Vedação às assinaturas digitais nas autorizações para viagem é medida de proteção de crianças e adolescentes
terça-feira, 24 de junho de 2025
Atualizado em 23 de junho de 2025 14:40
Neste artigo vamos analisar a recente decisão do CNJ, proferida na consulta 0003850-52.2024.2.00.0000, que vedou a utilização de assinaturas eletrônicas simples, avançadas (como as da plataforma Gov.br) ou qualificadas para substituir o reconhecimento de firma em cartório nas autorizações de viagem para crianças e adolescentes menores de 16 anos desacompanhados.
1. Introdução
A transformação digital impulsionou uma necessária modernização dos serviços públicos, substituindo procedimentos burocráticos por soluções ágeis e acessíveis. Nesse cenário, a lei 14.063/20, que dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas na interação com entes públicos, e a plataforma Gov.br emergiram como símbolos de um Estado mais eficiente. Contudo, a aplicação irrestrita dessas novas ferramentas suscita debates complexos quando confrontada com searas jurídicas que demandam um grau elevado de segurança e cautelas adicionais, especialmente aquelas que tutelam direitos de pessoas em condição de vulnerabilidade.
É precisamente neste ponto de intersecção entre a conveniência tecnológica e o dever de proteção que se insere a questão analisada pelo CNJ na consulta 0003850-52.2024.2.00.0000. Formulada por uma operadora de turismo, a indagação era direta: a assinatura eletrônica gerada pela plataforma Gov.br ou por um certificado digital comum poderia substituir a exigência de reconhecimento de firma em cartório para as autorizações de viagem de menores de 16 anos desacompanhados dos pais ou responsáveis adultos?
A resposta do CNJ foi um sonoro e bem fundamentado "não". Esta decisão, longe de ser um ato de resistência e oposição infundada e arbitrária à tecnologia, representa uma afirmação categórica do primado da proteção infantojuvenil.
O presente artigo visa dissecar os fundamentos da decisão do CNJ, demonstrando que a vedação se justifica pela prevalência de normas especiais protetivas (notadamente, o ECA e regulamentações do CNJ) sobre a legislação geral de assinaturas eletrônicas. Abordaremos como a formalidade do reconhecimento de firma, seja física ou por meio da já existente AEV - Autorização Eletrônica de Viagem, cumpre uma função essencial de garantia da autenticidade e da voluntariedade do consentimento parental, mitigando riscos severos e inaceitáveis.
Como se verá, a decisão do CNJ não apenas está correta, mas serve como um importante precedente sobre como a inovação tecnológica deve ser calibrada e implementada, assegurando que o avanço da eficiência administrativa jamais comprometa a salvaguarda dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.
2. A autorização de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados
A exigência de autorização para a viagem de crianças e adolescentes não é um capricho burocrático, mas uma manifestação direta das balizas protetivas que fundamentam a doutrina da proteção integral, pilar do direito infantojuvenil brasileiro e consagrada no art. 227 da Constituição Federal. Este dispositivo estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, a vida, a saúde, a alimentação, a educação, o lazer, a profissionalização, a cultura, a dignidade, o respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nesse contexto, a regulamentação de viagens é um mecanismo preventivo crucial para evitar que crianças e adolescentes sejam colocados em situação de risco e premente perigo à sua vida, saúde e integridade física e psicológica. Seu propósito é criar barreiras de segurança para proteger crianças e adolescentes de riscos gravíssimos, como o sequestro parental (subtração por um genitor sem o consentimento do outro), o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou trabalho análogo à escravidão, raptos e desaparecimentos. Com efeito, "o desaparecimento, temporário ou definitivo, de crianças e adolescentes sempre despertou preocupação legislativa, manifestada especialmente através de regras proibitivas de deslocamentos desacompanhados dos pais ou responsáveis, ausências eventualmente supridas por autorizações expressas" (Paula, 2024, p. 282). Por isso, estabeleceu o legislador regras para autorização das viagens de crianças e adolescentes desacompanhadas, em âmbito nacional e internacional.
A formalidade da autorização, com a intervenção judicial ou notarial, serve para verificar a autenticidade e a livre vontade do consentimento parental, garantindo que a viagem é, de fato, segura e atende ao melhor interesse da criança ou do adolescente.
2.1. Regras gerais para a autorização de viagem nacional
A viagem dentro do território brasileiro é regulamentada no art. 83 do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e pela resolução 295/19 do CNJ.
O art. 83, caput, do ECA, alterado pela lei 13.812/19, e o art. 1º da resolução 295/19 do CNJ possuem idêntica redação. De acordo com esses dispositivos: "nenhuma criança ou adolescente menor de 16 anos poderá viajar para fora da comarca onde reside desacompanhado dos pais ou dos responsáveis sem expressa autorização judicial".
O §1º do art. 83 do ECA e o art. 2º da resolução do CNJ, contudo, enumeram exceções que afastam a necessidade de autorização.
Em síntese panorâmica, a regulamentação para a viagem de crianças e adolescentes em território nacional parte de um princípio basilar de proteção: a regra geral é a necessidade de consentimento parental expresso e formal. As exceções previstas em lei (e na resolução) são desenhadas para situações em que a segurança da criança ou adolescente é presumida ou já foi previamente aferida, sempre à luz do melhor interesse.
As hipóteses excepcionais que afastam a necessidade de autorização judicial para que crianças e adolescentes possam viajar em território nacional desacompanhadas dos pais ou outros adultos responsáveis são as seguintes:
a) Autonomia para viagens nacionais (a partir de 16 anos): ao completar 16 anos, o ordenamento jurídico confere ao adolescente (considerado pelo Código Civil brasileiro pessoa relativamente incapaz, ex vi do art. 4º, inciso I) uma autonomia específica para se deslocar dentro do Brasil. A partir dessa idade, ele pode viajar livremente, desacompanhado e sem qualquer tipo de autorização, bastando portar um documento oficial de identificação com foto que comprove sua idade. Essa prerrogativa representa um marco no desenvolvimento de sua autonomia, presumindo-se a maturidade necessária para realizar viagens domésticas com segurança. A previsão, portanto, está alinhada com a autonomia progressiva (evolving capacities of the child) prevista no art. 5º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989.
b) Regras de proteção para menores de 16 anos: para esta faixa etária, a lei cria um escudo protetivo mais robusto, cujas brechas são estritamente regulamentadas:
b.1) Viagem na companhia de parentes próximos: a lei dispensa a autorização formal quando a criança ou o adolescente (menor de 16 anos) viaja acompanhado de ascendentes (pais, avós, bisavós) ou colaterais até o terceiro grau (irmãos, tios), desde que maiores de idade. Essa exceção se fundamenta na presunção de que o vínculo de parentesco direto e próximo é, por si só, uma garantia de cuidado e segurança. A comprovação dessa relação de parentesco, por meio de documentos de identidade de ambos (viajante e acompanhante), é indispensável para que a exceção seja aplicada.
b.2) A "regra de ouro": necessidade de autorização forma: para todas as demais situações - seja viajando completamente desacompanhado, seja na companhia de um terceiro não-parente (como um amigo da família, um professor em uma excursão, etc.) -, a apresentação de uma autorização formal é inafastável. Esta autorização pode se dar por duas vias:
b.2.1) Por escritura pública: instrumento de maior formalidade, lavrado por tabelião de notas, que confere ao ato a máxima segurança jurídica; ou
b.2.2) Por documento particular, devidamente assinado e com firma reconhecida: é a modalidade mais comum, que utiliza formulários padrão1. O ponto não negociável aqui é a exigência do reconhecimento de firma em cartório. Este ato não é mera burocracia; é o procedimento pelo qual o tabelião, dotado de fé pública, atesta a autenticidade da assinatura do genitor, conferindo validade e segurança ao consentimento.
b.3) Facilitação por autorização prévia no passaporte: em uma medida de desburocratização inteligente, a lei valida a autorização para viagem ao exterior, previamente inscrita no passaporte da criança ou do adolescente, também para fins de viagem nacional. A lógica é simples: se os pais já consentiram formalmente com o ato mais complexo (viajar para o exterior desacompanhado), presume-se o consentimento para o ato menos complexo (viajar dentro do Brasil).
2.2. Regras gerais para a autorização de viagem internacional
A saída de uma criança ou adolescente do território nacional aciona um nível de rigor e controle significativamente mais elevado. De fato, "quis o legislador que, tratando-se de viagem de criança ou adolescente ao exterior, houvesse maior controle da situação por parte da Justiça da Infância e da Juventude" (Barros, 2018, p. 542). A razão para tal zelo é clara: uma vez que a criança ou o adolescente cruza a fronteira nacional, ele sai da esfera de proteção imediata das autoridades e da jurisdição brasileiras, tornando-se mais vulnerável e dificultando imensamente a atuação do Estado em caso de problemas.
É nesse contexto que o Brasil, como signatário da Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças de 1980, adota medidas preventivas rigorosas. O objetivo da Convenção é garantir o retorno imediato de crianças ou adolescentes ilicitamente transferidas ou retidas em qualquer outro Estado contratante. As regras brasileiras para autorização de viagem funcionam como a primeira e mais importante linha de defesa para prevenir que um sequestro internacional ocorra, pois remediar a situação a posteriori é um processo judicial e diplomático complexo, demorado e traumático para a criança e para o genitor privado de sua companhia.
As regras para viagem de crianças e de adolescentes (ou seja: pessoas menores que ainda não tenham 18 anos completos) ao exterior estão previstas nos arts. 84 e 85 do ECA e na resolução 131/2011 do CNJ
De um modo geral, as regras se estruturam da seguinte maneira:
a) A regra do consentimento unânime: o princípio fundamental é que nenhuma pessoa menor de 18 anos pode deixar o Brasil sem o consentimento de ambos os genitores ou responsáveis legais. Este consentimento pode ser manifestado de duas formas:
a.1) Presencialmente: viajando todos juntos (vale dizer: a criança ou adolescente viaja com todos os seus genitores: pai e mãe; pai e pai; mãe e mãe; etc.); ou
a.2) Formalmente: se a criança ou adolescente for viajar com apenas um dos genitores ou com um terceiro, o genitor ausente deve autorizar expressamente a viagem por meio de um documento de autorização de viagem.
Este documento deve seguir um formulário padrão2, ser assinado pelo genitor que não acompanhará na viagem e é imprescindível que tenha a firma reconhecida em cartório. A exigência é absoluta. O documento deve ser apresentado em duas vias no momento do embarque, pois uma delas ficará retida pela Polícia Federal como instrumento que prova o consentimento e para fins de controle de fronteira.
Na consulta CNJ 0000214-20.2020.2.00.0000 (aqui), o CNJ firmou o entendimento de que um adolescente menor de 16 anos, sendo absolutamente incapaz, não pode se responsabilizar legalmente pela viagem de seu filho menor. A autorização de viagem deve ser preenchida e assinada pelo representante legal do adolescente-genitor.
b) Exceções e alternativas seguras: excepcionalmente, não será necessária a autorização de ambos os genitores da criança ou adolescente nas seguintes situações:
b.1) Quando houver autorização no passaporte: assim como na viagem nacional, a autorização expressa no passaporte para viajar desacompanhado ou com apenas um dos genitores supre a necessidade de qualquer outro documento.
b.2) Nas hipóteses em que se faz necessária a autorização Judicial: em situações de conflito e divergência, onde um dos genitores se recusa a autorizar a viagem de forma injustificada, ou quando um dos genitores está desaparecido ou impossibilitado de assinar, a solução é recorrer ao Poder Judiciário. Nesses casos, um(a) juiz(a), após analisar o caso concreto e sempre visando o melhor interesse da criança/adolescente, poderá suprir o consentimento parental por meio de um alvará judicial.
b.3) Cenário de alta vigilância: a lei prevê um controle ainda mais estrito quando a criança ou adolescente brasileiro viaja na companhia de um estrangeiro residente no exterior, exigindo, neste caso, autorização judicial expressa, como forma de prevenir o tráfico internacional de pessoas. Diz o art. 85 do ECA: "sem prévia e expressa autorização judicial, nenhuma criança ou adolescente nascido em território nacional poderá sair do País em companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior".
2.3. AEV - Autorização Eletrônica de Viagem
Demonstrando estar atento à evolução tecnológica, mas sem abrir mão da segurança, o CNJ instituiu, por meio do provimento 103/20, a AEV - Autorização Eletrônica de Viagem. Trata-se de uma alternativa digital ao documento físico, que preserva a camada essencial de segurança: a intervenção notarial.
Diz o provimento 103/20 do CNJ:
Art. 1º Fica instituída a AEV, nacional e internacional, de crianças e adolescentes até 16 anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais, a ser emitida, exclusivamente, por intermédio do Sistema de Atos Notariais Eletrônicos - e-Notariado, acessível por aqui.
Art. 2º A Autorização Eletrônica de Viagem obedecerá a todas as formalidades exigidas para a prática do ato notarial eletrônico previstas no provimento 100/20 da Corregedoria Nacional de Justiça, bem como na resolução CNJ 131, de 26/5/11, e na resolução CNJ 295, de 13/9/19.
Art. 4º Os pais ou responsáveis, nas hipóteses em que não seja necessária a autorização judicial, poderão autorizar a viagem da criança e do adolescente por instrumento particular eletrônico, com firma reconhecida por autenticidade por um tabelião de notas, nos termos do art. 8º da resolução CNJ 131, de 26/5/11, e do art. 2º da resolução CNJ 295, de 13/9/19.
Art. 6º Para a assinatura da Autorização Eletrônica de Viagem é imprescindível a realização de videoconferência notarial para confirmação da identidade e da autoria daquele que assina, a utilização da assinatura digital notarizada pelas partes e a assinatura do Tabelião de Notas com o uso do certificado digital, segundo a ICP - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira.
A AEV representa a ponte inteligente entre a segurança da tradição e a conveniência da modernidade. Instituída pelo CNJ. Com efeito, não se trata de uma forma de flexibilizar as regras, mas sim de digitalizar o procedimento de autorização física, mantendo intacta sua principal camada de segurança: a intervenção qualificada do tabelião de notas. Seu propósito é oferecer aos pais uma alternativa ágil e remota, sem qualquer sacrifício da proteção jurídica da criança ou adolescente. A AEV, "firmada perante o Tabelião pelos pais ou responsáveis, tem o mesmo valor do instrumento particular emitido de forma física (resolução 295/19) e poderá ser apresentada à Polícia Federal e às empresas de transporte rodoviário, marítimo e aeroportuário" (Santos, 2021, p. 510). Aliás, a sua emissão é facultativa, permanecendo válidas as autorizações de viagens emitidas em meio físico (art. 3º do provimento 103/20 do CNJ).
Os pilares que garantem a robustez e a confiabilidade da AEV são:
a) Plataforma oficial e regulada (e-Notariado): a emissão ocorre exclusivamente através do e-Notariado, o sistema oficial dos cartórios brasileiros. Isso garante que o processo se dê em um ambiente digital seguro, controlado e padronizado, longe de plataformas comerciais sem a mesma chancela de fé pública;
b) A Videoconferência notarial: este é o elemento essencial que distingue a AEV de uma simples assinatura digital. A videoconferência é o equivalente digital da ida ao cartório. Nela, o tabelião realiza uma verificação ativa: ele não apenas confirma a identidade dos pais (comparando documentos e biometria facial), mas também avalia sua capacidade civil e, fundamentalmente, afere se o consentimento está sendo dado de forma livre, espontânea e consciente, sem indícios de coação ou dúvida. É a autenticação não só da identidade, mas da vontade;
c) Assinaturas de máxima segurança (padrão ICP-Brasil): tanto os pais quanto o tabelião assinam a AEV utilizando certificados digitais do padrão ICP-Brasil (ou notarizados, que seguem a mesma raiz de confiança). Isso cria um documento com presunção legal de veracidade, gerando uma trilha de auditoria eletrônica inviolável; e
d) Verificação instantânea e à prova de fraude (QR Code): ao final, a AEV gera um documento digital com uma chave de acesso e um QR Code. Este código permite que companhias aéreas, agentes de imigração e autoridades policiais verifiquem a autenticidade da autorização em tempo real, simplesmente apontando a câmera de um celular. Isso elimina o risco de falsificações, rasuras ou fraudes, comuns em documentos de papel.
Em suma, a AEV é a resposta proativa e bem arquitetada do CNJ à era digital, demonstrando que é perfeitamente possível modernizar procedimentos sem precarizar garantias fundamentais.
3. O Governo Digital e as assinaturas eletrônicas
A busca por um serviço público mais eficiente e menos burocrático é uma demanda social constante, intensificada pela aceleração da transformação digital durante e após a pandemia de COVID-19. Nesse contexto, a lei 14.129/21 (lei do governo digital) estabeleceu um marco para a digitalização de serviços, determinando que documentos em formato digital e assinaturas eletrônicas devem ser aceitos por órgãos públicos, pondo fim a recusas injustificadas.
Essa evolução normativa foi alicerçada pela legislação sobre assinaturas eletrônicas, notadamente a medida provisória 2.200-2/2001, que instituiu a ICP-Brasil - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, e a lei 14.063/20, que classificou as assinaturas em três níveis de segurança. De acordo com o art. 4º da citada lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em:
a) Assinatura eletrônica simples: é a mais básica, como um login e senha ou um aceite em um formulário online. Serve para transações de baixo risco, onde a identificação do signatário é suficiente;
b) Assinatura eletrônica avançada: oferece um nível de segurança maior. Utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil, como os das contas nível prata e ouro da plataforma Gov.br. Garante a autoria e a integridade do documento, sendo aceita para um número crescente de serviços públicos; e
c) Assinatura eletrônica qualificada: é o padrão-ouro de segurança. Utiliza um certificado digital emitido no âmbito da ICP-Brasil. Possui presunção legal de veracidade e equivale, para todos os fins, a uma assinatura manuscrita com firma reconhecida.
Ocorre que a validade jurídica de uma assinatura não implica sua suficiência para todos os atos. Há situações que, pela sua sensibilidade e pelos bens jurídicos tutelados, exigem camadas adicionais de segurança.
A discussão sobre qual nível de assinatura é necessário para a conferir eficácia processual à procuração juntada em processos judiciais, por exemplo, gerou intenso debate. A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (TJ/SP), no processo 2021/100891, inicialmente chegou a restringir a aceitação à assinatura qualificada (ICP-Brasil) (aqui). Entendeu-se que uma procuração com assinatura eletrônica simples ou avançada teria validade entre advogado e cliente (inter partes), mas não poderia ser admitida no processo judicial - admitia-se apenas a assinatura qualificada. Posteriormente, o entendimento foi revisto (parecer 229/24-J) e passou-se a admitir também a assinatura avançada, ressalvando, contudo, a prerrogativa da autoridade judiciária, destinatária da prova, de exigir uma forma mais segura caso as circunstâncias do caso concreto levantassem dúvidas sobre a autenticidade do mandato. Este exemplo demonstra que a lei geral de assinaturas eletrônica (lei 14.063/20) deve ser interpretada em harmonia com as necessidades específicas de cada ato.
4. A inadmissibilidade das assinaturas eletrônicas para as autorizações de viagens de crianças e adolescentes desacompanhadas
O cerne do debate analisado pelo CNJ residiu no aparente conflito entre dois movimentos legítimos e desejáveis: a busca por um governo digital eficiente, simbolizado pela ampla aceitação de assinaturas como a da plataforma Gov.br, e a salvaguarda e proteção das crianças e dos adolescentes, pessoas vulneráveis. Nessa toada, a questão analisada não foi se a assinatura eletrônica avançada era válida, mas se seu nível de segurança era realmente adequado para um dos atos jurídicos mais sensíveis e de maior risco do nosso ordenamento. A decisão do CNJ, ao vedar o uso das assinaturas eletrônicas nesse contexto específico, foi uma demonstração de maturidade institucional e de correta aplicação dos princípios jurídicos.
A própria lei 14.063/20, ao estabelecer um gradiente de segurança para as assinaturas eletrônicas (simples, avançada e qualificada), reconhece implicitamente que nem todos os atos digitais são iguais. Cada tipo de assinatura corresponde a um nível de confiança, que deve ser proporcional ao risco da transação. Consultar uma situação fiscal ou protocolar um requerimento administrativo são atos de baixo risco, para os quais uma assinatura avançada é plenamente suficiente. Contudo, autorizar que uma criança saia do alcance de seus pais ou responsáveis e da jurisdição nacional é um ato de risco extremo. Exigir, para este ato, o nível máximo de segurança não é excesso de formalismo, mas uma aplicação lógica e prudente da própria lei.
Os fundamentos para essa inadmissibilidade, adotados pelo CNJ, são multifacetados e se interligam de forma coesa:
a) O princípio da proteção integral como mandamento de otimização: o art. 227 da Constituição não é uma mera carta de intenções; é um mandamento que exige do Estado a otimização dos meios de proteção. Diante de duas alternativas - uma assinatura eletrônica de autoatendimento (Gov.br) e uma assinatura que passa pelo crivo de um profissional com fé pública (AEV ou física reconhecida) -, o Estado tem o dever de escolher aquela que melhor e mais eficazmente protege a criança ou adolescente. A intervenção de um terceiro qualificado, capaz de avaliar a voluntariedade do ato, é objetivamente um meio mais seguro. A escolha, portanto, não é discricionária; é constitucionalmente vinculada à opção mais protetiva.
b) O microssistema tutelar e a prevalência da norma específica: o Estatuto da Criança e do Adolescente e as resoluções do CNJ que tratam de viagens formam um microssistema jurídico tutelar. Foram normas pensadas e desenhadas com uma única finalidade: proteger a criança e o adolescente de vulnerabilidades específicas. Uma lei geral sobre assinaturas eletrônicas, cujo escopo é a eficiência administrativa, não pode ser interpretada como uma revogação tácita dessas salvaguardas especiais. O silêncio da lei geral sobre essa hipótese particular não abre uma brecha para a simplificação; ao contrário, reforça a necessidade de se ater à norma especial, que tratou do tema com a profundidade que ele exige.
c) A distinção crucial: Autenticação de identidade vs. autenticação da vontade: este é o ponto técnico mais relevante. Uma assinatura eletrônica avançada, como a do Gov.br, é excelente para autenticar a identidade do signatário. O sistema confirma, com alto grau de certeza, que a pessoa que detém aquelas credenciais é quem está assinando o documento. O ato notarial, por sua vez, vai além: ele autentica a identidade e a vontade. O tabelião, na videoconferência da AEV ou no ato presencial, tem o dever funcional de ser um "filtro de consentimento". Ele deve aferir a capacidade da pessoa, entender o ato que ela está praticando e perceber se há qualquer indício de coação, erro ou fraude que vicie a sua vontade. Essa verificação da qualidade do consentimento é uma camada de segurança que sistemas automatizados simplesmente não oferecem e que é indispensável para um ato de consequências tão drásticas.
d) A AEV como alternativa já existente e adequada: a recusa em aceitar assinaturas eletrônicas genéricas não decorre de uma visão refratária à tecnologia, mas de uma preferência pela tecnologia adequada. Na verdade, o CNJ, ao criar a AEV, não esperou o surgimento de um problema; ele se antecipou, desenhando uma solução digital que espelha a segurança do mundo físico. Ao fazê-lo, estabeleceu o padrão de segurança para este ato. Rejeitar uma alternativa com um gradiente de segurança inferior não é, portanto, negar a inovação, mas sim reafirmar o padrão de excelência e segurança já estabelecido pelo próprio CNJ.
Conclui-se, assim, que a decisão tomada pelo CNJ não é uma escolha entre papel e pixel, mas entre diferentes ecossistemas de confiança digital. Para o ato de autorizar a viagem de uma criança ou adolescente, o ordenamento jurídico brasileiro exige um ecossistema de confiança máxima, que só é alcançado com a intervenção personalíssima, ainda que remota, de um agente dotado de fé pública.
5. Conclusão
A deliberação do CNJ na consulta 0003850-52.2024.2.00.0000 é um marco de sensatez e de compromisso com a doutrina da proteção integral, inaugurada com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, e, no Brasil, com a lei 8.069/1990 (ECA).
Ao vedar o uso de assinaturas eletrônicas genéricas para autorizações de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados, o CNJ não nega o progresso, mas o qualifica, subordinando a conveniência tecnológica ao imperativo constitucional de proteção absoluta e prioritária do público infantojuvenil.
O CNJ bem demonstrou que a exigência de reconhecimento de firma, seja no tradicional documento físico ou na moderna AEV, não é um formalismo vazio. A bem dizer, trata-se de uma barreira de segurança indispensável, um ato solene que, por meio da fé pública do tabelião de notas, confere autenticidade, certeza e, sobretudo, verifica a voluntariedade de um consentimento cujas consequências são de extrema gravidade.
A decisão reforça a aplicação do princípio da especialidade, afirmando que as normas de proteção do ECA e do CNJ prevalecem sobre leis gerais de procedimento administrativo digital. Mais do que isso, orienta a sociedade e os operadores do direito, indicando que a solução digital correta e segura (a AEV) já está disponível, provando que é plenamente possível aliar modernidade e proteção.
Em última análise, o CNJ agiu como o guardião que dele se espera, garantindo que, na ânsia por um futuro digital, não se criem vulnerabilidades que ponham em risco o bem mais precioso de uma nação: suas crianças e adolescentes, cuja segurança é inegociável.
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1 Diversos modelos de formulários para viagem nacional são facilmente encontrados na internet. No site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo estão disponíveis aqui e aqui.
2 O formulário padrão está disponibilizado no site do Conselho Nacional de Justiça, acessível aqui.
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Referências
BARROS, Bruno Mello Correa de. Artigo 84. In: VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir (coords.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 13ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2018.
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BRASIL. Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui.
BRASIL. Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui.
BRASIL. Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021. Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e altera a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, e a Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível aqui.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 103, de 4 de junho de 2020. Dispõe sobre a Autorização Eletrônica de Viagem (AEV) nacional e internacional de crianças e adolescentes até 16 (dezesseis) anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais. Brasília: CNJ, 2020. Disponível aqui.
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 295, de 13 de setembro de 2019. Dispõe sobre a autorização de viagem nacional para crianças e adolescentes. Brasília: CNJ, 2019. Disponível aqui.
PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Curso de direito da criança e do adolescente. São Paulo: Cortez, 2024.
SANTOS, Ângela Maria Silveira dos. Prevenção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 13ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.