A aventura marítima e seus riscos: Seguros marítimos em foco
quinta-feira, 13 de março de 2025
Atualizado às 07:58
É inegável e bastante conhecida a relevância do seguro marítimo para as atividades realizadas no setor da navegação. Desde seu início, o ato de embarcar e se lançar ao mar foi chamado de "aventura marítima", sendo o uso do termo mais do que adequado, considerando os altos riscos envolvidos nessa atividade, não obstante os avanços tecnológicos e de segurança das embarcações. Em Londres, no século XVII, na Tower Street, os comerciantes e armadores se reuniam na histórica Lloyd's Coffee House para obter seguros marítimos e apostar sobre quais navios retornariam ou não ao porto de partida.
Os prejuízos que podem decorrer dessas atividades, de fato, não podem ser tolerados ou suportados pela grande maioria dos players do mercado. Com isso, assim como em outros setores, o instituto do seguro se torna essencial para a própria continuidade da atividade. A partir de contratos de seguro e resseguro, a transferência do risco a terceiro revela-se verdadeiro viabilizador das atividades marítimas. Em uma linha, o seguro marítimo configurou-se como uma necessidade de todos.
No campo jurídico, um dos aspectos mais relevantes e que dá ensejo a inúmeras controvérsias é a possibilidade de a seguradora indenizar o seu cliente e se sub-rogar no lugar deste para promover a chamada ação de ressarcimento ou, como usualmente colocado, o direito de regresso contra o causador do dano.
Seria impossível discorrer sobre todos os tópicos envolvidos na questão da sub-rogação das seguradoras, logo, vale tecer comentários sobre duas decisões recentes do TJ/RJ que ilustram controvérsias essenciais e relevantes sobre esse tema.
A primeira delas trata da relevante questão do prazo prescricional para a seguradora promover ação regressiva pelo dano causado ao segurado, em face do transportador marítimo. Já a segunda aborda a legitimidade passiva do agente marítimo em processo de ação regressiva em face de seu cliente/agenciado (no caso, transportador marítimo estrangeiro), ponto que está envolto em controvérsias, existindo posicionamentos jurisprudenciais divergentes sobre o tema.
Confira-se, abaixo, o primeiro julgado, de fevereiro do ano corrente, no qual se discutiu a questão da prescrição da ação regressiva proposta pela seguradora:
APELAÇÃO CÍVIL. AÇÃO DE RESSARCIMENTO. CONTRATO DE SEGURO. REGRESSO EM FACE DA CAUSADORA DO DANO. CARGA AVARIADA. TRANSPORTE MARÍTIMO. ALEGA A AUTORA QUE DURANTE O TRAJETO ENTRE O PORTO DE RECIFE E O PORTO DE MACEIÓ, HOUVE A AVARIA DE 150,780 TONELADAS DE CLORETO DE POTÁSSIO E CONSTATADA A AUSÊNCIA DE 4,091 TONELADAS DAS 2.000,000 EMBARCADAS EM DESFAVOR DO SEGURADO, RAZÃO PELA QUAL FOI ACIONADO O SEGURO EM RAZÃO DO SINISTRO, OCORRENDO O PAGAMENTO DO VALOR TOTAL DE USD 28.491,54, QUE CONVERTIDOS EM REAIS ("BRL") PELA COTAÇÃO DO BANCO CENTRAL, NA DATA DO PAGAMENTO, CORRESPONDEM AO MONTANTE DE R$ 115.641,46. DECRETADA A REVELIA DA PARTE RÉ. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO EM RAZÃO DA PRESCRIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO PARA PROPOSITURA DE AÇÃO PELO SEGURADOR PARA REQUERER DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO O RESSARCIMENTO POR DANOS CAUSADOS À CARGA, NOS TERMOS DA SÚMULA 151/STF E DO ART. 8º, CAPUT, DO DECRETO-LEI 116/67, TENDO COMO TERMO INICIAL A DATA DO PAGAMENTO INTEGRAL DA INDENIZAÇÃO AO SEGURADO. PRECEDENTES DO STJ E DO TJ/RJ. RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE PESSOAS JURÍDICAS QUE EXERCEM ATIVIDADE EMPRESARIAL E VISAM LUCRO, INEXISTINDO VULNERABILIDADE DE QUALQUER DELAS. INAPLICABILIDADE DO CDC. AJUIZAMENTO DE NOTIFICAÇÃO JUDICIAL. CAUSA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO. CONTAGEM DO NOVO PRAZO A PARTIR DA DATA DA INTIMAÇÃO. NOS TERMOS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 202 DO CÓDIGO CIVIL, EM SE TRATANDO DE INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO CAUSADA POR ATO ÚNICO (HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS II, III, IV, V E VI), A RECONTAGEM DO PRAZO INICIA NO DIA SEGUINTE AO DA INTIMAÇÃO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL. A NOTIFICAÇÃO DO DEMANDADO OCORREU APENAS EM 2/9/20, QUANDO JÁ TRANSCORRIDO O PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO, CONTADO DA DATA DO PAGAMENTO OCORRIDO EM 24/9/18, TENDO A SENTENÇA CORRETAMENTE RECONHECIDO A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DEDUZIDA PELO AUTOR, ORA APELANTE. SENTENÇA DE EXTINÇÃO QUE SE MANTÉM. PEQUENO REPARO APENAS PARA AFASTAR A CONDENAÇÃO DO AUTOR AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS, TENDO EM VISTA QUE A PARTE RÉ, REVEL, NÃO CONSTITUIU PATRONO NOS AUTOS. DADO PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO. (0196107-77.2021.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). VALÉRIA DACHEUX NASCIMENTO - Julgamento: 5/2/25 - SEXTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO)
Como se observa, a discussão sobre a prescrição para ajuizamento da ação pela seguradora consistiu no cerne da controvérsia, mas há dois aspectos desse julgado que merecem atenção mais detida do leitor dessa coluna. Em primeiro lugar, o julgador afasta a aplicação do CDC, que estabeleceria o prazo prescricional de cinco anos - por não haver a configuração de vulnerabilidade por nenhuma das partes envolvidas - e, em seguida, define que o decreto-lei 116/67, art. 8°, caput é aplicável ao caso - por ser o instrumento que rege as operações de transporte de carga "por via d'água nos portos brasileiros" - e "a todos os entes envolvidos na relação de transporte marítimo", incluindo as seguradoras. Assim, de acordo com a súmula 151 do STF1, a partir do pagamento integral do prêmio, o segurador sub-roga-se no lugar do segurado e, contra ele, passa a correr o prazo de um ano para ajuizamento da ação regressiva.
Resumidamente, o que o julgado acima revela é a importância de se atentar ao prazo prescricional de um ano para exercício do direito de regresso pela seguradora contra o causador do dano, o que, a depender das circunstâncias do caso concreto, pode ser um prazo relativamente exíguo para o exercício dessa pretensão.
A seguir, eis o segundo acórdão, que trata de questão mais polêmica, qual seja a existência ou não de legitimidade passiva do agente marítimo para responder perante a seguradora em ação regressiva contra o transportador causador do dano:
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL. PERDA DA CARGA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.ALEGAÇÕES DA RÉ APELANTE DE NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO E DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. (...) 2.
Nulidade da sentença que se rechaça. 3. REsp 404.745/SP, relator ministro Jorge Scartezzini, Quarta turma, julgado em 4/11/04, DJ de 6/12/04: O agente marítimo, na condição de mandatário e único representante legal no Brasil de transportadora estrangeira, assume, juntamente com esta, a obrigação de transportar a mercadoria, devendo ambos responder pelo cumprimento do contrato do transporte internacional celebrado. Com efeito, tendo o agente o direito de receber todas as quantias devidas ao armador do navio, além do dever de liquidar e de se responsabilizar por todos os encargos referentes ao navio ou à carga, quando não exista ninguém no porto mais credenciado, é justo manter-se na qualidade de representante do transportador estrangeiro face às ações havidas por avaria ou outras consequências, pelas quais pode ser citado em juízo como mandatário. Legitimidade passiva ad causam reconhecida. 4. Legitimidade passiva da ré ora apelante que se reconhece. O agente marítimo procurador que age como mandatário responsabiliza-se por todos os encargos referentes ao navio ou à carga e é representante do transportador estrangeiro nas ações havidas por extravio, avarias ou outras consequências advindas do transporte da carga. 5. Precedentes desta Corte. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (0053637-96.2016.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). FERNANDO CERQUEIRA CHAGAS - Julgamento: 5/12/24 - VIGESIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 11ª CÂMARA CÍVEL)
No caso supracitado, a apelante alega que não teria legitimidade para figurar no polo passivo da relação jurídica processual, porque não teria relação com a carga e apenas teria atuado como "mera mandatária de serviços de agenciamento marítimo da transportadora". Todavia, o Tribunal entendeu que o agente marítimo efetivamente age em nome do mandante e é responsável pelos "encargos referentes ao navio ou à carga", efetivamente o representando, nesse sentido, em ações por extravio, avarias ou demais incidentes possíveis no transporte de cargas - inclusive, na hipótese de regresso movida pela seguradora. Com isso em mente, o Tribunal manteve a decisão apelada e citou outras decisões no sentido de responsabilizar o agente marítimo mandatário juntamente do seu mandante, no caso, o transportador, frente à seguradora.
Neste ponto, vale ressaltar que o tema está envolto em controvérsias. Conforme publicado previamente nesta coluna Migalhas Marítimas (Navegando por mares Jurisprudenciais: (Parte V) - Agente Marítimo - Inexistência de solidariedade com o armador/transportador), mostra-se ainda em discussão e palco de frutíferos debates. Em síntese, há casos em que os Tribunais ora reconhecem a responsabilidade solidária entre agente marítimo e armador (como o supratranscrito), e que ora reconhecem a inexistência desse vínculo.
No artigo anteriormente citado, encontram-se julgados em sentido diametralmente oposto, ou seja, reconhecendo que o agente marítimo não detém legitimidade para figurar no polo passivo de ações regressivas, valendo conferir, por todos, o acórdão proferido pelo TJ/SP, na apelação 1025766-79.2015.8.26.0562, julgado em 27/11/17, citado no referido artigo.
Como se nota, as controvérsias nessa seara são tão latentes quanto os riscos existentes na aventura marítima. De todo modo, em conclusão, os seguros marítimos desempenham um papel fundamental na mitigação dos riscos inerentes ao transporte marítimo, garantindo maior previsibilidade e segurança às operações comerciais que envolvem bens de alto valor e extensas rotas de navegação. A análise das decisões judiciais destacadas evidencia a complexidade das questões envolvidas na recuperação de valores pelas seguradoras, sobretudo no que tange à prescrição para o ajuizamento da ação regressiva e à legitimidade passiva dos agentes marítimos.
A jurisprudência sobre esse tema segue em evolução, exigindo atenção dos operadores do Direito e dos envolvidos no setor para a melhor compreensão e aplicação das normas vigentes. A consolidação de entendimentos sobre essas questões é essencial para garantir maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações entre seguradoras, transportadores e demais players do mercado.
1 "Prescreve em um ano a ação do segurador subrogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio."