Negligência: Como o vídeo de Felca trouxe luz a um tipo de violência negligenciado pela sociedade
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Atualizado em 18 de agosto de 2025 12:08
A violência contra crianças e adolescentes se manifesta de múltiplas e cruéis formas. Algumas, como a agressão física ou o abuso sexual, são mais visíveis, provocando repulsa imediata e mobilização social. Contudo, há uma modalidade silenciosa, crônica e de difícil percepção que, ironicamente, carrega em seu nome a própria atitude que a sociedade muitas vezes lhe devota: a negligência. Esta forma de violência não se materializa por uma ação, mas por uma omissão. É a violência com sinal negativo, um "não fazer" onde a ação protetiva era um dever. A negligência é a falha, intencional ou não, no cumprimento das obrigações de cuidado, proteção e assistência indispensáveis ao desenvolvimento saudável de um ser em formação.
Dados do Disque 100 confirmam que esta é uma das formas mais comuns de violação de direitos de crianças e adolescentes e corresponde a grande parte das denúncias no país1. No mesmo sentido, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, recentemente publicado, confirma que a negligência, representada pelos casos de abandono, é uma violência bastante recorrente. Os dados referentes a 2024 revelam um cenário desolador no que tange à violência negligencial tipificada: foram registradas 12.446 vítimas de 0 a 17 anos do crime de abandono de incapaz (art. 133 do Código Penal) e outras 1.365 vítimas de abandono material (art. 244 do Código Penal). O que torna o quadro ainda mais grave é a tendência de escalada: em comparação com 2023, essas modalidades criminosas registraram um crescimento expressivo de 9,4% e 9,3%, respectivamente, figurando entre as maiores altas dentre todas as formas de violência não letal. A essa triste estatística somam-se, ainda, as 480 ocorrências por descumprimento dos deveres do poder familiar, infração que está prevista no art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que também apresentaram um aumento de 5,7%2.
Uma análise mais aprofundada dos dados e da prática forense revela um nítido recorte de gênero, que varia conforme o tipo de violência. Em se tratando da violência negligencial, a figura materna frequentemente aparece como a principal responsável. Contudo, isso não ocorre, em regra, por uma deliberação maldosa, mas é um reflexo direto da estrutura social brasileira, na qual a maternidade solo é uma realidade indisfarçável. Sobrecarregada com a dupla ou tripla jornada e sem uma rede de apoio ou a presença de uma figura paterna corresponsável, a mãe acaba, por exaustão e ausência de recursos, incorrendo na omissão que caracteriza a negligência. Em contraponto direto, na violência sexual intrafamiliar, o perfil do agressor se inverte drasticamente: a esmagadora maioria dos casos é perpetrada por uma figura masculina - o pai, o padrasto, o avô ou tio - e as meninas são as vítimas predominantes. Essa dualidade trágica não é coincidência, mas o retrato de papéis de gênero arraigados, onde à mulher recai a responsabilidade (e a culpa) pelo cuidado, enquanto o poder e a autoridade masculina, quando pervertidos, transformam o lar em um ambiente de risco sexual para as mais vulneráveis.
Apesar de sua massiva ocorrência prática, a negligência é frequentemente subestimada, tratada como um "problema menor" ou, pior, confundida com as dificuldades inerentes à pobreza (o que enseja uma absurda criminalização das camadas sociais mais pobres). Contudo, nas últimas semanas, um fenômeno digital rompeu essa barreira de indiferença com a força de um tsunami. Um vídeo publicado pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, o Felca, expôs de forma contundente e didática a exploração de crianças e adolescentes na internet. Com dezenas de milhões de visualizações, a denúncia não apenas gerou uma onda de apoio de figuras públicas e anônimos, mas também acendeu um alerta no Congresso Nacional, impulsionando a discussão de PLs para a proteção de menores no ambiente online. O vídeo de Felca, ao mirar em influenciadores digitais que monetizam a imagem infantil, atingiu em cheio o cerne de uma problemática muito mais profunda e disseminada: a negligência parental, mais especificamente no ambiente digital, uma porta escancarada para incontáveis riscos, abusos e violências.
1. O vídeo de Felca, o caso Kamylinha, a adultização e a negligência parental no ambiente digital
O vídeo de Felca, intitulado "Adultização", inicia com um tom sarcástico, característico do seu trabalho, ao dissecar a perturbadora tendência de "coaches mirins" e crianças que discursam sobre investimentos, desvalorizando a formação escolar em prol de um suposto empreendedorismo precoce. Contudo, o humor cede rapidamente espaço a uma análise sóbria e assustadora. Felca conecta essa exposição precoce à vulnerabilidade de crianças e adolescentes frente a redes organizadas de pedofilia. Ele explica como os algoritmos das redes sociais, desenhados para maximizar o engajamento, podem ser manipulados por criminosos. Comentários com termos como "trade" (troca) em publicações de crianças não são interações inocentes, mas códigos para a negociação de material de abuso sexual infantil, ocorrendo à vista de todos, inclusive dos pais.
O ponto central da denúncia recai sobre o influenciador Hytalo Santos, já investigado pelo Ministério Público da Paraíba desde 2024. Felca o acusa de sexualizar adolescentes sob seus "cuidados", expondo-os a festas, consumo de álcool e comportamentos inadequados para a idade. O caso de Kamylinha Santos, que passou a conviver com o influenciador aos 12 anos, é emblemático. Segundo a denúncia, a jovem foi transformada em um "produto" para gerar engajamento, sendo submetida a um implante de silicone aos 17 anos e aparecendo em incontáveis conteúdos de teor sugestivo. A adolescente, que chegou a ser emancipada aos 16 anos - um ato jurídico que confere capacidade civil plena, mas não maturidade psicológica ou emocional -, teve seu perfil derrubado por publicidade de casas de apostas, prática ilegal para menores.
O que mais choca, para além da conduta do influenciador, é a aparente anuência e até defesa por parte da genitora de Kamylinha. Uma conselheira tutelar de Cajazeiras/PB afirmou que a mãe da adolescente nunca se opôs à participação da filha nos vídeos, ao contrário do pai e da família paterna, e que chegou a defender publicamente o influenciador após a repercussão. Esta atitude parental não é apenas uma falha moral; é a materialização da negligência. A omissão em proteger a filha, permitindo sua exposição a riscos imensuráveis, configura um abandono do dever de cuidado. Acertadamente, o Ministério Público da Paraíba estendeu a investigação para apurar a responsabilidade dos pais por omissão. O caso não é isolado; Felca recorda outros, como "Bell para Meninas" e "Karolyne Deher", nos quais as mães eram as principais agentes da exploração vexatória e sexual de suas filhas, evidenciando um padrão doentio.
2. "Abandono digital": Oversharenting e as falhas no dever de supervisão ativa
O caso exposto por Felca é a ponta de um iceberg que podemos denominar de "abandono digital". Muitos pais, movidos por uma falsa sensação de segurança - "meu filho está em casa, no quarto dele, seguro e protegido dos males da rua" -, entregam a crianças e adolescentes dispositivos conectados à internet sem qualquer supervisão, letramento ou controle. Essa omissão, mediante a delegação tácita do dever de cuidado a um algoritmo, é uma forma contemporânea e extremamente perigosa de negligência.
Essa discussão foi brilhantemente explorada no início deste ano de 2025 pela série "Adolescência", um fenômeno global da Netflix que retrata a história de um garoto de 13 anos, de família estruturada, acusado de matar uma colega. A discussão em torno da série viral acendeu o alerta de que uma noção equivocada de "respeito à privacidade" está, na prática, permitindo que adolescentes se tornem vítimas ou autores de crimes graves cometidos na internet. Essa análise quebra o mito de que o adolescente está seguro apenas por estar em seu quarto, lembrando que o mundo digital oferece tantos perigos quanto o mundo real, ou até mais.
Essa falta de supervisão é agravada pelo "oversharenting", a prática de compartilhar excessivamente informações e imagens dos filhos online em redes sociais. Cada foto com o uniforme escolar, cada postagem marcando a localização, cada vídeo expondo a intimidade da criança contribui para uma pegada digital permanente e explorável. Os pais se tornam, ainda que sem intenção, os primeiros agentes da exposição de seus filhos à esfera pública digital e fornecem, mesmo que não queiram, farto material para compartilhamento em grupos de usuários pedófilos mal intencionados.
A juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, que vem se destacando ao alertar sobre os perigos da internet para crianças e adolescentes, elenca lições fundamentais que os pais precisam aprender e aplicar no seu cotidiano3:
- Estudar sobre a adolescência: É preciso compreender que o cérebro do adolescente, com o córtex pré-frontal ainda imaturo, é propenso à impulsividade e tem dificuldade em avaliar riscos. Essa imaturidade os torna presas fáceis para a manipulação online (cybergrooming), desde desafios perigosos até o aliciamento por predadores;
- Compartilhar experiências e criar vínculos: A melhor proteção não é o controle autoritário, mas a construção de uma relação de confiança entre pais e filhos. Interessar-se pelo universo online do filho, conhecer os jogos que ele joga, os youtubers que ele assiste e criar um canal de diálogo aberto são atitudes que o encorajam a pedir ajuda quando se deparar com algo estranho ou ameaçador;
- Monitorar a atividade online: É preciso deixar claro que o controle parental não é invasão de privacidade, mas um dever de cuidado. Utilizar aplicativos de controle, ter acesso às senhas para emergências e manter o GPS do aparelho habilitado são medidas de segurança básicas e inegociáveis;
- Estabelecer limites claros: O uso excessivo de telas está diretamente ligado a problemas de saúde mental (depressão, ansiedade), obesidade e, principalmente, privação crônica de sono, o que afeta drasticamente o desenvolvimento cognitivo e o aprendizado.
Em suma, é urgente uma mudança de paradigma: os pais precisam abandonar a postura de um espectador passivo para assumir o protagonismo no cuidado digital dos filhos. As lições elencadas por Vanessa formam um verdadeiro roteiro para uma parentalidade ativa e engajada, que não se fia na proibição cega, mas na orientação consciente. Trata-se, em última análise, de um chamado à responsabilidade que une conhecimento, afeto, vigilância e disciplina, pilares indispensáveis para construir um ambiente digital mais seguro e saudável para as futuras gerações.
3. As múltiplas faces da negligência e as suas consequências jurídicas
A negligência, como dito acima, é a violência que deriva de um "não fazer" aquilo que a lei e o dever de cuidado exigem. Ela se manifesta quando a pessoa que está em posição de garantidor - aquela que tem a obrigação legal (pais), contratual (babás, professores) ou fática (um adulto que assume a responsabilidade momentânea) de proteger - se omite. Insta, aqui, diferenciar a negligência deliberada da incapacidade material. A família que não consegue prover o necessário por extrema pobreza não é negligente; ela é vítima de uma falha do Estado e deve ser amparada pela rede de assistência social.
Juridicamente, a omissão negligente dos pais pode levar a duas ordens de responsabilização penal. A primeira, e mais grave, é a por omissão imprópria (ou crime comissivo por omissão), prevista no art. 13, § 2º, do Código Penal. Nela, o garantidor que tinha o dever e o poder de evitar um resultado danoso, e não o faz, responde pelo próprio crime que deixou de impedir. É o caso clássico da mãe que, ciente dos abusos sexuais cometidos pelo padrasto contra sua filha, nada faz para protegê-la. Por sua inércia, ela pode ser responsabilizada, juntamente com o agressor, pelo mesmo crime de estupro de vulnerável. Não sei maiores detalhes da participação (ou, melhor, da não-participação) da mãe de Kamylinha no seu processo de erotização e sexualização nas redes sociais. Porém, a título meramente teórico, acaso fosse comprovada a prática de violência sexual contra a garota e que a sua genitora sabia (dolo direto) ou devia e tinha plenas condições de saber (dolo eventual) o que acontecia, mas, ainda assim, preferiu se omitir, seria possível que respondesse na Justiça pela própria prática da violência sexual.
A segunda ordem de responsabilização se dá por meio dos crimes omissivos próprios, nos quais a própria lei descreve no tipo penal objetivo uma conduta de omissão. No contexto da violência negligencial, destacam-se:
- Abandono de incapaz (art. 133, CP): Consiste em abandonar, desamparar fisicamente, pessoa que está sob seu cuidado, guarda ou vigilância, expondo-a a perigo concreto;
- Abandono material (art. 244, CP): Ocorre quando se deixa, sem justa causa, de prover a subsistência do filho menor, seja com os recursos necessários ou com o pagamento de pensão alimentícia judicialmente fixada;
- Descumprimento de deveres do poder familiar (art. 249, ECA): Embora seja uma infração administrativa, e não um crime, também reflete a negligência. O ECA autoriza a aplicação de multa ao adulto responsável que "Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar".
Essas figuras legais representam a concretização da responsabilidade pela omissão. Elas demonstram que a negligência, em suas formas mais graves e objetivas - o abandono físico, a ausência de sustento e a falha geral no dever de cuidado - deixa de ser um conceito abstrato para se tornar uma conduta objetivamente punível, reafirmando o dever indeclinável do adulto garantidor de proteger ativamente a criança e o adolescente.
4. A lei 15.163/25 e o que mais pode - e deve - vir por aí...
Começando a se atentar para essa grave realidade, o legislador promoveu uma importante e necessária alteração com a edição da lei 15.163, de 3/7/25. A nova lei aumentou significativamente as penas para os crimes de abandono de incapaz e de maus-tratos, outrora meras infrações de menor potencial ofensivo, demonstrando uma resposta do Estado ao anseio social por uma punição mais severa a essas condutas. A pena base para o abandono de incapaz, que era de detenção, passou a ser de reclusão de 2 a 5 anos. Nas formas qualificadas, se o abandono resulta em lesão corporal grave, a pena é de 3 a 7 anos, e se resulta em morte, de 8 a 14 anos de reclusão.
Trata-se de um avanço inegável na repressão penal. No entanto, a importante denúncia de Felca demonstra que o Direito precisa evoluir para abarcar as novas configurações da negligência parental na era digital. A legislação atual, pensada para um mundo analógico, mostra-se insuficiente para lidar com o "abandono digital". É imperativo que o debate provocado no Congresso Nacional resulte em ações concretas, que podem incluir a responsabilização civil e administrativa das plataformas digitais (as "big techs") pela disseminação de conteúdo prejudicial e pela falha em criar ambientes seguros para menores de idade. É preciso exigir das grandes empresas que implementem mecanismos eficientes para verificação etária e para a célere remoção de conteúdo ilícito (como fotos de nudez e pornográficas). Além disso, precisamos discutir a tipificação de condutas específicas, como a exploração da imagem infantil para fins comerciais pelos próprios pais (o "sharenting" predatório) quando esta gerar situação de risco comprovado. O vídeo de Felca evidencia que a violência sofrida por crianças e adolescentes na internet deriva de uma conjunção de fatores: a ação doentia e perniciosa de pedófilos, o desinteresse das "big techs" e, também, a negligência dos pais. A legislação brasileira precisa evoluir e igualmente atacar esses três fatores. É preciso pensar e implementar mecanismos legais que exijam dos pais e adultos responsáveis uma atuação proativa e vigilante dos filhos crianças e adolescentes em suas interações no meio virtual.
Considerações finais
O vídeo do youtuber Felca funcionou como um potente farol, jogando luz sobre uma forma de violência que, embora cotidiana e estatisticamente relevante, permanecia nas sombras do debate público e jurídico: a negligência. Ele nos forçou a encarar a verdade incômoda de que a omissão parental, especialmente no ambiente digital, não é um descuido menor, mas uma grave violação de direitos que serve como porta de entrada para violências ainda mais atrozes.
Os casos de Hytalo Santos e Kamylinha, assim como as lições da série "Adolescência", ilustram as consequências devastadoras do abandono digital. A responsabilização criminal dos influenciadores que exploram menores de idade é fundamental, mas a reflexão deve ir além, alcançando a inércia, conivência ou até mesmo a participação ativa dos pais nesse ciclo de exploração.
O endurecimento das penas promovido pela lei 15.163/25 é um passo na direção certa, mas reativo. A proteção de crianças e adolescentes exige uma postura proativa e sistêmica, que envolva o endurecimento da lei, mas também a educação digital para pais e filhos, a responsabilização efetiva das plataformas de tecnologia e uma mudança cultural na forma como percebemos a infância e a privacidade.
A proteção integral, princípio basilar do art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, exige uma postura ativa e vigilante de todos - família, sociedade e Estado -, seja na rua, seja na rede. Negligenciar esse dever é falhar com o nosso futuro.