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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
O Comitê de Proteção do Meio Ambiente Marinho da Organização Marítima Internacional (IMO) aprovou, durante a sua 83ª sessão (MEPC 83), ocorrida entre 7 e 11 de abril de 2025, o texto preliminar do chamado IMO Net-Zero Framework (ou Marco de Emissões Líquidas Zero), que será incluído no Anexo VI da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL). O texto preliminar das emendas ao Anexo VI da MARPOL foi encaminhado para consideração dos Estados Membros e deverá ser formalmente adotado em uma sessão extraordinária do MEPC em outubro de 2025, entrando em vigor em 2027. O objetivo da nova regulamentação, que será aplicável a navios com 5 mil toneladas brutas (GT) ou mais, é reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) provenientes do transporte marítimo internacional o mais rápido possível, cumprindo as metas de redução já estabelecidas na Estratégia da IMO de 2023 para Redução de Emissões de GEE de Navios e promovendo efetivamente, assim, a transição energética do setor marítimo. Para tanto, os navios sujeitos a essa nova regulamentação deverão reduzir de forma anual e contínua a intensidade de GEE dos combustíveis utilizados, conforme as metas anuais de intensidade estabelecidas. Vale notar que não há qualquer imposição de tecnologia específica a ser utilizada pelas embarcações para fins de redução da intensidade de carbono. Tal liberdade tem como fim o incentivo à inovação tecnológica e a novos projetos de redução de emissão de GEE e de transição energética no setor. As novas regras preveem, ainda, (i) a precificação de emissões de GEE, impondo, àqueles que descumprirem as metas, a aquisição de unidades corretivas, a transferência de unidades excedentes de outras embarcações ou a utilização das acumuladas previamente para equilibrar as suas emissões; e, de outro lado, (ii) o recebimento de recompensas financeiras pela adoção de tecnologias, combustíveis e/ou fontes de energia com emissões zero ou quase zero de GEE. Para apoiar a implementação das medidas nele previstas, o Marco de Emissões Líquidas Zero também prevê a criação do Fundo IMO Net-Zero, que receberá e gerenciará as contribuições financeiras relacionadas à precificação de emissões de GEE, bem como distribuirá os recursos arrecadados para recompensar navios que utilizem tecnologias limpas, apoiar países em desenvolvimento na transição energética e financiar infraestrutura, capacitação, planos nacionais e mitigação de impactos negativos. A nosso ver, todavia, as obrigações trazidas pela MEPC 83 não serão facilmente concretizadas e cumpridas, especialmente se mantido o cenário atual. Há diversos desafios, tanto brasileiros quanto mundiais, para o atingimento das metas estabelecidas. Dentre os desafios, pode-se elencar: i. o convencimento dos operadores, que ainda se mostram resistentes às novas tecnologias, como as embarcações elétricas ou a hidrogênio; ii. o alto preço para construção e afretamento de embarcações sustentáveis (que comportam ao menos um tipo de tecnologia sustentável ou combustível alternativo); iii. o preço dos combustíveis alternativos, superior ao dos combustíveis tradicionais; iv. a falta de mercado consumidor diverso e amplo para incentivar a produção de combustíveis alternativos; v. o limite tecnológico, cuja superação é incerta; vi. a ausência de infraestrutura adequada nos portos e terminais portuários, dentre outros. No Brasil, em especial, para que o país se adeque às normas internacionais de descarbonização do setor marítimo, será necessária, antes de tudo, a realização de estudos para conhecer a sua realidade, a fim de possibilitar a implementação de políticas públicas eficazes e adequadas para o atingimento das metas estabelecidas pela IMO. Some-se a tudo isso, como mais um obstáculo ou desafio à aplicação da norma, a própria política internacional, que vive momento conturbado relativamente à temática ambiental. Recentemente, os Estados Unidos posicionaram-se contrariamente à MEPC 83, afirmando, inclusive, que atuariam em conjunto com outros países para que a norma não fosse adotada. Diante desse cenário, é evidente que a efetiva descarbonização do setor marítimo exigirá não apenas avanços tecnológicos e investimentos robustos, mas também um esforço coordenado entre os Estados Membros da IMO, operadores privados e organismos multilaterais. A construção de consensos diplomáticos será essencial para garantir a adoção e a implementação eficaz do IMO Net-Zero Framework, respeitando as diferentes realidades econômicas e estruturais dos países envolvidos. Somente por meio de diálogo construtivo, políticas públicas bem fundamentadas e incentivos à inovação será possível transformar os desafios atuais em oportunidades concretas para uma transição energética justa e sustentável no transporte marítimo internacional.
Introdução A intensificação das políticas internacionais de mitigação das mudanças climáticas vem transformando o setor de transporte marítimo em uma arena estratégica de regulação ambiental e econômica. Nesse contexto, a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (MARPOL), por meio do seu Anexo VI, consolidou-se como o principal instrumento jurídico multilateral para o controle das emissões atmosféricas da navegação, fixando limites progressivos de enxofre nos combustíveis e metas de eficiência energética das embarcações. No caso brasileiro, o Anexo VI foi ratificado em 2010 e passou a ser aplicado internamente a partir de janeiro de 2020, com a adoção do limite de 0,50% de teor de enxofre nos combustíveis marítimos. Todavia, a despeito da vigência normativa, ainda não há taxação ambiental específica sobre emissões de navios em águas jurisdicionais nacionais, restringindo-se a atuação da Marinha e da ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis à fiscalização de conformidade. Esse cenário contrasta com a realidade internacional, marcada pela consolidação de mecanismos de precificação de carbono, como o EU ETS - European Union Emissions Trading System, que já impõe custos significativos às operações marítimas em águas europeias, e pelo CBAM - Carbon Border Adjustment Mechanism, que afetará diretamente exportações brasileiras de produtos intensivos em carbono. A problematização que emerge é clara: quando e de que forma os navios que operam em águas brasileiras estarão sujeitos à taxação ou à obrigatoriedade de créditos de carbono? A resposta envolve não apenas a leitura do regime internacional da IMO, mas também a análise da recém-instituída legislação nacional que criou o SBCE - Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões, cuja regulamentação em fases poderá incluir o transporte marítimo até 2030. A relevância jurídica e econômica do tema justifica-se pelo impacto direto sobre armadores, afretadores, operadores portuários e empresas de apoio offshore, que precisarão lidar com custos adicionais, cláusulas contratuais inovadoras (ETS, CII, FuelEU) e potenciais litígios decorrentes da alocação de responsabilidades. Para a advocacia marítima, a questão não é apenas de conformidade normativa, mas também de estratégia preventiva, exigindo revisão contratual, simulação de custos (MRV) e governança de dados. Diante disso, o objetivo do presente artigo é examinar a implementação da MARPOL Anexo VI no Brasil, discutir se e quando poderá ocorrer a taxação ambiental de navios, avaliar os cenários de custos no comércio internacional e identificar os reflexos contratuais já incorporados pelo mercado offshore. Como contribuição prática, o estudo apresenta ainda um checklist de auditoria contratual voltado a advogados do setor, integrando transporte internacional e apoio marítimo. A estrutura do artigo organiza-se da seguinte forma: inicialmente, descreve-se o marco normativo brasileiro e a comparação com a realidade internacional; em seguida, introduz-se o CBAM como segunda camada de custos para exportações; depois, analisam-se as perspectivas do SBCE e os cenários de preço-sombra; posteriormente, apresentam-se as cláusulas BIMCO mais relevantes e o checklist de auditoria contratual; por fim, discutem-se os cálculos práticos de custo e as conclusões estratégicas para a advocacia marítima e offshore no Brasil. Leia a coluna na íntegra.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema da sobre-estadia de contêineres, também conhecido como "demurrage" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente o conceito e a base legal para a cobrança. Para melhor compreensão do tema, serão apresentados dois casos práticos, proporcionando uma análise mais concreta e minuciosa. A sobre-estadia de contêiner (demurrage) vem a ser a expressão consagrada no ramo de comércio internacional para designar a remuneração devida ao transportador marítimo pela não devolução do seu equipamento no prazo de utilização contratualmente estipulado, até porque, como já visto em artigo anteriormente publicado nesta coluna2, "o contêiner não deve ser confundido como embalagem da mercadoria. Ele é, na verdade, um equipamento próprio, acessório do navio, utilizado para a unitização de cargas" e, assim, deve ser devolvido ao transportador no prazo ajustado, para que retorne à logística do transporte. Demurrage é uma palavra oriunda do francês que significa estadia. O conceito de demurrage de contêineres surgiu da própria ideia de demurrage de navios, sendo que ambos, embora distintos, utilizam a mesma terminologia, tendo em comum entre si a extrapolação do prazo. A sobre-estadia de contêineres sempre irá envolver e derivar de um contrato de transporte marítimo (Bill of Lading), o qual engloba o embarcador, o transportador marítimo e o consignatário. Após o término do transporte marítimo, o consignatário da mercadoria possui um período de tempo, denominado 'free-time', para desunitizar o contêiner e devolvê-lo à transportadora marítima. Excedido o prazo sem que o contêiner tenha sido devolvido ao transportador, este terá direito à cobrança de uma taxa diária de sobre-estadia ou demurrage em face do consignatário, cobrança esta que possui lastro contratual e natureza de indenização prefixada em razão de indevida retenção do contêiner por prazo excedente ao lapso do 'free time'. Logo, é o Conhecimento de Embarque o fundamento jurídico da cobrança da demurrage, valor devido pelo destinatário, embarcador ou consignatário do contêiner - solidariamente - por dia de retenção do contêiner além do prazo contratado entre as partes. Por consectário lógico, o Conhecimento de Transporte, como contrato, é lei entre as partes, obrigando-as ao cumprimento de suas obrigações. Muito embora tenha origem em um contrato de transporte, a jurisprudência pátria vem mitigando o caráter originariamente contratual, vez que tal cobrança está incorporada aos usos e costumes do transporte marítimo, sendo defeso aos usuários alegarem desconhecimento acerca da cobrança, em caso de atraso na devolução dos equipamentos que lhe foram confiados para transporte de suas cargas, até porque não seria crível admitir a sua utilização por prazo indeterminado sem qualquer ônus. Importante destacar que a responsabilidade pela devolução do contêiner não se afasta mesmo diante de situações como greve/paralisações da Receita Federal ou entraves alfandegários. A jurisprudência tem reiterado que tais eventos são previsíveis e inerentes à atividade empresarial dos importadores, não caracterizando caso fortuito ou força maior. Nos termos do art. 393 do CC, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. No entanto, a doutrina majoritária e a jurisprudência têm destacado que, para a configuração do caso fortuito ou força maior, exige-se imprevisibilidade e inevitabilidade do evento. Além disso, é fundamental distinguir o evento externo do risco próprio da atividade desempenhada. Portanto, eventual paralisação ou entraves aduaneiros, embora possam impactar os fluxos logísticos, são considerados eventos previsíveis e cíclicos, especialmente no setor de comércio exterior. Sendo assim, a sua ocorrência não exime a obrigação de devolver o contêiner no prazo pactuado, tampouco afasta a incidência da demurrage. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais tratam sobre a legalidade da cobrança de sobre-estadia por parte do Transportador Marítimo. Primeiro Julgado: Cobrança - Transporte - Demurrage - Sobreestadia de contêiner - Inaplicabilidade do CDC - Inexistência de relação de consumo, mas contrato de transporte celebrado com a transportadora com o nítido escopo de incrementar a atividade comercial da requerida, afastando a incidência da lei 8.078/1990 - Ré revel - Utilização de contêiner por prazo superior ao período livre avençado - Valor devido em razão de sobreestadia, por constar expressamente do termo de responsabilidade de devolução de conteiner - Natureza jurídica da sobreestadia que não é de cláusula penal, mas de indenização fixada em razão de indevida retenção do contêiner, por prazo excedente ao lapso do tempo livre ou free time - Inexistência de abusividade das taxas de sobreestadia - Burocracia alfandegária não caracteriza hipótese de caso fortuito ou força maior - Sentença reformada - Recurso provido. (TJ/SP, Apelação 0021433-43.2011.8.26.0562, des. Relator Francisco Giaquinto, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 7/11/2017) Segundo Julgado: AÇÃO DE COBRANÇA- SOBREESTADIAS CONTAINER- CONTRATO TRANSPORTE MARÍTIMO - "Demurrage" - Taxa de sobreestadia, em razão de atraso na devolução de "container" - Despesa que deve ser suportada pela apelante - Pessoa que consta como CONSIGNATÁRIA no Conhecimento de embarque (B/L) - Cobrança que tem início desde o primeiro dia após transcorrido o período de "free time" - Assinatura do termo de responsabilidade em data posterior a devolução dos contêineres - Irrelevância - Tendo aderido e aceito o contrato de transporte, quando recebeu as mercadorias, a apelante sujeitou-se aos direitos e obrigações nele inseridos - Cobrança procedente - Conversão da moeda estrangeira deve ser realizada na data do pagamento (STJ) - Recurso não provido. (TJ/SP; Apelação 1002968-79.2020.8.26.0100, des. Ana De Lourdes Coutinho Silva Da Fonseca, 13ª Câmara de Direito Privado; j.12/5/2021) Pode-se observar que, no primeiro julgado, proferido pelo TJ/SP, restou fundamentado que a burocracia para o desembaraço aduaneiro é situação absolutamente previsível e própria da atividade empresarial desenvolvida pela ré, não podendo ser considerada caso fortuito ou força maior. O acórdão destaca ainda que a alegação de problemas portuários e burocracia alfandegária não tem o condão de afastar a cobrança da taxa de sobre-estadia e que, não ocorrendo a restituição do contêiner no prazo livre, incidirá a remuneração pelas sobre-estadias, até a data da efetiva devolução do cofre de carga. Dessa forma, o entendimento firmado é no sentido de que a sobre-estadia de contêineres é devida pela privação do uso do equipamento, indenizando a proprietária por ter sido privada de utilizar seu contêiner em operações logísticas a terceiros, incorrendo em custos logísticos que envolvem toda a programação de disponibilidade de contêiners, frotas de navios e cargas em determinado porto. Afinal, dentro das operações logísticas de um transportador, se 100 contêiners chegam a determinado porto de destino, a transportadora conta com os mesmos 100 contêineres estando disponíveis, depois do prazo contratualmente avençado, para operação de outras cargas que serão embarcadas naquele porto. Se faltam contêineres, a logística passa a onerar o transportador e causar outros prejuízos, razão pela qual os valores diários em caso de sobre-estadia do contêiner com o proprietário da carga são previamente ajustados dentro da relação contratual e usualmente empregados nas práticas de mercado. O segundo julgado, por sua vez, também oriundo do TJ/SP, afirma a responsabilidade da parte que figura como consignatária no Conhecimento de Transporte Marítimo quanto às verbas de sobre-estadia de contêiner geradas em razão da devolução extemporânea da unidade. Isto porque, de acordo com a praxe marítima, a emissão do Conhecimento de Transporte Marítimo (Bill of Lading), contendo as cláusulas que regerão o transporte contratado, ocorre por ocasião do embarque das mercadorias, no porto de origem. Este contrato é, então, emitido em no mínimo 3 (três) vias, uma das quais é entregue ao embarcador, a segunda ao transportador marítimo, e a terceira via é remetida ao consignatário, para que este possa, mediante a apresentação de sua via original, receber a carga no porto de destino e instruir a respectiva Declaração de Importação. Assim, mediante a apresentação do Conhecimento de Embarque no porto de destino, a consignatária das mercadorias comprova sua titularidade sobre a carga e adere ao contrato, anuindo quanto aos termos e condições do contrato de transporte, resultando na sua manifesta condição de parte legítima para responder pelas obrigações derivadas da não devolução do contêiner no prazo convencionado com o transportador marítimo. Desta forma, é possível observar que os julgados apresentados acima ilustram o posicionamento firme, não apenas do TJ/SP, mas das Cortes pátrias como um todo, quanto à responsabilidade contratual da consignatária das mercadorias pela devolução tempestiva dos contêineres ao transportador marítimo e, inobservado este prazo, pelo pagamento das sobre-estadias de contêineres (demurrage) calculadas a cada dia de retenção dos cofres de carga. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Começo este texto me mantendo fiel ao propósito da coluna Migalhas Marítimas, de propagar o conhecimento do Direito Marítimo de modo simples, explicando inicialmente o conceito de demurrage e sua contextualização, antes de abordar propriamente a recente decisão da ANTAQ e sua influência sobre a resolução de disputas nesse tema. A demurrage ou sobrestadia designa um valor cobrado quando o navio ou o contêiner permanece em local de carga ou descarga além do tempo previamente acordado entre as partes. Trata-se, portanto, de uma indenização devida ao armador (ou operador de contêiner) pelo tempo excedente além do período livre, chamado de "free time", que seria suficiente para o embarque ou desembarque das mercadorias. A natureza jurídica da demurrage é objeto de grande debate no Direito Marítimo, havendo entendimentos de que seria cláusula penal, ou indenização pré-fixada. Nesta mesma Coluna, em 15/7/211, Marcelo Sammarco e Fernanda Azevedo publicaram texto que bem esclarece estas duas visões, e ao qual remeto o leitor interessado. Para os objetivos do presente artigo, basta ter em vista que esse pagamento tem como objetivo compensar o proprietário do navio ou do equipamento pela imobilização além do esperado, evitando perdas financeiras causadas por atrasos que comprometem a logística e o planejamento operacional. Além disso, a demurrage exerceria função pedagógica, incentivando o cumprimento dos prazos estabelecidos e a eficiência nas operações portuárias. Aqui, trato apenas da demurrage de contêiner, que é de ocorrência muito mais frequente que a de navio, e que gera grande número de litígios. Neste contexto a sobrestadia se refere ao período em que o contêiner permanece sob responsabilidade do importador/exportador, além do tempo livre estipulado pelo transportador. Após o término do prazo acordado, inicia-se a cobrança diária de demurrage até que o contêiner seja embarcado ou devolvido. A legislação brasileira não trata da demurrage. Nenhuma surpresa quanto a isso, uma vez que o Direito Marítimo se baseia fortemente na liberdade contratual e nos costumes, sendo bastante limitada a interferência estatal em seus institutos. A compreensão da sua natureza jurídica, portanto, impactará a interpretação das disposições da legislação civil e comercial sobre obrigações e contratos, na solução dos litígios decorrentes da demurrage. A conclusão do parágrafo anterior, porém deve ser ponderada com o fato de que, no Brasil, a ANTAQ tem resoluções que tratam de forma mais detalhada da demurrage, inclusive sobre obrigações das partes, o que, à primeira vista, contrariaria a liberdade contratual mencionada acima e que perpassa toda a compreensão do Direito Marítimo. Há quem veja na lei 10.233/01, que define as competências da ANTAQ no seu art. 272, uma espécie de "delegação" para que a Agência edite tais normas que, de algum modo, interferem em relações contratuais privadas. Penso, porém, que a legitimidade da ANTAQ tem outro fundamento. Como lhe compete definir normas para o uso da infraestrutura portuária, e este é exatamente o espaço em que se desenrolam, quase sempre, as causas e consequências da demurrage, com impactos sobre a operação portuária como um todo, a Agência não apenas pode, como deve definir alguns parâmetros mínimos para tal cobrança. Além disso, seu papel de órgão regulador do transporte aquaviário, como um todo, legitima tais disposições, desde que observada alguma autocontenção na regulação das relações privadas. Assim, é certo que deve ser buscado o devido equilíbrio entre a atuação regulatória, que visa promover um bom ambiente de negócios em determinado setor econômico (no caso, o transporte aquaviário) e a preservação da autonomia das partes na estipulação contratual das condições e valores da demurrage.  A resolução 2.389/12, dispõe sobre a fiscalização das instalações portuárias e dos agentes marítimos, conferindo à ANTAQ o poder de averiguar eventuais irregularidades nas cobranças, incluindo demurrage, e penalizar empresas que desrespeitem as normas. A resolução 18/17 promoveu ampla regulamentação do transporte aquaviário, tratando de "direitos e deveres dos usuários, dos agentes intermediários e das empresas que operam nas navegações de apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso", além de definir infrações administrativas, nos termos do seu art. 1º. Seu art. 2º traz ainda as definições de free time e demurrage3, e disposições específicas sobre esses institutos, em seus arts. 19 a 214. Foi revogada pela resolução 62/21, que tratou dos mesmos temas e, no que concerne à demurrage, atualizou as definições em seu art. 2º5. Seus arts. 19 a 21, por outro lado, mantiveram as disposições da resolução anterior. A resolução de disputas relativas a demurrage de contêineres representa, há muito, um desafio na prática do Direito Marítimo no Brasil. A multiplicidade de agentes públicos e privados que participam das operações portuárias e o conhecido "gargalo logístico" de quase todos os portos brasileiros fazem com que os prazos de estadia frequentemente sejam ultrapassados. São frequentes as reclamações de embarcadores quanto a valores abusivos cobrados por armadores ou operadores portuários. Muitas vezes, os valores acabam sendo pagos, apenas para não agravar ainda mais a situação, pois a instauração do litígio levaria a uma retenção por tempo ainda maior das mercadorias. Além disso, as divergências sobre demurrage, entre as mesmas partes, costumam ser pulverizadas em vários embarques, em diferentes BL's 6. Assim, embora o valor total seja relevante, a discussão em cada cobrança costuma ter valores não tão significativos (considerada, obviamente, a ordem de grandeza dos valores no transporte marítimo), tornando inviável para a parte, especialmente o embarcador, arcar com os custos do litígio. Observado esse contexto, nenhum dos métodos de resolução de disputas, atualmente disponível, parece trazer o meio ideal, ou ao menos razoável, para solução dessas controvérsias. A arbitragem apresenta a vantagem do conhecimento específico dos árbitros, quando realizada por árbitros especializados em Direito Marítimo e em câmaras de igual especialização.  No entanto, mesmo a arbitragem expedita - justificável em grande parte dos casos de demurrage, em razão do valor envolvido - pode não ocorrer na rapidez demandada pela dinâmica do transporte marítimo, nem apresentar custos acessíveis, em comparação com o valor do litígio. A judicialização do litígio tampouco tem se mostrado eficiente na resolução da questão. Salvo alguns poucos exemplos de iniciativas como o Núcleo de Direito Marítimo da Justiça Estadual de São Paulo, os juízes de cidades portuárias nem sempre têm especialização na matéria. Além disso, o tempo para que se obtenha uma decisão, os custos do litígio e os riscos dos ônus da sucumbência acabam desestimulando a judicialização.    Neste contexto, a ANTAQ acaba se apresentando como via alternativa de possível solução para esses litígios. Não se trata, até o momento, de uma competência definida expressamente.  Na verdade, esse papel acabou sendo exercido pela Agência em processos de denúncia, em que se pedia a punição a armadores ou operadores que faziam cobranças consideradas abusivas. Consolidou-se também a possibilidade de medidas cautelares administrativas no âmbito desses processos. Trata-se, portanto, em grande medida, de uma construção prática, decorrente da grande demanda de composição desses litígios concernentes à demurrage. Nesse contexto, no acórdão 521/25, publicado em 6/8/25, a ANTAQ aprovou "entendimentos regulatórios, com base em intepretação lógica e sistemática da Resolução ANTAQ nº 62/2021". Em nove proposições objetivas, a Agência deu sua interpretação qualificada a várias questões relativas ao modo de contagem do prazo, hipóteses excludentes, transparência e responsabilidade pelo pagamento da demurrage. No que interessa ao tema deste artigo, o item 5.4 do acórdão assim estabeleceu: "determinar à SFC que, seguindo as diretrizes estabelecidas na presente deliberação, elabore o rito procedimental sumário para os casos que envolvam demandas afetas a cobranças de sobrestadias como forma de incentivar a composição de conflitos e sua célere resolução e já passe a adotar o novo rito em suas análises;". Dispôs ainda, no item 5.5, que "os pedidos de medidas cautelares sobre cobranças de sobrestadias atualmente em tramitação nesta Agência deverão ser submetidas ao rito sumário de composição antes de eventual deliberação do Colegiado; devendo suas relatorias serem consideradas preventas aos presentes autos;". Com essa decisão, a ANTAQ dá um primeiro e importante passo para maior institucionalização e regulamentação do seu próprio papel na resolução de disputas sobre demurrage entre agentes privados. Nesse sentido, trata-se de iniciativa muito bem-vinda e positiva, que poderá trazer maior segurança jurídica para as partes envolvidas no transporte marítimo. Não passou despercebido da Agência, ainda, o fato de que a regulamentação através de acórdão não é o meio ideal para tema tão relevante, que demanda maior formalidade, no mínimo através de uma resolução. Assim, o item 5.3 do mesmo acórdão decide "aprovar a proposta da SRG para antecipação do tema 2.6 "Sobre-estadia de contêiner - Resolução-ANTAQ nº 62/2021" da agenda regulatória para 2025 (Despacho SRG 2506632), recomendando que o texto traduza os entendimentos regulatórios aqui propostos, observando a ressalva feita no Voto AST-D1 2568113 em relação a não incidência de Análise de Impacto Regulatório (AIR)". Trata-se, de outro ponto bastante positivo da decisão, esperando o mercado, e também os operadores do Direito Marítimo, que essa nova regulamentação traga ainda mais segurança jurídica para o tema, o que há décadas vem sendo demandado pela comunidade marítima, ajudando a desatar um dos vários nós da logística no Brasil. __________________________ 1 Migalhas nº 5.144. Disponível aqui. 2 Art. 27. Cabe à ANTAQ, em sua esfera de atuação: II - promover estudos aplicados às definições de tarifas, preços e fretes, em confronto com os custos e os benefícios econômicos transferidos aos usuários pelos investimentos realizados; IV - elaborar e editar normas e regulamentos relativos à prestação de serviços de transporte e à exploração da infra-estrutura aquaviária e portuária, garantindo isonomia no seu acesso e uso, assegurando os direitos dos usuários e fomentando a competição entre os operadores; 3 Art. 2º Para os efeitos desta Norma são estabelecidas as seguintes definições: XIX - livre estadia do contêiner (free time): prazo acordado, livre de cobrança, para o uso do contêiner, conforme o contrato de transporte, conhecimento de carga ou BL, confirmação da reserva de praça (booking confirmation), ou qualquer outro meio disponibilizado pelo transportador marítimo; XX - sobre-estadia de contêiner: valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução; 4 Art. 19. As regras e os valores de sobre-estadia, bem como o número de dias de livre estadia do contêiner deverão ser disponibilizados até a confirmação da reserva de praça ao embarcador, ao consignatário, ao endossatário e ao portador do conhecimento de carga - BL. Art. 20. O prazo de livre estadia do contêiner será contado: I -  no embarque, a partir da data de retirada do(s) contêiner(es) vazio(s) pelo embarcador no local acordado; e II -  no desembarque do(s) contêiner(es) cheio(s), a partir do dia seguinte após a entrega da carga no local acordado. Art. 21. A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular. § 1º Caso o embarcador decida postergar o embarque do contêiner por qualquer motivo, ou dê causa ao postergamento, a contagem do prazo da sobre-estadia somente se encerrará no momento do efetivo embarque. § 2º A contagem do prazo de livre estadia do contêiner será suspensa em decorrência de: I -  fato imputável diretamente ao próprio transportador marítimo, ao proprietário do contêiner, ou ao depósito de contêineres (depot); ou II -  caso fortuito ou de força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente. § 3º A contagem da sobre-estadia que já tiver sido iniciada não se suspende na intercorrência de caso fortuito ou força maior. § 4º O transportador marítimo ou o proprietário do contêiner deverá manter disponível ao embarcador, ao consignatário, ao endossatário e ao portador do conhecimento de carga - BL, a partir do primeiro dia de contagem da sobre-estadia, enquanto esta durar, a identificação do contêiner e o valor diário de sobre-estadia a ser cobrado. 5 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições: XVI - livre estadia do contêiner (free time): prazo acordado, livre de cobrança, para o uso do contêiner, conforme o contrato de transporte, BL, confirmação da reserva de praça (booking confirmation), ou qualquer outro meio disponibilizado pelo transportador marítimo; XXII - sobre-estadia de contêiner: valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução; 6 O bill of lading (conhecimento de embarque) é o documento emitido pelo transportador, correspondendo a uma versão muito sintética do contrato de transporte.
No dia 10 de junho de 2025, a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários editou a nova RN 129/25, substituindo a então resolução 1/15 da Agência, a fim de adequar a norma sobre afretamento de embarcações às mudanças introduzidas pela lei 14.301/22, também chamada de "BR do Mar". A nova RN trouxe diversas inovações e alterações importantes para o setor de cabotagem, mas também para os demais modais de navegação, ou seja, apoio portuário, apoio marítimo e longo curso. Sob o aspecto formal, a nova norma apresenta uma estrutura mais detalhada, com capítulos, seções e artigos mais extensos, além de definições mais precisas e atualizadas, introduzindo conceitos e procedimentos de forma mais clara e sistematizada. De início, a RN 129/25 trouxe um esclarecimento na definição do que seria uma "embarcação brasileira" para fins da norma (art. 2º, XV). A partir de agora, a definição passa a se referir a todas as "embarcações de bandeira brasileira", no que se incluem não somente as inscritas no Registro de Propriedade Marítima, mas também as estrangeiras que, inscritas no Registro Especial Brasileiro sob contrato de afretamento a casco nu por Empresa Brasileira de Navegação, passem a arvorar bandeira brasileira com suspensão da sua bandeira de origem. Confira-se:   Redação RN 1/15   Redação RN 129/25   Art. 2º, XXII - embarcação de bandeira brasileira: a que tem o direito de arvorar bandeira brasileira, conforme a legislação em vigor.   Art. 2º, XV - embarcação de bandeira brasileira: a que tem o direito de arvorar bandeira brasileira, podendo ser embarcação de registro brasileiro, entendida como a inscrita no Registro de Propriedade Marítima, de propriedade de pessoa física residente e domiciliada no País ou de empresa brasileira, ou podendo ser embarcação estrangeira, inscrita no REB - Registro Especial Brasileiro sob contrato de afretamento a casco nu por EBN, condicionado à suspensão provisória de bandeira no país de origem. O ajuste redacional no art. 2º, XV, confere maior clareza sobre conceitos que, por vezes, geravam dúvidas em sua aplicação. A norma agora prevê que o conceito de embarcação de bandeira brasileira abrange (i) as embarcações propriamente brasileiras e (ii) as embarcações estrangeiras inscritas no REB, com suspensão da bandeira de origem. A alteração é salutar e oportuna para evitar dúvidas na aplicação dos conceitos. Ainda a título introdutório, a norma corrobora a prática de centralização dos procedimentos de afretamento no SAMA - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, o que representa um avanço significativo na modernização e desburocratização do setor de navegação brasileiro. Para o leitor da coluna menos familiarizado com o assunto, o SAMA funciona como uma plataforma única e informatizada para o gerenciamento de todas as etapas do afretamento, desde a solicitação inicial até o encerramento do contrato, eliminando a necessidade de múltiplos canais de comunicação e tornando o processo mais transparente para todas as partes envolvidas. A obrigatoriedade de acesso ao SAMA para verificação de consultas e andamento dos processos (resolução 129/25, art. 24) garante que todas as informações estejam centralizadas e disponíveis em um único ambiente digital, acessível de qualquer localidade, reduzindo deslocamentos, custos operacionais e a dependência de atendimento presencial. Adentrando nos pontos centrais da norma, o prazo de até 15 dias para registro do afretamento na ANTAQ foi mantido, mas a nova norma detalha as informações obrigatórias e amplia a exigência de envio de documentos por Reconhecimento Óptico de Caracteres ou OCR (art. 4º, §§ 5º e 6º e art. 16). A nova norma reforça também a obrigatoriedade do envio do contrato de afretamento em até 60 dias, com possibilidade de solicitação de tradução juramentada pela ANTAQ. Em relação às hipóteses de afretamento, o afretamento de embarcação de bandeira brasileira continua dispensado de autorização. Já em relação ao afretamento de embarcação estrangeira, a nova norma detalha e amplia as hipóteses em que o afretamento de embarcação estrangeira independe de autorização, especialmente para navegação de longo curso, apoio marítimo e cabotagem, e traz limites mais claros para tonelagem e prazos. Aqui, é necessário abrir um parêntese para mencionar as situações específicas previstas para a chamada Empresa Brasileira de Investimento na Navegação ou, simplesmente, Ebin. A Ebin é uma figura introduzida pela BR do Mar e agora prevista na resolução ANTAQ 129/25, sendo distinta da EBN - Empresa Brasileira de Navegação tradicional. Enquanto a EBN tem como objeto principal o transporte aquaviário de carga ou pessoas, a Ebin tem como finalidade o fretamento de embarcações para empresas brasileiras ou estrangeiras de navegação, atuando como investidora e intermediária no mercado de afretamento (art. 2º, XVIII e XIX). A principal diferença está no limite e na forma de utilização do direito de afretamento de embarcações estrangeiras. A Ebin pode afretar embarcação estrangeira por tempo, na proporção de até 200% (duzentos por cento) da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção em estaleiro brasileiro, durante o período de construção (art. 4º, § 12). Todavia, caso a Ebin não utilize esse direito, pode transferi-lo onerosamente para EBNs, criando um mercado secundário de direitos de tonelagem (art. 4º, § 13). Os direitos de tonelagem das embarcações fretadas por Ebin são transferidos para a EBN afretadora, permitindo que esta contabilize a tonelagem como própria para fins regulatórios (art. 4º, § 14). Em relação às EBNs tradicionais, o afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, nas navegações de apoio marítimo, cabotagem e longo curso, continua limitado ao dobro da tonelagem de porte bruto das embarcações de tipo semelhante encomendadas pela EBN a estaleiro brasileiro, durante o período máximo de 36 meses de construção (art. 4º, III). Dependendo do tipo de navegação, pode-se adicionar a esse limite metade da tonelagem de porte bruto das embarcações de registro brasileiro de sua propriedade ou da tonelagem de porte bruto das embarcações de tipo semelhante de sua propriedade. Entretanto, não há previsão para que a EBN tradicional transfira direitos de tonelagem para terceiros. Em resumo, ao contrário da Ebin, que atua como investidora e intermediária, podendo negociar direitos de afretamento, a EBN tradicional fica restrita ao uso próprio dos direitos de afretamento, sem possibilidade de negociação secundária. A resolução ANTAQ 129/25, ainda na esteira da BR do MAR, prevê uma flexibilização progressiva para o afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu, com suspensão de bandeira, na navegação de cabotagem. Essa flexibilização visa ampliar gradualmente o acesso das EBNs a embarcações estrangeiras, independentemente de contrato de construção vigente ou de propriedade de embarcação de registro brasileiro, conforme limites temporais estabelecidos na norma. Em apertada síntese, o art. 4º, inciso IV, da resolução estabelece que o afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira, na navegação de cabotagem, pode ser realizado independentemente de contrato de construção vigente ou de propriedade de embarcação de registro brasileiro, observando-se os limites quantitativos definidos no § 10 do mesmo art.. Esse parágrafo detalha os marcos temporais para a ampliação do número de embarcações estrangeiras que podem ser afretadas a casco nu na cabotagem. Importante destacar que a verificação da quantidade de embarcações afretadas considera o grupo econômico da empresa afretadora, conforme o conceito previsto no art. 5º-A da resolução ANTAQ 62/21 (art. 4º, § 11). Além disso, as embarcações afretadas sob essa flexibilização não podem ser utilizadas para comprovar existência ou disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira para fins de bloqueio em processos de circularização (art. 9º, § 7º). Em resumo, tal como previsto na BR do Mar, a nova norma estabelece uma abertura gradual para o afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu na cabotagem, com marcos temporais bem definidos: três embarcações a partir de janeiro de 2024, quatro a partir de janeiro de 2025 e liberdade total a partir de janeiro de 2026. Essa flexibilização representa uma mudança significativa no regime regulatório, promovendo maior competitividade e flexibilidade operacional para as EBNs no setor de cabotagem. A resolução 129/25 reforça, ainda, a responsabilização das EBNs e terceiros pelas informações prestadas e prevê sanções mais claras para o descumprimento dos procedimentos, incluindo a possibilidade de suspensão de acesso ao SAMA e multas (arts. 21, 22, 28). Por fim, embora essa alteração não estivesse prevista na BR do Mar, a nova Resolução acabou trazendo uma alteração relevante na definição do conceito de bloqueio parcial, conforme previsto ao art. 2º, inciso X. Neste caso, houve o acréscimo de uma hipótese para o exercício do bloqueio parcial, que, se antes era por tempo ou por tonelagem, também poderá ser agora por "parte da operação requerida". Confira-se:   Redação RN 1/15   Redação RN 129/25   Art. 2º, X - bloqueio parcial: quando o bloqueio se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações brasileiras para o bloqueio completo.   Art. 2º, X - bloqueio parcial: bloqueio que se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, parte da operação requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações de bandeira brasileira para o bloqueio completo. Nesse particular, a alteração na definição poderá representar grandes impactos à indústria de navegação, na medida em que amplia a margem para o exercício do referido bloqueio por embarcações brasileiras. A temática dos bloqueios, como já deve ter notado o leitor dessa coluna em publicações anteriores, é um tema bastante relevante para indústria de exploração de óleo e gás offshore que traz impactos operacionais e econômicos muito sensíveis. Como se sabe, os contratos firmados nesse setor são complexos e costumam exigir planejamento e previsibilidade quanto ao seu escopo. Há, assim, justificado receio de que o bloqueio parcial por parte da operação requerida acabe ocasionando insegurança jurídica e instabilidade nos projetos em curso e nos que ainda irão se iniciar. Nessa modalidade, a embarcação inicialmente empregada no contrato poderá ter que ser substituída no curso do contrato para realização de parte da operação por outra embarcação, ocasionando insegurança jurídica e operacional, com perda de tempo e recursos de todos os envolvidos. A introdução da nova hipótese também tem sido alvo de críticas no setor tendo em vista o trâmite processual que resultou na alteração. Em princípio, a agenda regulatória da própria ANTAQ previa que o assunto somente seria analisado na agenda de 2025-2028, e não na agenda anterior. Nesse contexto, a alteração para inclusão da possibilidade de bloqueio por parte da operação pode demandar uma maior participação dos agentes da indústria que serão por ela afetados. O debate efetivo sobre as consequências das alterações na norma nesse particular, envolvendo os entes regulados e ANTAQ, poderá contribuir para o aperfeiçoamento da resolução. Em conclusão, a nova RN 129/25 da ANTAQ trouxe diversas inovações e alterou de forma considerável a regulação impressa na ora revogada resolução 1 de 2015. Em diversos aspectos, como visto, a norma aprimora conceitos relevantes, reduz a burocracia e introduz abordagens mais modernas e flexíveis. Entretanto, algumas das alterações promovidas, em especial a permissão de bloqueios parciais por parte da operação, parecem demandar maior reflexão e diálogo com os agentes envolvidos, buscando um ponto de equilíbrio que promova um ambiente regulatório que seja, ao mesmo tempo, atrativo para as empresas nacionais e estrangeiras, eficiente e também seguro em todos os seus campos de aplicação.
A navegação de cabotagem é um pilar fundamental da logística nacional. Além de ser um modal eficiente e sustentável para o transporte de cargas ao longo da costa brasileira, ela funciona como um importante instrumento para integrar territórios e promover o desenvolvimento regional. Embora reconhecido seu papel geoeconômico, o setor enfrentou, por muito tempo, desafios como entraves regulatórios, concentração de mercado e a ausência de políticas públicas estruturadas que incentivassem seu crescimento de forma competitiva e sustentável. Nos últimos anos, a cabotagem ganhou destaque na agenda pública voltada para a modernização da matriz de transportes. Esse movimento culminou na promulgação da lei 14.301, de 7/1/22, que instituiu o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, conhecido como Programa BR do Mar. A legislação trouxe um conjunto de medidas para ampliar a oferta de serviços, estimular a concorrência e tornar o setor mais atrativo para investidores privados, especialmente ao flexibilizar as regras de afretamento de embarcações pelas EBNs - Empresas Brasileiras de Navegação. O principal objetivo do programa é simplificar os mecanismos de afretamento, permitindo que EBNs autorizadas possam usar embarcações estrangeiras. Essa medida representa uma mudança importante na política pública voltada à navegação costeira, pois reconhece o afretamento como um instrumento legítimo para ampliar a capacidade instalada, sem prejudicar os requisitos de nacionalidade necessários para a operação. Mais recentemente, o Programa BR do Mar foi regulamentado pelo decreto 1.255, de 2025, que atualizou os parâmetros para sua implementação, reafirmando o caráter facultativo da adesão e definindo os tipos de afretamento permitidos. Esse decreto reforça os pilares da política pública, que são a ampliação da frota mercante nacional e a desburocratização dos procedimentos para a operação de novas embarcações por EBNs habilitadas. O afretamento por tempo, modalidade central do programa, permite maior flexibilidade operacional às empresas brasileiras de navegação. Por meio dele, as EBNs podem contratar embarcações estrangeiras para operar na cabotagem. Contudo, o decreto é bastante claro quanto às condições para esse afretamento, buscando assegurar o cumprimento dos critérios de nacionalidade e controle econômico da frota, em conformidade com a legislação marítima. O Programa BR do Mar tem potencial significativo para impulsionar a economia nacional, promovendo a integração entre portos e regiões costeiras. Ao fortalecer o transporte marítimo de curta distância, diminui-se a dependência do modal rodoviário, reduzindo custos logísticos, o desgaste das rodovias e as emissões de gases poluentes. Além disso, o estímulo à cabotagem gera empregos diretos e indiretos, tanto na construção e manutenção das embarcações quanto nas operações portuárias. A melhora das condições para atuação das EBNs favorece a competitividade do setor e pode atrair investimentos em infraestrutura e tecnologia, com impactos positivos na cadeia produtiva e no desenvolvimento regional. A habilitação no Programa BR do Mar é feita mediante requerimento da empresa interessada, formalizada por ato do ministro de Estado de Portos e Aeroportos, segundo regulamentação específica. Para isso, a empresa deve comprovar autorização da Antaq para operar como EBN na cabotagem, apresentar regularidade fiscal perante a Fazenda Nacional e fornecer dados operacionais periódicos conforme as diretrizes ministeriais. O não cumprimento desses requisitos pode resultar na perda da habilitação, com direito ao contraditório e ampla defesa, e a vedação para novo pedido pelo prazo de dois anos. Uma vez habilitada, a EBN pode afretar embarcações estrangeiras por tempo determinado, visando a ampliação da frota e maior flexibilidade regulatória. O limite para esse afretamento é calculado com base na tonelagem de porte bruto das embarcações próprias, com percentuais diferenciados conforme o perfil de sustentabilidade da frota. O programa também prevê o afretamento para substituir embarcações em construção, seja no país ou no exterior, respeitando limites de tonelagem e prazos máximos de 36 meses, prorrogáveis mediante comprovação do avanço físico da obra. Nessas situações, a embarcação estrangeira não é contabilizada como frota própria para fins legais. Além disso, admite-se o afretamento vinculado a contratos de transporte de longo prazo, com duração mínima de cinco anos e utilização exclusiva de embarcações sustentáveis. Também são previstas operações especiais de cabotagem, analisadas pela Antaq com base em critérios objetivos, como tipo de carga, rotas diferenciadas e ausência de oferta nacional equivalente. Importa salientar que, em todas as modalidades, as embarcações estrangeiras devem pertencer a subsidiárias integrais estrangeiras da própria EBN ou de outra EBN, permanecendo sob sua posse ou propriedade durante todo o período do afretamento, mediante contrato a casco nu devidamente registrado. Ainda, as embarcações afretadas nessas condições não serão computadas como frota própria, e o descumprimento das condições estabelecidas poderá acarretar processos administrativos e até a exclusão da empresa do programa. Por fim, cabe mencionar que ainda está pendente a definição dos critérios técnicos e operacionais que qualificam uma embarcação como sustentável para fins do programa. Embora a lei 9.432/1997 condicione algumas modalidades de afretamento a esses requisitos, o decreto 1.255/25 não especifica os parâmetros, deixando para futura regulamentação pelo Ministério de Portos e Aeroportos, em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a responsabilidade por estabelecer essas diretrizes. Quanto à tripulação das embarcações afretadas pelo programa, o art. 12 do decreto estabelece a obrigatoriedade de comandante e chefe de máquinas brasileiros, assim como dos mestres de cabotagem e condutores de máquinas que constem como tripulantes, independentemente de estarem registrados no cartão de tripulação de segurança, em conformidade com as normas do Conselho Nacional de Imigração. A norma permite, entretanto, que os demais tripulantes sejam estrangeiros. Essa regra não é novidade, mas reacende o debate sobre a regulamentação trabalhista aplicável, especialmente quanto à possibilidade de contratação sob padrões internacionais, em divergência com a CLT. Dada a alta carga de custos da mão de obra marítima no Brasil, o tema permanece sem regulamentação clara, gerando insegurança jurídica para as EBNs. Assim, o Programa BR do Mar representa um avanço importante para a modernização da cabotagem, oferecendo maior flexibilidade operacional e incentivando a expansão da frota nacional. Contudo, aspectos essenciais, como a definição dos critérios para embarcações sustentáveis e a regulamentação trabalhista da tripulação estrangeira, ainda precisam de clareza para garantir segurança jurídica e eficácia na aplicação do programa. O sucesso do Programa BR do Mar depende do compromisso conjunto do governo e do setor privado em superar esses desafios, por meio de diálogo institucional, regulamentação objetiva e políticas públicas que incentivem a inovação e a sustentabilidade no transporte marítimo de cabotagem.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. O presente artigo tem por objetivo analisar a inaplicabilidade do CDC às relações jurídicas decorrentes do transporte marítimo internacional, notadamente quando envolvem contratos de afretamento, transporte regular de carga ou outras operações de caráter comercial entre entes empresariais. A crescente judicialização de controvérsias no setor revela, com frequência, a tentativa de se aplicar o regime protetivo do CDC a relações que, por sua natureza técnica, estrutura contratual e equilíbrio de forças, não se amoldam ao conceito de relação de consumo. Embora o CDC represente importante marco protetivo nas relações assimétricas entre consumidor e fornecedor, sua aplicação pressupõe a presença de elementos específicos como a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica da parte consumidora que não se fazem presentes nas operações marítimas entre empresas de grande porte ou entre agentes com expertise no comércio internacional. A extensão indevida do microssistema consumerista a tais relações implica desconsiderar não apenas a legislação especial aplicável ao transporte marítimo, mas também os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, tão caros ao direito privado A distinção entre relações de consumo e relações comerciais no âmbito do transporte marítimo é, portanto, crucial para a preservação da segurança jurídica, da previsibilidade contratual e da funcionalidade das práticas comerciais internacionalmente consolidadas. A aplicação inadequada do CDC pode resultar na atribuição de ônus desproporcionais a uma das partes, desestruturando os fundamentos contratuais pactuados e criando precedentes que comprometem a eficiência e a estabilidade do setor logístico e portuário. Para ilustrar os reflexos práticos dessa controvérsia e fomentar o debate sobre os limites da aplicação do CDC, o presente estudo analisará dois julgados emblemáticos. A análise comparativa dessas duas jurisprudências permitirá uma reflexão crítica sobre os critérios utilizados pelos tribunais brasileiros para qualificar as relações jurídicas no setor marítimo, evidenciando a necessidade de maior rigor técnico na distinção entre contratos comerciais e relações de consumo, bem como o impacto dessas decisões na prática do direito marítimo nacional. Primeiro Julgado: Transporte Marítimo - Reclamação por Avaria de Carga - Inaplicabilidade do CDC 10.1 RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGAS. AVARIAS. RESPONSABILIDADE CIVIL. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. - Ação ajuizada em 10/2/2006. Recurso especial interposto em 24/7/2012 e distribuído a este gabinete em 25/8/2016. - Inaplicabilidade do CDC, como regra geral, aos contratos de transporte marítimo pela dificuldade de enquadramento como consumidor das partes contratantes. - Ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes para a aplicação da legislação consumerista. - Recurso especial conhecido e provido. (STJ, 1.391.650/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 18/10/2016, DJe 21/10/2016) Segundo Julgado: 10.21 (...) Trata-se de ação de cobrança de valores referentes a despesas de sobre-estadia de contêiner, com base na alegação de que o prazo para a devolução foi ultrapassado, em confronto ao avençado pelas partes. Inexiste relação de consumo a autorizar reconhecimento de vício por força do disposto na relação consumerista. Consumidor, reza o artigo 2º do citado diploma legal, é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. No caso das pessoas físicas, a condição de destinatário final presumida. Porém, no caso de pessoas jurídicas, a presunção é inversa, cabendo à interessada demonstrar tal condição, que no caso, sequer é alegada. Neste sentido julgado publicado na Revista dos Tribunais, volume 763,p. 268/271, cuja ementa transcrevo: "PESSOA JURÍDICA Consumidor Impossibilidade da presunção de ser parte vulnerável na relação de consumo, por se dedicar a atividade produtiva e lucrativa Aplicação da proteção do Código de Defesa do Consumidor que depende da afirmação e demonstração da satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística. Ementa Oficial: Por não presumir parte vulnerável e por se dedicar a atividade produtiva e lucrativa, a pessoa jurídica, por isso mesmo, não se presume consumidora e só terá proteção do Código do Consumidor se afirmar e demonstrar a satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística". Esta é a correta interpretação do disposto no art. 2º do CDC ao incluir as pessoas jurídicas no conceito de consumidores, que reclama atenção à distinção da condição da pessoa física e jurídica na relação de consumo (...). (TJ/SP, Processo 1008181-67.2022.8.26.0562, juiz Joel Alonso Beltrame Júnior, 10ª vara Cível do Foro de Santos, DJ 24/8/2022) No primeiro caso selecionado para análise, o STJ, ao julgar o REsp 1.391.650/SP, firmou entendimento no sentido da inaplicabilidade do CDC às relações de transporte marítimo de cargas, especialmente em contextos nos quais não se comprova a vulnerabilidade da parte contratante. Trata-se de uma ação indenizatória por avarias em carga transportada por via marítima, na qual o Tribunal de origem havia reconhecido a aplicação do CDC à relação contratual firmada entre a parte autora e o transportador, com fundamento na suposta hipossuficiência da demandante. A 3ª turma do STJ, entretanto, reformou o acórdão recorrido ao enfatizar que, como regra geral, os contratos de transporte marítimo não se submetem ao regime consumerista, uma vez que as partes envolvidas normalmente empresas de grande porte ou agentes do comércio exterior não se enquadram na figura do consumidor final, tampouco demonstram a vulnerabilidade necessária à incidência do microssistema protetivo. A relatora, ministra Nancy Andrighi, ressaltou expressamente que "a ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes afasta a aplicação da legislação consumerista", restabelecendo a racionalidade técnica exigida para o tratamento jurídico desse tipo de relação contratual. Esse precedente é especialmente relevante por reforçar a distinção entre relações de consumo e relações empresariais complexas, reconhecendo que o transporte marítimo internacional de cargas se insere no campo do direito comercial e do direito marítimo, os quais possuem normas próprias e consolidadas para regência de obrigações, responsabilidade civil, limitações legais e cláusulas contratuais específicas. A decisão, portanto, coaduna-se com os princípios da segurança jurídica e da especialidade normativa, evitando a sobreposição indevida de regimes jurídicos distintos que poderiam desestruturar as práticas comerciais do setor marítimo. Além disso, o acórdão reafirma a necessidade de análise casuística e técnica para se identificar, com precisão, se há elementos que justifiquem a aplicação do CDC, o que, naquele caso concreto, não se verificou. O segundo caso examinado refere-se a uma ação de cobrança de sobre-estadia (demurrage) de contêiner, proposta com fundamento no descumprimento contratual relativo ao prazo de devolução da unidade. A controvérsia foi submetida à 10ª vara Cível de Santos, que enfrentou a alegação, por parte da ré, consignatária das mercadorias, de existência de relação de consumo capaz de atrair a aplicação do CDC e, consequentemente, mitigar suas obrigações contratuais. O juiz da causa, de forma técnica e alinhada à jurisprudência dominante, rechaçou a incidência do CDC, afirmando expressamente que não se presumem relações de consumo quando envolvidas pessoas jurídicas que atuam com finalidade econômica, especialmente quando a parte interessada não demonstra a condição de destinatária final nem a existência de vulnerabilidade específica. Fundamentando-se no art. 2º do CDC e em julgados doutrinadores, o magistrado destacou que, no caso das pessoas jurídicas, não há presunção de hipossuficiência, sendo necessário comprovar, cumulativamente, os requisitos subjetivos (vulnerabilidade), objetivo (finalidade do serviço) e finalístico (uso como destinatário final), sob pena de se banalizar a proteção consumerista. A decisão valoriza a teoria finalista aprofundada, amplamente adotada pela doutrina e pela jurisprudência, segundo a qual a pessoa jurídica somente poderá ser considerada consumidora quando demonstrar que a aquisição ou utilização do serviço ocorreu fora do seu ciclo produtivo ou empresarial, e que se encontra em situação de desigualdade técnica ou econômica frente ao fornecedor. No caso concreto, nada disso foi demonstrado. Ao contrário, a parte ré figurava como agente ativo da cadeia logística, com pleno domínio técnico sobre os termos do contrato de transporte e armazenagem, razão pela qual não se justificava a incidência de normas protetivas excepcionais. Além disso, a fundamentação do juízo de primeiro grau apresenta relevante contribuição teórica ao reafirmar a necessidade de diferenciar os regimes jurídicos aplicáveis conforme o perfil dos contratantes, resguardando a autonomia das convenções privadas no campo das relações comerciais marítimas. Isso é particularmente importante nas disputas envolvendo sobre-estadia de contêiner, cuja disciplina está associada à eficiência da cadeia de suprimentos e ao uso racional dos ativos logísticos, e que não pode ser comprometida por distorções interpretativas baseadas em um enquadramento jurídico indevido. Este julgado, portanto, confirma a orientação já consolidada no STJ quanto à incompatibilidade estrutural entre as normas do CDC e as operações típicas do comércio marítimo, especialmente quando travadas entre operadores econômicos que atuam com grau equivalente de sofisticação, expertise e poder negocial. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos a dicotomia entre "Contêiner x Mercadoria" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a importância de distinguir corretamente esses dois elementos, de forma que o ônus de um não recaia indevidamente sobre o outro. Para melhor compreensão do tema, serão apresentados dois casos práticos, proporcionando uma análise mais concreta e minuciosa. Ao tratarmos da relação entre carga e contêiner no transporte marítimo, é essencial reconhecer que ambos desempenham funções distintas e possuem naturezas próprias. Essa diferenciação é fundamental para a adequada atribuição de responsabilidades. Se de um lado a mercadoria representa a carga, objeto do transporte, de outro o contêiner representa um acessório do navio, sendo um meio pelo qual o transporte daquela carga é operacionalizado. Assim, eventuais obrigações relacionadas à carga não devem ser automaticamente transferidas ao contêiner, pois a ausência dessa individualização pode levar à imputação indevida de encargos, comprometendo a segurança jurídica e o equilíbrio nas relações contratuais. Conforme estabelece o art. 24 da lei 9.611/1998, o contêiner não deve ser confundido como embalagem da mercadoria. Ele é, na verdade, um equipamento próprio, acessório do navio, utilizado para a unitização de cargas, ou seja, para reunir e acondicionar diferentes volumes em uma única estrutura, facilitando o transporte. Sua principal função é tornar o deslocamento de mercadorias mais ágil, seguro e eficiente, especialmente quando envolve a combinação de modais, como navio, caminhão e trem. Art. 24. Para os efeitos desta lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso. Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo. Diante disso, fica claro que o contêiner é um equipamento acessório à embarcação, destinado exclusivamente ao transporte de cargas, mantendo-se, contudo, juridicamente distinto e independente em relação a elas. Contudo, mesmo com a clareza do exposto acima quanto à distinção entre carga e contêiner, é comum, na prática, que essa separação não seja devidamente respeitada. A carga está sujeita a diversas obrigações legais, fiscais e aduaneiras - como apresentação de documentos no prazo, pagamento de tributos e cumprimento de exigências sanitárias ou ambientais. Quando essas obrigações não são cumpridas, a mercadoria pode ser retida, considerada abandonada ou até mesmo declarada perdida pela Autoridade Alfandegária. Essas medidas são legítimas e fazem parte do poder de polícia do Estado, mas devem se aplicar exclusivamente à carga e aos seus responsáveis legais. No entanto, em razão dessas medidas aplicadas à carga, o contêiner utilizado no transporte frequentemente permanece retido junto com a mercadoria, ainda que não haja qualquer irregularidade que lhe diga respeito, fato que causa inúmeros prejuízos ao transportador. Essa prática atribui ao contêiner - um equipamento logístico auxiliar, com função específica - os impactos de uma sanção que, em termos jurídicos, deveria se limitar à carga. Como resultado, o contêiner fica retido, causando atrasos nas operações logísticas, custos extras, como a cobrança de demurrage (sobrestadia), armazenagem, bloqueio da disponibilidade do equipamento para novos embarques e possíveis disputas entre os diferentes elos da cadeia de transporte. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais tratam da inexistência de vínculo jurídico entre o contêiner e a carga nele transportada. Primeiro Julgado: ADMINISTRATIVO. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. DESUNITIZAÇÃO DE CARGA E DEVOLUÇÃO DE CONTÊINERES. APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE PERDIMENTO DAS MERCADORIAS TRANSPORTADAS EM RAZÃO DE ABANDONO DAS MERCADORIAS IMPORTADAS. LEGITIMIDADE PASSIVA DA AUTORIDADE ALFANDEGÁRIA. CONTÊINERES DE PROPRIEDADE DE SOCIEDADE DE TRANSPORTE MARÍTIMO. RETENÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. (...) 5 - Em relação ao mérito, a controvérsia cinge-se em verificar a legalidade ou não do ato perpetrado pelo Inspetor-Chefe da Alfândega do Porto do Rio de Janeiro, consistente na retenção de contêineres de propriedade da impetrante, sociedade do ramo de transporte marítimo, em razão do abandono das mercadorias transportadas contidas em seu interior pelo importador. 6 - Na hipótese dos autos, após as mercadorias acondicionadas nos contêineres de propriedade da impetrante terem sido descarregadas no Porto do Rio de Janeiro, não foi iniciado pelo importador, dentro do prazo legal, o desembaraço aduaneiro, de modo que as mercadorias 1 foram consideradas abandonadas, sujeitando-se a procedimento administrativo fiscal para aplicação da penalidade de perdimento, o que não justifica a retenção dos contêineres. 7 - O contêiner possui como finalidade a realização de transporte de cargas, não se confundindo com a própria carga ou com a embalagem das mercadorias transportadas, de maneira que não há que falar em identidade entre o contêiner e sua carga, tampouco em existência de relação de acessoriedade entre eles, conforme se depreende do disposto no artigo 24, da Lei nº 9 .611/98. 8 - Mostra-se, pois, ilegal a conduta da autoridade impetrada em penalizar o proprietário da unidade de carga, com a retenção do equipamento, uma vez que a infração foi cometida pelo proprietário da mercadoria importada, devendo apenas este último sujeitar-se aos prejuízos decorrentes da apreensão da carga. 9 - Remessa necessária e recurso de apelação desprovidos. (TRF-2 - AC: 01057197920124025101 RJ 0105719-79.2012.4.02.5101, Relator.: JULIO EMILIO ABRANCHES MANSUR, Data de Julgamento: 17/11/2016, 5ª TURMA ESPECIALIZADA) Segundo Julgado: AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. RETENÇÃO DE CONTAINER. DESCABIMENTO. RECURSO PROVIDO. 1. É iterativa a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o contêiner não é acessório da mercadoria importada e, verificado o abandono ou a perda da carga por infração aduaneira, não se justifica sua manutenção no recinto alfandegado. 2. O fato de o Poder Público não possuir condições para o adequado armazenamento da mercadoria não pode acarretar privação de bens particulares, a não ser que expressamente autorizado por lei. 3. Com efeito, é de exclusiva responsabilidade do importador o desembaraço aduaneiro da mercadoria importada, não se podendo imputar ao transportador ônus decorrente de sua omissão ou das limitações físicas de espaço da agravada em comportar as mercadorias importadas, mesmo porque o artigo 3º do Decreto-Lei nº 116/67 evidencia que "a responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio". 3. Ademais, o responsável pela manutenção e guarda da mercadoria é o recinto alfandegado, o qual inclusive é remunerado para tanto, e não a transportadora. A desunitização no interior do recinto alfandegado em nada prejudica eventual procedimento administrativo. (....) (TRF-3 - AI: 00096396120164030000 SP, Relator: desembargador Federal Marcelo Saraiva, 4ª turma, Data de Publicação: 10/3/2017) Pode-se observar que, no julgado proferido pelo TRF da 2ª região, a Corte concluiu pela ilegalidade da retenção dos contêineres de propriedade da transportadora marítima, em decorrência do abandono da carga pelo importador. O acórdão destaca que a penalidade de perdimento das mercadorias, imposta em razão do não cumprimento, pelo importador, do desembaraço aduaneiro no prazo legal, não justifica a apreensão dos contêineres utilizados no transporte, haja vista que esses equipamentos não devem se confundir com a carga que transportam. O Tribunal reconhece, ainda, que o contêiner é mero instrumento logístico, cuja finalidade é a viabilização do transporte da mercadoria, não havendo qualquer relação de identidade jurídica entre si. Tal entendimento tem como fundamento o art. 24 da lei 9.611/1998. Dessa forma, o entendimento firmado é no sentido de que a retenção dos contêineres se caracteriza como medida ilegal, por impor ao proprietário do equipamento uma penalidade por infração cometida exclusivamente pelo importador da carga. No segundo julgado, o TRF da 3ª região destaca uma questão crucial: a incapacidade do Poder Público em disponibilizar condições adequadas para o armazenamento da mercadoria não pode justificar a retenção ou apreensão de bens particulares, como os contêineres. Essa posição reforça que limitações estruturais ou administrativas da autoridade alfandegária não podem gerar prejuízos a terceiros que não tenham cometido infrações, garantindo a proteção da propriedade privada. O Tribunal reafirma que o desembaraço aduaneiro é responsabilidade exclusiva do importador, cabendo à autoridade alfandegária a guarda e conservação da mercadoria. Portanto, o transportador não deve sofrer penalidades decorrentes de falhas ou limitações no espaço físico do recinto alfandegado, nem da omissão do importador. Assim, os julgados consolidam o entendimento de que o contêiner é juridicamente distinto da carga, e sua retenção indevida configura violação aos direitos do proprietário do equipamento, devendo ser afastada qualquer transferência indevida de ônus. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui.
A exigência de consulta ao mercado nacional visa a proteger o mercado e as embarcações brasileiras, mas sua aplicação deve observar condições técnicas concretas. A preferência por navios brasileiros não pode ser absoluta e deve observar as necessidades da exploração - inclusive no que diz respeito à capacidade de transporte, por exemplo. I - Introdução: A lógica regulatória do afretamento marítimo A regulação da navegação marítima brasileira reflete uma dualidade essencial: de um lado, a necessidade de integração à logística internacional; de outro, o dever constitucional de proteção à bandeira nacional e à indústria naval, previsto no art. 178 da CF.1 Nesse contexto, o afretamento - ou seja, a contratação de embarcação para transporte mediante pagamento - constitui ferramenta fundamental para a operacionalização do comércio e da logística nacional. Especialmente em setores como a cabotagem, o apoio marítimo e o offshore, é comum que EBNs - Empresas Brasileiras de Navegação contratem embarcações estrangeiras, dada a indisponibilidade de navios nacionais tecnicamente aptos. A relação entre o fretador, "aquele que disponibiliza, total ou parcialmente, a embarcação para afretamento"2 e o afretador, "aquele que tem a disponibilidade da embarcação ou parte dela, mediante o pagamento de taxa de afretamento"3 demanda arcabouço regulatório sólido, que assegure equilíbrio contratual e resguarde o interesse público. Essa possibilidade, contudo, é condicionada à autorização da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, conforme estabelecido no art. 9º, I, da lei 9.432/1997. O objetivo é garantir que a contratação de navios estrangeiros ocorra apenas quando inexistente embarcação brasileira adequada à operação. É justamente para verificar esse requisito que se instituiu o procedimento de circularização - mecanismo regulatório próprio do ordenamento jurídico nacional, voltado à efetivação da prioridade legal da bandeira brasileira. II - O procedimento de circularização: Fundamentos e função A circularização é o procedimento administrativo obrigatório que antecede a autorização para o afretamento de embarcações estrangeiras no Brasil. Previsto na lei 9.432/1997 (art. 9º, I) e regulamentado pela resolução 129/25, dentre outras da ANTAQ, esse mecanismo busca assegurar o cumprimento da prioridade legal conferida a navios de bandeira nacional. Na prática, o procedimento é acionado quando uma EBN manifesta à ANTAQ a intenção de contratar uma embarcação estrangeira. A partir desse momento, outras EBNs podem apresentar embarcações nacionais aptas a executar o serviço - o que, se aceito, "bloqueia" o afretamento pretendido. Essa consulta formal ao mercado é realizada exclusivamente por meio do SAMA - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, plataforma digital da agência reguladora. Mais do que uma exigência burocrática, a circularização materializa a política pública de proteção à marinha mercante brasileira. Seu propósito é duplo: garantir a competitividade das empresas nacionais e incentivar o desenvolvimento da indústria naval, com reflexos diretos na geração de empregos qualificados e no fortalecimento da cadeia logística nacional. O art. 9º, I da lei 9.432/1997 estabelece, de forma expressa, que o afretamento de navio estrangeiro só pode ser autorizado na ausência de embarcação brasileira adequada: "Art. 9º O afretamento de embarcação estrangeira [...] depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos:I - quando verificada a inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido." Essa mesma lógica se reflete no art. 7º4 da resolução 129/25 da ANTAQ, que condiciona a emissão do CAA - Certificado de Autorização de Afretamento à circularização. Realizada por meio do sistema SAMA, a circularização permite que outras EBNs se manifestem apresentando embarcações de bandeira brasileira (Art. 9º da resolução 129/25 da ANTAQ).5 Essa manifestação pode ensejar dois tipos de bloqueio, nos termos do art. 2º, incisos IX e X da resolução 129/25 da ANTAQ:6 Bloqueio firme: A embarcação ofertada é tecnicamente adequada e atende integralmente aos requisitos da operação, sendo o bloqueio reconhecido formalmente pela ANTAQ; e Bloqueio parcial: Atendimento parcial da capacidade requerida - seja em tonelagem, seja em prazo -, em razão da indisponibilidade de embarcação que cubra a demanda por completo. Caso a embarcação nacional indicada em bloqueio firme possua características técnicas equivalentes à estrangeira inicialmente pretendida, a contratação da embarcação brasileira torna-se obrigatória7. A inobservância do procedimento ou sua condução de forma ineficaz sujeita as empresas a sanções administrativas, incluindo multa, cassação de autorização e até declaração de inidoneidade, nos termos da atuação fiscalizatória da ANTAQ. III - Bloqueio parcial: Prioridade interpretada conjuntamente com razoabilidade e proporcionalidade Um dos principais desafios do procedimento de circularização consiste em compatibilizar a prioridade legal conferida às embarcações nacionais com sua efetiva capacidade de atender, de forma segura, eficiente e economicamente viável, à demanda contratual e ao mercado dinâmico em que o afretamento está inserido. A mera disponibilidade formal de um navio de bandeira brasileira não basta. É necessário que a embarcação possua as condições técnicas mínimas para a operação pretendida - como tonelagem compatível, sistemas de posicionamento e manobra, certificações exigidas, aderência aos prazos, localização estratégica e possibilidade efetiva de transporte dos bens ou prestação dos serviços que serão objeto do contrato. Em operações de grande escala ou alta complexidade, é comum que apenas embarcações estrangeiras reúnam todos os requisitos para garantir a integridade e a viabilidade logística da contratação. O problema se acentua nos casos de bloqueio parcial, quando a embarcação nacional indicada não tem capacidade plena de atendimento - seja por restrições de carga, seja por impossibilidade de cumprir a janela operacional exigida. Nessas situações, embora haja formalmente proposta nacional, a substituição integral da embarcação estrangeira revela-se inviável na prática. Ignorar esse descompasso pode comprometer a operação. Um exemplo paradigmático dessa abordagem ocorreu no mandado de segurança 1055843-44.2023.4.01.3400 distribuído perante a 6ª Vara Federal Cível da seção judiciária do Distrito Federal. A ação foi ajuizada após a ANTAQ afastar bloqueio parcial apresentado por uma empresa do ramo de transporte de carga, em circularização conduzida por empresa fretadora, que buscava afretar embarcação para o transporte de produtos siderúrgicos para uma empresa de produção de semiacabados de aço. Na ocasião, a empresa buscava afretar uma embarcação para o transporte de produtos siderúrgicos em território nacional. A empresa fretadora iniciou a circularização e outra EBN apresentou bloqueio parcial, indicando um navio de bandeira nacional. A proposta foi recusada pela fretadora com base em três fatores: (i) a tonelagem e as dimensões da embarcação eram inferiores às demandadas; (ii) a janela de execução era incompatível com o cronograma da empresa produtora de semiacabados; e (iii) a localização do navio inviabilizava o atendimento nos prazos contratuais previamente acordados. Embora a ANTAQ inicialmente tenha reconhecido a validade do bloqueio, reviu sua posição ao analisar medida cautelar apresentada pela fretadora. A Diretoria Colegiada autorizou a contratação do navio estrangeiro. Destacou-se, no voto do relator, que o bloqueio parcial não configura direito absoluto e deve ser sopesado com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Como pontuado:8 "...é forçoso reconhecer que o direito de exercer o bloqueio parcial não é absoluto, pois a reserva do mercado do transporte de cargas na navegação de cabotagem às embarcações brasileiras não deve ser um fator gerador de aumento dos custos para os usuários, nem tampouco impor condições operacionais díspares da demanda objeto de circularização. Assim, quando o bloqueio parcial inviabilizar o transporte integral da carga (com parte da capacidade em tonelagem requerida ou por parte do tempo requerido) é razoável e proporcional, em uma ponderação de valores entre a norma e o caso concreto, que o bloqueio seja julgado não firme por não aderência ao previsto no § 3º do art. 3º da resolução normativa 01-ANTAQ, de 2015." Além disso, dois aspectos técnicos foram decisivos: (i) O levantamento técnico realizado pela área especializada da ANTAQ demonstrou que, no mercado de transporte de produtos siderúrgicos originários de Pecém, a menor operação registrada entre 2022 e 2023 foi de 26,6 mil toneladas. Diante disso, a proposta da empresa que solicitou o bloqueio - limitada a apenas 5,5 mil toneladas - mostrou-se economicamente e operacionalmente inviável tanto para a contratante quanto para a afretadora9; e (ii) "Diante do contexto fático apresentado, a embarcação (...) não conseguirá aportar no Porto de Pecém/CE a tempo de atender à janela de operação registrada no protocolo (...) (entre 1 e 5/6 de 2023); motivo pelo qual deverá ser declarado não firme o bloqueio realizado pela empresa."10 Inconformada, a empresa que solicitou o bloqueio impetrou mandado de segurança, alegando ausência de regular intimação para se manifestar antes da decisão que afastou o bloqueio. Por ordem judicial, a ANTAQ reavaliou o caso, após manifestação da empresa bloqueante mas reiterou a sua improcedência, autorizando a continuidade da contratação de navio estrangeiro. IV - Conclusão Independentemente do mérito das decisões administrativas e judiciais, o caso ilustra um desafio recorrente no setor: a preferência pela bandeira brasileira deve ser relativizada sempre que a embarcação ofertada não atender, de forma plena, aos requisitos técnicos e logísticos da operação. No caso concreto, obrigar o afretador a organizar mais de uma viagem apenas para viabilizar a utilização de navio nacional seria, nas palavras da própria ANTAQ, "inviável economicamente e operacionalmente, tanto para o usuário, quanto para a empresa que procedeu a circularização". A insistência em utilizar uma embarcação inadequada - ainda que formalmente ofertada - pode gerar atrasos, entrega parcial e descumprimento contratual. No caso do aço, por exemplo, trata-se de um insumo essencial a cadeias produtivas estratégicas como a indústria de base, a construção civil e a infraestrutura. Nesse cenário, os efeitos jurídicos são significativos: descumprimento de obrigações contratuais, comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e aumento de custos. Em síntese, portanto, a proteção à bandeira brasileira, embora essencial para o fortalecimento da marinha mercante nacional, deve ser aplicada com prudência. O caso trazido como exemplo evidencia a importância de decisões técnicas rigorosas e céleres, que considerem as particularidades de cada operação. O equilíbrio entre o fomento à indústria nacional e a racionalidade econômica é indispensável para garantir previsibilidade, eficiência e segurança jurídica nas contratações de transporte marítimo no Brasil. ________________ 1 Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.   2 ANTAQ. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Resolução Normativa nº 129 de 5 de junho de 2025. Disponível aqui . Acesso em 19/6/25. Art. 2º, XXIII 3 Ibidem. Art. 2º, II 4 Art. 7º A empresa brasileira de navegação interessada em obter a autorização de afretamento deverá preencher formulário de circularização no SAMA. 5 Art. 9º A EBN interessada em fretar embarcação que atenda ao objeto da circularização nos seguintes prazos contados do envio da circularização: 6 IX - bloqueio firme: procedimento de bloqueio reconhecido como válido pela ANTAQ para o atendimento da circularização, comunicando formalmente às partes envolvidas e informando as razões da decisão;   X - bloqueio parcial: quando o bloqueio se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações brasileiras para o bloqueio completo; 7 "A ANTAQ, no exercício do seu poder regulamentar, editou a Resolução Normativa nº 01-ANTAQ/2015, na qual estabeleceu que a Empresa Brasileira de Navegação (EBN) interessada em afretar embarcação estrangeira a ser empregada na navegação de apoio marítimo deve realizar o procedimento de Circularização, por meio do qual se permite que outra EBN ofereça embarcação brasileira em condições de atender à navegação de apoio pretendida e, assim, bloqueie o afretamento da embarcação estrangeira, PASSANDO A SER OBRIGATÓRIO O AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO BRASILEIRA. (...), Entretanto, não há qualquer prova de que os princípios da Lei 9.432/1997 tenham sido cumpridos, UMA VEZ QUE NÃO CONSTA NOS AUTOS DEMONSTRAÇÃO DE TER OCORRIDO A CONTRATAÇÃO DE EMBARCAÇÃO BRASILEIRA QUE EFETUOU O BLOQUEIO DA CIRCULARIZAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO À EMBARCAÇÃO OPERADA PELAS AUTORAS. Embora a Petrobras entenda que para a hipótese de encerramento antecipado é suficiente a não obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), não é isso que se conclui pela análise do próprio negócio jurídico realizado entre as partes e especialmente da lei que regula a matéria." (TJRJ, Apelação Cível 0077014-28.2018.8.19.0001, Relator Desembargador Ferdinaldo do Nascimento, 19ª Câmara Cível, j. em 06/10/2020) 8 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71 9 "viagens já realizadas durante o durante o primeiro semestre dos anos de 2022 e 2023 e as práticas de operação do mercado de transporte para produtos siderúrgicos originários de Pecém (não o mercado de afretamento), constante nos parágrafos 12 e 13 do Despacho GAF nº 1943584, observo que a menor operação registrada na pesquisa foi 26,6 mil toneladas, fato que leva este Relator a compreender que uma eventual operação residual de 5,5 mil toneladas seja inviável economicamente e operacionalmente, tanto para o usuário, quanto para a empresa que procedeu a circularização.". 9 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71; 10 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71
quinta-feira, 12 de junho de 2025

Direito Marítimo e a "Amazônia Azul"

Em 26/3/2015, a Comissão de Limites da Plataforma Continental ("CLPC"), implementada pela Organização das Nações Unidas ("ONU"), aprovou o pedido do Brasil de acréscimo da sua Plataforma Continental na Margem Equatorial brasileira, região também chamada de "Amazônia Azul". Essa denominação refere-se à toda extensão da jurisdição brasileira sobre o mar, incluindo o Mar Territorial, a Zona Contígua e a Zona Econômica Exclusiva (ZEE), sendo também chamada de a "última fronteira do Brasil", em razão da sua localização ao extremo norte do país.  A ampliação da Plataforma Continental reconhecida pela ONU abrange uma área de impressionantes 360 mil km2. A alcunha "Amazônia Azul" atribuída a essa porção marítima de proporções gigantescas não se dá apenas pelo seu tamanho, mas também por suas características e potenciais únicos. Em termos econômicos, ambientais e até mesmo de segurança nacional, essa vasta extensão marítima ao extremo norte do Brasil possui alta relevância, uma vez que:  Sob o aspecto econômico, a abundância de recursos na região, em especial das gigantescas reservas de óleo e gás e as rotas comerciais marítimas que se utilizam dessa zona marítima com frequência para o comércio internacional de mercadorias tornam essa área de interesse estratégico destacado para o país. Especialmente a foz do Rio Amazonas, que ganhou os noticiários recentemente, mas também a Margem Equatorial como um todo ocuparão papel fundamental na exploração de reservas de óleo e gás ali presentes, a exemplo do ocorrido nos últimos anos no país vizinho, a Guiana, com impactos evidentes para a economia nacional. No que diz respeito à matéria ambiental, é desnecessário lembrar que a plataforma continental é habitat de incontáveis recursos vivos, abrigando sítios ambientais cuja necessidade de proteção é inquestionável. Relacionado ao interesse ambiental, há também o científico, detendo o país exclusividade para a realização de estudos e pesquisas nessa área. Por fim, no âmbito da segurança nacional encontra-se presente não só o dever de fiscalização e prevenção de possíveis ameaças ao país, mas também e igualmente relevante a prerrogativa de negociar com outros Estados acordos e tratados internacionais sobre a realização de atividades da região. O reconhecimento do acréscimo à Plataforma Continental brasileira tem, assim, o potencial de aumentar a relevância internacional do Brasil, devido à possibilidade de acordos internacionais envolvendo os interesses presentes na região.  É possível compreender, desde já, como o acréscimo à Plataforma Continental brasileira na Margem Equatorial impacta diversas áreas da economia, das relações internacionais e governamentais, sendo oportuno abordar brevemente aspectos jurídicos relacionados ao tema, em especial sob a ótica do Direito Marítimo, que interessa mais de perto ao leitor dessa coluna.  Iniciando no campo normativo internacional, vale mencionar que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), celebrada em Montego Bay, em 1982, acrescida do Acordo Suplementar de 1994, trata especificamente da exploração dos recursos das profundezas marinhas em áreas internacionais. A UNCLOS estabelece as bases legais para a delimitação das diferentes zonas marítimas, como o Mar Territorial, a Zona Contígua, a Zona Econômica Exclusiva ("ZEE") e a Plataforma Continental, inclusive a estendida. Essa convenção define os direitos e deveres dos Estados costeiros sobre essas áreas, além de prever mecanismos de resolução de controvérsias e regras específicas para a proteção do meio ambiente marinho, a conservação dos recursos vivos e a pesquisa científica oceânica.  Já no âmbito interno, a matéria é regulada pela Lei n.º 8.617/93, que incorpora as disposições da UNCLOS ao ordenamento jurídico brasileiro e detalha os limites da soberania e dos direitos de soberania do Brasil nas áreas marítimas. A lei disciplina o exercício de atividades econômicas, científicas e ambientais na ZEE e na plataforma continental, incluindo a necessidade de autorização para pesquisas por Estados estrangeiros e empresas, bem como a fiscalização e controle dessas atividades por órgãos federais, com destaque para a Marinha do Brasil.  Além disso, por óbvio, normas ambientais específicas também incidem sobre essas áreas. Para citar apenas uma delas, a Lei nº 6.938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, impõe a exigência de licenciamento ambiental para empreendimentos potencialmente poluidores, como a exploração de petróleo offshore. Nesse sentido, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) tem papel fundamental na emissão de licenças e na imposição de condicionantes ambientais, como foi observado nos debates públicos e nos pareceres técnicos relativos à exploração de petróleo na bacia da foz do Amazonas.  Cabe mencionar, ainda, a atuação da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), órgão responsável pela coordenação das políticas públicas voltadas ao uso sustentável do espaço marinho sob jurisdição brasileira. A CIRM desenvolve o Plano Setorial para os Recursos do Mar (PSRM), instrumento estratégico que orienta as ações do Estado na Amazônia Azul, incluindo aspectos de governança, ciência e tecnologia, defesa, meio ambiente e desenvolvimento econômico.  Nesse cenário normativo multifacetado, observa-se que o reconhecimento do direito brasileiro sobre a Plataforma Continental estendida impõe, simultaneamente, novas responsabilidades e oportunidades. As normas reguladoras setoriais e internacionais não apenas delimitam os espaços de atuação do Estado e da iniciativa privada, como também impõem parâmetros de sustentabilidade, soberania e segurança.  No caso da plataforma continental estendida, que ultrapassa a ZEE, o Estado costeiro tem exclusividade para explorar os recursos minerais e outros presentes no subsolo. O leito marinho e o subsolo da plataforma continental estão regulados, de forma geral, pela lei 8.617/93. Em seus artigos, a Lei trata da Plataforma Continental reafirmando, em seu artigo 12, a soberania brasileira sobre os recursos naturais anteriormente mencionados.  Adicionalmente, os artigos 13 e 14 dessa mesma lei estabelecem a jurisdição e competência da União para regulamentar e autorizar as atividades de perfuração, investigação científica marinha, proteção, preservação do meio marinho e tudo o que concerne às ilhas artificiais, instalações e estruturas ali presentes, incluindo a colocação de cabos submarinos na plataforma continental, atividade que tem assumido maior relevância na área de tecnologia da informação.  Vale ainda mencionar que tramita no Senado Federal o PL 6.969/13 (Lei do Mar), recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados. O projeto pretende criar uma política nacional para a gestão integrada, a conservação e o uso sustentável do sistema costeiro-marinho ("PNGCMar"). Além disso, o projeto traz novos institutos e instrumentos já consagrados internacionalmente, como: a Avaliação Ambiental Estratégica; o Sistema Costeiro-Marinho; o Planejamento Espacial Marinho; e as Áreas Marinhas Protegidas.  Por fim, juntamente com o requerimento pelo acréscimo na Margem Equatorial, o Brasil também pleiteou também a ampliação de sua Plataforma Continental ao longo do litoral Sudeste, em área que se estende até as proximidades do Uruguai - uma solicitação que ainda aguarda análise e deliberação pela Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC). Essa pendência revela que a consolidação dos direitos brasileiros sobre o espaço marítimo é um processo contínuo, técnico e diplomático, que exige persistência estratégica e alinhamento institucional.  Como nota final, o IBGE divulgou em 2024 o mapa do Brasil alterado, um importante marco para o país, compreendendo a extensão terrestre do país, juntamente com o Mar Territorial Brasileiro, a ZEE e a extensão da Plataforma Continental reconhecida pela ONU. A construção jurídica da Amazônia Azul, todavia, não se encerra com essa aprovação recente. Pelo contrário, inaugura uma nova fase na qual o Brasil, agora com direitos ampliados sobre regiões de alto valor estratégico, assume também maiores responsabilidades, sendo fundamental articular os interesses governamentais, ambientais e científicos na região, com os das empresas que certamente desenvolverão atividades econômicas nessa área.
A crescente preocupação com as mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases de efeito estufa tem mobilizado esforços internacionais para a redução de carbono em diversos setores da economia. No caso da navegação, o transporte marítimo responde por cerca de 3% das emissões globais. O transporte marítimo internacional é vital para o comércio global, movimentando mais de 80% do volume de bens comercializados mundialmente. Entretanto, é também um setor que contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa, sendo que a maioria das embarcações utiliza combustíveis fósseis de baixo grau de refino, como o óleo combustível pesado, que contém alta concentração de enxofre e gera grandes volumes de carbono, óxidos de nitrogênio, óxidos de enxofre e material particulado. Os impactos ambientais vão além da contribuição para o aquecimento global, afetando também a saúde humana, especialmente em áreas portuárias densamente povoadas. Neste ensaio, o objetivo é lançar luz sobre os potenciais impactos para a indústria naval, especialmente no contexto brasileiro, os riscos de taxação internacional decorrentes do não cumprimento das metas de descarbonização, considerando a necessidade urgente de investimentos em infraestrutura portuária sustentável, para que o Brasil possa atender às exigências ambientais e se manter competitivo no cenário global. Como consequência desse cenário temos o avanço das políticas ambientais globais e o endurecimento das normas internacionais sobre emissões de gases de efeito estufa, impondo ao setor marítimo uma transformação sem precedentes. A Convenção MARPOL e seus desdobramentos, especialmente no Anexo VI, impõem limites rigorosos à emissão de poluentes pelos navios, com impactos diretos sobre as rotas comerciais e a competitividade dos países exportadores. Nesse contexto, o Brasil, que depende fortemente da navegação para escoamento das suas commodities, encontra-se diante de dois grandes desafios: evitar as barreiras comerciais decorrentes do descumprimento ambiental e preparar a sua infraestrutura portuária para atender às exigências técnicas de uma frota cada vez mais limpa. A IMO - Organização Marítima Internacional tem promovido diretrizes progressivas para reduzir a intensidade de carbono na navegação, destacando-se o CII - Carbon Intensity Indicator e o EEXI - Energy Efficiency Existing Ship Index. Desde 2023, navios são classificados com base no seu desempenho ambiental, o que pode influenciar a autorização de entrada em determinados portos. Além disso, propostas em tramitação no âmbito da União Europeia e de outras jurisdições preveem a imposição de taxas ou tarifas sobre navios e cargas oriundas de países que não cumprirem com os padrões internacionais de emissões, como parte do mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM, na sigla em inglês). Países como o Brasil correm o risco de ver seus produtos taxados, caso os seus portos não estejam habilitados para dar suporte aos navios de baixo carbono. O mecanismo de CBAM - Ajuste de Carbono na Fronteira da União Europeia, em vigor desde outubro de 2023 em fase transitória, impõe a partir de 2026 a obrigatoriedade de compra de certificados de carbono por importadores de produtos intensivos em emissões, tais como aço, ferro, alumínio, cimento, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio. O preço desses certificados será equivalente ao do EU ETS - Sistema de Comércio de Emissões da UE, que em 2023 variava entre 80 e 100 euros por tonelada de CO2. A frota global é composta por diferentes tipos de navios (petroleiros, graneleiros, porta-contêineres, entre outros), com perfis operacionais variados. Isso dificulta a padronização das medidas de eficiência e das tecnologias disponíveis. De fato, nem todos os armadores têm acesso à tecnologia e ao capital necessário para a modernização das suas embarcações ou para adaptá-las às suas operações. A substituição de motores, instalação de sistemas de limpeza de gases (scrubbers) e aquisição de combustíveis alternativos impõem altos custos de transição. Além disso, a operacionalidade também se tornará mais cara, pois o combustível fóssil ainda largamente utilizado representa um custo muito menor do que aqueles considerados verdes. A transição energética mundial traz consigo a exigência de investimentos de grande monta, estimando-se atualmente que até 2030 serão necessários US$ 7,3 trilhões, considerando todos os setores da economia, não limitado ao setor portuário e de navegação aqui analisado. Para o Brasil, que não possui uma política nacional de precificação de carbono, isso significa que os exportadores não poderão deduzir valores pagos localmente, aumentando o custo de seus produtos no mercado europeu. Estimativas indicam que o aço brasileiro poderá enfrentar uma taxa adicional de aproximadamente 3,3 euros por tonelada exportada para a União Europeia, o que impactará sobremaneira a competitividade da produção brasileira no cenário internacional. Os novos parâmetros de exigência para o controle de emissão de gases de efeito estufa representam uma grande mudança no papel desempenhados pelos portos, que deixarão de ser unicamente um apoio logístico para o comércio exterior e o transporte marítimo, para assumir protagonismo como estruturas de suporte ao controle mundial de emissão de poluentes. A atual infraestrutura portuária brasileira apresenta grandes lacunas para o atendimento de navios com demandas ambientais mais exigentes. Ainda são poucos os portos que contam com instalações de cold ironing - sistema que permite ao navio desligar seus motores e conectar-se à rede elétrica terrestre - ou dutos e armazenagem para combustíveis sustentáveis como GNL (gás natural liquefeito), metanol verde ou amônia verde. A ausência desses recursos não apenas compromete o atendimento aos novos padrões da MARPOL, como também expõe o país a sanções indiretas, como a recusa de escalas, aumento de prêmios de seguros e o encarecimento logístico para os exportadores brasileiros. Para evitar a marginalização nos fluxos comerciais internacionais, o Brasil precisa implementar uma política coordenada de investimentos em infraestrutura portuária verde. Isso inclui: Instalações de abastecimento (bunkering) para combustíveis de baixa emissão; Sistemas de fornecimento de energia elétrica limpa nos cais; Equipamentos para captação e tratamento de emissões de navios atracados; Incentivos fiscais e financiamento público-privado para modernização dos terminais. No âmbito regulatório, a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários pode e deve atuar como catalisadora dessa transição, ajustando as normas de outorga e fiscalização para privilegiar empreendimentos alinhados às diretrizes ambientais. Além disso, a introdução de parâmetros ambientais nos contratos de arrendamento e concessão é urgente, vinculando o cumprimento de metas sustentáveis à renovação contratual e à autorização de obras de expansão. A falta de conformidade ambiental poderá gerar custos ocultos para o comércio exterior brasileiro. Produtos agrícolas, minérios e manufaturas que partem de portos sem infraestrutura sustentável poderão ser rotulados como "de alto carbono", impactando acordos comerciais com parceiros como União Europeia e Japão, que exigem rastreabilidade ambiental das cadeias produtivas. A visão acerca do tema precisa ser ampla, merecendo atenção também para a chegada da carga aos portos, privilegiando modais menos poluentes para o escoamento da produção. Uma alternativa estratégica é a criação de green corridors, rotas marítimas sustentáveis conectando portos brasileiros a hubs internacionais que já operam com combustíveis limpos. Parcerias com países desenvolvidos e adesão a iniciativas como o Green Shipping Challenge podem atrair recursos e acelerar a descarbonização do setor. Portos como Roterdã, Hamburgo, Los Angeles e Xangai já investem fortemente nessa direção. Diferentemente do que está em desenvolvimento em diversos países e regiões do mundo, não temos ainda no Brasil um plano unificado, reunindo todos os players do setor em torno da discussão acerca da transição energética, objetivando a descarbonização no âmbito da navegação. Estamos diante de movimentos individualizados, sem a coordenação e integração por uma política nacional abarcando os interesses e objetivos individuais, mas em prol de um bem comum e essencial. O Brasil precisa reagir com celeridade às exigências da MARPOL e às iminentes políticas de taxação ambiental internacional. O risco de exclusão dos fluxos marítimos sustentáveis é real e crescente, e somente com uma infraestrutura moderna, regulação eficaz e planejamento estratégico será possível garantir a competitividade do setor portuário nacional. Investir em sustentabilidade não é apenas uma obrigação legal ou moral, mas uma condição essencial para proteger os interesses econômicos brasileiros no comércio marítimo global._______ IMO (International Maritime Organization). MARPOL - Annex VI: Prevention of Air Pollution from Ships. Disponível aqui. União Europeia. EU Emissions Trading System (EU ETS) for Shipping. European Commission. 2023. Ministério dos Transportes (Brasil). Plano Nacional de Logística Portuária Sustentável (PNLP-S). Documentos técnicos, 2024. LIMA, P.; SOUSA, R. Política Ambiental Internacional e a Taxação de Emissões no Comércio Marítimo. Revista de Direito Marítimo, v. 12, n. 3, 2023. MACHADO, Alexandre. A Revisão do Anexo VI da MARPOL (2025): Governança Ambiental do Transporte Marítimo e os Desafios Logísticos do Brasil. Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos do Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos do Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Este artigo tem como objetivo abordar a construção e os reparos navais, começando com um breve panorama histórico. Discutiremos sucintamente o conceito de navio, o papel das sociedades classificadoras e os principais aspectos envolvidos nos contratos de construção e reparação naval. Para exemplificar a relevância e as implicações jurídicas do tema, analisaremos dois julgados, proporcionando uma análise mais detalhada e prática do assunto. A construção naval no Brasil teve início no século XIX, com o estaleiro fundado por Barão de Mauá, em Niterói/RJ. Mas foi apenas a partir da década de 1950, durante o governo Juscelino Kubitschek, que o setor ganhou impulso. Em 1958, com o Plano de Metas, o país passou a investir estrategicamente na indústria naval, por meio do FMM - Fundo da Marinha Mercante e da Taxa de Renovação da Marinha Mercante - depois substituída pelo AFRMM - Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante. Esses incentivos permitiram que, em 1972, o Brasil alcançasse a posição de segundo maior parque industrial de navios mercantes do mundo, atrás apenas do Japão. Entretanto, no final da década de 1970, a combinação de alta inflação, dependência de encomendas do setor estatal, especialmente da Companhia Lloyd Brasileiro, e o foco excessivo no mercado interno marcou o início de uma crise na indústria naval brasileira, que se estenderia por duas décadas. Com capacidade ociosa e dificuldade para competir no mercado internacional, os estaleiros enfrentaram sérias limitações. Custos elevados, alto endividamento, processos produtivos ineficientes, atrasos nas entregas e navios que não atendiam às exigências de um mercado cada vez mais competitivo contribuíram para o declínio do setor. Atualmente, a indústria naval brasileira está em momento de retomada, com investimentos e encomendas a crescer, mas também com desafios a serem superados. Estaleiros especializados em embarcações de apoio marítimo e portuário estão a se destacar com aumentos de produção e expansão internacional. No entanto, alguns estaleiros ainda enfrentam dificuldades, como falta de demanda e processos de recuperação judicial, e a retomada da indústria naval como um todo depende de novos estímulos e investimentos. Nesse cenário de retomada gradual e reestruturação do setor, é importante compreender os elementos jurídicos fundamentais que envolvem a construção naval. Um deles é o próprio navio, que, embora juridicamente classificado como bem móvel, possui características peculiares que o diferencia. Sua possibilidade de ser hipotecado e sua necessidade de ser levado a registro, por exemplo, levam parte da doutrina a considerá-lo um bem móvel sui generis, evidenciando a complexidade das relações contratuais e regulatórias que envolvem sua construção, operação e financiamento. Dentro desse contexto técnico e normativo, destaca-se o papel das sociedades classificadoras. Os navios mercantes utilizados em operações de longo curso, cabotagem ou apoio marítimo e portuário devem ser projetados, construídos, inspecionados e entregues de acordo com as normas estabelecidas por uma sociedade classificadora autorizada pelas autoridades marítimas do país de bandeira. No entanto, a exigência da classificação obrigatória depende do porte da embarcação e do nível de risco que ela representa para a tripulação, instalações portuárias e meio ambiente, sendo dispensada em determinados casos de menor risco ou dimensão. As sociedades classificadoras são entidades técnicas, de natureza privada, que exercem função pública delegada em alguns países, atuando em nome das autoridades marítimas para fins de certificação estatutária. Sua principal função é verificar e atestar a conformidade das embarcações com critérios técnicos nacionais e internacionais, voltados à segurança da navegação, à proteção da vida humana, da propriedade e do meio ambiente. Essa estrutura técnico-regulatória influencia diretamente o modelo contratual adotado na construção naval. A modalidade mais comum, tanto no Brasil quanto no exterior, é a construção por empreitada, regulamentada por uma relação contratual firmada entre o armador e o estaleiro. No âmbito da construção naval, a empreitada geralmente envolve o estaleiro como responsável tanto pelo fornecimento dos materiais quanto pela execução da obra, assumindo integralmente os riscos até a entrega do navio ao armador. Diante dos altos valores envolvidos e da complexidade do processo construtivo é comum que as partes adotem instrumentos contratuais de segurança, como garantias financeiras, cláusulas resolutivas e seguros, com o objetivo de mitigar eventuais prejuízos decorrentes do inadimplemento de uma das partes e assegurar maior equilíbrio e previsibilidade à relação contratual. O TJ/RJ reafirma, conforme o julgado abaixo, que as disposições aplicáveis ao contrato de empreitada se estendem à construção naval, com a obrigação do estaleiro voltada para a entrega do navio conforme os termos acordados (obrigação de resultado). APELAÇÃO. Ação ordinária de cobrança, cumulada com perdas e danos. Reconvenção. Contrato de construção naval. Armadora e estaleiro que o firmaram em duas versões, na mesma data, com valores distintos: o de maior valor, que previa financiamento pelo BNDES, cujo crédito foi aberto na mesma data, tendo sido levado ao registro público competente; o de menor valor não foi registrado, nem aludia ao financiamento do BNDES, todavia foi aquele efetivamente norteador da execução das obrigações avençadas, inclusive quanto ao valor efetivamente pago, ao prazo de entrega do navio e à repactuação de prazos e formas de pagamento. O registro não constitui requisito de validade do contrato de construção naval em face da legislação de regência; não se trata de transferência de propriedade de embarcação, mas de construção de embarcação nova. Prevalência do contrato efetivamente observado pela conduta das partes. Nada obstante a existência de dois termos contratuais, não se configura a litigância de má-fé aventada pelo julgado de piso, dado que, em princípio, ambas as partes pretenderiam beneficiar-se dessa dualidade com o fim de obter-se o financiamento, ao passo que a litigância de má-fé pressupõe o uso do processo por uma das partes em detrimento da outra. Natureza jurídica do contrato de construção naval ajustado entre as partes: contrato de empreitada, também nominado de contrato por escopo, cujo prazo cumpre função meramente moratória, não induzindo a extinção da obrigação se, esgotado o seu termo final, o escopo não se aperfeiçoou integralmente; prorrogação que se impõe, para que se alcance o escopo, no caso, a construção e entrega do navio encomendado, o que não afasta as cominações decorrentes da mora, sindicada a participação de cada contraente para dar-lhe causa. Conjunto probatório exaustivo, integrado por documentos, perícia e testemunhos, a demonstrar atraso de pagamento pela empresa armadora contratante, financiadora da construção, e atraso de execução pelo estaleiro contratado, sem provocar lesão à honra objetiva deste, mas a produzir efeitos patrimoniais atraentes das penalidades moratórias, bem aplicadas pela sentença. Pleitos principal e reconvencional parcialmente procedentes (...). (TJ/RJ, AC, 0003873-97.2005.8.19.0205, Des. Jessé Torres, 2ª Câmara Cível, j. 24/8/11) No âmbito dos contratos de reparo naval, a obrigação assumida pelo prestador de serviço também é de resultado, exigindo-se a entrega da embarcação em condições adequadas para operar. Essa abordagem foi adotada pelo STJ em caso paradigmático, no qual se discutiu a gravidade do descumprimento contratual por parte do estaleiro contratado, diante da reprovação técnica de reparos que inviabilizaram o uso da embarcação pelo armador. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE COBRANÇA. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. REPARO EM NAVIO. REPROVAÇÃO DE PARTE DOS SERVIÇOS REALIZADOS POR AGÊNCIA DE CLASSIFICAÇÃO QUE IMPEDIU A CONCESSÃO DA AUTORIZAÇÃO PARA NAVEGAÇÃO. INADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. RECONHECIMENTO. RECURSO PROVIDO. (...) 2. Devidamente analisada e discutida pelo Tribunal fluminense a questão referente a reprovação, pela agência de classificação, dos reparos realizados no navio, que impediram a concessão da autorização para sua navegação, com fundamento claro e expresso, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há que se falar em violação dos arts. 489 e 1.022, ambos do NCPC. 3. Em decorrência do princípio da boa-fé objetiva, um contratante não pode exigir que o outro cumpra a obrigação que lhe cabe sem antes adimplir a sua (art. 476 do CC/2002). 4. A arguição da exceptio non adimpleti contractus exige que o inadimplemento seja substancial, relevante, a ponto de causar desproporcionalidade na sinalagma entabulada entre os contratantes. 5. Na espécie, diante da necessidade de se realizar reparos em um navio, uma empresa especializada foi contratada para a prestação do serviço e alguns pontos foram reprovados pela agência classificadora, impedindo que a embarcação voltasse a operar, ou seja, o navio não poderia navegar, não serviria sequer para catraia, caracterizando o descumprimento substancial da obrigação pelo prestador do serviço, ensejando o acolhimento da arguição da exceção do contrato não cumprido. 6. Navio que não navega não serve, porque navegar é preciso. 7. Recurso especial provido. (...) Colhe-se do acórdão recorrido que a ela foi contratada para realizar reparos em navio da GLOBAL, tais como trocas de chapas de aço e de válvulas, instalação e remoção de equipamentos, reparos do sistema propulsor e de comando, tratamento, pintura, entre outros (e-STJ, fl. 1.138). Todavia, parte dos serviços foi reprovada pela classificadora Bureau Veritas, (...), o que teria impedido a embarcação de operar (e-STJ, fl. 1.139). O acórdão recorrido também transcreveu parte das respostas do perito aos quesitos apresentados, esclarecendo que muitos serviços contratados não foram realizados (e-STJ, fl. 1.141). Ao final descreveu os serviços e reparos realizados por conta da GLOBAL, mediante contratação de terceiros, que só então obteve a autorização para operar/navegar. Pelas circunstâncias delimitadas pelo acórdão recorrido, observa-se que diante da necessidade de se realizar reparos em um navio, uma empresa especializada foi contratada para a prestação do serviço e alguns itens foram reprovados pela sociedade classificadora, a ponto de impedir que a embarcação voltasse a operar, ou seja, o navio não poderia navegar. E navegar é preciso! Dessa forma, não se pode afirmar que o descumprimento contratual foi mínimo, como concluiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; o inadimplemento foi elevado, grave, substancial, a ponto do navio ser impedido de operar, não poder navegar, não serviria nem sequer para catraia. Navio que não navega não serve. (...) Portanto, se o navio, após a realização dos serviços, não mais servia para o seu propósito, caracterizado ficou o descumprimento substancial da obrigação pela ENAVI, ensejando o acolhimento da arguição da exceção do contrato não cumprido. (STJ, REsp 1907391, Rel. ministro MOURA RIBEIRO, 3ªTURMA, j, 22/6/21) No recurso especial colacionado acima, o STJ entendeu que a reprovação de parte dos reparos pela sociedade classificadora, impedindo a autorização para navegação, configurou inadimplemento substancial da contratada. A Corte reconheceu que a embarcação, ao não atender às condições mínimas de operação, tornou-se inservível ao seu propósito. Com base na quebra do equilíbrio contratual e na violação da boa-fé objetiva, foi acolhida a exceção do contrato não cumprido, autorizando a suspensão das obrigações da parte lesada e eventual indenização. Como destacou o relator, de forma emblemática, "navio que não navega não serve, porque navegar é preciso". Diante da análise das questões jurídicas relacionadas à construção e reparação naval, é possível observar que, tanto nos contratos de construção quanto nos de reparo e modernização de embarcações, a natureza de obrigação de resultado se impõe. Em ambos os casos, o cumprimento integral das obrigações contratuais é fundamental para garantir a funcionalidade das embarcações e a segurança das operações. Além disso, as decisões judiciais demonstram que o descumprimento dos prazos e a qualidade dos serviços prestados geram consequências jurídicas substanciais, evidenciando a importância de um contrato bem estruturado e da vigilância constante sobre o cumprimento das condições acordadas. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo. Para acessar o livro, clique aqui.  __________ 1 Disponível aqui.
Na coluna de hoje, concluímos o tema da "bandeira" das embarcações, iniciado na semana passada. Bandeiras de conveniência Os registros de bandeiras de conveniência também denominados registros independentes, de complacência ou de favor (flag of convenience, flagging out ou flag discrimination) são registros abertos de embarcação. Os registros abertos são caracterizados pela facilidade em se realizar o registro, pelos incentivos fiscais, pela não imposição de vínculo entre o Estado de registro e o navio, pela flexibilidade na fiscalização das embarcações neles registradas, pela legislação menos severa no que diz respeito à segurança e equipamento de bordo. III.2 - Características Os registros de conveniência caracterizam-se pela facilidade e rapidez nos processos de registro. Além disso, pode-se destacar também o fato das taxas de registro (iniciais e de manutenção) serem bem baixas. Também temos a impossibilidade de o governo anfitrião utilizar os navios para propósitos próprios. Destaca-se também a inexistência de legislação ou métodos administrativos destinados ao controle das empresas de navegação. A contabilidade, em geral, não é fiscalizada, sendo a legislação flexível. Do mesmo modo, a legislação trabalhista é favorável. Não há tributação das receitas oriundas da exploração dos navios ou, quando tributadas, os impostos são mínimos. Por esta razão, os países que adotam as bandeiras de conveniência são considerados como paraísos fiscais1. Os registros abertos de BDC - Bandeiras de Conveniência se caracterizam por oferecerem total facilidade para registro, incentivos de ordem fiscal e não imposição de vínculo efetivo entre o Estado de Registro e o navio. Ademais, tais Estados não exigem e nem fiscalizam, com o devido rigor, o cumprimento e a adoção das normas e regulamentos nacionais ou internacionais sobre as embarcações neles registradas. Além das vantagens econômicas oferecidas por tais registros, há em geral legislação e regulamentos menos severos sobre segurança e equipamento de bordo. Não se exige, no mais das vezes, nenhum vínculo efetivo entre o Estado de registro e o navio. Evidentemente, tais facilidades (não exigência de vínculo efetivo e não observância de legislação e regulamentos severos, concernentes à segurança da navegação e obrigação de fiscalizar dos Estados) só são possíveis porque os Estados que concedem a bandeira de conveniência não aderiram (ou, às vezes, simplesmente não cumprem) os preceitos da CNUDM III e de outras convenções internacionais de extrema importância no cenário da navegação, como a MARPOL, SOLAS 1974, CLC/1969, dentre outras. O objetivo de um navio adotar a bandeira de conveniência consiste em estratégia empresarial que visa maior eficiência e lucratividade, uma vez que com isso tem-se a facilitação da competitividade do navio, e o valor do custo do fretamento é menor, haja vista a não aplicação de normas jurídicas restritivas. Nos registros nacionais, em que pese a maior segurança da navegação, há sujeição às normas tributárias, trabalhistas e do meio ambiente, o que aumenta ainda mais o custo do fretamento daquela embarcação. Em consequência, a lucratividade é menor, devido às exigências às quais o navio deve se adequar para conseguir o seu registro e poder assim navegar. Atualmente, os principais países de bandeira de conveniência são: Libéria, Panamá, Honduras, Costa Rica, Bahamas, Bermudas, Singapura, Filipinas, Malta, Antigua, Aruba, Barbados, Belize, Bolívia, Birmânia, Camboja, Ilhas Canárias, Ilhas Cayman, Ilhas Cook, Chipre, Guiné Equatorial, Registro Marítimo Internacional da Alemanha, Gibraltar, Líbano, Luxemburgo, Ilhas Marshall, Ilhas Mauricio, Antilhas Holandesas, San Vicente, Santo Tomé e Príncipe, Sri Lanka, Tuvalu e Vanuatu. Aspectos positivos e negativos da adoção de registros abertos Historicamente falando, a ideia da criação da bandeira de conveniência remonta à II Guerra Mundial e teve sua origem nos Estados Unidos, que autorizou que seus navios adotassem a bandeira panamenha, e dessa forma, pudessem entregar as cargas no Reino Unido, sem que com isso aderissem ao conflito contra  sua vontade. Acontece que, após a guerra, os benefícios puramente econômicos do sistema panamenho tinham se tornado evidentes: permitir à indústria do transporte marítimo evitar os altos custos com a contratação de tripulações americanas, permitir a redução do fardo que representavam os regulamentos mais exigentes, limitar as consequências financeiras de um eventual naufrágio ou perda do navio. Neste contexto competitivo, é menor a influência do "direito-custo", ou seja, das normas de direito que interferem no custo do frete, em especial as normas trabalhistas, tributárias e relativas à segurança marítima e poluição marinha. Neste contexto, a adoção de Bandeira de Conveniência consiste em estratégia empresarial que visa maior eficiência e lucratividade. Prepondera o entendimento segundo o qual a competividade internacional das empresas de navegação restaria comprometida se, a contrario sensu, os navios se submetessem à adoção de registro nacional em seus respectivos países. Ao fazê-lo, consequentemente, estariam sujeitos à legislação do país de bandeira, o que importaria em maiores despesas advindas do "direito-custo" (principalmente legislação e encargos tributários e trabalhistas), entraves burocráticos, subordinação a rigorosas normas de segurança da navegação ou ainda entraves políticos. Com efeito, os navios que arvoram pavilhões de conveniência não integram, de modo efetivo, a economia dos Estados de registro, não servem a seu comércio exterior nem são, para tais países, positivamente produtores de divisas, salvo no concernente aos direitos de inscrição. Efetivamente, tais navios não frequentam, com regularidade, seu porto de matrícula. Ao contrário, realizam o chamado "tráfico de terceira bandeira", ou seja, promovem um tráfico marítimo estranho à mobilização do comércio exterior do país cuja bandeira arvoram. Em consequência, as possibilidades concretas do controle, fiscalização e inspeção do navio por parte das autoridades do Estado de registro são praticamente inexistentes. Além desses aspectos negativos, ocasionados pela navegação de navios com registros abertos, destacam-se também os desastres marítimos. Em decorrência dessas catástrofes, surgiram reações contrárias aos registros abertos, sobretudo, em relação às bandeiras de conveniência, já que as evidências mostraram que os maiores problemas em relação aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e internacionais da navegação ocorreram com navios que ostentavam tais bandeiras. Atualmente, verifica-se um cenário complexo, de grande dependência do transporte marítimo de outras bandeiras, violação da concorrência leal pelas bandeiras de conveniência, os cartéis na indústria de transportes marítimos e omissão dos governos em combatê-los, o que inibe o desenvolvimento das empresas de navegação de países em desenvolvimento, que é dinâmico e de alto risco. A questão da bandeira de conveniência é um tema de grande relevância econômica e estratégica. De um lado, os armadores defendem-na em face da redução de custo que proporciona, de outro lado, os trabalhadores e governos criticam-na tendo em vista os baixos salários e más condições de trabalho e a evasão de tributos. Na visão de Souza, há muitos nomes para bandeira de conveniência: "Bandeiras de Conveniência, bandeiras de necessidade, bandeiras transfugas, bandeiras piratas são os pavilhões que oferecem facilidades para os armadores registrarem seus navios nesses países."2 O mesmo autor entende que as características comuns nos países que oferecem tais bandeiras são: "a) O país autoriza cidadãos não-residentes a serem armadores e/ou controlarem seus navios mercantes; b) o registro é fácil de obter, pois um navio pode se registrar no estrangeiro, não restando a transferência sujeita a qualquer restrição; c) o rendimento obtido pela exploração dos navios não está sujeito a qualquer imposto ou sujeito a impostos insignificantes; os direitos por matrículas e uma taxa anual, calculada sobre a tonelagem do navio, são, em geral, os únicos encargos existentes; d) o país de matrícula é uma pequena potência que não tem, nem terá necessidade, em qualquer circunstância previsível, dos navios registrados; e) as receitas obtidas pelas taxas, embora pequenas, aplicada sobre uma tonelagem importante, tem uma influência valiosa na economia do país; f) é livremente permitida a contratação de tripulações estrangeiras; g) o país não tem poderes, nem estrutura administrativa, para fazer cumprir os regulamentos e convenções internacionais; h) o país não tem desejo, nem condições de controlar as companhias."3 Na esteira desse pensamento, é lógico concluir que os mais prejudicados com o uso das bandeiras de conveniência são os tripulantes, os Estados que deixam de arrecadar tributos, a segurança da navegação e o meio ambiente. No que tange, em especial, aos tripulantes, podem ainda ser citadas as seguintes desvantagens: (...) problemas trabalhistas, tripulantes sem qualificação profissional, competindo com marítimos autênticos e oferecendo seu trabalho por menores salários e condições de trabalho inferiores; instabilidade no trabalho. Os tripulantes são desembarcados em qualquer lugar e abandonados à própria sorte; inexistência de contrato de trabalho com cláusulas claras e às vezes até escritos em idioma diferente daquele do tripulante; problemas econômicos. Muitas vezes são pagos salários abaixo dos estipulados para nacionais do país do armador; não se pagam feriados, não há direito a férias. Muitas vezes a transferência de pagamento para os familiares (consignação) não é remetida; muitas vezes os pagamentos são efetuados em moedas diferentes das estipuladas em contratos, (...) em razão de o tripulante estar submetido a períodos intensos de navegação e trabalho, estão mais sujeitos a doenças e acidentes. (...) A diminuição de custos devido ao não pagamento de impostos, taxas, salários, encargos sociais etc., cria uma concorrência desleal para com os armadores que ostentam bandeiras do seu próprio país." As convenções da OIT no mundo do shipping vêm trazendo a lume uma série de regras e princípios que visam enfrentar estes problemas. As convenções 108/1958 e 185/2003 foram adotadas pela OIT - Organização Internacional do Trabalho com vistas à padronização e à facilitação dos trâmites de embarque e desembarque, trânsito e repatriação de marítimos. Todavia, como decorrência das normas essenciais do Direito Internacional Público, tais convenções vinculam apenas seus Estados Partes, ou seja, não podem ser exigidas de um navio arvorando a bandeira de um Estado que não manifestou sua adesão. O Brasil ratificou ambos os instrumentos, porém a convenção 185 ainda não foi promulgada por decreto presidencial, de modo que, formalmente, ainda não tem validade no âmbito interno. Contudo, os portos têm admitido sua aplicação e constantemente aplicado multas aos navios de bandeiras cujos Países não sejam signatários das convenções 108 e 185 da OIT. Além dos baixos padrões de segurança, os sindicatos dos trabalhadores marítimos criticam os baixos salários e as condições de trabalhos dos tripulantes, especialmente não oficiais, dos navios de bandeira conveniência. Diante disso, a ITF - International Transport Workers'Federation , entidade sindical que congrega a maioria dos sindicatos de trabalhadores marítimos, para combater tal prática, criou o Blue Certificate Issuance, como forma de reduzir tal nível de exploração. Os navios que possuem esse certificado se comprometem a dar condições mínimas de salário e qualidade no trabalho. Não obstante, a ITF enfrenta um dilema, porque, ao mesmo tempo em que objetiva acabar com as más condições de trabalho nos navios de bandeira de conveniência, tem arrecadado muitos recursos para seu fundo, possivelmente, a maior fonte de receita da ITF. Dessa forma, se a ITF conseguisse simplesmente extinguir as bandeiras de conveniência, eliminaria a sua principal fonte de riqueza. Ainda no que tange à segurança da navegação marítima, a maioria dos acidentes da navegação envolve navios de bandeiras de conveniência (open registries). Embora tais países, em muitos casos, sejam partes das convenções sobre segurança marítima, simplesmente não exigem ou implementam tais padrões (standards) de modo que muitos navios que se registram em tais países são perigosos e abaixo do padrão (substandards). Vale mencionar o acidente ocorrido em 1978, no litoral da França, com o navio petroleiro Amoco Cadiz, de bandeira de conveniência, vez que registrado nas Bahamas, mas de propriedade norte-americana. Esse acidente foi o maior derramamento de óleo já registrado até aquela data, e as comunidades locais e o Governo Francês processaram a empresa nos Estados Unidos. Após 14 anos, obteve-se uma indenização, em valores atualizados, de cerca de 190 milhões de euros. Os acidentes ocorrem bem mais entre os navios de bandeira de conveniência. Em 2001, 63 % de todas as perdas em termos de tonelagem ocorreram em 13 países de bandeiras de conveniência. Os cinco maiores são Panamá, Chipre, São Vicente, Camboja e Malta. Existindo uma regulação internacional do transporte marítimo, a mitigação dos problemas ocasionados pelas bandeiras de conveniência exige uma postura ativa do Governo brasileiro na OMC, a fim de aplicar sanções aos países que as concedem. No entanto, com a criação da ANTAQ e edição da lei 8.884/1994 (lei de defesa da concorrência), o Brasil possui instrumentos legais e institucionais (CADE) que podem contribuir para aplicar sanções a empresas que violam o princípio da concorrência leal. Uma forma eficaz para combater tais problemas seria a difusão da fiscalização, inclusive com poder de detenção do navio, realizada pelo "Port State Control". O Brasil procurou se inserir nesta questão de forma positiva, através da adoção do já mencionado REB - Registro Especial Brasileiro pela lei 9.432/1997. Trata-se de uma estratégia para incentivar a adoção da bandeira nacional, mas respeitando-se padrões mínimos de respeito à segurança da navegação e à proteção dos trabalhadores e do meio ambiente. Assim, incentivados por essas novas regras, no ano 2010, ocorreu o lançamento do primeiro navio portas-contêiner construído inteiramente no Brasil. Denominado de Jacarandá e construído pelo EISA - Estaleiro Ilha S.A., com verbas do FMM - Fundo da Marinha Mercante, a pedido da empresa de logística "Log-In", esse lançamento foi uma demonstração clara do quanto uma legislação mais atenta aos acontecimentos globais pode colaborar para o desenvolvimento e reconhecimento do país no cenário internacional. Não apenas no setor houve comemorações, o REB também trouxe benefícios aos armadores e tripulantes das embarcações com bandeira nacional, pois possibilitou a contratação dos marítimos sob a proteção da própria legislação trabalhista nacional (CLT) garantindo-lhes condições humanitárias. Conclusão O objetivo de um navio adotar a bandeira de conveniência consiste em estratégia empresarial que visa maior eficiência e lucratividade, uma vez que com isso tem-se a facilitação da competitividade do navio, e o valor do custo do fretamento é menor, haja vista a não aplicação de normas jurídicas que implicam custos maiores. O uso das bandeiras de conveniência é um meio de o proprietário alcançar lucros e facilidades fiscais, além de vislumbrar vantagens jurídicas no tocante à frágil aplicação das normas legais. Esse registro, segundo os setores mais críticos da doutrina, seria conveniente para o proprietário do navio ou armador, e não para o Estado de registro, que não internaliza nenhum capital e sequer tal fato contribui para o comércio exterior daquele determinado país.  Por outro lado, porém, se tal visão extremada fosse inteiramente correta, não haveria tantos países interessados em conceder bandeiras de conveniência.  Além disso, a criação de segundos registros por vários países, dentre os quais o Brasil, como forma de deter a fuga de registros para bandeiras de conveniência, não tem se mostrado totalmente eficaz. As evidências, com o aumento expressivo da quantidade de navios registrados em tais bandeiras de conveniência desde 1960, comprovam tal assertiva. Por sua vez, o estudo da legislação mostra que a difusão da fiscalização do Port State Control pode contribuir também para o aumento da segurança marítima. Trata-se, na verdade, de uma diferente abordagem para o problema: em vez de combater as bandeiras de conveniência, ou lutar para que seus concedentes exerçam uma fiscalização mais efetiva no porto de matrícula, os Estados passam a exercer uma efetiva fiscalização nos seus próprios portos, exigindo o respeito às normas de segurança da navegação e do meio ambiente.  Trata-se de forma mais inteligente e efetiva de resguardar os valores envolvidos, pois enquanto for vantajosa, na esfera comercial, a prática das bandeiras de conveniência, qualquer medida internacional para impedi-las carecerá de efetividade.  Nada obstante, não se pode também abandonar totalmente a atuação em nível internacional, via OMC, do Brasil e dos países prejudicados pela ação das bandeiras de conveniência, por violação do GATS - Acordo Geral sobre Serviços, de modo a abordar a questão das bandeiras de conveniência sob a ótica da proteção à livre e leal concorrência. Por tudo o que foi visto, a questão parece se reconduzir à velha balança regulatória: quanto mais regulação estatal, maiores os custos, quanto menos regulação estatal, maiores os riscos aos valores comuns a toda a Humanidade, como a segurança, o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores.  Como lembra Sergio Guerra: "O fenômeno da Regulação, tal como concebido nos dias atuais, nada mais representa, pois, do que uma espécie de corretivo indispensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e deformações do regime capitalista. De outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por este mesmo capitalismo."4 Nesse contexto, mesmo abstraída a carga pejorativa - muitas vezes injusta - atribuída às "bandeiras de conveniência", tal instituto continua favorecendo um deficit normativo que pode, em certas situações, expor a risco a proteção dos valores acima citados, além de propiciar concorrência desleal. Já o instituto do "segundo registro", quando bem aplicado e fiscalizado, pode representar um efetivo avanço e incentivo à indústria naval e à navegação em geral, uma vez que os Estados podem transigir naquilo que não afeta diretamente a coletividade (reduções tributárias e regulatórias, e especialmente diminuição da burocracia e simplificação de procedimentos), ao mesmo tempo em que mantém sob controle o respeito às normas de segurança da navegação e da proteção do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores marítimos. Por fim, a prática do Port State Control, embora não dirigida diretamente à questão dos registros abertos, acaba se mostrando um excelente caminho para mitigar os problemas que podem advir do abuso das bandeiras de conveniência. ___________ ANJOS, José Haroldo dos. O contrato de trabalho dos marítimos nas embarcações estrangeiras. In: CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino. Direito marítimo, regulação e desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, direito marítimo e perspectivas num mundo em reforma da ordem internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2004. GUERRA, Sérgio. Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de Direito Marítimo, v. 1.2ª. ed. Barueri: Manole, 2005. MONTIEL, Luis Beltrán. Curso de derecho de la navegación. Buenos Aires: Astrea, 1976. SANTOS, Theophilo de Azeredo. Direito da navegação (marítima e aérea). 2ª. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 1968. SOUZA, François Armand de. Noções de Economia dos transportes marítimos. ___________ 1 Cabe observar que, no Brasil, a expressão "paraíso fiscal" ficou estigmatizada, especialmente pelo público leigo, como algo relacionado à ilicitude.  Entretanto, sua utilização aqui é feita no sentido original, de um Estado que oferece facilidades tributárias para atrair capitais estrangeiros, não necessariamente ligados a atividades criminosas ou ilícitas. 2 SOUZA, François Armand de. Noções de Economia dos transportes marítimos, p. 79 e passim. 3 Ibidem. 4 GUERRA, Sérgio. Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 24.
Introdução: Natureza jurídica do navio A classificação jurídica dos bens vem se modificando, constantemente, em virtude de critérios econômicos. A enorme importância que alguns bens, como navios e aeronaves, foram conquistando, provocou a diferenciação civilista entre bens imóveis, móveis e móveis sujeitos à matrícula. No âmbito da natureza jurídica do navio, surgem dois elementos fundamentais: o enquadramento como bem móvel de natureza sui generis e a configuração de res conexa, um todo composto de várias partes e diversos acessórios, assinalando, assim, que a sua natureza jurídica é complexa. O navio é uma coisa composta, integrada por partes ou elementos passíveis de individualização ou separação e, simultaneamente, está provido de unidade orgânica. Além de coisa composta, o navio é bem móvel, ainda que passível de hipoteca. Ademais, a natureza peculiar do navio faz com que seja suscetível de matrícula, registro e embandeiramento, ou seja, atribuição de uma nacionalidade.  No ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com o art. 82 do CC, o navio deve figurar entre os bens móveis. Pode-se afirmar, inclusive, que, em decorrência da sua própria função e estrutura, o navio não pode ser considerado um bem imóvel, tendo em vista que flutua, navega e desloca-se de um local para o outro, evidenciando todas as características dos bens móveis. Entretanto, não obstante a sua caracterização como bem móvel, por vezes circunstâncias impostas legalmente, como no caso da hipoteca naval, na hipótese da venda judicial e ainda relativamente aos trâmites concernentes ao registro e à transferência de propriedade, evidenciam o caráter peculiar do navio, distinto dos demais bens móveis. Assim, possui uma natureza especial, o que leva alguns autores a classificá-lo como coisa móvel sui generis. O motivo para esse tratamento deve-se ao fato de que, realmente, o navio é um bem móvel, porém, é especial, uma vez que possui elevado valor econômico e importância para o desenvolvimento da economia. Todo navio tem denominação própria e é vinculado a um determinado porto, estando sujeito a um registro especial; tem nacionalidade e domicílio, identificação e especialização; sendo considerado, ainda, projeção do território nacional no mar, sujeito a legislação específica. Diante de tais características, a lei 7.665/88, que regula o registro da propriedade marítima no Brasil, permite que a hipoteca ou outro gravame real recaia sobre a embarcação, ainda que em fase de construção. Entretanto, isso só é possível porque as embarcações, como são bens muitíssimo valiosos e facilmente identificáveis, oferecem as condições necessárias para assegurar o pagamento de uma dívida. Definição e tipos O registro da propriedade das embarcações determina a sua nacionalidade. Efetuado o registro, a embarcação estará habilitada a arvorar o pavilhão do Estado de registro, além de ter a proteção no alto-mar e outras vantagens inerentes à nacionalidade. Hasteando a bandeira de uma nação, o navio passa a ser parte integrante do território dela, nele dominando as suas leis e as convenções internacionais ratificadas pelo Estado de Registro. A CNUDM - Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar III, em seu art. 91, exige que haja um forte elo de ligação entre o Estado e o navio, preconizando que Estados signatários deverão estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade às embarcações, para o registo no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira. Destarte, os navios possuem a nacionalidade do Estado cuja bandeira esteja autorizados a arvorar, devendo existir, em princípio, um vínculo substancial entre o Estado do registro e o navio. Infere-se que o princípio da nacionalidade dos navios apresenta dicotomia de aspectos:  o aspecto de Direito interno, que concerne às condições que fixa cada Estado para outorgar o uso de seu pavilhão e  o aspecto atinente ao Direito Internacional e que, coincidentemente, condensa um recurso técnico que visa organizar a juridicidade no alto-mar, atrelando a conduta nos navios ao ordenamento do Estado da bandeira. Considerando as condições e pressupostos adotados pelos diversos países, os registros das embarcações podem ser classificados em Registros Nacionais e em Registros Abertos. Nos Registros Nacionais, o Estado que concede a bandeira mantém um efetivo controle sobre os navios nele registrados, mantendo-os atrelados à sua legislação. Especificamente quanto ao registro nacional brasileiro, as embarcações estão sujeitas à inscrição nas capitanias dos portos, delegacias ou agências, que são os órgãos de inscrição, ou no Tribunal Marítimo, conforme o seu tipo e dimensões, excetuando-se as abaixo relacionadas:  as da Marinha do Brasil;  as embarcações miúdas, sem propulsão a motor;  os dispositivos flutuantes infláveis, sem propulsão, destinados a serem rebocados, com até 10 m de comprimento. Por ocasião do registro/inscrição será emitida a PRPM - Provisão de Registro de Propriedade Marítima ou o TIE - Título de Inscrição de Embarcação, respectivamente. Enquanto o processo de registro estiver tramitando no Tribunal Marítimo será emitido o DPP - Documento Provisório de Propriedade. Os Regimes Abertos se dividem em Registros de Bandeira de Conveniência e Segundos Registros. Os BDC - Registros Abertos de Bandeiras de Conveniência se caracterizam por oferecerem total facilidade para registro, incentivos de ordem fiscal e a não imposição de vínculo efetivo entre o Estado de registro e o navio. Ademais, tais Estados, em muitas situações, não exigem e nem fiscalizam, com o devido rigor, o cumprimento e a adoção das normas e regulamentos nacionais ou internacionais sobre as embarcações neles registradas. Cabe registrar, desde logo, que a expressão "bandeira de conveniência" possui certa carga pejorativa, no sentido de que tal instituto seria apenas uma "fuga" das regulamentações presentes nos ordenamentos estatais e internacional. Tal crítica, no entanto, deve ser relativizada, uma vez que, ao menos em tese, é possível instituir regimes mais favoráveis, especialmente sob o ponto de vista tributário e regulatório, sem prejuízo à segurança da navegação e do meio ambiente. A maior evidência desta afirmação está no fato de que, como será visto adiante, muitos Estados com forte tradição marítima criaram o "segundo registro", como forma de flexibilizar as exigências legais e evitar a perda de sua frota para países que concedem "bandeiras de conveniência". Por outro lado, o Segundo Registro ou Registro Internacional ("Second Register" ou "Off Shore Register"), foi criado em alguns países visando resguardar a sua frota mercante, oferecendo vantagens similares às bandeiras de conveniência. O Segundo Registro é concedido por países que já possuem registro nacional, a navios de sua nacionalidade ou de outras, oferecendo vantagens similares às concedidas por bandeiras de conveniência. Submete o navio a todas as leis e convenções internacionais concernentes à segurança da navegação, excetuando, em alguns países, as leis trabalhistas, subvenções e incentivos concedidos aos navios do registro nacional. Alguns países, como Dinamarca, Portugal, Bélgica, Inglaterra, Alemanha e Brasil, permitem um segundo registro quando o navio registrado em um país é afretado a casco nu a empresa de outro país. Destarte, o país da empresa afretadora pode permitir o uso de sua bandeira, desde que não haja incompatibilidade de leis entre o país de origem e o país da empresa afretadora. Há somente dois tipos principais de registros de navios: ou ele é registrado como de bandeira nacional ou ele está no registro aberto. Há sutis diferenças entre um segundo registro e entre uma bandeira de conveniência, porém ambos são registros abertos. O Segundo Registro tem suas particularidades, que variam de nação a nação, porém numa coisa eles diferem das bandeiras de conveniência, que é o grau de exigências, quanto a níveis e padrões de operação e segurança. Para perceber a ideia da importância destes institutos, tome-se como exemplo a Alemanha: os armadores alemães detêm a maior frota mundial de navios porta-contêineres, sua parcela do mercado mundial é de 37,2%. A marinha mercante alemã controla 3.011 navios e está entre as mais modernas e seguras do mundo. Entretanto, somente 570 deles (aproximadamente 19%) navegam com bandeira alemã, os demais o fazem sob bandeiras de conveniência. A vasta maioria das Unidades MODU (Plataformas de petróleo, FPSO, Navios Sonda, e barcaças), estão sob registros de conveniência, inclusive no Brasil. Segundo Registro: Características, exemplos e países que o adotam Como regra geral, o navio só pode ter uma única nacionalidade, cujas exigências de registro são determinadas pelo Estado que concederá o pavilhão.  O segundo registro foi criado em alguns países, visando resguardar sua frota mercante e o oferecimento de vantagens similares às bandeiras de conveniência. Esse tipo de registro geralmente é concedido por países que já possuem registro nacional a navios de sua nacionalidade ou de outras, e que auferem vantagens similares às concedidas por bandeiras de conveniência.  Nesse sentido, vale registrar que países que antigamente tinham grande frota mercante e viram seus navios transferirem-se para bandeiras de conveniência resolveram criar um segundo registro, que denominaram registro internacional, em comparação com o normal, chamado de registro nacional ou primeiro registro. O objetivo é que, oferecendo quase as mesmas vantagens de bandeiras de conveniência, os navios de propriedade de armadores de sua nacionalidade voltassem a se inscrever no país, nesse segundo registro.  A inscrição em segundo registro não suprime o registro de propriedade marítima e tem caráter complementar. É a orientação que se extrai, por exemplo, da lei 9432/97, em seu art. 11, § 11, e da lei 7.652/88. Todavia, a adoção de segundo registro não consagra a dupla nacionalidade do navio. O registro inicial, isto é, o primeiro registro, o registro nacional da propriedade marítima, será suspenso e o navio passa a integrar a frota mercante do Estado de segundo registro.  Entretanto, é possível citar a existência de opinião doutrinária em sentido contrário, que assevera que o segundo registro importa em dupla nacionalidade do navio, a saber:  "o navio de dupla nacionalidade é um caso mais raro; como exemplo, um navio é registrado num país e depois afretado a casco nu  para empresa de outro país. Havendo compatibilidade das leis, o país da empresa afretadora pode permitir o uso de sua bandeira, sendo, neste caso, o navio registrado em particular em departamento referente aos afretamentos a caso nu1 (...). Alguns autores consideram como navio de dupla nacionalidade aquele em que o elo de ligação navio-Estado é muito fraco, como ocorre com os navios de bandeira de conveniência."2 Em regra, o segundo registro submete o navio a todas as leis e convenções internacionais concernentes à segurança da navegação, excetuando, em alguns países, as leis trabalhistas, as subvenções e os incentivos concedidos aos navios do registro nacional. Alguns países, como Dinamarca, Portugal, Bélgica, Inglaterra e Alemanha permitem um segundo registro, v.g., o navio registrado em um país e afretado a casco nu a empresa de outro país. Destarte, o país da empresa afretadora pode permitir o uso de sua bandeira, desde que não haja incompatibilidade de leis entre o país de origem e o país da empresa afretadora.  O navio que navegar com mais de um pavilhão é considerado, pelas convenções de Genebra sobre alto-mar (CNUDM I e II) e pela a CNUDM III, como um navio apátrida, sem nacionalidade.    Os segundos registros de maior importância no cenário mundial são o NIS - Registro de Navio Internacional Norueguês (Norwegian International Register) e o DIS - Registro de Navio Internacional Alemão (Deutshe International Register).  O Brasil também instituiu o segundo registro - denominado REB - Registro Especial Brasileiro, pela lei 9.432/97. O Brasil ampara a hipótese de embarcações estrangeiras adotarem a bandeira brasileira sob contrato de afretamento a casco nu, por empresa brasileira de navegação, condicionado à suspensão provisória de bandeira no país de origem.    Podem ser listadas como as principais vantagens do REB os seguintes fatores:  O financiamento à empresa brasileira de navegação para construção, conversão, modernização e reparação de embarcação pré-registrada no REB com taxa de juros semelhantes à de embarcação para exportação, a ser equalizada pelo Fundo da Marinha Mercante; a garantia às empresas brasileiras de navegação da contratação, no mercado internacional, de cobertura de seguro e resseguro de cascos, máquinas e de responsabilidade civil para suas embarcações registradas no REB, desde que o mercado interno não ofereça tais coberturas ou preços compatíveis com o mercado internacional; a desconsideração pelas empresas brasileiras de navegação das remunerações recebidas pelas tripulações das embarcações inscritas no REB; no montante que servirá de base ao pagamento da contribuição para o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo; a não integração do frete aquaviário internacional, produzido por embarcação de bandeira brasileira registrada no REB, como base de cálculo para tributos incidentes sobre importação e exportação de mercadorias pelo Brasil; a isenção das embarcações inscritas no REB do recolhimento da taxa do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo; a equiparação de construção, conservação, modernização e reparo de embarcações pré-registradas ou registradas no REB à operação de exportação; a isenção de contribuições atinentes ao PIS/PASEP e ao Cofins sobre a receita do frete de mercadorias transportadas entre o país e o exterior; a autorização de restabelecimento de registro brasileiro como de propriedade da mesma empresa nacional de origem, sem incidência de impostos ou taxas pelas empresas brasileiras de navegação, com subsidiárias integrais proprietárias de embarcações construídas no Brasil, transferidas de sua matriz brasileira.  Além das vantagens já enunciadas, destaca-se, ainda, a vantagem relativa à nacionalidade da tripulação. Nas embarcações registradas no REB serão necessariamente brasileiros apenas o comandante e o chefe de máquinas.  Trata-se de vantagem comemorada pelos armadores, por se entender que não haveria a necessidade de contratação de marítimos sob a égide da legislação trabalhista brasileira, o que representaria relevante redução de custos. Todavia, inobstante a permissividade da lei no que tange à contratação apenas do comandante e do chefe de máquinas brasileiros, a norma aplicável aos contratos de trabalho continua sendo a legislação do Estado de Bandeira, in casu, CLT e normas correlatas. Na próxima coluna, em prosseguimento, abordarei as chamadas "bandeiras de conveniência".  _________ 1 Afretamento a casco nu é o contrato de afretamento em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação. Nesse sentido, ver Lei n. 9.432/97, artigos 2º, 3º e 9º.  2 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
A Emenda Constitucional 132/23 ("EC 132/2023") e a Lei Complementar 214/25 ("LC 214/2025") instituíram uma profunda reforma na tributação sobre o consumo no Brasil. Entre outras mudanças, a reforma substituirá tributos como ICMS, ISS, PIS e COFINS pelo Imposto sobre Bens e Serviços ("IBS") e pela Contribuição sobre Bens e Serviços ("CBS"), ambos estruturados no modelo de imposto sobre valor agregado ("IVA"), inspirado nas experiências europeias e em outros países ao redor do mundo.   Um dos pontos mais sensíveis para o setor marítimo, especialmente aquele relacionado à cadeia econômica de exploração e produção de petróleo e gás, é o impacto dessas mudanças sobre os contratos de afretamento de embarcações.  No regime atual, os contratos de afretamento - seja a casco nu, por tempo ou por viagem - não devem ser tributados por ICMS ou ISS, conforme reconhecido pelo STF, na ADI 2779, e pelo STJ, no EREsp 1.054.144.   A jurisprudência tem entendido que nos contratos de afretamento em geral, definidos no artigo 2º da lei 9.432/1997, verifica-se, predominantemente, uma obrigação de dar, semelhante a existente nos contratos de locação, por meio do qual a embarcação fretada é disponibilizada para o afretador.  Assim, não há uma transferência mercantil da propriedade da embarcação ou a prestação de um serviço previsto na lista anexa de serviços da LC 116/03. Isso tem afastado a tributação desses contratos tanto pelo ICMS, quanto pelo ISS.  Mesmo quando se verificam outras obrigações no contrato de afretamento, além da disponibilização da embarcação, como no caso do fornecimento da mão de obra da tripulação ou mesmo da manutenção da embarcação, não há fato gerador do ICMS e do ISS. O contrato de afretamento é uno e incindível, não podendo ser mutilado para fins tributários.  Todavia, o espectro de incidência do IBS e da CBS é muito mais amplo, e essa abrangência tem suscitado algumas dúvidas sobre a incidência desses novos tributos sobre os contratos de afretamento.  A EC 132/23 alterou a Constituição de 1988 e incluiu o artigo 156-A, que confere competência ao legislador complementar para instituir um imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, estipulando que esse tributo "incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços" e também sobre a "importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou de serviços realizados por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja sujeito passivo habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade".  A LC 214/25, em seu artigo 4º, estabelece a incidência do IBS e da CBS sobre operações onerosas com bens ou serviços, incluindo, expressamente, a locação.  Isso tem gerado dúvidas quanto à extensão desses tributos, levando alguns a concluir, de forma apressada, que o afretamento estaria automaticamente sujeito aos novos tributos.  A resposta a essa questão, entretanto, exige análise mais cuidadosa, guiada pelas normas constitucionais e legais que regem a nova tributação, notadamente levando em conta as particularidades dos contratos de afretamento.  Em linhas gerais, na indústria do petróleo e gás, os contratos de afretamento são celebrados entre empresas fretadoras brasileiras e armadores estrangeiros. O ingresso desses bens no Brasil se faz sob o amparo do Regime Aduaneiro Especial de Exportação e Importação de Bens Destinados às Atividades de Pesquisa e Lavra das Jazidas de Petróleo e de Gás Natural ("Repetro"), que admite diferentes modalidades de importação ou de admissão temporária de bens com suspensão de tributos.  A legislação do Repetro atualmente em vigor suspende tributos como II, IPI, PIS/COFINS-Importação e o ICMS em casos de afretamentos de embarcações específicas, que ingressam temporariamente no país, e são destinadas às atividades de exploração de petróleo e gás.  Pelo texto da nova legislação, em especial o artigo 93 da LC 214/25, o IBS e a CBS também estarão suspensos na hipótese em que a lei denomina de "importação de bens destinados às atividades de exploração, de desenvolvimento e de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos previstas na legislação específica, cuja permanência no País seja de natureza temporária, constantes de relação especificada no regulamento".  Essa disposição legal cumpre o mandamento constitucional do artigo 156, § 5º, VI, que trata da necessidade da lei complementar dispor sobre diferimento e desoneração do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais.  Assim, em princípio, embarcações afretadas no exterior que atualmente ingressam no país sob o regime do Repetro, conhecidos no jargão do mercado como "bens repetráveis", também poderão ingressar em território nacional e aqui operar com suspensão de IBS e de CBS, a partir do momento em que esses tributos começarem a vigorar.    Esse tratamento diferenciado evita um enorme impacto que a reforma tributária poderia ter sobre o setor. O Repetro é fundamental para a manutenção das atividades de exploração e lavra de petróleo no País e para garantir nossa segurança energética. Trata-se de uma indústria que demanda investimentos bilionários e de alto risco. A tributação elevada de CBS e IBS poderia funcionar como uma barreira alfandegária intransponível para o ingresso de bens em valores bilionários como plataformas de petróleo e navios-sonda no país.  Em tese, caberá ao regulamento listar esses "bens repetráveis". Na nossa visão, por força do princípio da legalidade tributária, que, por ser garantia fundamental, não foi, nem poderia ser flexibilizado pela reforma tributária, a função do regulamento é puramente expletiva. Isto é, evidenciar e dar publicidade sobre os bens que são importados com essa finalidade e devem ser objeto de suspensão desses tributos. O regulamento não poderia criar nem restringir o tratamento tributário previsto na lei.  Logo, os bens, em especial as embarcações afretadas e utilizadas nessas atividades, devem necessariamente estar sujeitos à suspensão do IBS e CBS, não havendo incidência desses tributos no caso desses afretamentos.  No caso de outros afretamentos internacionais de bens que não se qualifiquem como "repetráveis", poderá haver algum tipo de controvérsia sobre a incidência desses tributos. No entanto, em se tratando de contratos internacionais de afretamento para uso temporário de embarcações no país, é de se cogitar o próprio cabimento da cobrança de IBS e CBS.  Isso porque a CF/1988 prevê que, em operações realizadas no plano internacional, o IBS e a CBS incidem no caso de "importação" de bens. Todavia, o contrato de afretamento não se qualifica juridicamente como uma importação de bem, já que o bem não ingressa em definitivo no território e na economia nacional, sendo apenas utilizado pelo fretador durante a vigência do contrato de afretamento. Não há, tecnicamente, "importação" do bem, no sentido constitucional do termo, a atrair a incidência desses tributos sobre o consumo.  A questão da tributação desses contratos internacionais de afretamento é, aliás, um tema frequentemente debatido no Direito Tributário Internacional. A própria Diretiva IVA que trata do afretamento de navios que navegam em águas internacionais estabelece a isenção de IVA no transporte internacional, havendo, inclusive, precedentes do Tribunal de Justiça Europeu sobre controvérsias na aplicação dessa norma comunitária.  A reforma tributária tem por premissa racionalizar e simplificar a tributação no Brasil, sem implicar o aumento da carga tributária. Por isso, por mais que se verifique uma ampliação do espectro dos tributos atualmente em vigor, como o IBS e CBS, isso não significa necessariamente uma tributação sobre os contratos de afretamento. Existem particularidades nesses contratos e nas normas que disciplinam esses tributos, de tal sorte que essas atividades essenciais para a exploração e produção de petróleo e gás deveriam, a rigor, seguir desoneradas também desses novos tributos.
Em recente julgamento proferido nos autos da apelação cível 1023520-26.2024.8.26.0100, a 12ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP revisitou a discussão acerca da eficácia de cláusula de arbitragem em face de seguradora sub-rogada nos direitos de contratante de transporte marítimo de cargas. Na hipótese, a relação entre as partes era derivada de um contrato global de prestação de serviços de transporte marítimo, firmado entre multinacional de grande porte econômico, fabricante de transformadores industriais, com agente de cargas internacional, especializado na logística e transporte de "carga-projeto".  Na oportunidade, os I. Julgadores reafirmaram um ponto que entendemos ser crucial para o setor de seguros e transporte marítimo, qual seja o de que a seguradora sub-rogada nos direitos do segurado deve respeitar a cláusula de arbitragem, firmada no contrato de transporte. No acórdão restou destacado que a sub-rogação transfere integralmente os direitos e obrigações do segurado, incluindo a submissão ao procedimento arbitral, destacando para tanto a ciência prévia da seguradora acerca das condições pactuadas pelo segurado. Esse entendimento está alinhado com precedentes do STJ e Tribunais de Justiça de outros Estados, por bem como o art. 757 do CC, que define o contrato de seguro como aquele em que a seguradora assume riscos previamente delimitados. No caso em análise, a seguradora, após indenizar sua segurada, ajuizou ação regressiva contra a transportadora, buscando recuperar o valor pago pelo sinistro. No entanto, no contrato de transporte marítimo havia cláusula de arbitragem internacional estipulada, estabelecendo que eventuais disputas deveriam ser resolvidas no juízo arbitral de Londres, conforme as regras da ICC - Câmara de Comércio Internacional. A seguradora, defendendo a sua posição, alegou que não poderia ser obrigada ao cumprimento dessa cláusula, pois não foi parte do contrato de transporte. No entanto, os D. Julgadores rejeitaram a tese, destacando que a seguradora tinha plena ciência da cláusula de arbitragem pactuada antes de assumir o risco. No v. acórdão enfatizou-se: "Num negócio desse porte, certamente a seguradora ponderou os riscos do contrato envolvendo transporte internacional, até mesmo para a adequada precificação do prêmio e da indenização." O mencionado trecho reflete uma questão relevante, pois não se pode alegar surpresa quanto a uma cláusula expressa em um contrato do qual a seguradora conhecia previamente os termos. Além disso, a decisão reforça que a seguradora não pode escolher quais cláusulas do contrato original deseja herdar. Se o segurado contratou com a estipulação da cláusula de arbitragem, a seguradora herda esse compromisso junto com os demais direitos e obrigações. Nesse sentido, é a afirmação contida no v. acórdão: "É da essência da sub-rogação que o sub-rogado receba o direito como ele se apresenta. Com todas as garantias, mas também com todas as limitações." Importante salientar que a seguradora somente integrou o litígio em razão da existência do contrato firmado pelo segurado, sendo portanto de rigor o respeito aos seus respectivos termos, destacando-se aqui a autonomia da vontade das partes que elegeram a via arbitral para a solução das suas disputas. Tal hipótese está prevista no Código Comercial brasileiro, a teor do seu art. 728: "Pagando o segurador um dano acontecido à coisa segura, ficará sub-rogado em todos os direitos e ações que ao segurado competirem contra terceiro; e o segurado não pode praticar ato algum em prejuízo do direito adquirido dos seguradores." A partir do texto legal acima, nota-se que o legislador foi muito claro ao afirmar que o segurador sub-rogado tem os mesmos direitos e ações que teria o segurado em face do terceiro. Isto decorre de uma razão muito simples: O segurado não pode transferir ao segurador mais direitos e ações do que lhe competia originariamente.  E isso é corroborado no texto do CC, a teor dos arts. 349 e 786: Artigo. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida contra o devedor principal e os fiadores.  (.) Artigo 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.  Assim, o julgamento consolidou o entendimento de que o contrato de seguro não pode ser interpretado de maneira isolada em relação ao contrato de transporte, pois a seguradora tinha ciência dos riscos e das regras envolvidas na contratação exercida pelo segurado. Como já mencionado acima, a v. decisão também se fundamentou na regra do art. 757 do CC, que define o contrato de seguro da seguinte forma: "Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados." A letra da lei deixa claro que o seguro não pode ser dissociado das condições previamente estabelecidas no contrato original. Quando a seguradora aceita dar cobertura a determinado risco, ela assume também as limitações contratuais e os procedimentos previamente pactuados pelo segurado. Nesse ponto, a v. decisão asseverou que a arbitragem não foi uma imposição unilateral do transportador, mas uma cláusula previamente acordada e conhecida por todas as partes envolvidas: "A seguradora, ao aceitar garantir o transporte marítimo, assumiu também a submissão à arbitragem, pois se trata de um risco calculado e previamente delimitado no contrato de transporte." Portanto, ao precificar o prêmio e definir a cobertura, a seguradora já sabia que eventuais litígios deveriam ser resolvidos através de arbitragem, não podendo submeter a disputa ao Judiciário brasileiro. Esse raciocínio é reforçado pela jurisprudência do STJ, que tem decidido de forma consistente que a seguradora sub-rogada deve respeitar as cláusulas contratuais pactuadas pelo segurado, incluindo a eleição de foro e a arbitragem. O entendimento ora reiterado no TJ/SP, segue os precedentes consolidados do STJ, que já analisou casos semelhantes e reafirmou a necessidade de cumprimento das cláusulas contratuais previamente pactuadas, como segue: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO SUCESSIVO DE CONVERSÃO EM PERDAS E DANOS. CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. 1. Ação ajuizada em 19/07/2013. Recurso especial concluso ao gabinete em 03/07/2017. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal é definir se a presente ação de obrigação de fazer pode ser processada e julgada perante a justiça estatal, a despeito de cláusula compromissória arbitral firmada contratualmente entre as partes. 3. A pactuação válida de cláusula compromissória possui força vinculante, obrigando as partes da relação contratual a respeitar, para a resolução dos conflitos daí decorrentes, a competência atribuída ao árbitro. 4. Como regra, diz-se, então, que a celebração de cláusula compromissória implica a derrogação da jurisdição estatal, impondo ao árbitro o poder-dever de decidir as questões decorrentes do contrato e, inclusive, decidir acerca da própria existência, validade e eficácia da cláusula compromissória (princípio da Kompetenz-Kompetenz). 5. O juízo arbitral prevalece até mesmo para análise de medidas cautelares ou urgentes, sendo instado o Judiciário apenas em situações excepcionais que possam representar o próprio esvaimento do direito ou mesmo prejuízo às partes, a exemplo da ausência de instauração do juízo arbitral, que se sabe não ser procedimento imediato. 6. Ainda que se admita o ajuizamento - frisa-se, excepcional - de medida cautelar de sustação de protesto na Justiça Comum, os recorrentes não poderiam ter promovido o ajuizamento da presente ação de obrigação de fazer nesta sede, em desobediência à cláusula compromissória firmada contratualmente entre as partes. 7. Pela cláusula compromissória entabulada, as partes expressamente elegeram Juízo Arbitral para dirimir qualquer pendência decorrente do instrumento contratual, motivo pela qual inviável que o presente processo prossiga sob a jurisdição estatal. 8. Recurso especial conhecido e não provido. (REsp nº 1.694.826/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 13/11/2017) O julgamento do caso 1023520-26.2024.8.26.0100 no TJ/SP, confirmando o mesmo entendimento da jurisprudência do STJ e Tribunais de Justiça de outros Estados brasileiros, reforça a importância do respeito ao exercício pleno da autonomia da vontade das partes contratantes, que renunciaram ao juízo estatal em favor do procedimento arbitral para a solução dos conflitos, bem como do conhecimento prévio dos termos e condições contratados pela seguradora, que não pode alegar ser mero terceiro e, portanto, imune aos respectivos efeitos jurídicos.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema das "cláusulas arbitrais" no contexto dos contratos de transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto. Os contratos de transporte marítimo são firmados em larga escala e ao redor de todo o mundo, abrangendo operações complexas que envolvem diversas partes, como armadores, afretadores, operadores portuários e seguradoras. Dada a natureza transnacional dessas relações, é essencial que os envolvidos tenham segurança e previsibilidade quanto às obrigações assumidas e aos meios disponíveis para resolver eventuais disputas. A incerteza quanto à jurisdição competente ou ao direito aplicável pode gerar custos elevados e comprometer a eficiência das operações. Nesse contexto, a arbitragem se destaca como uma alternativa eficiente, oferecendo um procedimento célere, especializado e adaptado às particularidades do setor marítimo. A arbitragem é amplamente adotada nos contratos de transporte internacional devido à sua flexibilidade e confiabilidade, além de ser bastante tradicional na seara do direito marítimo. Os tribunais arbitrais costumam ser compostos por especialistas na matéria, o que permite uma análise mais técnica das questões envolvidas, reduzindo riscos de decisões que desconsiderem as práticas comerciais do setor. No Brasil, a lei de arbitragem (lei 9.307/1996) e o CPC reconhecem a validade das cláusulas compromissórias e estabelecem que a existência de convenção arbitral impede a apreciação da demanda pelo Judiciário, salvo em hipóteses excepcionais. Isso reforça a segurança jurídica dos contratos e a confiança dos agentes do mercado marítimo na arbitragem como um meio eficaz de solução de controvérsias. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre o tema das cláusulas de arbitragem nos contratos de transporte marítimo. Primeiro Julgado: AÇÃO DE REGRESSO. Seguro. Transporte multimodal de mercadoria. Acidente. Perda total da carga. Arbitragem. Cláusula compromissória estipulada no contrato de prestação de serviços firmado entre a operadora do transporte (ré) e a empresa segurada. Cláusula que também vincula a seguradora (autora). Precedente deste Tribunal. Sentença reformada para julgar extinto o processo sem resolução do mérito, com base no art. 267, VII, do CPC. Recurso provido. (TJ/SP; Apelação 0149349-88.2011.8.26.0100; Relator (a): Tasso Duarte de Melo; 12ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 11/2/15) Segundo Julgado: Pretensão regressiva fundada em sub-rogação - Transporte marítimo internacional de cargas - Cláusula compromissória - Sub-rogação legal do segurador, de maneira integral, envolvendo os créditos do qual o credor sub-rogado teria direito, bem como de todas as obrigações, principais e acessórias, decorrentes do contrato - Convenção privada inserida no instrumento por meio da qual as partes se comprometem a submeter previamente à arbitragem os litígios que possam vir a surgir - Competência exclusiva - Arts. 4ª, 8º, 32, I e 33, da lei 9.307/1996 (lei de arbitragem) e art. 853, do Código Civil - Possibilidade de exame pelo Judiciário somente de questões formais, a respeito da validade, existência e nulidade da sentença arbitral (...). (TJ/SP; Apelação 1009026-77.2015.8.26.0002; Relator (a): César Peixoto; 38ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 17/8/16) Ao analisar o primeiro julgado, é possível observar a existência da cláusula arbitral no contrato de transporte marítimo, de modo que o Tribunal que a seguradora se subroga nos direitos e ações que competiam ao segurado, em todos os seus limites, incluindo-se, portanto, a cláusula de arbitragem. Neste sentido, é certo que a decisão em comento está de acordo com o entendimento do STJ no recurso especial de 1.988.894, já tratado em artigo anterior publicado nesta coluna 2, por meio do qual a Quarta Turma da Corte Superior entendeu pela vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte. Isso porque, de acordo com a Corte Superior, a cláusula compromissória não é condição personalíssima da parte segurada e, segundo os art.s 349 e 786 do Código Civil, a sub-rogação transfere os aspectos materiais e processuais da relação originária. Assim, para que essa transmissão ocorra, é essencial que seja possibilitado à seguradora ter conhecimento prévio da cláusula compromissória no contrato de transporte ao qual se dará cobertura, e tal disposição não implica diminuição dos direitos ou ações da segurada, pois integra o risco segurado. Além disso, a Corte Superior discorreu, ainda, sobre a impossibilidade de afastamento da cláusula arbitral pelo segurado subrogado, visto que "implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga 3." Deste modo, é certo que na subrogação não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, não podendo a seguradora, que decide dar cobertura a um determinado contrato, pretender posteriormente não se vincular aos direitos e obrigações dispostos naquele contrato. Logo, de acordo com o julgado em estudo, o subrogado não pode adquirir mais direitos que os originalmente transmitidos, visto que a cláusula compromissória prevista no contrato de prestação de serviços vincula igualmente a seguradora. Sobre isso, é amplo o entendimento do STJ, no qual mantém a posição de que o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado. Veja: AGRAVO INTERNO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE FORNECIMENTO DE MOTORES. DEFEITO NO MOTOR . CONTRATO DE SEGURO. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURADORA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA PACTUADA ENTRE SEGURADA E UM CONSÓRCIO DE EMPRESAS . 1. A controvérsia reside em saber se a cláusula compromissória instituída no contrato de fornecimento de equipamentos deve produzir seus efeitos na relação jurídica agora existente entre os litigantes da presente ação regressiva, por força da sub-rogação operada pelo art. 786 do Código Civil. 2 . O acórdão recorrido está em consonância com o entendimento da Quarta Turma do STJ, no julgamento REsp 1.988.894/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, que, a despeito de a sub-rogação legal em favor da seguradora não importar transmissão automática de cláusula compromissória, a ciência prévia da seguradora a respeito de sua existência no contrato objeto de seguro-garantia resulta na submissão à jurisdição arbitral . 3. No caso dos autos, o acórdão recorrido afirmou que a seguradora tinha conhecimento das regras de contratação. Alterar essa conclusão colidiria com a súmula 7/STJ. Agravo interno improvido. (STJ - AgInt no AREsp: 2273766 RJ 2023/0001678-6, Relator.: ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 3/6/24, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 5/6/24); AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO. CONTRATO. CLÁUSULA DE COMPROMISSO ARBITRAL . PERDA DA CARGA. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA À SEGURADA. SUBROGAÇÃO DA SEGURADORA. SUBMISSÃO AO JUÍZO ARBITRAL NA DEMANDA QUE BUSCA RESSARCIMENTO DA CAUSADORA DO SINISTRO . AGRAVO DESPROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. O acórdão objeto do recurso especial concluiu ser da praxe de contratos de transporte internacional que conste a cláusula compromissória arbitral, fazendo parte, portanto, do risco calculado da seguradora, em casos deste jaez, sendo certo ainda que, na espécie, tinha a ora recorrente (seguradora) conhecimento de referida estipulação, o que legitima ser-lhe oponível aquela cláusula . 2. Ao assim decidir, coloca-se em consonância o Tribunal de Justiça com julgados das duas Turmas que compõem a Segunda Seção. 3. Agravo interno desprovido . Recurso especial da seguradora desprovido. (STJ - AgInt no REsp: 1637167 SP 2016/0294173-4, Relator.: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 26/2/24, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/2/24); AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TRANSPORTE MARÍTIMO. SEGURO . CLÁUSULA ARBITRAL. SUB-ROGAÇÃO. PRECEDENTE. 1 . A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assentou que a seguradora se sub-roga nos direitos e ações que competiam ao segurado, incluída a cláusula de arbitragem. 2. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1958434 SP 2021/0133656-2, Relator.: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 12/8/24, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/8/24); O segundo julgado reforça a prevalência da cláusula compromissória arbitral em contratos de transporte marítimo internacional de cargas, mesmo em demandas propostas pelo segurador subrogado. A decisão se alinha à interpretação dos dispositivos da lei de arbitragem (lei 9.307/1996), especificamente os arts. 4º, 8º, 32, I e 33, e do arti. 853 do Código Civil, estabelecendo que o compromisso arbitral deve ser respeitado pelas partes e que o Poder Judiciário somente pode analisar aspectos formais da arbitragem, como validade, existência e nulidade da sentença arbitral. No caso concreto, a subrogação operada pelo segurador não altera ou afasta a incidência da cláusula compromissória arbitral, uma vez que o subrogado assume integralmente não apenas os créditos originários do credor primitivo, mas também todas as obrigações principais e acessórias, em seus estritos limites, o que inclui a cláusula arbitral. Veja-se que o julgado destaca que a cláusula arbitral é uma convenção privada entre as partes que, respaldada pela lei, deve prevalecer. Dessa forma, a decisão também demonstra consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, preservando a autonomia da vontade das partes contratantes e respeitando a aplicabilidade da arbitragem, como no caso das seguradoras sub-rogadas. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no livro de "Jurisprudência Marítima", que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. ___________  1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
quinta-feira, 20 de março de 2025

Criação de turmas no Tribunal Marítimo

O Tribunal Marítimo é um órgão autônomo, vinculado ao Comando da Marinha do Brasil, que auxilia o Poder Judiciário com a função de julgar acidentes e fatos da navegação em águas brasileiras, que envolvam tripulantes nacionais ou embarcações de bandeira brasileira. As decisões desta Corte administrativa possuem valor de prova técnica e são alcançadas através de um julgamento colegiado realizado por um corpo técnico multidisciplinar composto por seis desembargadores com diferentes expertises, sob a presidência de um desembargador-presidente, que é vice-almirante da Marinha de guerra. Em 18/5/21, foi promulgada a atual versão do RIPTM - Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo, que disciplina sobre a composição e competência desta Corte, bem como estabelece ritos processuais e o julgamento dos feitos da sua competência legal, além de fixar procedimentos administrativos pertinentes ao órgão. Originalmente, essa versão do RIPTM determinava que os Inquéritos conduzidos pelas Capitanias dos Portos, delegacias e agências, após suas conclusões, deveriam ser distribuídos a um desembargador-relator e um desembargador-revisor, sendo julgados em sessão do Pleno, mediante decisão por maioria dos votos, com a presença de, no mínimo, cinco desembargadores, incluído o desembargador-presidente1. Ocorre que, com o intuito de aprimorar a sua atuação e garantir maior eficiência na tramitação dos processos, o Tribunal Marítimo implementou uma importante alteração no RIPTM: a criação de duas turmas de julgamento.  Segundo a resolução TM 65/24 de 19/12/24, cada turma será composta por três juízes. Os parágrafos 2º e 3º do art. 2-B dispõem que a primeira turma comportará um desembargador especializado em Direito Marítimo, um desembargador capitão de longo curso da marinha mercante brasileira e um desembargador do corpo de engenheiros e técnicos navais, subespecializado em máquinas ou casco. Já a segunda turma, será composta por um desembargador especializado em Direito Internacional Público, um desembargador especialista em armação de navios e navegação comercial e um desembargador do corpo de armada. Diferentemente das sessões do Pleno, em que o desembargador-presidente detinha o voto de desempate "voto de minerva", a nova resolução estabelece que a sua função é exclusivamente presidir as turmas, sem direito a voto. Na sua ausência, a presidência caberá ao desembargador mais antigo da turma2. Segundo o art. 41-A3 da alteração procedimental, visando disciplinar as decisões das turmas, foi determinado que elas devem contar com a participação e o voto de todos os seus três integrantes. Caso haja três votos divergentes, o processo será remetido ao Pleno para nova votação. Ademais, em complemento ao objetivo da criação das turmas de julgamento de acelerar a tramitação processual, aprimorar a organização dos julgamentos e proporcionar maior celeridade e eficácia na análise dos casos, essa mudança na regulamentação processual almejou também de fortalecer o duplo grau de jurisdição. Isso porque, a resolução prevê, em seu art. 143-A4, a possibilidade de interposição de recurso ordinário direcionado ao Pleno contra acórdãos proferidos pelas turmas. Essa nova modalidade recursal implementada pelo Tribunal Marítimo possui uma hipótese de cabimento amplo, sendo possível o seu manejo sempre que a parte interessada discordar da valoração realizada pela turma. Nesse ponto, importante rememorar que, antes da alteração regimental, em face de um acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo, seria apenas possível a oposição de embargos de declaração, caso houvesse omissão, obscuridade ou contradição na decisão, ou então de embargos infringentes, caso o v. acórdão não fosse unanime, ou se fossem identificadas provas ou fatos novos, que não foram apreciados pela decisão. Ou seja, o único recurso com objetivo precípuo de reformar o acórdão tinha hipótese de cabimento restrito, não estando ao alcance de todos os representados, que não dispunham deste instrumento processual, caso fossem condenados à unanimidade e não houvesse fatos ou provas novas. Assim, com a alteração implementada pela Corte Marítima, passou a ser garantido o duplo grau de jurisdição a todos os envolvidos em fatos e acidentes da navegação sem qualquer restrição ou condicionamento para o exercício desse direito de interpor recurso. Mediante a interposição do novo recurso ordinário, os processos julgados pelas turmas serão levados à apreciação do Pleno, em que votarão também os três desembargadores que compõe a outra turma, possibilitando, assim, que seja reformada a decisão. Nessa modalidade de julgamento, o desembargador-presidente retorna à sua função histórica de proferir o voto de minerva, caso haja um empate no julgamento. Em que pese essa relevante alteração no regimento interno processual do Tribunal Marítimo já tenha sido proferida no final do ano de 2024, ainda não era de conhecimento da comunidade marítima o momento em que começaria a ser aplicado esse novo rito de julgamento, bem como qual seria a regra de transição para a sua implementação. Nesse sentido, no dia 27/2/25 sobreveio a portaria TM-MB 8, que regulamentou a resolução 65/24, e fixou, em seu art. 1º 5, que o novo rito de julgamento pelas turmas seria adotado em todos os processos eletrônicos que ainda estejam em secretaria aguardando julgamento ou apreciação de representação. O supramencionado dispositivo normativo previu ainda que o julgamento desses casos em tramitação deveria ser realizado perante a turma integrada pelo desembargador-relator. Valendo-se destacar que o seu parágrafo primeiro6 excluiu desse rito de julgamento os recursos em andamento e os processos físicos, enquanto o parágrafo segundo7 excluiu desta nova regra procedimental os processos que já estivessem pautados. Nota-se, portanto, que se tratou de relevante alteração ao procedimento adotado pelo Tribunal Marítimo há muitos anos, com aplicabilidade imediata e que poderá representar uma relevante ferramenta para a gestão do acervo processual da Corte. Portanto, tem-se que a criação das turmas de julgamento e as demais modificações promovidas pelo Tribunal Marítimo, buscaram não apenas promover mais celeridade e eficiência na tramitação processual, possibilitando uma gestão mais eficaz do acervo de casos em andamento, permitindo também o exercício de duplo grau de jurisdição mais consistente e eficaz, conquanto foi criado um recurso que tem hipótese de cabimento amplo.  _________ 1 Art. 41 RIPTM - As decisões do Tribunal serão tomadas por maioria simples de votos, desde que estejam presentes, no mínimo, cinco Juízes, incluído o Juiz-Presidente. 2 Art. 2º - B. As Turmas são constituídas de três Juízes, na forma deste artigo. [...] §4º Na ausência do Juiz-Presidente, a Turma será presidida pelo Juiz mais antigo que a compõe.  3 Art. 41-A. As decisões das Turmas serão tomadas com a presença e voto de todos os seus componentes. Parágrafo único. Quando houver 3 (três) votos divergentes, o processo será encaminhado ao Pleno, para nova votação. 4 "Art. 143-A. Dos Acórdãos prolatados pelas Turmas caberá Recurso Ordinário ao Pleno, para o reexame de toda a matéria. Parágrafo único. Aplica-se ao Recurso Ordinário o previsto para os Embargos Infringentes, com exceção do art. 144." 5 Art. 1º Determinar à Diretora-Geral da Secretaria que os processos eletrônicos que estejam em Secretaria aguardando julgamento ou apreciação de representação sejam incluídos em pauta observando a Turma a qual compõe o respectivo Juiz-Relator 6 §1º Os recursos em andamento e os processos físicos serão incluídos em pauta para julgamento pelo Pleno. 7  §2º O disposto no caput deste artigo não se aplica aos processos já pautados.
É inegável e bastante conhecida a relevância do seguro marítimo para as atividades realizadas no setor da navegação. Desde seu início, o ato de embarcar e se lançar ao mar foi chamado de "aventura marítima", sendo o uso do termo mais do que adequado, considerando os altos riscos envolvidos nessa atividade, não obstante os avanços tecnológicos e de segurança das embarcações. Em Londres, no século XVII, na Tower Street, os comerciantes e armadores se reuniam na histórica Lloyd's Coffee House para obter seguros marítimos e apostar sobre quais navios retornariam ou não ao porto de partida. Os prejuízos que podem decorrer dessas atividades, de fato, não podem ser tolerados ou suportados pela grande maioria dos players do mercado. Com isso, assim como em outros setores, o instituto do seguro se torna essencial para a própria continuidade da atividade. A partir de contratos de seguro e resseguro, a transferência do risco a terceiro revela-se verdadeiro viabilizador das atividades marítimas. Em uma linha, o seguro marítimo configurou-se como uma necessidade de todos. No campo jurídico, um dos aspectos mais relevantes e que dá ensejo a inúmeras controvérsias é a possibilidade de a seguradora indenizar o seu cliente e se sub-rogar no lugar deste para promover a chamada ação de ressarcimento ou, como usualmente colocado, o direito de regresso contra o causador do dano. Seria impossível discorrer sobre todos os tópicos envolvidos na questão da sub-rogação das seguradoras, logo, vale tecer comentários sobre duas decisões recentes do TJ/RJ que ilustram controvérsias essenciais e relevantes sobre esse tema. A primeira delas trata da relevante questão do prazo prescricional para a seguradora promover ação regressiva pelo dano causado ao segurado, em face do transportador marítimo. Já a segunda aborda a legitimidade passiva do agente marítimo em processo de ação regressiva em face de seu cliente/agenciado (no caso, transportador marítimo estrangeiro), ponto que está envolto em controvérsias, existindo posicionamentos jurisprudenciais divergentes sobre o tema. Confira-se, abaixo, o primeiro julgado, de fevereiro do ano corrente, no qual se discutiu a questão da prescrição da ação regressiva proposta pela seguradora: APELAÇÃO CÍVIL. AÇÃO DE RESSARCIMENTO. CONTRATO DE SEGURO. REGRESSO EM FACE DA CAUSADORA DO DANO. CARGA AVARIADA. TRANSPORTE MARÍTIMO. ALEGA A AUTORA QUE DURANTE O TRAJETO ENTRE O PORTO DE RECIFE E O PORTO DE MACEIÓ, HOUVE A AVARIA DE 150,780 TONELADAS DE CLORETO DE POTÁSSIO E CONSTATADA A AUSÊNCIA DE 4,091 TONELADAS DAS 2.000,000 EMBARCADAS EM DESFAVOR DO SEGURADO, RAZÃO PELA QUAL FOI ACIONADO O SEGURO EM RAZÃO DO SINISTRO, OCORRENDO O PAGAMENTO DO VALOR TOTAL DE USD 28.491,54, QUE CONVERTIDOS EM REAIS ("BRL") PELA COTAÇÃO DO BANCO CENTRAL, NA DATA DO PAGAMENTO, CORRESPONDEM AO MONTANTE DE R$ 115.641,46. DECRETADA A REVELIA DA PARTE RÉ. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO EM RAZÃO DA PRESCRIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO PARA PROPOSITURA DE AÇÃO PELO SEGURADOR PARA REQUERER DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO O RESSARCIMENTO POR DANOS CAUSADOS À CARGA, NOS TERMOS DA SÚMULA 151/STF E DO ART. 8º, CAPUT, DO DECRETO-LEI 116/67, TENDO COMO TERMO INICIAL A DATA DO PAGAMENTO INTEGRAL DA INDENIZAÇÃO AO SEGURADO. PRECEDENTES DO STJ E DO TJ/RJ. RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE PESSOAS JURÍDICAS QUE EXERCEM ATIVIDADE EMPRESARIAL E VISAM LUCRO, INEXISTINDO VULNERABILIDADE DE QUALQUER DELAS. INAPLICABILIDADE DO CDC. AJUIZAMENTO DE NOTIFICAÇÃO JUDICIAL. CAUSA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO. CONTAGEM DO NOVO PRAZO A PARTIR DA DATA DA INTIMAÇÃO. NOS TERMOS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 202 DO CÓDIGO CIVIL, EM SE TRATANDO DE INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO CAUSADA POR ATO ÚNICO (HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS II, III, IV, V E VI), A RECONTAGEM DO PRAZO INICIA NO DIA SEGUINTE AO DA INTIMAÇÃO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL. A NOTIFICAÇÃO DO DEMANDADO OCORREU APENAS EM 2/9/20, QUANDO JÁ TRANSCORRIDO O PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO, CONTADO DA DATA DO PAGAMENTO OCORRIDO EM 24/9/18, TENDO A SENTENÇA CORRETAMENTE RECONHECIDO A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DEDUZIDA PELO AUTOR, ORA APELANTE. SENTENÇA DE EXTINÇÃO QUE SE MANTÉM. PEQUENO REPARO APENAS PARA AFASTAR A CONDENAÇÃO DO AUTOR AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS, TENDO EM VISTA QUE A PARTE RÉ, REVEL, NÃO CONSTITUIU PATRONO NOS AUTOS. DADO PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO. (0196107-77.2021.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). VALÉRIA DACHEUX NASCIMENTO - Julgamento: 5/2/25 - SEXTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO) Como se observa, a discussão sobre a prescrição para ajuizamento da ação pela seguradora consistiu no cerne da controvérsia, mas há dois aspectos desse julgado que merecem atenção mais detida do leitor dessa coluna. Em primeiro lugar, o julgador afasta a aplicação do CDC, que estabeleceria o prazo prescricional de cinco anos - por não haver a configuração de vulnerabilidade por nenhuma das partes envolvidas - e, em seguida, define que o decreto-lei 116/67, art. 8°, caput é aplicável ao caso - por ser o instrumento que rege as operações de transporte de carga "por via d'água nos portos brasileiros" - e "a todos os entes envolvidos na relação de transporte marítimo", incluindo as seguradoras. Assim, de acordo com a súmula 151 do STF1, a partir do pagamento integral do prêmio, o segurador sub-roga-se no lugar do segurado e, contra ele, passa a correr o prazo de um ano para ajuizamento da ação regressiva. Resumidamente, o que o julgado acima revela é a importância de se atentar ao prazo prescricional de um ano para exercício do direito de regresso pela seguradora contra o causador do dano, o que, a depender das circunstâncias do caso concreto, pode ser um prazo relativamente exíguo para o exercício dessa pretensão. A seguir, eis o segundo acórdão, que trata de questão mais polêmica, qual seja a existência ou não de legitimidade passiva do agente marítimo para responder perante a seguradora em ação regressiva contra o transportador causador do dano: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL. PERDA DA CARGA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.ALEGAÇÕES DA RÉ APELANTE DE NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO E DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. (...) 2.Nulidade da sentença que se rechaça. 3. REsp 404.745/SP, relator ministro Jorge Scartezzini, Quarta turma, julgado em 4/11/04, DJ de 6/12/04: O agente marítimo, na condição de mandatário e único representante legal no Brasil de transportadora estrangeira, assume, juntamente com esta, a obrigação de transportar a mercadoria, devendo ambos responder pelo cumprimento do contrato do transporte internacional celebrado. Com efeito, tendo o agente o direito de receber todas as quantias devidas ao armador do navio, além do dever de liquidar e de se responsabilizar por todos os encargos referentes ao navio ou à carga, quando não exista ninguém no porto mais credenciado, é justo manter-se na qualidade de representante do transportador estrangeiro face às ações havidas por avaria ou outras consequências, pelas quais pode ser citado em juízo como mandatário. Legitimidade passiva ad causam reconhecida. 4. Legitimidade passiva da ré ora apelante que se reconhece. O agente marítimo procurador que age como mandatário responsabiliza-se por todos os encargos referentes ao navio ou à carga e é representante do transportador estrangeiro nas ações havidas por extravio, avarias ou outras consequências advindas do transporte da carga. 5. Precedentes desta Corte. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (0053637-96.2016.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). FERNANDO CERQUEIRA CHAGAS - Julgamento: 5/12/24 - VIGESIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 11ª CÂMARA CÍVEL) No caso supracitado, a apelante alega que não teria legitimidade para figurar no polo passivo da relação jurídica processual, porque não teria relação com a carga e apenas teria atuado como "mera mandatária de serviços de agenciamento marítimo da transportadora". Todavia, o Tribunal entendeu que o agente marítimo efetivamente age em nome do mandante e é responsável pelos "encargos referentes ao navio ou à carga", efetivamente o representando, nesse sentido, em ações por extravio, avarias ou demais incidentes possíveis no transporte de cargas - inclusive, na hipótese de regresso movida pela seguradora. Com isso em mente, o Tribunal manteve a decisão apelada e citou outras decisões no sentido de responsabilizar o agente marítimo mandatário juntamente do seu mandante, no caso, o transportador, frente à seguradora. Neste ponto, vale ressaltar que o tema está envolto em controvérsias. Conforme publicado previamente nesta coluna Migalhas Marítimas (Navegando por mares Jurisprudenciais: (Parte V) - Agente Marítimo - Inexistência de solidariedade com o armador/transportador), mostra-se ainda em discussão e palco de frutíferos debates. Em síntese, há casos em que os Tribunais ora reconhecem a responsabilidade solidária entre agente marítimo e armador (como o supratranscrito), e que ora reconhecem a inexistência desse vínculo. No artigo anteriormente citado, encontram-se julgados em sentido diametralmente oposto, ou seja, reconhecendo que o agente marítimo não detém legitimidade para figurar no polo passivo de ações regressivas, valendo conferir, por todos, o acórdão proferido pelo TJ/SP, na apelação 1025766-79.2015.8.26.0562, julgado em 27/11/17, citado no referido artigo. Como se nota, as controvérsias nessa seara são tão latentes quanto os riscos existentes na aventura marítima. De todo modo, em conclusão, os seguros marítimos desempenham um papel fundamental na mitigação dos riscos inerentes ao transporte marítimo, garantindo maior previsibilidade e segurança às operações comerciais que envolvem bens de alto valor e extensas rotas de navegação. A análise das decisões judiciais destacadas evidencia a complexidade das questões envolvidas na recuperação de valores pelas seguradoras, sobretudo no que tange à prescrição para o ajuizamento da ação regressiva e à legitimidade passiva dos agentes marítimos. A jurisprudência sobre esse tema segue em evolução, exigindo atenção dos operadores do Direito e dos envolvidos no setor para a melhor compreensão e aplicação das normas vigentes. A consolidação de entendimentos sobre essas questões é essencial para garantir maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações entre seguradoras, transportadores e demais players do mercado. 1 "Prescreve em um ano a ação do segurador subrogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio."
Introdução     Há cerca de um ano, publiquei neste espaço um pequeno texto sobre a "carteira de motorista" para a condução de embarcações não-comerciais, ou seja, aquelas que a legislação denomina "esporte e recreio", e seus condutores são denominados "amadores" (Migalhas 5.7801). Naquela ocasião, anunciei que faltavam quatro meses para que entrassem em vigor as novas normas que passariam a reger a "habilitação náutica".  A entrada em vigor destas alterações, no entanto, passou por sucessivos adiamentos - a próxima data prevista é 31/3/25 - de modo que entendo oportuno voltar ao tema.  Assim, este artigo recordará brevemente como é e como passaria (ou passará) a ser a regulamentação do tema, seguida de um histórico das várias idas e vindas do tema. Por fim, sugerirei uma nova abordagem na elaboração dessas normas, para aumentar a participação da sociedade no processo de sua elaboração e, sobretudo, conferir maior segurança jurídica ao tema. Revisitando os conceitos Na habilitação para conduzir veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc. Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas ("jet skis"). As áreas de navegação têm as seguintes definições:  Interior Águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas.  Costeira Dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa).  Oceânica Sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa). A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior. A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas. Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior. Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica).  A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador. Em paralelo a esta categorização das habilitações, as NORMAM - Normas da Autoridade Marítima preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica. Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a adoção de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação. Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria. As mudanças efetuadas na regulamentação e seus sucessivos adiamentos A mudança dessa regulamentação se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida.  É a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas. No capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da NORMAM 211 - Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio foi inserida uma simples "nota", em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024." No artigo citado ao início deste texto, publicado no Migalhas 5.780, fiz uma respeitosa crítica a essa alteração, tanto sob o aspecto formal quanto sob o aspecto material.  Para evitar repetições, remeto o leitor àquele artigo. A mudança teve sua vigência alterada de 1/6/24 para 1/11/24 (portaria DPC/DGN/MB 127, de 24/6/24). A "nota" passou a ter a seguinte redação: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Contudo, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de novembro de 2024." A dotação de equipamentos obrigatórios em razão da classificação da embarcação - e não da área em que está efetivamente navegando - é passível de críticas, que, no entanto, poderão ser objeto de outro texto, pois a proposta aqui é tratar apenas da habilitação. Não foi divulgado, pela Autoridade Marítima, o motivo de tal adiamento, mas parece evidente que, além das várias dúvidas e perplexidades causadas pela alteração, pesou também a impossibilidade prática de que a própria Marinha pudesse atender, em tempo hábil, a todos os interessados em obter nova habilitação para atenderem à norma. Em 17/12/24 - após o transcurso do prazo - foi publicada a portaria DPC/DGN/MB 147, com nova postergação, desta vez para 31/3/25. É curioso observar que essa informação só pôde ser confirmada no Diário Oficial da União, pois o link que acompanha a publicação da portaria 147 continua remetendo à redação antiga da NORMAM-211, o mesmo ocorrendo na versão publicada no site da DPC, supostamente atualizada. Embora possa parecer uma questão menor, a ampla e correta divulgação das normas e suas alterações é parte importante do devido processo legal no Direito Administrativo.  Afinal, como um condutor poderia se defender de uma autuação ilegal, se a própria Autoridade Marítima mantém uma versão desatualizada da Norma em seu site? Se, no artigo anterior, critiquei a insegurança jurídica causada pela forma com que a alteração foi feita - através de uma simples "nota" agregada aos dispositivos numerados da Norma - decerto a situação não melhorou: caso o cidadão procure a informação no site oficial da Diretoria de Portos e Costas, suporá que a alteração está em vigor desde 1/11/24. De todo modo, apesar destes sucessivos adiamentos, a Autoridade Marítima tem reiterado seu entendimento de que a nova forma de aferir a exigência de habilitação aos amadores poderá contribuir, efetivamente, para a segurança da navegação. No artigo anterior, apresentei críticas quanto ao conteúdo da norma, pois, segundo a opinião corrente na comunidade marítima de esporte e recreio, a nova exigência em nada contribuirá para o aumento da segurança da navegação. Obrigar o condutor de uma embarcação que navega em águas restritas, de enseadas, baías e lagoas, a ter conhecimentos de navegação astronômica ou sobrevivência no mar, por exemplo, é um caso acadêmico de falta de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade pretendida pela norma. Em termos jurídicos, isso significa, claramente, uma falta de razoabilidade da norma. Também critiquei a forma como a alteração foi feita, sem a alteração ou modificação de qualquer item, mas apenas com a inserção de uma "nota" entre eles. Hora de ouvir a sociedade? Todas estas idas e vindas da alteração da NORMAM-211, e os problemas na sua divulgação, indicam, a meu ver, um deficit de participação na elaboração da norma. Trata-se, agora, de uma crítica ao modo de elaboração e deliberação da Autoridade Marítima a respeito de assuntos de nítida natureza regulatória. Desde o processo de desestatização do final da década de 1990, o Direito brasileiro incorporou o instituto das agências reguladoras, que exercem um relevante papel de editar normas infralegais, em setores específicos, como saúde - Anvisa e ANS, telecomunicações - Anatel, aviação civil - Anac, energia elétrica - Aneel, transportes aquaviários - ANTAQ e vários outros. Desde o seu surgimento no Brasil, e incorporando uma experiência de décadas em outros sistemas jurídicos (especialmente europeu e norte-americano), as agências adotam um processo deliberativo com ampla participação da sociedade, colhendo sugestões e elaborando minutas para debate, além de realizar audiências públicas sobre temas que ainda serão objeto de regulamentação. Note-se que não se trata uma "participação popular" no sentido amplo de um plebiscito, referendo ou iniciativa popular, mas de uma participação setorial, da específica comunidade de partícipes das relações jurídicas daquele setor regulado. Para exemplificar, nos processos de elaboração de normas da ANATAQ, são ouvidos armadores, agentes, embarcadores, autoridades portuárias, navais, e outros tantos interessados nos efeitos e desdobramentos da norma que está em elaboração. Naturalmente, todas essas discussões têm acentuado caráter técnico, e justamente por isso devem ter a participação dos envolvidos na aplicação da norma, em vez da elaboração unilateral pela autoridade. Também é certo que a palavra final será do órgão regulador (que, no caso das agências, têm natureza colegiada), mas, historicamente, sugestões da sociedade sempre foram incorporadas, em maior ou menor medida, às normas elaboradas através de um processo participativo, o que demonstra as vantagens desse processo deliberativo. Quando se observa o fenômeno da regulação jurídica de modo mais amplo, pode-se notar que não surgiu com as agências reguladoras.  Muito antes da criação das agências, outros órgãos já exerciam função semelhante, embora sem esse nome, como a CVM - Comissão de Valores Mobiliários, que elabora uma infinidade de normas sobre o funcionamento do mercado de capitais e governança empresarial. Atento a essa realidade, o legislador, através da lei 13.655/18, inseriu dispositivo na LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com o seguinte teor: Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.    Entendo, com o devido respeito, que o dispositivo se amolda com perfeição à situação retratada neste artigo.  Além das questões relativas à razoabilidade da norma, em si (já tratadas neste texto e no anterior), há consequências sensíveis sobre o mercado náutico de esporte e recreio, que tem grande potencial de crescimento no Brasil, mas não vem recebendo nenhum incentivo. Ao contrário, medidas como essa desestimulam o desenvolvimento dessa atividade. Sem abrir mão de sua autoridade técnica e da palavra final sobre o conteúdo da norma, creio que a Marinha teria muito a ganhar se abrisse o diálogo com a comunidade marítima de esporte e recreio (marinas, clubes, escolas náuticas, federações de vela, etc.), ou seja, daqueles que vivem diariamente a realidade nas águas navegáveis, que certamente têm suas sugestões de aperfeiçoamento, e gostariam de ser ouvidos. Fica, então, a modesta e respeitosa sugestão, considerando que a norma ainda não está em vigor, de que seja feito novo adiamento e, em seguida, aberto um processo de escuta da comunidade náutica de esporte e recreio, através de consulta pública e recebimento de sugestões. Quiçá esta experiência com a questão da habilitação dos amadores seja bem-sucedida e, assim, incentive a Marinha a maior abertura para a sociedade na revisão de outras normas relevantes para o Direito Marítimo brasileiro. 1 Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema do "Clube de P&I ("P&I Club"), explorando o seu conceito e destacando a ausência de solidariedade entre o Clube e o armador integrante da associação. Para isso, será analisado o papel dos clubes de P&I no setor marítimo, especialmente na gestão de riscos e na proteção de interesses mútuos dos armadores e transportadores, além de esclarecer os limites de responsabilidade das partes envolvidas. Os Clubes de P&I, ou seja, Clubes de Proteção e Indenização ("P&I Club - Protection and Indemnity Clubs") funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos caracterizadas pela autogestão, constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros2. Assim, no contexto do Clube de P&I, presume-se a contribuição de cada um dos armadores ou operadores e afretadores, ou seja, de seus "membros", a fim de cobrir prejuízos ou responsabilidades enfrentados por qualquer um dos membros. Contudo, importante ressaltar que as funções dos Clubes de P&I não se confundem com as atividades desempenhadas pelas seguradoras tradicionais. Isso porque os membros do Clube fazem jus apenas ao reembolso dos prejuízos cobertos, na forma de princípio denominado "pay to be paid", ou seja, apenas quando houver desembolso prévio para realização do pagamento dos valores devidos aos terceiros, seus credores. Assim, não compete ao Clube o pagamento de indenizações e muito menos garantir o adimplemento dos seus membros perante terceiros3. Dessa forma, os Clubes de P&I não respondem diretamente pelas obrigações assumidas pelo armador ou pelo transportador perante terceiros. Logo, a responsabilidade perante terceiros é exclusivamente do armador ou transportador, ou seja, de seus membros, que permanecem como a parte diretamente vinculada às obrigações contratuais ou legais, de modo que o Clube funciona apenas como uma ferramenta de apoio ao armador e ao transportador. Em termos práticos, o Clube de P&I oferece um apoio a seus membros, auxiliando-os na cobertura financeira, na assistência jurídica e na gestão de crises. Lembrando que qualquer vinculação direta com as obrigações assumidas pelo armador perante terceiros foge do escopo de atuação e responsabilidade do Clube. À vista disso, considerando que os Clubes de P&I não celebram contratos típicos de seguro com seus membros (armadores/transportadores) e que sua obrigação se limita ao reembolso das despesas de seus associados, sem garantia de pagamento direto a terceiros, não há qualquer determinação legal ou contratual que os vincule como responsáveis, seja de forma solidária ou subsidiária, pelos danos causados por seus membros. A jurisprudência reafirma que a responsabilidade do Clube de P&I se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos dos armadores e transportadores. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador. Primeiro julgado: Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP; agravo de instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator (a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19) Segundo julgado: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADE DO CLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. (...) 3.1. O cerne da controvérsia reside em definir se a ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4. P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto "segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas". De outro lado, a relação jurídica que se pretende ver reconhecida tem sua origem numa relação jurídica de Direito Processual, surgida no processo 07212934-07.2000.8.06.0001, entre a autora e um dos membros do Clube de proteção e indenização constituído pela ré. Trata-se de um direito de crédito originado de ônus processual imposto ao armador membro do Clube de P&I e réu naquela ação, em decorrência de sua sucumbência nos autos da demanda regressiva movida pela cliente da sociedade de advogados-autora. (...) 7. Por fim, como já descrito alhures, o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas "chamadas" ou calls (regra 13 do estatuto da ré - fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da ré - fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente - tal como no caso dos P&I Clubs - mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. (...) De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do Clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, "pague para ser pago", isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do Clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido. Majoração dos honorários advocatícios, nos termos do art. 85, §11 do NCPC. (TJ/RJ, apelação cível 0189045-59.2016.8.19.0001, Órgão julgador 6ª câmara Civel; des. Relatora Teresa de Andrade, data do julgamento: 23/5/18) Observa-se que, no primeiro julgado, o TJ/SP reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube de P&I em relação aos atos de seus associados (armadores/transportadores). Isso porque, inexiste vínculo jurídico entre o Clube de P&I e seus membros que justifique a sua inclusão no polo passivo da demanda, considerando que o escopo de sua atividade é "limitado a dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima4". Desse modo, o Tribunal Estadual concluiu que não é possível estender os efeitos da coisa julgada a uma parte que não integrou a demanda original. Quanto ao segundo julgado, pode-se observar que o TJ/RJ bem aborda a natureza e a dinâmica dos Clubes de P&I e reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube em relação aos atos dos seus membros. Para tanto, o TJ/RJ destaca que a organização dos Clubes de P&I possuem particularidades que se distinguem daquelas vigentes nos contratos de seguro tradicionais, sendo tais fatores determinantes para o afastamento da sua responsabilidade perante terceiros em relação aos danos causados pelos seus membros (armadores/transportadores). Entre tais fatores, destaca-se o fato de que os Clubes de P&I funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, em que se pressupõe a contribuição de todos os seus membros, por meio da constituição de um "fundo garantidor" para diluição dos prejuízos suportados por cada um deles. O TJ/RJ também reforçou uma das principais obrigações existentes entre os Clubes de P&I e seus membros, qual seja a existência do princípio "pay to be paid", conforme acima narrado, o qual estabelece que o direito ao reembolso dos prejuízos sofridos pelo integrante do Clube somente nasce a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, inexistindo, portanto, vínculo material entre o Clube de P&I e a suposta vítima do dano. Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria e também já foi tema de outros interessantes artigos publicados nesta coluna especializada, entre outros.5  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados aos temas de Direito Marítimo e de Clubes de P&I, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. ______________ *Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira. 1 Disponível aqui. 2 Conceito disponível aqui. fl. 173. 3 "(...) uma pessoa pode pertencer a uma sociedade (como um Cube P&I) cujas regras não lhe garantem o direito a uma indenização, mas apenas a contribuições de outros membros para suas perdas. Uma vez que a essência do contrato de seguro é que o segurado deve ter o direito a uma indenização, parece que, neste caso, não pode haver um contrato de seguro." (Tradução livre: MCGILLIVRAY; PARKINGTON. Insurance Law. 8th ed. Londres: [s.d.], 1998) No original: "(.) a person may belong to a society (such as a P. & I. Club) whose rules do not entitle him to an indemnity but only to contributions from other members towards his loss. Since the essence of a contract of insurance is that the insured should be entitled to an indemnity, it seems that in such a case there cannot be a contract of insurance." 4 TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19 5 Como: disponível aqui;Outro exemplo: disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos sobre o tema "carga refrigerada" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a questão da responsabilidade civil do transportador marítimo. Para tanto, apresentaremos dois casos concretos permitindo uma análise mais detalhada e prática sobre o assunto. Quando se trata de responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, é importante considerar os três requisitos essenciais para a sua configuração, são eles: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Contudo, é de extrema importância destacar que sem a existência do nexo de causalidade entre o fato e a conduta do agente, não há responsabilidade configurada à espécie. Nesse sentido, são os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira: "Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo". A lição nos ensina que, independentemente do regime de responsabilidade civil, seja objetiva ou subjetiva2, em nenhum momento o lesado fica dispensado de comprovar a relação de causalidade entre a conduta do agente e o evento danoso, a fim de que se configure o dever de reparação. Se a demonstração do nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, estaria sendo adotado o regime do risco integral e automático, o que é incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, sobretudo nas hipóteses de responsabilidade por avaria de carga no transporte.  Essa premissa é especialmente relevante quando tratamos do transporte de cargas refrigeradas. As especificidades dessa carga exigem um cuidado redobrado, pois qualquer falha na manutenção das condições adequadas de temperatura pode gerar danos, que somente serão atribuídos ao transportador caso seja comprovado o nexo de causalidade entre o seu ato e o prejuízo sofrido. Por outro lado, o dano também pode, em alguns casos, ser decorrente de conduta diretamente atribuída ao embarcador. Nessas situações, o nexo de causalidade entre a conduta do transportador e o dano sofrido pela carga é rompido, afastando a responsabilidade do transportador. Isso pode ocorrer, por exemplo, em casos em que o embarcador não forneça informações precisas sobre as condições em que a carga deva ser transportada, em situações em que a carga já é embalada em avançado estado de maturação ou, ainda, se a carga for inadequadamente embalada, comprometendo sua integridade durante o transporte. Essas falhas, quando identificadas como causa direta do prejuízo, excluem o dever de reparação do transportador, visto que o evento danoso não se relaciona com sua conduta. Portanto, a responsabilidade do transportador só se configura quando o dano resulta diretamente da sua atuação negligente ou inadequada, e não quando é provocado por falhas imputáveis ao embarcador ou à própria natureza do produto entregue para o transporte. Essa distinção entre a responsabilidade do transportador e a do embarcador é fundamental para evitar a transferência indevida de responsabilidade e assegurar que a parte efetivamente responsável pelo dano seja a que deve arcar com os custos da reparação. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da responsabilidade civil do transportador, especialmente em se tratando de cargas refrigeradas. Primeiro julgado: INDENIZAÇÃO. Contrato de transporte - Carga perecível (frutas) Conhecimento de transporte não faz menção à necessidade de abertura do sistema de ventilação necessária para conservação da mercadoria. Tempo de duração da viagem compatível com o limite tolerável para conservação das frutas. Temperatura no interior do "container" adequada e de acordo com a recomendação do exportador. Causas prováveis da avaria, apuradas pela perícia, consistiram em infestação fúngica e polpa com consistência mole, bem como falta de ventilação, para troca de gases no interior do ''contêiner''. Frutas foram embarcadas em provável processo de maturação - Exportador, que não instruiu, adequadamente, os funcionários da transportadora, no sentido de ser acionado sistema de ventilação no interior do contêiner para conservação das frutas - Responsabilidade objetiva do transportador excluída. (TJ/SP, AC: 9096749-19.2006.8.26.0000, relator: Plinio Novaes de Andrade Júnior, 24ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/11/11) Segundo julgado: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO TRANSPORTE MARÍTIMO - IMPROCEDÊNCIA. Apelação. Avaria em carga alegada maturação de peras durante o transporte marítimo, por acondicionamento em temperatura inadequada. Falta de provas nesse sentido, inclusive do momento em que ocorreu a avaria. Impossibilidade de se reconhecer a responsabilidade da apelada. Sentença mantida. Art. 252 do regimento interno do TJ/SP - A sentença deve ser confirmada por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir, nos termos do art. 252 do regimento interno deste Egrégio Tribunal de Justiça. Recurso não provido. (TJ/SP, AC: 0053367-24.2008.8.26.0562, relator: Marino Neto, 11ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/2/13) Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP conclui que, embora a responsabilidade do transportador seja objetiva, a falha do embarcador em fornecer as devidas instruções quanto à ventilação adequada do contêiner causou diretamente os danos à carga, afastando a responsabilidade do transportador. O acórdão destaca que a carga foi embalada sem qualquer interferência do transportador e com a recomendação de ser conservada a 0,5ºC, porém, não constou qualquer solicitação para abertura do sistema de ventilação do contêiner, para conservação das frutas transportadas. Dessa forma, o entendimento do Tribunal é que não há responsabilidade atribuída à transportadora pelos danos verificados nas frutas transportadas, vez que o prejuízo ocorreu por culpa exclusiva do exportador, que não instruiu, adequadamente, os prepostos da transportadora, sobretudo considerando-se que durante todo o período do transporte marítimo, a unidade foi alimentada com uma refrigeração exata a 0,5º C. Acerca da questão dos vícios de embalagem e falhas do embargador na preparação adequada da carga a ser destinada a transporte, vide interessante artigo3 publicado anteriormente nesta coluna. No segundo julgado, observa-se que o TJ/SP novamente reconhece a ausência de responsabilidade da transportadora pelos danos à carga, ressaltando que cabe à importadora evidenciar que os prejuízos ocorreram em decorrência do transporte, conforme o que determina o art. 373, I, do Código de Processo Civil, o que não foi comprovado. O acórdão identifica que a importadora optou por desistir da fiscalização aduaneira que seria realizada logo após a descarga da carga, assumindo assim os riscos dessa decisão. Ademais, reconhece que a inspeção realizada pela autora foi feita muito tempo após a entrega da mercadoria e de forma unilateral e parcial, comprometendo a veracidade dos fatos alegados. Com isso, o TJ/SP concluiu que, sem a comprovação do nexo causal entre a conduta da transportadora e os danos alegados, não seria possível responsabilizá-la, sobretudo quando a temperatura da unidade de carga foi mantida sob a refrigeração indicada durante todo o período do transporte, tendo as oscilações de temperatura ocorrido em períodos fora da etapa marítima, quando a carga não se encontrava sob custódia do transportador marítimo. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo. Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/ *Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira. 1 Disponível aqui. 2 E trazendo reflexões provocativas a respeito da responsabilidade civil do transportador marítimo, podemos citar interessante artigo publicado anteriormente nesta coluna: disponível aqui. 3 Disponível aqui.
O transporte marítimo é um dos pilares do comércio internacional, responsável por grande parte do escoamento de mercadorias entre países. O contêiner, como principal equipamento de movimentação de cargas, é fundamental para garantir a eficiência e a segurança nas transações comerciais globais. Nesse cenário, surgem institutos como a demurrage e a detention, que disciplinam a utilização e a devolução de contêineres, bem como o prazo para a realização dessas operações.  Neste ensaio analisaremos esses institutos, explorando conceitos, diferenças, e a natureza jurídica das cobranças, a relevância do "free time" e a importância da previsão contratual, enfocando a jurisprudência contemporânea, destacando as responsabilidades de transportadores, importadores e outros atores da cadeia logística.  O transporte marítimo de cargas remonta às primeiras civilizações, quando os oceanos se tornaram rotas estratégicas para o comércio. O contêiner desempenha um papel essencial nesse cenário, funcionando como uma unidade padronizada que protege a carga e facilita o manuseio, armazenamento e transporte.  No Brasil, a legislação confere ao contêiner o status de equipamento acessório ao navio, não sendo considerado embalagem das mercadorias. A lei 6.288/75, posteriormente revogada pela Lei 9.611/98, estabelecia que o contêiner deve atender às normas técnicas e de segurança, sendo parte integrante das operações logísticas. Essa regulamentação buscava garantir previsibilidade e eficiência no uso desses equipamentos, cuja indisponibilidade pode comprometer as atividades comerciais do armador.  Ademais, os contêineres proporcionaram uma verdadeira revolução logística, permitindo maior eficiência no transporte intermodal, reduzindo custos operacionais e mitigando os riscos de avarias ou roubos. Essa padronização também facilita a adoção de soluções tecnológicas, como rastreamento em tempo real, contribuindo para a transparência das operações.  A demurrage e a detention são institutos próprios do Direito Marítimo que disciplinam o uso e a devolução dos contêineres, respectivamente pelos importadores e pelos exportadores.  A demurrage refere-se à sobreestadia do contêiner em um terminal ou porto após o término do prazo de "free time", tendo como objetivo compensar o armador pela indisponibilidade do contêiner. A demurrage possui natureza indenizatória, sendo preestabelecida em contratos ou tabelas publicadas pelos armadores.  A detention, por sua vez, aplica-se quando o contêiner é devolvido ao armador após o prazo estipulado, para as providências de embarque. É considerada uma indenização pelos custos associados à indisponibilidade do equipamento, afetando diretamente a logística do armador. Embora menos mencionada que a demurrage, sua aplicação depende igualmente de previsão contratual.  A natureza jurídica de ambos os institutos tem sido amplamente discutida nos tribunais. Por possuírem caráter indenizatório, sua cobrança não depende da comprovação de prejuízos diretos, mas sim da configuração do descumprimento contratual. Tal entendimento é fundamental para garantir a segurança jurídica nas relações comerciais internacionais.  O "free time", como é sabido, é o período de franquia concedido ao consignatário e/ou embarcador da carga, durante o qual não incidem as cobranças por demurrage ou detention. Esse prazo é essencial para que o importador conclua o desembaraço aduaneiro, transporte e a desova do contêiner. No entanto, a ausência de previsão contratual, embora não seja prescindível, pode gerar litígios e interpretações conflitantes.  Uma previsão contratual robusta e transparente deve incluir a definição do prazo de "free time", os valores aplicáveis por demurrage e detention, o formato da cobrança e, ainda, as situações excepcionais que possam justificar a extensão do prazo sem cobrança adicional.  Quando bem estruturados, tais contratos evitam ambiguidades, fortalecendo o princípio da boa-fé e minimizando os riscos de judicialização das cobranças.  Como não poderia ser diferente, o Conhecimento Marítimo (Bill of Lading - BL), como documento essencial no transporte marítimo que é, cumpre três funções principais: recibo da mercadoria, título de propriedade e evidência do contrato de transporte. Há uma questão relevante e comum nessa cadeia logística, e que repercute em relação ao tema pode trazer repercussão quanto a responsabilidade em relação a demurrage e detention, que são os casos com emissão de Master BL (MBL) e House BL (HBL).  O Master BL é aquele emitido pelo armador ou transportador de fato, que regula a relação contratual entre este e o agente de carga. O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador, regulando obrigações entre o agente e o consignatário.  Esses documentos são frequentemente objeto de disputas quanto à responsabilidade pelas taxas de demurrage e detention. A ANTAQ, em decisão recente (processo nº 50300.019623/2020-00), destacou que o consignatário do House BL não tem legitimidade para questionar os termos do Master BL, reforçando o princípio da individualidade contratual.  O correto entendimento dos papéis desempenhados por cada um dos atores envolvidos é de suma importância para o deslinde de disputas relacionadas com demurrage e detention.  A evolução tecnológica também impactou o uso do BL, com a crescente adoção do e-BL (Bill of Lading eletrônico). Essa inovação busca reduzir custos, aumentar a eficiência e mitigar riscos relacionados à manipulação de documentos físicos, sem comprometer sua segurança jurídica.  A jurisprudência, há muitos anos, é farta em casos que discutem a incidência da cobrança após o término do "free time". Em recente decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Apelação nº 0000643-32.2018.8.24.0050), concluiu-se que, mesmo diante de condições climáticas adversas, a responsabilidade pelo pagamento da demurrage recai sobre o importador, considerando que a previsibilidade desses eventos está íntima ao risco da atividade logística.  Também em julgamento recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enfrentou questões centrais envolvendo a cobrança de demurrage. A ação foi proposta pela transportadora visando o pagamento de quantia que entendia ser devida pela sobreestadia de contêineres.  A decisão abordou aspectos relevantes, como a natureza jurídica da demurrage, reconhecendo que a demurrage possui caráter indenizatório, destinado a compensar o transportador pela indisponibilidade dos contêineres, rejeitando o argumento de que a cobrança seria abusiva ou que dependeria de previsão contratual específica ou em sua forma física.  Noutro aspecto, analisando a questão da alegação de impedimento de devolução do equipamento por fato de terceiro, sob o argumento de que a retenção dos contêineres pela Receita Federal configuraria caso fortuito ou força maior, sobreveio o entendimento de que tal situação não exclui a responsabilidade pelo pagamento da demurrage, uma vez que os riscos associados ao trâmite aduaneiro fazem parte da atividade de importação.  Essa decisão demonstra a tendência jurisprudencial de reforçar a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais do transporte marítimo, afastando argumentos baseados em supostas exceções não devidamente comprovadas.  Também em decisão recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu de forma diversa, entendendo que a atuação da Receita Federal, classificada como subjetiva em relação a escolha das mercadorias que serão submetidas a uma análise mais rigorosa, o que representaria uma excludente da obrigatoriedade de pagamento pela incidência da demurrage.  A responsabilidade pelo pagamento de demurrage e detention recai, respectivamente, sobre o consignatário e embarcador da carga, que deve garantir a devolução oportuna do contêiner, de acordo com cada contrato. No entanto, há casos em que o transportador também pode ser responsabilizado, como em situações de negligência ou falhas operacionais que causem atrasos.  Além disso, a má-fé de qualquer uma das partes pode levar a disputas judiciais. Se o importador retém deliberadamente o contêiner, ou se o transportador impõe cobranças excessivas, ambos podem ser responsabilizados. Em tais casos, o princípio da boa-fé objetiva e a necessidade de previsão contratual são frequentemente invocados pelos tribunais.  A prática demonstra que a previsão de sanções equilibradas e a adoção de um diálogo transparente entre as partes são fundamentais para evitar litígios e preservar relações comerciais.  O que não se pode admitir, é que os riscos a que estão expostos os importadores inerentes a operação de importação sejam repassados a terceiro, no caso o transportador, que cumpriu a sua obrigação contratual, mas que será penalizado com a indisponibilidade do seu equipamento, em face de uma questão que lhe é absolutamente estranha, mas que é previsível pelo importador.  A atuação fiscalizadora da Autoridade Aduaneira decorre de lei, que a desempenha segundo os seus próprios critérios, não sendo plausível se alegar que essa atuação represente um fato inusitado e alheio ao processo. O importador, ao mensurar o seu empreendimento e uma operação de importação, tem em conta todos os cenários possíveis, inclusive uma eventual submissão a um procedimento fiscalizatório mais rigoroso.  A alegação de que a atuação da Receita Federal é ilegal, muitas vezes, equivale a afirmação de que a Autoridade Aduaneira agiu de forma contrária à lei por exercer a sua atribuição de fiscalizar os procedimentos de importação de mercadorias, o que de fato corresponde ao exercício do seu dever legal.  A demurrage e a detention são instrumentos essenciais para a regulação do uso de contêineres no transporte marítimo. A jurisprudência brasileira tem contribuído significativamente para a consolidação desses institutos, reafirmando sua natureza indenizatória e a necessidade de cumprimento das obrigações contratuais.  Por fim, a previsão do "free time" e o respeito as obrigações contratuais são fundamentais para evitar litígios e garantir a eficiência das operações logísticas. Transportadores, importadores e demais envolvidos devem buscar maior clareza em suas relações contratuais, promovendo assim maior segurança jurídica e previsibilidade no comércio internacional.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema do "atraso" no contexto do transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto. A atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Em virtude de tais fatores, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam em certeza ou exatidão. Tal imprecisão, conhecida de antemão tanto pelos armadores e transportadores como também pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não é apta a gerar pretensões e reclamações por eventuais atrasos, desde que, logicamente, dentro do limite do razoável. O transporte marítimo, por sua natureza, está sujeito a inúmeros contratempos. Como mencionado anteriormente, a aventura marítima possui particularidades que envolvem situações exclusivas desse modal de transporte. Entre essas peculiaridades, destaca-se o atraso na chegada das embarcações, um evento frequentemente considerado normal, sobretudo quando decorrente de circunstâncias de força maior, especialmente aquelas de origem natural. Assim, a jurisprudência reafirma que o atraso na entrega de carga pode, por regra, não imputar responsabilidade sobre o transportador, uma vez que, conforme demonstra a prática marítima, não se ajustam datas exatas em razão da natureza do negócio, devendo ser consideradas as peculiaridades concretas de cada caso. Feitas essas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam o tema do atraso no transporte marítimo. Primeiro julgado: Atraso - Previsão de chegada do transporte não implica em certeza - Ausência de responsabilidade do transportador. 5.1 COMPRA E VENDA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS MATERIAIS (...). TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO OU MESMO DE CIÊNCIA, PELAS RÉS, ACERCA DA NATUREZA DA MERCADORIA TRANSPORTADA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, PELA AUTORA, DOS FATOS CONSTITUTIVOS DO SEU DIREITO (ART. 333, I, CPC/73; ART. 373, I, NCPC). SENTENÇA MANTIDA. AGRAVO RETIDO NÃO PROVIDO. RECURSO PRINCIPAL NÃO PROVIDO. (.) Além disso, a manutenção dos referidos documentos nos autos em nada socorre a tese da apelante. É que, ao revés do alegado nas razões do apelo, os e-mails trocados entre as partes, especialmente aquele de fls. 128/129, mencionado pela recorrente, faz apenas referência à previsão de chegada das mercadorias ao porto de destino, inclusive com a resposta da autora no sentido de aguardar novas previsões, dada as peculiaridades do contrato firmado. Neste contexto, conforme bem argumentado pela litisdenunciada MSC e ponderado pelo magistrado sentenciante "o transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde as condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada (fls. 87/88). As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso" (fl. 293). Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota (fls. 293/294). A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (conforme links das reportagens citadas a fl. 230), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal, pois sequer há prova de que no momento da cotação do frete pela ré ou do embarque do contêiner pela denunciada houvesse ciência da natureza da mercadoria transportada." (fls. 332/333, destaquei). Ademais, é clara a comprovação da atividade empresária por ela desenvolvida, conforme se extrai do seu contrato social, cláusula 2.ª, "DO OBJETIVO SOCIAL, fls. 12. Neste sentido, "a autora se dedica ao ramo de importação e exportação de alimentos, não podendo alegar ignorância quanto às peculiaridades de cada meio de transporte utilizado nas suas relações comerciais no exterior." Além disso, "O documento de fl. 153 demonstra que a autora já havia contratado o transporte por navio para o mesmo destino. Esse mesmo documento demonstra que a autora solicitou a cotação de frete padrão alimento, sem especificar o gênero alimentício e a necessidade de entrega em data certa. E diferentemente do sustentado pela autora, não consta em qualquer documento emitido pela denunciada data certa e nem definida para a chegada ao destino das mercadorias transportadas pela via marítima" (fls. 332, destaquei), ressaltando-se que a ré Norge "apenas cientificada sobre a natureza da carga e necessidade de entrega quando já iniciada a viagem." (fls. 333). E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." (fls. 333, destaquei). Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas, ônus que, ademais, impendia à autora demonstrar, a teor do disposto no art. 333, I, do CPC/73, vigente à época (art. 373, I, NCPC). Como se vê, a sentença deve ser mantida por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir pelo não provimento do recurso, nos termos do art. 252 do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça que estabelece que "Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando suficientemente motivada, houver de mantê-la". Ante o exposto, nega-se provimento agravo retido e ao recurso principal. (TJSP, Apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. relator Alfredo Attié, 26ª câmara de Direito Privado, j. 23/11/17) Segundo julgado: Atraso - Transporte Marítimo - Hipótese equiparada a caso fortuito - Exclusão de responsabilidade do transportador 5.10 Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relator: Maria Rita Lima Xavier, data de publicação: 27/9/04.) Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP aponta para alguns elementos determinantes no afastamento da responsabilidade pelo atraso da entrega de carga transportada por via marítima. O primeiro fator destacado é a natureza do transporte marítimo, que possui peculiaridades próprias e está sujeito a fatores externos como condições climáticas, congestionamento de portos, entraves logísticos e operacionais, eventos por vezes atribuíveis ao interesse carga ou a terceiros, entre outros que não estão sob controle do transportador. Em seguida, o acordão destacou a ausência de data certa e definida para a chegada das mercadorias ao destino no contrato do transporte. Ainda que a transportadora tenha informado datas de previsão ao longo do transporte, as mesmas consistiam em meras estimativas, conforme previam as cláusulas contratuais no caso concreto. Ainda nesse sentido, as condições gerais previstas no conhecimento de embarque traziam expressa a isenção de responsabilidade do transportador por atrasos, e indicavam que itinerários e prazos poderiam ser alterados sem aviso prévio. Por essa mesma razão, o Tribunal reconheceu que a autora não demonstrou que o transportador assumiu a obrigação de entregar a carga em data certa. Tampouco provou que o transportador tinha ciência da natureza perecível das mercadorias antes do início do transporte. Por fim, relevante destacar que o acordão reconheceu que, como empresa atuante no comércio internacional de alimentos, a autora deveria estar ciente dos riscos e peculiaridades do transporte marítimo. Sendo assim, o risco pela falta de entrega no prazo acordado com o comprador final foi atribuído exclusivamente à autora. Em síntese, o transportador marítimo foi isento de responsabilidade pelo atraso na entrega, por ausência de previsão contratual de prazo garantido e pela falta de comprovação de culpa ou negligência, ressaltando a influência da natureza do transporte marítimo na imputação de responsabilidade ao transportador pelo atraso. No segundo julgado do TJ/PA, observa-se o reconhecimento da ocorrência de caso fortuito ou força maior, circunstâncias que resultam na exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em situações que escapam completamente ao seu controle e independem de sua vontade, conforme previsto no art. 393 do Código Civil. Esse dispositivo legal estabelece que o devedor não responde por prejuízos resultantes de força maior ou caso fortuito, salvo se expressamente responsabilizado por contrato. É importante destacar que caso fortuito e força maior, embora frequentemente tratados como conceitos correlatos, possuem distinções no âmbito jurídico. Ambos dizem respeito a eventos imprevisíveis e inevitáveis que impossibilitam o cumprimento de uma obrigação, mas diferem quanto à origem do evento e à sua relação com a esfera de controle. O caso fortuito refere-se a eventos imprevisíveis de origem interna, relacionados às atividades ou ao contexto do transporte. A força maior, por sua vez, decorre de fatores externos à vontade ou ao controle das partes, usualmente provocados por fenômenos naturais ou sociais. No transporte marítimo, é evidente que os fenômenos naturais desempenham papel predominante, como alterações climáticas, condições adversas do mar e outros fatores intrínsecos à atividade marítima. Nesse sentido, o acórdão prolatado pela relatora analisou de forma criteriosa os elementos que caracterizam a exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em virtude de força maior. Conclui-se, assim, que a decisão é plenamente compatível com a realidade fática e com a legislação brasileira, excluindo, de forma legítima, a responsabilidade do transportador por atrasos decorrentes de força maior ou caso fortuito. Examinados os julgados acima, e retomando a análise das eventuais responsabilidades em casos de atraso, convém relembrar um relevante artigo publicado anteriormente nessa coluna, por ocasião dos atrasos sofridos pelas cargas a bordo do navio "Ever Given", quando do encalhe no Canal do Suez2. Naquela oportunidade, destacamos: "Mas como fica a responsabilidade do transportador no caso de atrasos decorrentes de um evento como no caso Ever Given? Não há um regime internacional uniforme que discipline o atraso no transporte marítimo. O maior esforço nesse sentido são as Regras de Hamburgo, as quais estão em vigor apenas em 35 países e o Brasil, apesar de ter sido um dos signatários das referidas Regras, não as ratificou. As Regras de Hamburgo definem que o atraso é constatado quando a carga não é entregue no destino no tempo acordado ou, na ausência de uma previsão expressa de um prazo no contrato de transporte, em um período que poderia ser razoavelmente esperado para tanto. As Regras de Hamburgo limitam a indenização a duas vezes e meio o valor do frete da carga atrasada, não podendo esse valor exceder o frete total. Todavia, o que mais interessa no caso em análise, é que as Regras disciplinam que o transportador não será responsável por atrasos decorrentes de eventos que não estejam sob sua responsabilidade. No Direito Brasileiro, aplica-se à hipótese de atraso na entrega de mercadorias o regime geral de responsabilidade civil por danos. O Código de Processo Civil de 1939 previa, em seu art. 756, o prazo de 15 dias para que o consignatário da carta apresentasse eventual "reclamação por motivo de atraso", mas, no entanto, não trazia uma definição do que seria considerado "atraso" e a regra tampouco foi acolhida pelos Códigos Processuais posteriores. A lei civil, por sua vez, disciplina, no art. 733, § 1° que "o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso". Tal previsão ainda deixa margem para interpretação sobre o que seria considerado um excesso de tempo capaz de configurar um atraso, não obstante trazer o critério da comparação com o percurso realizado. Sob a ótica contratual, o prazo de cumprimento de uma obrigação e as penalidades contratuais em caso de atraso podem ser inseridos nas cláusulas do contrato e regulados conforme a vontade das partes, desde que a redação da cláusula não seja abusiva ou contrária à ordem pública. Entretanto, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam certeza ou exatidão. Por vezes, há inclusive a inserção de cláusulas dentro das condições gerais do conhecimento de transporte prevendo expressamente que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar as mercadorias em data determinada. Tal imprecisão, conhecida de antemão pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não permite uma apuração categórica sobre o termo "a quo" de eventual atraso. Tal questão, inclusive, já foi palco de exame pelos nossos tribunais: (...) Da análise dos autos constata-se que inexiste qualquer prova de ter a primeira ré se comprometido junto à autora a entregar o bem transportado exatamente no dia 16/4/04, contrariando, assim, a narrativa constante da exordial. (...) Sabe-se, todavia, que previsão não significa certeza, exatidão, não sendo apta a gerar pretensão. (...). De outra maneira, o contrato de conhecimento celebrado entre as partes contratantes (...), não estipula datas de chegada da mercadoria adquirida pela parte autora, ao contrário, dispõe na cláusula 13 que "A transportadora não garante as datas de chegada. A transportadora não se responsabiliza pelo atraso..." Nestas condições, não restou evidenciado ter a parte ré agido de má-fé ou mesmo descumprido o quanto se obrigou mediante ajuste. (...) apenas forneceu à contratante/autora uma data provável de execução total do contrato. De outro modo, a data prevista de entrega do bem foi frustrada por razões alheias à vontade da empresa acionada, conforme restou demonstrada através da prova carreada aos autos (...)  (TJ/BA, proc. 644289-8/2005, juíza Maria De Fátima Silva Carvalho, 2ª vara Cível, j. 30/9/08) E, tirando o foco do contrato de transporte, o julgado abaixo, proferido pelo E. TJ/SP, serve como um alerta para que tais circunstâncias sejam devidamente tratadas na seara do contrato de compra e venda internacional de mercadorias pactuado entre o exportador/embarcador e o importador/consignatário, no âmbito da relação comercial entre os mesmos, especialmente em casos nos quais existe a necessidade de que a carga chegue ao destino a tempo de uma determinada ocasião. (...) TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO (...) O transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde às condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada. As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso". Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota. A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (...), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal. (...) E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas (...). (TJ/SP, apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. Alfredo Attié, 26ª câm. de Direito Privado, j. 23/11/17) Vale lembrar que a atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Sob essa ótica e considerando-se que em nosso ordenamento jurídico, o atraso seria a extrapolação de um prazo expressamente acordado - e já se viu não ser a prática nos contratos de transporte marítimo de mercadorias a definição de prazos fixos para entrega - ou de um prazo razoável, considerando-se o percurso realizado, será necessário apurar concretamente, caso a caso, transporte a transporte, se houve efetivamente algum excesso de tempo, fora do que seria razoável estimar, entre o início e o término do transporte realizado, que pudesse ter causado um dano à carga ou ao consignatário, capaz de ocasionar responsabilização do transportador. A esse respeito, a resolução normativa 18-ANTAQ da Agência Nacional de Transportes Aquaviários3 prevê, no seu art. 17, § 1º4, a ocorrência de um atraso quando, na ausência de prazo acordado, a carga não for entregue dentro de um prazo razoavelmente exigível, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. E, para trazer parâmetros mais concretos ao que seria um "prazo razoavelmente exigível", a prática internacional entende que um atraso passa a ser indenizável quando extrapola em mais de 50% o tempo estimado da viagem5. Todavia, nem todo excesso de tempo na jornada marítima acima de tal limite gera, por si só, uma responsabilização por atraso, na medida em que se admite a ocorrência de hipóteses que justifiquem determinado atraso e, consequentemente, servem como excludentes da responsabilidade do transportador. Nesse ponto, novamente a resolução normativa 18-ANTAQ prevê, agora no parágrafo 2º do art. 17, que "o atraso decorrente de caso fortuito ou de força maior não configura descumprimento do critério de pontualidade". Seguindo-se esta linha, eventos da natureza que se enquadrem no conceito de força maior6, fatos do príncipe e até mesmo fatos de terceiro desconexos ao contrato de transporte, que fujam aos limites das cautelas e precauções a que o transportador está obrigado7, podem ser enquadrados no conceito de fortuito externo e, consequentemente, exonerar eventual responsabilidade por atrasos, como no caso a seguir julgado pelo E. TJ/PA: Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relatora: Des Maria Rita Lima Xavier, pub: 27/9/04) Com isso, cumpriria, no caso concreto, analisar não só a existência de dano, como também a causa do atraso. E, no exemplo do incidente no canal de Suez, para as cargas a bordo da embarcação Ever Given, a definição legal de eventuais responsabilidades sobre as cargas transportadas estará atrelada ao desfecho das investigações e a fixação das causas que geraram o incidente, especialmente se houver eventual constatação de força maior. Já para as cargas transportadas nas centenas de outras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal durante os dias que se sucederam, provavelmente, sob a ótica da lei brasileira, seria justificável o atraso ante à circunstância fortuita que viria a causar o acréscimo de mais alguns dias àquela jornada marítima. O cenário, no entanto, seria diferente para os transportes pactuados após a ocorrência do encalhe, pois, em tais casos, a situação já seria previsível e a logística poderia ser reajustada de antemão. Por óbvio, cada caso concreto pode guardar especificidades aqui não vislumbradas, mas situações como estas exigem ponderação de todas as partes envolvidas, além da manutenção de um canal de comunicação, na medida em que, tanto o transportador como os proprietários de cargas podem trocar informações acerca do transcurso da jornada e eventuais ajustes de previsão de chegada do navio ao destino." Como se vê, a temática debatida por ocasião do encalhe do navio Ever Given no Canal do Suez bem se aplica ao tema aqui proposto. Questões decorrentes de atraso, ainda que com maior ou menor intensidade, repercutem e afetam todos os envolvidos na logística do transporte e por vezes ocupam a agenda dos Tribunais brasileiros, para a definição de responsabilidades, razão pela qual esperamos que o presente artigo sirva como fonte de consulta ao tema sob debate. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/ * Coletânea de Artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais Brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira.  1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 http://portal.antaq.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/CARTILHA-ANTAQ2018-vf.pdf 4 Art. 17, § 1º O atraso ocorre quando a carga não for entregue dentro do prazo expressamente acordado entre as partes, ou, na ausência de tal acordo, dentro de um prazo que possa, razoavelmente, ser exigido do transportador marítimo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. 5 Como afirma John F. Wilson em "WILSON, John F.; "Carrige of Goods by Sea"; Harlow, Inglaterra: Pearson, 2010" 6 RESPONSABILIDADE CIVIL - Transporte marítimo - Regressiva de seguradora sub-rogada - Perda de carga em razão de caso fortuito (furacão) - Incidência dos arts. 102 do Código Comercial e 1.058 do Código Civil, excluindo a responsabilidade do transportador - Improcedência da ação em 1º grau - Apelação não provida. "(...) O caso fortuito restou devidamente comprovado, presentes os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade. O primeiro conceituado como o acontecimento que impossibilita cumprimento da obrigação e, o segundo, como a inexistência de meios para evitar ou impedir os efeitos do evento extraordinário. (...) A previsibilidade, a que se apegam os apelantes, era dispensável, desde que "se surgiu como força indomável e inarredável, e obstou o cumprimento da obrigação, o devedor não responde pelo prejuízo (...)". (TJ/SP, apelação 604283-7, relator des. Jorge Farah, 1º Tribunal de Alçada Civil, j. 31/7/93). 7 O C. STJ já reconheceu que fato de terceiro e as circunstâncias estranhas que não guardam conexidade com o transporte em si podem ser equiparáveis a fortuito externo apto a excluir responsabilidades, conforme EREsp 1.431.606; REsp: 38891 (relator: ministro Claudio Santos, pub. 28/3/94); AgRg no REsp: 1285015 (relator: ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 18/6/13) e; REsp: 70393 (relator: ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10/3/97).
Nos últimos meses, os leitores desta coluna puderam acompanhar algumas das controvérsias relacionadas aos contratos de afretamento de embarcação, abrangendo, entre outros temas, a obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento - CAA; o excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada e o período de indisponibilidade da embarcação. A série de artigos sobre Controvérsias em Contratos de Afretamento não estaria completa sem abordar outra questão que frequentemente emerge nos Tribunais: O repasse de multas impostas por terceiros à empresa fretadora da embarcação, em especial, as sanções pecuniárias aplicadas por autarquias e agências reguladoras. Essas multas, que podem atingir valores expressivos, são relativamente frequentes nos contratos de afretamento envolvendo atividades offshore. Esse é o caso de multas impostas por entidades como a ANP, a Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o Ibama - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Essas penalidades, aplicadas com base em alegações de infrações às normas técnicas, ambientais ou de segurança, frequentemente ensejam controvérsias sobre os limites da alocação de responsabilidades previstas nos contratos de afretamento. Em contratos complexos como esses, em que a responsabilidade pelas operações e pela manutenção da embarcação possui obrigações atribuídas contratualmente ora à afretadora, ora à fretadora, surgem dúvidas e questionamentos sobre qual das partes, ao fim e ao cabo, deve arcar com os custos resultantes de eventuais penalidades impostas por essas entidades. Em situações como essas, a análise detalhada do contrato e das condições que levaram à infração se mostra essencial para a identificação da parte responsável. Primeiramente, é importante ter em mente que multas administrativas são, geralmente, associadas a irregularidades em aspectos técnicos e operacionais da embarcação ou ao descumprimento de obrigações regulatórias durante as operações de exploração offshore. Por exemplo, uma multa pode decorrer da falta de documentação obrigatória de segurança da embarcação ou por alguma falha no cumprimento de normas regulamentares. É comum, nesse contexto, a prática da afretadora de repassar tal ônus financeiro à fretadora, desde que seja possível contratualmente imputar a multa a alguma falha ou descumprimento regulatório ou contratual desta última. Por outro lado, também se observa a postura da fretadora de argumentar que a multa decorre de questões operacionais ou decisões tomadas unilateralmente pela afretadora, ou, ainda, que o valor da multa tem caráter personalíssimo, devendo recair apenas sobre a afretadora. Esse impasse é amplamente observado em disputas judiciais e arbitrais envolvendo grandes players do setor marítimo e da indústria offshore. A título de exemplo, confira-se, abaixo, julgado no qual, em sede de agravo, o TJ/RJ, embora mantendo a possibilidade de repasse para a afretadora da multa imposta que havia sido imposta à fretadora, entendeu que parte do valor da multa não poderia ser repassado. Em outras palavras, o repasse integral de multa aplicada (no caso em exame, pela ANP) não foi autorizado, em razão de circunstâncias específicas atribuídas à fretadora. Confira-se: AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. OPERAÇÃO DE PLATAFORMA DE EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS. ACIDENTE OCORRIDO EM SONDA EXPLORATÓRIA QUE RESULTOU NO FALECIMENTO DE TÉCNICO OPERADOR. MULTA APLICADA PELA AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO (ANP) À PETROBRAS, CUJO VALOR DE R$11.368.000,00 FOI REPASSADO À AUTORA, POR MEIO DE COMPENSAÇÃO, CONSOANTE CLÁUSULA CONTRATUAL. INDEFERIMENTO DA LIMINAR PELO JUÍZO A QUO. INCONFORMISMO DA AUTORA QUE SUSTENTA ILEGALIDADE DA REFERIDA COMPENSAÇÃO, PRETENDENDO QUE A RÉ SE ABSTENHA DE EFETUAR O REPASSE. DE REGRA, O TRIBUNAL NÃO ESTÁ AUTORIZADO A INTEFERIR NA FORMAÇÃO DA COGNIÇÃO DO JUIZ, A TEOR DA SÚMULA TJRJ 58. COM EFEITO, AS PROVAS DOS AUTOS DEMONSTRAM INEQUIVOCAMENTE QUE A MULTA APLICADA PELA ANP À PETROBRÁS FOI MAJORADA POR CARACTERÍSTICAS E SITUAÇÕES JURÍDICAS PRÓPRIAS DA PETROBRAS, TAIS COMO, A SUA CONDIÇÃO ECONÔMICA E SEUS ANTECEDENTES PERANTE A AGÊNCIA REGULATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE DE REPASSE INTEGRAL DE TAL VALOR À AGRAVANTE. PRESENÇA DE REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR - FUMUS BONI JURIS E PERICULUM IN MORA. DECISÃO SUJEITA À CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS DE MODO QUE O JUIZ ESTÁ AUTORIZADO, A QUALQUER TEMPO, A MODIFICÁ-LA OU REVOGÁ-LA, CASO OS ELEMENTOS DOS AUTOS VENHAM A DIRECIONAR NESSE SENTIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA DETERMINAR QUE A PETROBRAS DEPOSITE EM JUÍZO OS VALORES RELATIVOS À PRETENDIDA COMPENSAÇÃO. [grifo nosso] (Processo 0060792-90.2015.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). INÊS DA TRINDADE CHAVES DE MELO - Julgamento: 6/7/16 - TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PUBLICO (ANTIGA 6ª CÂMARA CÍVEL) Como se verifica, no entendimento do Tribunal, a multa aplicada pela agência reguladora teria sido majorada em razão de características personalíssimas da afretadora, tais como a sua condição econômica e antecedentes perante a ANP. Com base nesse entendimento, o acórdão concluiu pela impossibilidade de repasse integral do valor da multa à fretadora, admitindo apenas o repasse do valor principal da multa sem as agravantes. Também é interesse notar que alguns contratos de afretamento preveem que as multas administrativas podem ser objeto de contestação, mas que, até a resolução do litígio ou do processo administrativo correspondente, a responsabilidade inicial pelo pagamento é atribuída à parte que tenha descumprido suas obrigações. Apesar de parecer simples, essa definição de responsabilidade é frequentemente questionada, especialmente em casos em que as obrigações contratuais das partes se sobrepõem. Um exemplo prático disso pode ser visto em situações em que ANP aplica penalidades relacionadas à operação da embarcação, como a realização de atividades fora dos limites estabelecidos no contrato de concessão ou a ausência de relatórios obrigatórios. Embora a fretadora seja responsável pela embarcação em si, as ordens para essas atividades partem da afretadora, trazendo dúvidas quanto a qual das partes deverá suportar o ônus da multa. Nesse cenário, o litígio sobre o repasse de multas muitas vezes alcança níveis ainda mais elevados de complexidade quando estão em jogo valores significativos, que podem impactar diretamente a viabilidade econômica do contrato. Considerando que tais multas costumam ser repassadas pela afretadora à fretadora, descontando-se o valor dos recebíveis contratuais da fretadora, é comum o surgimento de uma questão que enseja o perigo da demora na solução da controvérsia. No julgado acima citado, tal questão foi debatida tendo o Tribunal determinado o depósito dos valores relativos à pretendida compensação, cabendo se ponderar, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, se essa determinação terá sido suficiente, ou não, suficiente para resguardar a viabilidade econômica do contrato. O repasse de multas importas por terceiros, como se nota, é um tema sensível no âmbito dos contratos de afretamento, refletindo a complexidade e os desafios inerentes às operações offshore no Brasil. Embora existam mecanismos para mitigar o impacto financeiro de tais penalidades, as dúvidas quanto às responsabilidades pelo ônus do pagamento da multa, a possibilidade de desconto parcial ou integral do seu valor, a necessidade de impugnação administrativa da multa, dentre outros aspectos, acabam gerando impasses e, por vezes, disputas judiciais e arbitrais complexas e relevantes entre as partes envolvidas. Em conclusão, é importante que as partes contratantes invistam tempo e recursos em um acompanhamento diligente da execução do contrato e em um diálogo constante para minimizar os riscos de penalidades regulatórias. Além disso, a busca pela solução de disputas por meio da cooperação e da boa-fé contratual ainda se mostra o requisito mais eficaz e essencial para mitigar os impactos financeiros e operacionais dessas penalidades no setor marítimo.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

90 anos do Tribunal Marítimo: O que falta dizer?

Este texto é parte integrante do livro "Tribunal Marítimo: 90 Anos", lançado em dezembro de 2024, em comemoração ao aniversário da Corte do Mar. É um momento de festa e de alegria. Pelo menos é como vejo todo aniversário, pela singela razão de que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E quando se trata do aniversário de uma "pessoa" abstrata, uma instituição ou empresa? Que "vida" há a celebrar nessa data? Foi com essa reflexão quase existencial que me deparei quando recebi o honroso convite para participar, por meio de um texto para este livro comemorativo, da celebração dos 90 anos do Tribunal Marítimo. De início, pensei no caminho, aparentemente fácil, de falar sobre o art. 18 da lei 2.180/54 e a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no Poder Judiciário, uma discussão inesgotável. Mas acabei escolhendo um caminho mais difícil. O leitor vai encontrar neste livro, além desse tema, certamente, a história do incidente com o navio alemão "Baden" em 1930, bem como artigos jurídicos e históricos sobre o Tribunal Marítimo. É bom que assim seja, para que se possa sempre renovar a divulgação da Corte do Mar para as novas gerações, pois, com todos os esforços, ainda é pouco conhecida pelos brasileiros e, de certo modo, até mesmo pelos profissionais do Direito. Achei prudente não fazer o mesmo, pois iria apenas repetir aquilo que outros articulistas tão bem fizeram em seus textos deste livro, ao tratar da história, da natureza jurídica ou do funcionamento do Tribunal Marítimo ou, ainda, dos efeitos de suas decisões. Resolvi, por isso, trazer uma breve reflexão, um depoimento em primeira pessoa, com a visão de um advogado sobre o Tribunal.  Linhas acima, eu dizia que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E do que é feita a vida senão de emoções, afetos e rumos cruzados com outras vidas? Por isso, pedirei licença para, antes de falar sobre a advocacia no Tribunal Marítimo, dividir com o leitor um pouco de minha história pessoal e como ela se encontrou com a Corte do Mar. Aos 15 anos, ingressei no Colégio Naval, onde criei laços eternos com o mar e a navegação. Concluído o curso, embora tivesse a opção de seguir para a Escola Naval, acabei atendendo ao chamado da vocação para o Direito. E, acredite o leitor, concluí os cinco anos de curso, numa das melhores faculdades do país, sem jamais ter ouvido sequer uma menção ao Tribunal Marítimo. Mas nem por isso deixei de me encantar com a fachada daquele prédio centenário (naquela época, ainda escondido pelo enorme viaduto da Perimetral) e de buscar aprender mais sobre o Tribunal nas poucas fontes então disponíveis. Embora pareça natural que o mar e o Direito acabariam se cruzando em minha vida, não foi assim tão simples. Com a vida acadêmica se inclinando para o Direito Constitucional e a advocacia para o contencioso cível, somente depois de algum tempo redescobri o Tribunal Marítimo e a ele direcionei meus estudos acadêmicos e a advocacia.  Se o leitor tem mais de 40 anos, provavelmente já sabe que as paixões da maturidade podem ser, e frequentemente são, melhores que as da juventude, justamente em razão da experiência que se tem da navegação em outros mares. O Direito Constitucional e a experiência na advocacia contenciosa acabaram sendo decisivos para um olhar diferente, mais maduro e mais completo, para a Corte Marítima.  No âmbito acadêmico, em 2017, lancei um despretensioso estudo chamado Tribunal Marítimo: natureza e funções (Editora Lumen Juris), que, para minha surpresa, foi acolhido com entusiasmo pela comunidade marítima e calhou ser a primeira obra específica no Direito brasileiro sobre o Tribunal. Como sou grato aos ventos que me guiaram até aqui, permitindo que esse reencontro tardio com o Tribunal Marítimo fosse muito além dos meus melhores sonhos da juventude. Mas foi na advocacia que percebi o quanto o Tribunal Marítimo é único e especial. Sendo um apaixonado pela profissão, tive a sorte de ocupar a tribuna de 21 dos 27 Tribunais Estaduais e do Distrito Federal e de quatro dos cinco Tribunais Regionais Federais, além do STJ e do STF. Posso dizer com tranquilidade que, em nenhum desses, o advogado é tão respeitado e tão prestigiado quanto no Tribunal Marítimo. Nos IAFN - Inquéritos sobre Acidentes e Fatos da Navegação, nas Capitanias dos Portos e em suas delegacias e agências, encontramos militares imbuídos de sua missão que conduzem os atos de investigação com toda a seriedade, mas também com toda a gentileza no trato com testemunhas e advogados. Mesmo quando situadas em locais de difícil acesso, o contato com essas unidades, seja por telefone, seja por e-mail, é fácil e sempre se consegue a informação desejada. Na sede do Tribunal, uma sala de audiências confortável e muito bem equipada mostra o investimento que prestigia a atuação dos advogados. Na secretaria, de onde jamais se sai sem a informação ou a cópia necessária de um processo, nunca se veem filas para atendimento.  A implantação do processo eletrônico deu um passo importante para um tribunal de jurisdição nacional, ao permitir que colegas de outros Estados tenham acesso imediato aos autos. Na biblioteca especializada, muito bem organizada, nota-se a preocupação em manter o acervo sempre atualizado, mesmo com a amplitude de temas que envolvem o processo marítimo.  Ao acessar o plenário, a percepção estética de estar adentrando num belíssimo prédio histórico, com conservação impecável, sempre me faz lembrar - mesmo depois de subir centenas de vezes aquelas escadas - que um sonho distante da juventude está se realizando. Mas é no aspecto humano que a advocacia no Tribunal Marítimo se mostra uma experiência profissional plena. Os juízes, sem nenhuma vaidade ou afetação, recebem diretamente os advogados e ouvem (note-se bem: "Ouvem" de verdade, prestando atenção, tomando notas e fazendo perguntas) seus argumentos. Os assessores estão ali para colaborar e somar conhecimento, não para funcionar como uma "barreira de contenção" entre o advogado e o magistrado, tampouco para substituí-los na elaboração das decisões. Quem já gastou muita sola de sapato nos corredores do Poder Judiciário sabe bem do que se está falando aqui. Nos julgamentos em plenário, a realização profissional é ainda maior. A sessão é plenamente acessível: Quando ocorre presencialmente, é facultado aos advogados que não estão no Rio de Janeiro que façam a sustentação oral por vídeo, em tempo real. E a imagem do advogado não é, como em alguns tribunais do Judiciário, um simples "quadradinho" num aplicativo de videoconferência, na tela de um computador portátil para o qual os julgadores mal olham. Ao contrário, são duas telas grandes, que permitem a visualização de todo o plenário e que dão a sensação de que o advogado está presente no mesmo recinto. Para os que comparecem presencialmente, têm sua presença registrada em ata - mesmo que não realizem sustentação oral - e são chamados gentilmente pelo nome, antes e durante sua presença na tribuna. Nos intervalos e no final da sessão, os juízes têm o hábito de cumprimentar cada advogado presente e, frequentemente, lembram a importância de sua atuação para a formação da convicção dos julgadores. Não posso deixar de fazer referência à atuação dos procuradores da PEM -  Procuradoria Especial da Marinha, igualmente gentis e sempre respeitosos no trato com os advogados. Embora integrem o órgão acusatório, com funções análogas às do MP, não se veem nem se portam como "superiores" aos advogados. A sustentação oral é feita sem pressa e sem pressão. Até 2022, o tempo era de 30 minutos, mas, depois da alteração no Regimento Interno, passou a ser de 15 minutos, em harmonia com a previsão do CPC. Mas isso não foi um problema, ao menos na única ocasião em que esse tempo era insuficiente num caso em que eu atuava: As partes combinaram, na hora, pela extensão em igual medida, e o plenário, acompanhando a proposta do relator, deferiu 30 minutos de sustentação para cada polo processual (acusação e defesa). Outras questões de ordem, como inversões de pauta, adiamentos ou a ordem em que cada advogado vai falar (quando são vários réus), são facilmente resolvidas na mesma hora, por meio do diálogo direto e respeitoso entre advogados e juízes. O advogado tem, ainda, a faculdade de utilizar recursos audiovisuais, como exibir um vídeo ou uma apresentação de slide. O mais importante, porém, é o aspecto humano, ou seja, a atitude dos juízes durante o julgamento. Nunca se viu um deles, durante uma sustentação oral, falando ao celular, dormindo ou lendo mensagens de aplicativos (incluindo vídeos sem fone de ouvido), só para ficar em alguns dos exemplos mais comuns que os advogados presenciam em outros tribunais. Não é incomum que, ainda durante a sustentação, um juiz dirija a palavra ao advogado para solicitar esclarecimento sobre algum ponto.  Depois, durante a votação, esse diálogo é ainda mais comum, principalmente quando um juiz, que não é o relator, pretende obter mais esclarecimentos sobre determinado fato ou mesmo entender melhor algum dos argumentos levantados pelo advogado. Um ponto relevante é que o Tribunal Marítimo leva muito a sério o princípio da colegialidade. Para que o leitor entenda mais claramente: A colegialidade pressupõe que, do debate entre diferentes julgadores, às vezes com pontos de vista diferentes, emergirá a melhor decisão, pois essa multiplicidade ajuda a eliminar vieses e diminui a possibilidade de que algum ponto passe despercebido ou seja desconsiderado. Hoje, em boa parte do Poder Judiciário, a essência desse princípio está prejudicada por duas patologias em sua aplicação prática: i) situações em que só o relator conhece o processo (e os demais não têm tempo ou interesse em conhecer) e, por isso, não há divergências, de modo que o julgamento colegiado acaba sendo, na prática, monocrático, com a decisão do relator prevalecendo sempre ou ii) o debate prévio, ou mesmo o envio de votos completos aos demais magistrados, antes da sessão de julgamento, de modo que, ao se iniciar o julgamento, tudo já está decidido. É possível mesmo dizer que são patologias simétricas: Numa, se perde a essência da colegialidade por falta de conhecimento do processo e, na outra, por excesso. Mas o efeito, de todo modo, é o mesmo. No Tribunal Marítimo, nenhuma dessas situações ocorre. Os juízes conhecem todos os processos, mesmo quando não são os relatores ou revisores. Em casos mais difíceis ou quando os advogados levam seus memoriais previamente, costumam fazer até um estudo mais profundo do processo para chegar à sessão devidamente preparados e - este é um ponto importante - sem nenhuma discussão prévia com o relator, de modo que eventuais diferenças de visão ou opinião ficam para ser expostas e debatidas ao vivo no plenário, durante o julgamento. E, em último caso, sempre é possível o pedido de vista, outro instituto com função específica e que, infelizmente, volta e meia vem sendo desvirtuado no Judiciário para outras finalidades que dizem respeito à manipulação do tempo de julgamento. Por fim, o ponto mais importante: Toda essa dialética seria inútil se os juízes não tivessem a disposição de mudar de opinião diante de argumentos apresentados pelos advogados ou por seus pares. Se um julgador chega para uma sessão sem essa disposição, realmente vai achar tudo enfadonho, e talvez aí esteja a razão para alguns (no Judiciário) preferirem olhar para o celular em vez de prestar atenção aos colegas ou aos advogados. No Tribunal Marítimo, como dito no início, não há vaidades ou afetações entre os juízes, o que permite que, do debate amplo e franco, emerjam decisões que consideram diferentes aspectos e enfoques das questões como resultado do debate, no qual, com frequência, a opinião dos juízes muda, fundamentadamente, durante o julgamento. Para o advogado, tudo que foi aqui relatado traz um ônus e um bônus. O ônus está na obrigação de se estar sempre bem preparado, conhecer a fundo o caso em julgamento e ser leal e franco na exposição dos fatos. Na verdade, é tudo aquilo que se espera do bom profissional. O bônus, infinitamente superior, está na satisfação do exercício pleno da profissão, no prazer de debater em alto nível e de saber que, ao final, a decisão, ainda que contrária aos interesses do cliente, será a mais justa possível, diante das informações disponíveis e dos limites da falibilidade humana. Em suma, embora não tenha recebido procuração de meus colegas, ouso falar em nome da advocacia para dizer: É no Tribunal Marítimo que se encontram as melhores condições para um pleno e recompensador exercício de nossa profissão. Disse, no início, que celebrar aniversários é celebrar a vida. O Tribunal Marítimo, como um prédio ou mesmo uma instituição estatal abstrata, não teria o que celebrar sob esse aspecto. Mas a essência do Tribunal não está em sua sede nem em sua existência legal. Está nas pessoas, que fazem com que ele exista de fato na vida de todos os jurisdicionados, está nas relações humanas, que conduzem os processos em direção ao norte que realmente importa: Justiça e segurança da navegação. Sob esse aspecto, há, sim, muito o que celebrar.  Feliz aniversário, Tribunal Marítimo, parabéns pelos 90 anos de singradura!
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A unidade do Direito Marítimo

O ano de 2024 que em breve se encerra trouxe muitos desafios para todos, alguns inesperados, mas também nos proporcionou muito aprendizado e crescimento, tanto pessoal quanto profissional. Diante disso, como forma de homenagear todo o esforço e superação que marcaram mais um ano dessa trajetória, trazemos de volta esse ensaio sobre o Direito Marítimo e as suas raízes, deixando de lado momentaneamente os temas que pontuam nossas lides cotidianas, um convite para um breve retorno às origens para beber da fonte desse ramo do Direito que nos apaixona e que escolhemos defender. Mostra a história que o Direito Marítimo se formou autônomo. Houve, durante algum tempo, uma certa inclinação de estabelecer uma ligação entre o comércio marítimo e o terrestre. D'Ovidio e Pescatore1 pregaram o enquadramento do Direito Marítimo no sistema comum. Wahl defendeu que ele não constitui uma ciência separada e que é, antes, uma fração do comercial. Bonnecase2 e Prinzivalli3 combateram o particularismo do Direito Marítimo e se opuseram à tese da sua autonomia, dizendo que, como o direito terrestre, o Direito Comercial Marítimo se identifica com o civil, quanto à sua natureza específica. Mas, mesmo sustentando que não subsiste a pretendida fusão das normas de Direito Público com as de Direito Privado, e que a conseqüência lógica e rigorosa da tese do particularismo em face da natureza específica do Direito Marítimo o colocaria independente ou acima do Direito Público e do Privado, reconheceram que as fontes do Direito Marítimo apresentaram e apresentam, ainda, características especiais, como as normas convencionais típicas sobre os contratos, os conhecimentos e demais documentos marítimos, o predomínio das coisas e costumes sobre a lei escrita, etc., e que cabe dedicar uma atividade de estudo das normas relativas às relações jurídicas marítimas distinta da do Direito Comercial. D'Ovidio e Pescatore4, uma vez considerando o conceito de autonomia distinto do de particularismo, admitiram ser, o Direito Marítimo, um direito especial, com autonomia científica e legislativa. Na verdade, os qualificativos "particularismo" e "autonomia", aplicados ao direito da navegação pelos doutrinadores, nada mais significam do que duas posições com referência a um mesmo problema. A doutrina francesa, desde a aparição da obra de Pardessus5, afirma o particularismo do Direito Marítimo com uma fisionomia típica, distinta da do direito terrestre. Pardessus6 estudou o problema desde o ponto de vista histórico e sob o prisma naturalista, considerando o Direito Marítimo original, como algo imutável e uniforme a todos os países. Na doutrina moderna, a autonomia do Direito Marítimo foi magistralmente posta em relevo por Ripert, tendo sustentado que ele possui caráter original e se manifesta com uniformidade, tradicionalismo, que o exclui da clássica divisão de direito público e privado. Afirmou também que, como conseqüência destas características típicas, é um direito independente, e julgou errôneo considerá-lo como uma aplicação do direito terrestre às coisas e gente do mar. É de se destacar nesta época, também, a importância da Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, que foi liderada por Scialoja7, o qual assinalou razões técnicas e práticas para considerar a autonomia do Direito Marítimo. Ele não só manifestou que o Direito Marítimo já surgiu como um direito autônomo, mas que temos assistido, na atualidade, um florescimento de direitos autônomos. A distinção entre a esfera pública e a privada, confusa e sem nitidez, observou Ferraz Júnior8, faz da separação entre Direito Público e Privado uma tarefa difícil de se realizar. E, não obstante entender que a dicotomia entre Direito Público e Privado ainda persevera - pelo menos por sua operacionalidade pragmática -, reconheceu o surgimento de campos jurídicos intermediários, nem públicos nem privados, como o Direito do Trabalho, de modo que os tradicionais conceitos dogmáticos sentem dificuldade de se impor. Não existe um critério de rigor lógico e satisfatório capaz de designar claramente a distinção, pretendida pela dogmática jurídica, entre Direito Público e Direito Privado, notou Rizzatto Nunes9, e, qualquer critério que se busque para a divisão não consegue apresentar de forma definitiva uma eventual linha divisória que existiria entre os dois ramos disputados. A pretensa divisão é claramente didática, feita com base nas várias possíveis e existentes. Consignou, porém, que ela, como as demais, padecerá de seu artificialismo e que a linha divisória proposta jamais será muito nítida. Para classificar, dentro do Direito Público e Privado, os diferentes ramos dogmáticos, é preciso identificar as situações dos próprios sujeitos, se são, por exemplo, entes públicos ou privados, e a qualidade destes quando estão na relação jurídica; e o conteúdo normativo e o interesse jurídico a ele relacionado. A dogmática vale-se, para esta tarefa, de dois topoi, ou lugares comuns consagrados pela tradição: natureza jurídica e natureza das coisas. Via de regra, a natureza jurídica de uma situação é dada pelas normas que a disciplinam. Mas isso, nem sempre é fácil. É preciso, então, reconhecer se o objeto normado tem uma natureza que lhe seja peculiar: é a natureza das coisas. A busca desta natureza intrínseca das coisas é que é responsável pela permanente presença do chamado direito natural, aquele sujeito que não é posto, mas que emerge da própria essência das coisas. Dogmaticamente, o princípio da inegabilidade dos pontos de partida é posto fora de dúvida, e a natureza das coisas é aceita como um lugar comum, preenchido pelos usos consagrados pela tradição. Numa divisão inicial, o Direito Público é aquele que reúne as normas jurídicas que têm por matéria o Estado, suas funções e organização, a ordem e segurança internas, com a tutela do interesse público, tendo em vista a paz social, e, no âmbito internacional, cuida das relações entre os Estados. O Direito Privado, por sua vez, reúne as normas jurídicas que têm por matéria os particulares e as relações entre eles estabelecidas, cujos interesses são privados, tendo por fim a perspectiva individual. Se é certo que no atual estágio do desenvolvimento do direito positivo, cada vez mais o Estado se imiscui na órbita privada, não só para garantir os direitos ali estabelecidos, mas para impor normas de conduta, anular pactos e contratos, rever cláusulas contratuais etc., resulta, daí, aventou Rizzatto Nunes10, uma nova concepção social do Direito. O autor refere, como exemplo de tal movimento, o Direito do Trabalho, e que tem seu ápice, modernamente, no Direito do Consumidor. Pelo seu caráter peculiar e sua formação histórica, nós podemos dizer que o Direito Marítimo é exemplo clássico dessa concepção. Sob este prisma, o ilustre mestre concluiu que alguns ramos do direito positivo são caracterizados basicamente por serem híbridos ou mistos (Direito Misto), ao contrário das outras duas espécies que se distinguem, basicamente, por estarem relacionadas ao interesse público ou privado. Como ramos do Direito Misto considerou o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário, o Direito Econômico, o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental, em cujo rol nós incluímos o Direito Marítimo. O Direito Marítimo tem o seu domínio próprio, possuindo um caráter de imutabilidade e uniformidade desde a origem e entre os diversos povos, que nunca se preocuparam de saber onde classificar essas normas. É certo que sofreu, e ainda sofre, intervenção do Estado, que lhe impõe normas de natureza pública, como, por exemplo, para garantir a segurança da navegação, e que se postam ao lado das normas individuais criadas pelos contratos, através das quais as partes contratantes são juridicamente vinculadas a uma conduta recíproca (negócio jurídico). Mas, sejam de que natureza forem, digam respeito a entidades particulares ou ao Estado, ou àquelas e a este, simultaneamente, desde que tratem da exploração de navios, da navegação e do comércio por mar e das pessoas que a isso se dedicam ou nisso cooperam, pertencem ao Direito Marítimo, que não está situado nem no Direito Público nem no Privado. Também não é ramo do Direito Comercial, posto que este é parte exclusiva do Direito Privado. O Direito Marítimo, peculiar que é, tem um lugar especial no campo da ciência do direito. Recentemente, Haroldo dos Anjos e Caminha Gomes11 levaram em consideração a natureza das regras jurídicas e consideraram "Direito da Navegação" e "Direito Marítimo", como ramos do direito, distintos e independentes. No "Direito da Navegação", escreveram, prevalece a generalidade das normas de ordem pública, regulamentando o tráfego e a segurança da navegação, como por exemplo as normas de sinalização náutica e os regulamentos internos e internacionais para o tráfego da navegação, nos portos, vias navegáveis e no alto mar, enquanto que o "Direito Marítimo" é mais abrangente, contemplando normas de natureza pública e de natureza privada, como as que regem o comércio marítimo em geral, constituindo, assim, um direito misto. Em abono da tese, citaram o pensamento jurídico da Scuola del Diritto della Navigazione e, como exemplo da consagração da independência e autonomia do "Direito da Navegação", o Codice della Navigazione italiano atual. Sampaio Lacerda também foi citado como tendo preconizado a elaboração de um Código de Navegação, separado do Direito Comercial Marítimo. Sem embargo, faz-se necessário, aqui, um importante reparo, pois, nem a escola napolitana defendeu um "Direito da Navegação", distinto e independente do Direito Marítimo, e nem o código italiano exclui as relações de comércio marítimo. Sampaio Lacerda, por sua vez, nada mais fez do que abraçar sugestão daquela importante escola italiana, no sentido de que o estudo da navegação reunisse, numa só disciplina, o Direito Marítimo e o Direito Aeronáutico. A Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione declarou-se pela autonomia do Direito Marítimo, mas sem a pretendida divisão. Scialoja, expoente máximo dessa escola, defendeu o caráter peculiar do Direito Marítimo como elemento determinante da sua autonomia: a existência de institutos típicos, além de ser a natureza das coisas, isto é, o fato técnico, o elemento experimental, a determinante de sua especialidade, constituindo o vínculo interno que une em um complexo orgânico todos os institutos especiais e todos os desvios das normas do direito comum. E o fato técnico de navegação, em sua expressão mais sintética, é o transporte autárquico. As situações particulares e as exigências especiais do tráfico marítimo derivam todas deste elemento fundamental de fato. O risco da navegação, que congrega em uma formidável solidariedade de interesses todos aqueles que confiam aos navios seus bens ou sua vida: o afastamento do navio e a autoridade e perícia de um só (o capitão) perante todo evento dão ao Direito Marítimo característicos precisos. Além disso, exclamou o mestre, no Direito Marítimo há uma fusão entre os elementos privados e públicos, tão íntima que difícil se torna a separação deles. A autonomia do Direito Aeronáutico não foi reconhecida pela escola napolitana, entendendo que o fator técnico da navegação é igual nos dois ramos do direito - o marítimo e o aéreo - além de que as normas de Direito Aeronáutico derivam dos velhos institutos do Direito Marítimo, que a ele se aplicaram com meras adaptações. A afinidade entre as duas disciplinas cresce dia a dia. Assim, o comandante de uma aeronave já sente atualmente os primeiros sintomas do papel que desempenha o capitão de um navio, ao ter de exercer não mais somente uma função puramente técnica, preocupado unicamente com a direção e a rota da aeronave, mas também inúmeras outras funções, quais sejam a de ser o chefe de toda aquela sociedade mista de tripulantes, passageiros, etc., e ainda a de ter de representar, muita vez, o explorador da aeronave e, principalmente, a do encargo oficial público, podendo efetuar todos os atos que são atribuídos, em certas ocasiões de emergência, ao capitão do navio. Por tais razões, a Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, sob a regência de Scialoja, Dominedo, Spasiano, D'Ovidio e tantos outros, ergueu a bandeira para que fossem as duas matérias congregadas num único direito, ou seja, o da navegação, ao que João Cabral sugeriu o nome de direito navegacional. Sampaio de Lacerda12 filiou-se à doutrina da escola napolitana, por reconhecer que a identidade entre as duas disciplinas é fato que não pode mais ser desmentido, e sugeriu que "se modifique a nossa legislação sobre Direito Marítimo e Aeronáutico para, compendiando suas normas já adaptadas à modernização e aperfeiçoamento da navegação marítima e aérea, num único código, seja esse justamente intitulado - CÓDIGO DA NAVEGAÇÃO", e isto somente para alcançar tanto a navegação marítima como a aérea. Nenhuma a conotação desse código sugerido, como se vê, com o "Direito da Navegação", apregoado como ramo do direito, distinto e independente do Direito Marítimo. O Codice della Navigazione italiano atual, por sua vez, seguiu o pensamento jurídico da escola napolitana e, ao contrário do que foi informado, cuidou do Direito Marítimo em toda a sua amplitude, tratando dos assuntos da navegação e regulando tanto o tráfego marítimo quanto os atos do comércio marítimo, tais como os contratos de locação e de fretamento e transporte, de pessoas e coisas, incluindo os seguros marítimos, e dedicando, na última parte, capítulo especial sobre o Direito Aeronáutico. Modernamente, a doutrina considera o Direito Marítimo em sentido genérico, onde os elementos técnicos e comerciais estão entrelaçados de tal maneira que é impossível separá-los, para constituí-los em ramos do direito, distintos e autônomos. Waldemar Ferreira13 comentou, com o saber jurídico que o notabilizou, que não é dissimulável a tendência, que se poderia haver como autárquica, em prol da autonomia de cada capítulo do Direito Privado, como até do Direito Público, a par e passo de sua evolução doutrinária, legislativa e mesmo jurisprudencial, por ação de cissiparidade. "Disputa-se, no âmbito mercantil, a autonomia do Direito Marítimo, do Direito Aeronáutico, do Direito Industrial, do Direito das Empresas, do Direito de Seguros, do Direito Bancário, do Direito dos Transportes, etc., com argumentos vivacíssimos, do mais variado colorido científico. Reclama-o o tecnicismo moderno. Exige-o a cultura especializada, de gabinete ou de seminário, como se o Direito não fosse a ciência de relação por excelência. Na matéria do Direito Marítimo (e o mesmo haverá de dizer do Direito Aeronáutico) se deparam relações jurídicas a propósito ou oriundas do navio e da navegação, pertinentes a outros ramos do Direito, assim no público, como no privado", afirmou o grande mestre. Assim é que, por força da natureza da navegação marítima, não são poucas as instituições de Direito Marítimo que se compreenderiam no Direito Internacional Público e no Privado, no Direito Administrativo, no Direito do Trabalho, no Direito Penal, no Direito Fiscal e até no Direito Processual, o que permitiria dividir o Direito Marítimo em diversos ramos, tais como Direito Internacional Público Marítimo, Direito Internacional Privado Marítimo, Direito Administrativo Marítimo, etc., "entrando a fundo no terreno das especializações, mais ao sabor das conveniências didáticas, que das científicas". Mas, "nem por isso", ressalvou o insigne mestre, "e por efeito dessas classificações, deixaria de ser autônomo o Direito Marítimo". O Direito Marítimo apresenta ainda hoje conteúdo próprio, disse Wahl, ao que Danjon acrescentou: as suas características são a grande estabilidade através dos tempos, a notável uniformidade em toda a parte e, sem embargo, a admirável ousadia nas concepções jurídicas. Ripert afirmou a importância do tradicionalismo do Direito Marítimo, que não se interrompeu pela codificação, que veio diminuir a valia dos usos e costumes. Ao contrário, tem ele resistido galhardamente ao evolver da indústria da navegação. Comprova-o a subsistência dos textos das codificações comerciais centenárias ou quase seculares, embora modificados muitos dos seus dispositivos na tendência de harmonizar o passado com o presente. A construção de grandes e modernos portos, o emprego da tecnologia nos processos de carga e descarga dos navios, a maior brevidade das viagens, as novas e mais seguras formas de transporte marítimo, com a diminuição dos riscos e outras circunstâncias, modificaram o velho caráter do navio de colonia viaggiante, mas não a suprimiram, asseverou Asquini. De modo a justificar o caráter todo peculiar do Direito Marítimo, Sampaio Lacerda elencou alguns dos muitos de seus institutos típicos, não só quanto às pessoas, como quanto às coisas e às obrigações, que resistiram ao tempo: a figura do capitão; a organização da profissão marítima que constitui a marinha mercante; a reserva da marinha de guerra; a natureza jurídica do navio de móvel sui generis, pela aplicação de certas regras pertinentes aos imóveis (registro, publicidade, hipoteca); o contrato de fretamento e o de ajuste. Além disso, não poucos são os institutos exclusivos do Direito Marítimo, tais como as avarias comuns, a abalroação, a assistência, o salvamento. Estas são as substanciais razões do particularismo do Direito Marítimo, que não decorrem de contingências ocasionais, mas das necessidades impostas pela própria natureza da navegação, e que independem da vontade do legislador. De fato, o Direito Marítimo tem características que lhe são próprias, as quais não concernem exclusivamente ao comércio marítimo, mas a tudo o que está relacionado com a navegação marítima, problema que não é de simples terminologia, mas de extensão de conceito. Nasceu, como se falou, da exploração mercantil da navegação, que ensejou a criação de regras, tanto de natureza privada quanto pública, destinadas a regulamentá-la. O conjunto de normas que rege a navegação não é, pois, um direito subsidiário, acidental, secundário. Ao contrário, é um direito principal e unitário, com formas e instituições que são próprias e exclusivas dele, razão porque tem caráter todo original. Assim, conquanto seja possível, sem dificuldades e inconvenientes, classificar, para fins didáticos, o Direito Marítimo em Público e Privado, como também em Internacional, mesmo mantendo inalterada a prevalência do primeiro sobre as instituições fundamentais do segundo, definir a navegação como um ramo de direito, distinto e independente do Direito Marítimo, é romper com o seu tradicionalismo e contrariar a sua originalidade. O Direito Marítimo Privado relaciona-se com o Público através de suas particulares afinidades. Mas, mesmo sofrendo em muitos aspectos profunda influência do Direito Público, ele não deixa de apresentar elementos especiais, perfeitamente caracterizados, que compreendem a atividade especulativa dos cidadãos, que se desenvolve em torno e por meio da navegação. Neste particular, relevante o comentário de J. Stoll Gonçalves, Juiz do Tribunal Marítimo nos anos quarenta, quando escreveu, em agosto de 1946, lastreado em opiniões de insignes mestres estrangeiros e de especialistas brasileiros, a nota explicativa do Projeto de Código Marítimo que encaminhou ao então Presidente da Comissão de Marinha Mercante, que elaborou em conjunto com Sydney Haddock Lôbo e Roberto Talavera Bruce, cujas palavras  traduzem o pensamento jurídico da época, não muito distante, mas que ainda é atual: "A Comissão Elaboradora encetou seus trabalhos partindo do postulado da unidade do Direito Marítimo, tal como a entendem os juristas e mestres contemporâneos. De fato, hoje não mais se sustenta, apenas, o particularismo do Direito Marítimo, mas a autonomia desse Direito, em todos os seus setores, e a sua tendência à uniformidade e à internacionalização. O Direito Marítimo pode e deve formar um sistema jurídico de modo a abranger normas do Direito Público e do Direito Privado." Finalmente, no âmbito do sistema jurídico constitucional brasileiro, temos que o mesmo se subdivide em diversos subsistemas, como o Direito Civil, do Trabalho, Tributário, Penal, do Consumidor, Comercial, Marítimo, dentre outros. Cada um destes subsistemas tem uma finalidade específica, tendente a reger as relações jurídicas que a eles se conectam. Neste passo, o Direito Marítimo, que tem por finalidade o transporte de mercadorias realizado por via aquática, tem sua autonomia, sua existência própria e independente, prevista na Constituição Federal, como por exemplo a disposição contida no inciso I de seu artigo 2214. Ainda neste tema, nossa Carta Magna faz referência ao Direito Marítimo ou a matérias que a ele pertencem em outros dispositivos, como se vê no inciso X do artigo 22, nas alíneas d e f do inciso XII do artigo 21 e no artigo 178, caput e § único15. Diante destes preceitos constitucionais, tem o Direito Marítimo suas próprias normas aplicáveis às relações jurídicas típicas deste ramo de direito, como a Lei n.º 9.611/98, que regula o transporte multimodal de cargas; a lei 12.815/2013, que dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e instalações portuárias; o Decreto n.º 1.265/94, que define a política marítima nacional, o Decreto-Lei n.º 116/67, que regulamenta as operações inerentes ao transporte aquático de mercadorias, inclusive definindo responsabilidades e prazos prescricionais; entre outras, inclusive aquelas inseridas no Código Comercial de 1850 e ainda vigentes. Desta forma, procuramos demonstrar que o Direito Marítimo se apresenta como um ramo autônomo do direito e as relações jurídicas que a ele se conectam têm normas específicas que as regulam, não podendo ser admitida a aplicação de normas oriundas de outros ramos do direito, criadas para regular condutas e relações específicas daqueles subsistemas jurídicos. __________ 1 D'OVIDIO, Antonio Lefebvre e PESCATORE, Gabrielle, Manuale di Diritto della Navigazione, 1950, citados por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., p. 44. 2 BONNECASE, Julien, ob. cit., 1. 3 PRINZIVALLI, La pretesa autonomia del Diritto Marittimo, 1933, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., p. 40. 4 Ob. cit., p. 44. 5 PARDESSUS, J.M., Cours de Droit Commercial, 6ª ed., 1856, citado por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., ps. 36/37. 6 Ob. cit., ps. 36/37. 7 SCIALOJA, Antonio, Corso di Diritto della Navigazione, 1945, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., ps. 39 e 41. 8 FERRAZ JÚNIOR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., Atlas, 1994, p. 138. 9 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio, Manual de Introdução ao Estudo do Direito, ed. Saraiva, 1996, ps. 102 a 105. 10 Ob. e ps. citadas. 11 DOS ANJOS, J. Haroldo e CAMINHA GOMES, Carlos Rubens, Curso de Direito Marítimo, ed. Renovar, 1992, p. 6 a 9. 12 SAMPAIO DE LACERDA, J.C., ob. cit., ps. 35 a 46. 13 Ob. cit., p. 14 a 17. 14 Art. 22: "Compete privativamente à União legislar sobre:I - Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho". 15 Art. 22: " ........: X - regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial".Art. 21: "Compete à União:XII - Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:d) Os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites do Estado ou Território;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres".Art. 178: "A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.§ único - Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras".
Introdução O tema sobre geração de energia renovável tem atraído cada vez mais a atenção de empresas, autoridades e a sociedade em geral. A tecnologia voltada para a energia renovável tem experimentado uma evolução exponencial, com destaque para as instalações marítimas capazes de aproveitar fontes limpas, como o vento, o sol e as ondas do mar, para a geração de energia. Apenas a título ilustrativo, no que diz respeito à energia eólica, estima-se que ao final do ano de 20191 havia aproximadamente 30.000 megawatts (MWs) em capacidade eólica offshore instalada em todo o mundo, e, em meados daquele ano, quase 5.500 geradores de turbinas eólicas offshore (WTGs) estavam conectados a "grids" onshore, conexões às redes de energia eólica em terra2. Em grande parte, os equipamentos utilizados para geração de energia limpa offshore são instalados em estruturas fixas, como plataformas ou parques fixados em águas profundas, geralmente próximas da costa. Entretanto, uma variedade de novas estruturas tem sido desenvolvida de maneira móvel e flutuante e utilizada ao redor do mundo para geração de energia de maneira sustentável: são as chamadas "Mobile Offshore Renewable Units" (em tradução livre, Unidades Renováveis Móveis Fora da Costa), as MORUs. As MORUs, como o nome sugere, são estruturas móveis, flutuantes, que podem gerar energia elétrica a partir do vento, das ondas, das marés, do sol ou de diferentes temperaturas da água do oceano - subcategoria chamada de "Floating Generation Units", unidades geradoras flutuantes, em tradução livre - ou, ainda, que podem desempenhar atividades auxiliares a tais unidades - "Floating Auxiliary Units" ou "Floating Hybrid Units". Dentre as MORUs mais conhecidas e utilizadas ao redor do mundo, destaca-se a turbina eólica flutuante ("Floating Wind Turbines" - FWT), consistente em uma estrutura, associada à energia eólica, montada em um corpo móvel que flutua sobre o mar e que converte a energia cinética do vento em energia elétrica: Por serem flutuantes, as MORUs possuem certas vantagens em comparação às estruturas fixas de geração de energia renovável. Dentre elas, vale mencionar, por exemplo, a possibilidade de que as MORUs sejam instaladas em águas rasas, com tecnologia inadequada para estruturas fixas ou de águas mais profundas. Além disso, alguns estudos também apontam que as MORUs seriam tecnologias com um custo relativamente reduzido, se comparadas às estruturas fixas de energia renovável[3]. O Brasil tem potencial para ser um líder mundial de energia eólica offshore - setor no qual estão incluídas algumas das MORUs. Além disso, a preocupação com a diversificação da matriz energética brasileira - uma das mais limpas do mundo - também empresta especial importância às MORUs A esse respeito, o Decreto nº 10.946/2022, em vigor desde 15 de junho de 2022, dispõe sobre a cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore.  O referido Decreto estabelece que a geração de energia eólica offshore no Brasil - cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas -, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental. A referida cessão de uso dos espaços físicos, de competência do Ministério de Minas e Energia, poderá ser objeto de contrato oneroso ou gratuito, abrangendo (i) a área marítima, coincidente com os prismas entre o leito submarino e a superfície, destinada à realização de atividades de exploração e pesquisa tecnológica relacionados à geração de energia elétrica offshore, e (ii) as áreas da União em terra necessárias para instalação de apoio logístico para a manutenção e a operação do empreendimento. A cessão de uso estará sujeita à manifestação prévia de vários órgãos e entidades, entre as quais a do Comando da Marinha. A regulamentação do tema sob o aspecto do direito marítimo no Brasil, entretanto, ainda depende de construções interpretativas das regras aplicáveis a embarcações e plataformas, a fim de se ter alguma orientação sobre o tratamento legal a ser disciplinado às MORUs. MORUs no Brasil As MORUs se assemelham a outras estruturas móveis offshore empregadas especialmente no setor de óleo e gás, mas se diferem materialmente de tais instalações em vários aspectos. Para além da fonte geradora de energia (fóssil vs. sustentável), as MORUs também se diferenciam das instalações offshore de óleo e gás no tocante à disciplina legal que rege a sua utilização. Enquanto as plataformas móveis de óleo e gás possuem um marco legal claro, sendo regidas até por normas específicas da Autoridade Marítima Brasileira (vide NORMAM 201), as MORUs ainda possuem uma regulamentação expressa, sendo necessário o uso de analogias para fins de seu enquadramento normativo no Brasil. As MORUs poderiam ser tratadas normativamente tal como as embarcações, conforme parâmetros estabelecidos pelas NORMAMs. Isso porque a NORMAM 201, referente às "normas da autoridade marítima para embarcações empregadas na navegação em mar aberto", já prevê que estruturas móveis, via de regra, são consideradas como embarcação: "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na Autoridade Marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas;"  A própria Lei nº 9.537/1997, que trata da segurança do tráfego aquaviário em águas brasileiras, prevê que embarcação é "qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes (...)". Para melhor referência, a NORMAM 201 estabelece, dentre outros, os seguintes tipos de embarcação:      "x) Plataforma - instalação ou estrutura, fixa ou flutuante, destinada às atividades direta ou indiretamente relacionadas com a pesquisa, exploração e explotação dos recursos oriundos do leito das águas interiores e seu subsolo ou do mar, inclusive da plataforma continental e seu subsolo. I) Plataforma Móvel - denominação genérica das embarcações empregadas diretamente nas atividades de prospecção, extração, produção e/ou armazenagem de petróleo e gás. Incluem as unidades Semi-Submersíveis, Auto-Eleváveis, Navios Sonda, Unidades de Pernas Tensionadas ("Tension Leg"), Unidades de Calado Profundo ("Spar"), Unidade Estacionária de Produção, Armazenagem e Transferência (FPSO) e Unidade Estacionária de Armazenagem e Transferência (FSO). As embarcações destinadas à realização de outras obras ou serviços, mesmo que apresentem características de construção similares às unidades enquadradas na definição acima, não deverão ser consideradas "plataformas" para efeito de aplicação dos requisitos estabelecidos nesta norma e em demais códigos associados às atividades do petróleo. II) Plataforma Fixa - construção instalada de forma permanente no mar ou em águas interiores, destinada às atividades relacionadas à prospecção e extração de petróleo e gás. Não é considerada uma embarcação." Adicionalmente, também poderia se cogitar incluir as MORUs na categoria específica de "obras e atividades afins em águas sob jurisdição brasileira", conforme previsto na NORMAM 303. A NORMAM 303 faz menção a unidades estacionárias de produção, estruturas flutuantes e, especificamente, a parques eólicos marinhos (item 1.30). Parque Eólico Marinho seria a área marítima onde são autorizadas instalações de plataformas individuais com aerogeradores, destinados a transformar energia eólica em energia elétrica. Dentre os equipamentos e áreas que compõem um Parque Eólico Marítimo, a NORMAM 303 destaca os seguintes: "a) gerador eólico - estrutura individual localizada na superfície, consistindo de tubulação ou torre, instalada sobre as águas, geralmente montadas em flutuantes ou estruturas fixadas no leito marinho, com lâminas rotativas acopladas a um gerador elétrico; b) estação transformadora ou subestações - estrutura localizada dentro ou fora do Parque Eólico Marítimo na qual os geradores eólicos estão conectados por meio de cabos elétricos, submersos ou não; c) estrutura periférica significativa - gerador eólico localizado em um dos vértices de um parque eólico marítimo retangular ou em outro ponto notável na sua periferia; e d) prisma - área vertical de profundidade coincidente com o leito submarino, com superfície poligonal definida pelas coordenadas geográficas de seus vértices, onde poderão ser desenvolvidas atividades de geração de energia elétrica." Vale ressaltar que tais estruturas, quando fixas, não poderiam ser consideradas como embarcação. Estruturas fixas, de acordo com a Lei nº 9.537/1997, somente podem ser tratadas como embarcação quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam. Caberia ainda considerar  se as mesmas regras aplicáveis às "MODUs", as "Mobile Offshore Drilling Units" (em tradução livre, Unidades de Perfuração Móveis Fora da Costa), tratadas no âmbito da NORMAM 201 (com base no Código para a Construção e Equipamento de Plataformas Móveis de Perfuração (Code for Construction and Equipment of Mobile Offshore Drilling Units, 1989 - MODU CODE e suas alterações), poderiam ou não ser apropriadas para as MORUs, tendo em vista as semelhanças entre essas duas tecnologias, para fins de enquadramento normativo das MORUs como embarcação. A relevância de as MORUs serem ou não enquadradas como embarcações está diretamente relacionada à identificação das regras legais que irão reger as operações com essa tecnologia, sobretudo no que diz respeito ao seu regime de propriedade e registro, salvatagem e segurança; comunicação; sinalização; seguro; tripulação e normas ambientais, entre outros. Além disso, a conceituação também é relevante para discussão de outros aspectos ligados às MORUs, que podem incentivar o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, tal como a forma de constituição de ônus e gravames sobre tais estruturas, ou, ainda, de arresto desses bens, dentre outros. Por exemplo, sendo as MORUs consideradas como embarcação, aquelas que arvorarem bandeira brasileira serão registradas no Tribunal Marítimo e na Capitania dos Portos, conforme aplicável. De todo modo, essa é uma construção interpretativa extraída das normas marítimas que existem, para embarcações em geral, plataformas e MODUs. Vale ressaltar que não existe norma expressa para as MORUs. De todo modo, acreditamos que construções interpretativas baseadas em normas marítimas já existentes, bem como em julgados relacionados a embarcações em geral e a plataformas em específico, poderiam servir de orientação, com a finalidade de trazer alguma luz a empresas e players interessados em desenvolver esse setor no Brasil. Comentários Finais Como visto, as MORUs são uma tecnologia relativamente recente, mas que fazem parte de uma discussão já antiga relacionada ao desenvolvimento da energia sustentável. Estudos indicam que as MORUs tendem a crescer exponencialmente nos próximos anos em diversos país, dentre eles, o Brasil, cujas características geográficas posicionam o país em destaque no mercado eólico offshore. Apesar de promissora, todavia, a regulamentação das MORUs no Brasil ainda é incipiente. Há quase nenhum regramento sobre o assunto, sendo necessário realizar uma interpretação extensiva das regras atualmente existentes para plataformas, por exemplo, bem como para as MODUs, a fim de se ter alguma orientação quanto às operações com essa tecnologia. A geração de energia eólica offshore no Brasil - cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas -, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental.  No que diz respeito especificamente às MORUs, caso sejam móveis poderiam ser classificadas com embarcações, mas sendo instalações fixas não deveriam ser consideradas embarcações, exceto quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam. Certamente, uma discussão mais aprofundada sobre o tema e a criação de um regramento específico pelas autoridades marítimas podem contribuir para dar segurança jurídica e, consequentemente, viabilizar e estimular o crescimento desse mercado no Brasil - o que, em última análise, também contribui para a diversificação da matriz energética brasileira e a geração de energia sustentável. ________ 1 Global Wind Report 2019, GLOBAL WIND ENERGY COUNCIL 44 (Mar. 2020), https:// gwec.net/global-wind-report-2019/. 2 Offshore Wind Outlook 2019, INTER. ENERGY AGENCY 15 (2019), https://webstore. iea.org/offshore-wind-outlook-2019-world-energy-outlook-special-report. Compare this to an estimated 1,500 offshore oil and gas installations worldwide in 2013. See Steven Rares, An International Convention on Offshore Hydrocarbon Leaks?, CMI YEARBOOK 2013 340, 340 (2013). 3 SEVERANCE, Alexander. Mare Incongnitum, Part I: Do We Need (to at Least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Units Convention? Severance, Alexander, Mare Incognitum, Part I: Do We Now Need (to at least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Unit Convention? (April 4, 2020). 45(2) Tulane Maritime Law Journal 287 (2021), Available at SSRN: Disponível aqui or disponível aqui.
Recentemente esta autora publicou na Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário do Instituto de Estudos Marítimos artigo científico sobre interrupção da prescrição no Tribunal Marítimo, a partir da análise da jurisprudência do referido Tribunal, bem como da doutrina.  Isto porque, na medida em que, a despeito de autores já terem chamado atenção para o fato de que o legislador, com a edição do art. 20 da LOTM teria o feito para estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estiver em curso, a jurisprudência do Tribunal Marítimo ainda não está consolidada sobre o tema, existindo jurisprudência que aplica de forma errônea o art. 20 da LOTM, como se este tratasse de imprescritibilidade.  Tal fato, deve-se, também, ao entendimento da comissão de jurisprudência do referido Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição.  Neste sentido, restou defendido naquele artigo científico, que art. 20 da LOTM não requer qualquer modificação, trazendo a reflexão sobre se não seria adequado um novo posicionamento da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a fim de colocar luz definitivamente sobre a questão, de forma a se concluir, definitivamente, que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. Recentemente, a autora obteve, inclusive, resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o referido artigo científico teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. Pois bem, a convite do Migalhas Marítimas, de forma resumida, a autora buscou trazer os principais pontos levantados no artigo científico, sobretudo para se concluir que é insustentável alegar que o art. 1º, caput, da lei 9.873/99 (o qual trata da prescrição em 5 anos) teria suprimido o disposto no art. 20 da lei 2.180/54.  A bem da verdade, o que se verá é que as normas tratam de questões diferentes, e que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra. Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99, eis que silente a LOTM sobre o prazo - art. 155 da LOTM1) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM).  Pois bem, no Direito administrativo sancionador a prescrição é regra em conformidade com o princípio da segurança jurídica. Portanto, a tese da prescritibilidade é regra, enquanto a imprescritibilidade é exceção.  E, como bem assevera Eliane Octaviano, a LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o Tribunal Marítimo2. Ou seja, a lei orgânica do Tribunal Marítimo, a despeito de aduzir, em seu art. 33, §2º3, que será de 05 dias o prazo para abertura do inquérito contado do conhecimento do acidente ou fato da navegação, nada dispõe acerca do prazo prescricional para a instauração do processo perante o Tribunal Marítimo.  É nesse sentido que a referida lacuna da lei deu abertura à tese da imprescritibilidade, dando ao art. 20 da LOTM interpretação distorcida (e equivocada) da sua real interpretação. E, Matusalém Pimenta, quando abordou o tema no livro Processo Marítimo - Formalidades e Tramitação, começou discorrendo sobre o efeito de eventual interpretação literal do art. 20 da LOTM, sendo que tal efeito, naturalmente, desencadearia na concepção de que o art. 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade, não sendo, portanto, sequer recepcionado pela CF/88.  No entanto, o autor, a bem da verdade, defendeu que art. 20 da LOTM reclama interpretação teleológica, levando em conta a real motivação do legislador ao trazer a existência do referido artigo, qual seja a interrupção da prescrição enquanto o processo marítimo estiver em curso. Veja-se:  "No aviso deste autor, o artigo sub studio reclama interpretação teleológica. Qual teria sido a verdadeira motivação do legislador ao trazer à existência o texto do art. 20? Qual a sua teleios (go grego, finalidade)? Não parece lógico que tenha havido intenção do legislador de se estabelecer a imprescritibilidade em sede administrativa, o que seria teratológico, mesmo antes da promulgação da CF de 1988. O que se buscou, ainda que não se tenha feito de forma palmar, foi estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estivesse em curso. Portanto, a lógica jurídica caminha no sentido de se harmonizar o art. 20 da LOTM com a Carta Magna e combiná-lo com o art. 155 da própria Lei Orgânica: "nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor" Assim, a melhor exegese aponta para a seguinte acomodação: quis o legislador tratar de interrupção da prescrição, e não de imprescritibilidade" Eliane Octavio Martins assevera no mesmo sentido, senão vejamos4:  "A LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o TM. Considerada a tese dominante da prescritibilidade, considera-se que a LOTM, art. 20, não consagra a imprescritibilidade administrativa.  E os dois autores também chegam na mesma conclusão sobre a definição do prazo prescricional, sendo este preenchido pelo art. 1º da lei 9.873/99. Veja-se:  Eliane Octaviano Martins5: "constatada a lacuna legal, postula-se pela incidência da regra ínsita na lei 9.873/99, que determina prescrição quinquenal, consoante art. 1º, verbis" Matusalém Pimenta6: "Posiciona-se este autor no sentido de que o melhor cotejo, nesse particular, faz-se com o processo administrativo. Se a hipótese é de pretensão punitiva da Administração Pública Federal, já que o TM é órgão do Poder Executivo, a lacuna deixada pela lei 2.180/54 deve ser preenchida pelo disposto na lei 9.873/99, que preconiza prazo prescricional de cinco anos." Portanto, a bem da verdade, então, as normas tratam de questões diferentes, sendo que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra.  Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM).  A despeito disto (da evidente diferença entre as normas), Matusalém Pimenta encerra o polêmico tema, afirmando que, infelizmente a questão da prescrição não tem sido adotada pelo Tribunal Marítimo, caracterizando-se o instituto da imprescritibilidade, gerando insegurança jurídica.  Ademais, o parecer da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo - que deveria ter colocado fim a tal imbróglio em 2010 - ao apreciar o conflito normativo ora apresentado, a despeito de não ter se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela sua modificação7. Veja-se:  "(...)A nossa Lei Orgânica, Lei 2.180/54, embora seja lei especial, teve o entendimento de seu art. 20 parcialmente modificado, ou seja, a apuração do fato ou do acidente da navegação (IAFN) deverá ter início dentro do prazo prescricional de cinco anos, da ocorrência do fato gerador, para que possa ser aproveitado, para gerar uma Representação (exceto nos casos em que constituir crime, quando a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na Lei Penal, conforme previsto no §2º, do Art. 1º, da Lei nº 9.873/99, ou se paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, conforme previsto no §1º do Art. 1º, desta Lei). (...)" Fato é que o entendimento acima da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do artigo 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição (quando a bem da verdade o artigo não confronta com a regra da prescrição quinquenal, eis que apenas trata da interrupção do curso desta no Tribunal Marítimo), gerando precedentes que, equivocadamente, entendem que o artigo 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade. É o que se demonstra abaixo8:  "N/M "PACIFIC FORTUNE". Conhecer os embargos de declaração com o efeito de infringentes, tempestivamente apresentados, sendo providos parcialmente, mantendo-se o acórdão atacado. Decide-se  (..) no que se referia a imprescritibilidade dos acidentes e fatos da navegação, do art. 20 da Lei nº 2.180/54, sendo julgada na Sessão 6829ª  de 16/03/2010 e aprovada por unanimidade". Deve ainda o item c do dispositivo do Acórdão de fl. 1453 ser modificado como a seguir: "c) decisão: rejeitar a preliminar de prescrição suscitada pela PEM e conhecer os embargos infringentes interpostos por ..." Ocorre que, como se não fossem suficientes as doutrinas antes expostas, as quais colocam um fim no imbróglio, o Tribunal Marítimo, a despeito do entendimento da comissão de jurisprudência do Tribunal deixar margem para dúvidas sobre o tema, também possui jurisprudência que, corretamente, expõe a questão, deixando bem claro que o art. 20 da LOTM apenas afirma que a prescrição fica interrompida enquanto pendente de julgamento o processo no Tribunal Marítimo, sendo que em momento algum tal artigo afirmaria que os fatos e acidentes da navegação ficariam imprescritíveis. É o que se vê no processo 24.270/09, do Tribunal Marítimo9:  "(.)Esta Juíza Relatora, contudo, ressalta, que no seu sentir, s.m.j a argumentação da PEM, de que os Artigos 1° e 8º da Lei 9.873/99 (prescrição de 5 anos), teriam revogado o art 20 da Lei Orgânica deste Tribunal, da Lei nº 2.180/54, é questionável, posto que a Lei 9873 trata de prescrição, não das causas que suspendem a prescrição.  O art 20 da lei nº 2.180/54, ressalte-se não trata de prescrição, mas sim da suspensão do prazo prescricional dos processos iniciados no Tribunal Marítimo. Parece-nos que a PEM neste particular também se confundiu, ao dizer "revogada a clausula de imprescritibilidade do TM" Não é demais ressaltar que o art. 20 da Lei Orgânica deste Tribunal (Lei nº 2.180/54) não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma. Apenas diz que se iniciado o processo no Tribunal Marítimo - a prescrição, qualquer que seja, não corre mais, até decisão final deste mesmo TM.  (.)" Por todo o exposto, é equivocado sustentar pela revogação do art. 20 da LOTM (ou qualquer tipo de modificação no texto, como sugeriu a comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo), eis que, como demonstrado, art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva neste Tribunal, não ensejando, portanto, qualquer modificação no art. 20 da referida lei (e muito menos sua revogação diante do art. 1º da lei 9.873/99). Por fim, reitera-se que, recentemente, a autora obteve resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o artigo científico anteriormente publicado teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo. _________ 1 Art . 155. Nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor. 2 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 3 Art . 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito. § 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão dêste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juizes. 4 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 5 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338. 6 Pimenta, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. São Paulo, Manole, 2013. p.107. 7 Parecer da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo. Presidida pelo Juiz Sérgio Bokel. Previsto na Ata 6529a . Sessão Ordinária de 16 de março de 2010. 8 Tribunal Marítimo, Processo nº 23.101/07. Relator: Juiz Geraldo Padilha. 14 de março de 2017. 9 Tribunal Marítimo. Processo nº 24.270/09. Relator: Maria Cristina de Oliveira Padilha, 13 de abril de 2010 
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.  Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Neste artigo, abordaremos o tema do "agente marítimo" no contexto do transporte marítimo, explorando seu conceito e enfatizando a inexistência de solidariedade com o armador/transportador. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto.  Dito isso, inicialmente, a fim de contextualizar o conceito de "agente marítimo", tem-se que este pode ser definido como a pessoa jurídica nacional que representa a empresa de navegação em um ou mais portos no país, nos termos do que estabelece o 4º da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil de nº 800/20072.  A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), por meio da Resolução ANTAQ nº 62/2021, também contribui ao definir o agente marítimo como o profissional que representa o transportador marítimo efetivo, seja contratando, em nome deste, serviços e facilidades portuárias, ou atuando em nome do transportador perante autoridades competentes ou usuários3. Logo, por definição, o agente marítimo se enquadra na qualidade de um mero mandatário do armador/empresa de navegação.  É exatamente nesse sentido a lição da professora Eliane M. Octaviano Martins4: "O conceito de agente marítimo consubstancia-se na figura contratual de mandato. Efetivamente, o agente marítimo representa o proprietário do navio, o armador, o gestor ou o afretador/transportador ou de algum destes simultaneamente".  Portanto, o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses de forma onerosa, exatamente como dispõem os artigos 653 e seguintes do Código Civil. Tal relação entre agente marítimo e armador, portanto, possui natureza jurídica de mandato mercantil.  Em termos práticos, o agente marítimo desempenha um papel de apoio ao armador/transportador no que tange às questões burocráticas junto às autoridades competentes, como a Alfândega, Polícia Federal, Delegacia da Capitania dos Portos e demais autoridades portuárias. Esse suporte é essencial porque muitas das embarcações envolvidas são de bandeira estrangeira, exigindo que o agente facilite a comunicação e o cumprimento de obrigações locais.  Aliás, a tradicional definição trazida por Sampaio de Lacerda é sempre interessante e denota o contexto histórico da atuação dos agentes marítimos: "Antigamente, quando um navio atracava a um porto, era o capitão encarregado de providenciar o desembarque das mercadorias e de entregá-las ao destinatário, recebendo os fretes ainda não pagos. Com o desenvolvimento da navegação marítima verificou-se o prejuízo que esse expediente traria com a demora prolongada do navio no porto. Assim, para evitar esses inconvenientes e a fim de permanecerem os navios no porto o menor tempo possível, tanto quanto o necessário para o embarque e desembarque de carga, as companhias que fazem serviços de linhas regulares de navegação mantêm nos portos agentes especiais, que são seus prepostos, (...) e que se destinam a substituir o capitão no encargo de entregar aos destinatários e de receber os fretes e providenciar os fretamentos."5  No entanto, esse papel administrativo não implica em qualquer solidariedade jurídica com o armador pelos danos ou obrigações assumidas por este. O agente marítimo atua apenas como um intermediário, sem ingerência sobre as operações de transporte e sem assumir riscos econômicos ou contratuais relacionados à carga ou à embarcação.  Assim, a jurisprudência reafirma que a responsabilidade do agente se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos do transportador.  Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre a figura do agente marítimo e do armador.  Primeiro Julgado:  Apelação - Transporte marítimo - Avaria de carga - Ação regressiva ajuizada por seguradora - Legitimidade passiva - Agente marítimo - Personagem que atua como mero mandatário do transportador marítimo e que, nessa condição, exerce a representação do mandante, em sendo ele pessoa jurídica estrangeira, nos termos do art. 75, X, do CPC - Representação essa que, a toda evidência, não traduz solidariedade do agente marítimo, nem tampouco o faz substituto processual do representado - Consequente ilegitimidade do agente marítimo para figurar no polo passivo de ações em que se reclame a responsabilidade do armador - Sentença de procedência da demanda reformada, com a proclamação da extinção do processo sem resolução do mérito - Julgamento não unânime. Dispositivo: Deram provimento à apelação, por maioria de votos.  (TJSP; Apelação 1025766-79.2015.8.26.0562; Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli; 19ª Câmara de Direito Privado; Julgamento: 27/11/2017)  Segundo Julgado:  Direito Marítimo. Responsabilidade Civil. Sinistro em transporte marítimo internacional. Trigo a granel oriundo da Argentina. Avaria que torna o produto imprestável, em decorrência de vazamento de óleo no porão do navio. Indenização paga pelo segurador. Sub-rogação. Ação movida em face do agente marítimo. Ilegitimidade passiva ad causam. Inexistência de responsabilidade solidária com o transportador, eis que esta não se presume, decorre da Lei ou da vontade das partes. Ausência de norma legal ou acordo entre as partes quanto à responsabilidade solidária. Responsabilidade do transportador. Não se concebe responsabilizar o agente marítimo pelas obrigações decorrentes do contrato de transporte internacional, sobretudo porque no caso em tela o transportador estrangeiro - WORTHINGTON BULK LTD. é representado no Brasil pela OCEANFREIGHT SERVICES LTDA, pessoa jurídica regularmente constituída e com sede no território nacional. Provimento do 1º apelo para julgar extinto o processo, sem apreciação do mérito, com esteio no art. 267, inciso VI do CPC, por ilegitimidade passiva ad causam da demandada (...).  (TJRJ, Apelação n° 0025690-82.2007.8.19.0001, Relator: Des. Marcos Bento De Souza, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Julgamento: 12/04/2011)  Pode-se observar que, no primeiro julgado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reforça a inexistência de responsabilidade solidária do agente marítimo em relação aos atos do transportador.  O acórdão destaca que o agente marítimo atua como mero mandatário, exercendo uma função de representação do transportador estrangeiro. No entanto, tal representação, por si só, não cria vínculo de solidariedade entre o agente e o armador, nem confere ao agente marítimo a condição de substituto processual do representado.  Dessa forma, o entendimento do Tribunal reconhece que o agente não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ações que buscam responsabilizar o armador por avarias ou outros prejuízos decorrentes do transporte.  Quanto ao segundo julgado, observa-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também reconhece a ausência de solidariedade entre agente marítimo e transportador.  O acórdão identifica que o agente marítimo não pode ser responsabilizado, uma vez que não é armador nem proprietário do navio, mas apenas exerce atividade de representação do armador em um determinado porto, tendo com ele um contrato de mandato regido pelo Direito Civil.  O voto ainda fundamenta acertadamente que a solidariedade não se presume, mas resulta da Lei ou da vontade das partes6 e, com isso, não havendo nos autos qualquer documento no sentido de que o agente tenha se responsabilizado pelo êxito do contrato de transporte ou assumido os riscos dele derivados, é incontestável o reconhecimento da ausência de responsabilidade solidária.  Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o agente marítimo e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria.  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à importante figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.  Para acessar o livro, clique aqui. ___________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 4º A empresa de navegação é representada no País por agência de navegação, também denominada agência marítima. § 1º Entende-se por agência de navegação a pessoa jurídica nacional que represente a empresa de navegação em um ou mais portos no País. § 2º A representação é obrigatória para o transportador estrangeiro. 3 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições: b) agente marítimo: todo aquele que, representando o transportador marítimo efetivo, contrata, em nome deste, serviços e facilidades portuárias ou age em nome daquele perante as autoridades competentes ou perante os usuários; 4 MARTINS, Eliane M. Octaviano, "Curso de Direito Marítimo", vol. II, 3ª Edição, Ed. Manole 5 LACERDA, José Candido Sampaio de. "Curso de Direito Privado da Navegação". Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984, 3ª ed. rev. e atual. por Aurélio Pitanga Seixas Filho.  6 Art. 265, Código Civil: A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.