos antissociais, abuso de substâncias etílicas e ilícitas, comportamentos sexuais de risco e práticas ilícitas.
No Brasil, segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024)2, milhares de crianças e adolescentes, de todas as idades, são vítimas destas violências cotidianamente. O crime de Abandono de incapaz, previsto no art. 133, CP em 2023, chegou ao patamar de 11.215 casos em 2023 (considerando as crianças de 0 a 17 anos); Pornografia Infanto-juvenil, previsto nos art. 240, 241m 241-A e 241-B, cerca de 2790 casos, de 0 a 17 anos; Maus-tratos (art. 136, CP e art. 232, ECA) - 29.469 casos; Exploração sexual infantil (art. 218-B, CP e art. 244-A, ECA) - 1.255 casos; Lesão Corporal em contexto de violência doméstica (art. 129 §9º, CP) - 18.805 casos.
No que diz respeito à violência sexual (estupro de vulnerável) foram 61.153 caos; as vítimas seguem um padrão: 88,2% são meninas, 52,2% negras, de no máximo 13 anos (61,6%) e, que foram estupradas por familiares ou conhecidos (84,7%) e dentro de suas casas (61,7%).
Muito embora em menor número, 27 meninos e homens são vítimas de estupro todos os dias. Eles representam cerca de 12% dos casos e, mesmo assim, a violência sexual contra este publico é pouco reconhecida e discutida entre os homens. E aqui, vale suscitar que o abuso ocorre também por parte de mulheres ou uma pessoa próxima (de ambos os sexos). A maioria das vítimas, tem entre 3 e 13 anos e, 65% dos abusos ocorreram dentro de suas casas, o que se assemelha aos casos ocorridos contra meninas.
Entre os anos de 2022 e 2023, houve um aumento de 7,5% nos casos de estupro de vulnerável, crime tipificado no art.217-A do CP. Numa perspectiva evolutiva, dos últimos anos (2011-2023), o número de casos saltou de 43.869 para 83.988.
Suspeita-se que estes números sejam ainda maiores, dada a subnotificação deste crime, muitas vezes, motivado pela vergonha, culpa, descrença da vitima em relação à punição do abusador, pelo descrédito em relação a denúncia ou por ser desencorajada a lavrar o boletim de ocorrência, quando não, sentir-se intimidada a não fazê-lo pelo próprio abusador. Aqui, vale abrir um parêntese para informar que apenas 8,5% dos casos são denunciados. No caso dos meninos, 90% dos casos não são notificados.
Isso expõe uma realidade brutal de nossa sociedade, onde crianças e adolescentes estão sendo expostas a estas violências em locais onde deveriam estar protegidas. Os números chegam a ser comparados às mortes violentas de crianças e adolescentes em países em guerra.
Outras violências que tanto preocupam na atualidade, é a crescente nos casos de bullying - lei federal 13.185/15 e cyberbullying - lei federal 14.811/24, que são atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetitivos, praticados com a objetivo de intimidar ou agredir, em relações marcadas pelo desequilíbrio de poder tanto no ambiente físico quanto no digital.
Em 2023, no Brasil, foram registrados um recorde de notificações destes crimes, cerca de 121 mil casos. Uma pesquisa do IBGE indicou que cerca de 10% dos estudantes já foram vitimas de cyberbullying.
Não diferente destes dados, de acordo com o 2º Boletim Técnico Escola que protege3 - Dados sobre Bullying e Cyberbullying, mais de 2,9 mil crianças e adolescentes foram vitimas destes crimes no Brasil em 2024, e estes dados representam apenas aqueles que dada a gravidade, chegaram às autoridades policiais.
Cyberbullying representa 15,7% dos registros, um total de 460 casos. Mas estima-se que este número seja ainda maior, pois assim como o crime de abuso sexual, há muitos casos não notificados. As vitimas, são em sua maioria, adolescentes de 12 a 15 anos.
Um reflexo destas violências, é o crescimento no número de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos que se suicidaram. Entre os anos de 2013 e 2023, houve um aumento de 42,7% no número de suicídios.
Em relação aos casos de abuso e exploração sexual em ambiente digital, a Safernet4 revelou que em 2023 foram recebidas mais de 71 mil denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil e este número é 77% maior que o número de casos de 2022. De acordo com relatório das Nações Unidas, no mundo, 300 milhões de crianças foram afetadas pelo abuso e exploração sexual online.
No ambiente virtual, as meninas em idade escolar, são as maiores vítimas, segundo a ONG Serenas5. 54% dos adolescentes no país já sofreram violência sexual na internet. E, para além desta violência, são vitima de crime de ódio, misoginia, o que causa ainda mais um clima de medo e insegurança.
Estamos diante de uma nova realidade, em que apenas supervisionar não é capaz de coibir os crimes em ambiente digital, seja o crime de cyberbullying ou os crimes sexuais. Do mesmo modo, que em se tratando de abuso, não se pode endurecer a legislação com foco a punir ainda mais a vitima, como o que está sendo proposto no PL 1904/24.
O Brasil é considerado um país com as melhores leis de cunho protecionista às crianças e aos adolescentes. Além destas, com enfoque ao perfil infanto-juvenil, outras foram sancionadas com fulcro a coibir os crimes citados ao longo deste texto, mas ainda assim, é notória a crescente destes nos últimos anos.
Observa-se que, exceto os crimes de bullying, cyberbullying e crimes sexuais em ambiente virtual, os demais, em sua maioria são praticados por quem tem o dever primário de zelar, cuidar, educar e proteger as crianças e os adolescentes, ou seja, suas famílias.
Desta feita, faz-se necessário, cumprir o mandamento constitucional do art. 227 e, passados quase 35 anos da concepção do Estatuto da Criança e do Adolescente, prevalecer o disposto no art. 5º, que garante a proteção integral à criança e ao adolescente, proibindo qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Mas principalmente, implementar as políticas públicas já existentes, fortalecer os atores do Sistema de Garantia de Direitos (Judiciário, Saúde, Educação, Assistência Social), capacitar os membros dos Conselhos Tutelares e Conselhos de Direitos, para que deste modo, possam atuar de forma condizente às demandas que são a eles apresentadas, seguindo os fluxos operacionais contidos nos Planos já construídos.
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1 Lei 13.341, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Senado, 2017. Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.