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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
O presente texto atualiza e condensa algumas reflexões sobre a arbitragem marítima no Brasil, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, muito menos de oferecer uma abordagem acadêmica. Trata-se apenas de compartilhar o pensamento de um árbitro e advogado maritimista que, já há alguns anos, vem acompanhando e vivenciando o assunto. Nesse contexto, pretendo aqui analisar dois aspectos específicos: o desenvolvimento e a especialização no âmbito da arbitragem marítima. Em 2014, participei da fundação do CBAM - Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima, redigindo a primeira versão de seu estatuto social e integrando o primeiro Conselho Diretor.  Segundo o que ouvi à época, alguns integrantes da comunidade marítima teriam procurado a LMMA - London Maritime Arbitrators Association, com a ideia de que a tradicional Associação abrisse uma filial no Brasil.  A ideia poderia parecer esdrúxula para quem não é do ramo. Porém, nada tem de esdrúxula, sendo, antes visionária.  É fato que, naquela época - e até hoje - não era incomum que partes e advogados brasileiros se deslocassem a Londres, para resolver suas disputas perante o mais tradicional dos centros de arbitragem marítima, mesmo quando o litígio pudesse ser resolvido no Brasil, por tratarem de contratos a serem cumpridos aqui, e com partes brasileiras.  Assim, fazia todo sentido que essas disputas fossem trazidas para o Brasil e aqui tivessem solução. A resposta que essa delegação recebeu foi igualmente peculiar: a sugestão de que, em vez de tentar atrair uma filial da LMMA, seria melhor abrir uma câmara de arbitragem marítima no Brasil. Aquele momento era auspicioso. A visão de que havia espaço para um centro de arbitragem marítima no Brasil levou à convergência de diversos setores do shipping e da comunidade jurídica que se uniram naquele propósito.  Além disso, o próprio momento da arbitragem no Brasil também era auspicioso: o Brasil, já naquela época, contava com uma moderna legislação de arbitragem, editada em 1996 e aperfeiçoada em 20151, que vem sendo amplamente prestigiada pelo Poder Judiciário, inclusive no que tange à regra da Kompetenz-Kompetenz2.  Diversos órgãos arbitrais de excelência têm prosperado, administrando centenas de arbitragens por ano3.  A Corte Internacional de Arbitragem da ICC4, um dos mais prestigiados centros de arbitragem no mundo, abriu em 2014 um Comitê Brasileiro, sediado em São Paulo.  Olhando em retrospecto, porém, pode ter sido uma daquelas boas ideias que chegam cedo demais, e acabam encontrando dificuldades, justamente por estarem à frente do seu tempo. É importante registrar que a ideia não era de todo pioneira. A ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo, já tinha suas regras de arbitragem desde 1996, e vinha administrando procedimentos nessa especialidade. Em 2018, no tradicional Congresso de Arbitragem do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), um dos painéis foi inteiramente dedicado à arbitragem marítima. Naquela ocasião, expus a constatação de que litígios marítimos no Brasil tomavam, no mais das vezes, um de dois caminhos: a arbitragem no exterior ou a solução judicial.  A solução arbitral doméstica, embora mais racional e recomendável para boa parte do setor marítimo, continuava sendo utilizada muito abaixo do seu potencial.  Também observei, naquele momento, que além da existência de centros especializados em arbitragem marítima, também os centros já consolidados estariam preparados para administrá-las, desde que fizessem algumas adaptações em suas regras, ou editassem regulamentos específicos. Pouco depois, em livro comemorativo dos 5 anos do CBAM, que organizei em parceria com o professor José Gabriel Assis de Almeida, destaquei um ponto que já vinha sendo falado por outros advogados e professores da área marítima, que poderíamos chamar de paradoxo da arbitragem marítima. Tomem-se as seguintes constatações, já demonstradas "numericamente" em vários trabalhos: i) no exterior, quase todos os litígios marítimos são resolvidos por arbitragem; ii) o Brasil tem um pujante comércio marítimo e iii) é um dos líderes em arbitragens no Mundo, conforme dados de algumas das principais câmaras, como a ICC (International Chamber of Commerce). Não é preciso um conhecimento profundo de lógica para concluir, a partir destas três premissas, que o Brasil teria um significativo número de arbitragens marítimas.  Embora lógica, tal conclusão não é verdadeira.  Ou, pelo menos, não era em 2019. Apesar do momento vigoroso de prestígio e crescimento da arbitragem no Brasil, com arbitragens que abarcavam vários temas dos Direitos Comercial e Civil, em vários setores econômicos, e mesmo no Direito Administrativo (em arbitragens envolvendo o Poder Público em temas de infraestrutura); no mercado marítimo, ao contrário, as arbitragens no Brasil, embora crescentes, ainda não refletiam a participação que o instituto tem no exterior. Um marco importante das iniciativas em prol do desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil foi a presença de uma numerosa delegação brasileira no ICMA - International Congress of Maritime Arbitrators - realizado em 2017 em Copenhagen, na Dinamarca. O evento, de realização trienal, é o mais importante foro de debates e atualizações sobre a arbitragem marítima.  Além de apresentar, à comunidade internacional da arbitragem marítima, o avançado estágio da arbitragem no Brasil, a delegação, formada por advogados, árbitros e professores brasileiros, conseguiu trazer para o Rio de Janeiro a edição seguinte do ICMA, realizado com sucesso em 2020. A pandemia, inevitavelmente, paralisou algumas dessas iniciativas que, naquele momento, procuravam reverter esse quadro de desenvolvimento insuficiente, embora, paradoxalmente, esse mesmo período histórico tenha se caracterizado por uma grande desorganização no comércio marítimo mundial (e em todas as cadeias de produção e transporte) e, em consequência, por um aumento dos litígios nessa área. Tais iniciativas, porém, começaram a frutificar em 2022, quando o maior player do mercado de afretamento de embarcações de apoio marítimo, introduziu em seus modelos de contratos as cláusulas arbitrais em centros brasileiros.  Outros fatores têm contribuído para um incremento das arbitragens marítimas. Pode-se então dizer, com alguma cautela, que a arbitragem marítima no Brasil vive um novo ciclo de crescimento, que merece ser celebrado. Mas esse desenvolvimento deve se dar através de árbitros e câmaras especializados em arbitragem marítima?  Essa é a segunda reflexão que pretendo apresentar neste texto. Coincidentemente, em 2022, pouco depois das notícias do parágrafo anterior, durante o Congresso de Direito Marítimo e Portuário da ABDM, realizado em Santos, tive a oportunidade de debater o tema da arbitragem marítima com grandes nomes, como Frederico Messias, Camila Mendes Vianna, Diogo Nolasco, Lilian Bertolani e Luis Claudio Faria. Naquela ocasião, me foi feita exatamente esta pergunta, sobre a necessidade ou conveniência de se ter uma especialização na arbitragem marítima.  Na coluna de 29/9/22 (Migalhas nº 5.447), publiquei um texto em que desenvolvia as respostas que proferi na ocasião. Confesso, desde logo, que minha opinião mudou, em parte, desde aquela época. A seguir, exponho minha visão atualizada sobre a questão, retomando em parte aquele texto, mas também fazendo algumas modificações que refletem essa mudança de opinião. Inicialmente, é preciso separar a questão em duas: a especialização dos árbitros e a especialização das instituições (câmaras ou centros de arbitragem). As respostas a uma e outra questão não serão, necessariamente, idênticas. O tema também necessita de alguma contextualização. No âmbito internacional, as disputas no âmbito marítimo são resolvidas predominantemente por arbitragem, o que é uma tradição de séculos, com instituições como a já referida LMAA, a SMA - Society of Maritime Arbitrators, New York e, mais recentemente, a SCMA - Singapore Chamber of Maritime Arbitration5, que apresentam números expressivos6. Como os próprios nomes indicam, são todos órgãos especializados em arbitragem marítima, que, obviamente, congregam árbitros especializados nessa matéria. Da mesma forma, nota-se que estes órgãos são estruturados como associações de árbitros, enquanto o Brasil segue um sistema diferente, em que há instituições arbitrais, geralmente inseridas em câmaras de comércio bilaterais ou multilaterais, ou suportadas por associações de setores econômicos. As razões que levam a uma especialização na arbitragem marítima estão ligadas a peculiaridades próprias do setor marítimo. Em primeiro lugar, as questões relativas à navegação e ao comércio marítimo são muito especializadas, demandando até mesmo um vocabulário próprio. É certo que outros setores, especialmente na infraestrutura, como mineração, petróleo e aviação, também apresentam grande especialização. Todavia, a especialização marítima vai além da atividade em si ou dos seus contratos peculiares, influenciando o próprio Direito Marítimo e a forma de raciocinar, interpretar as normas e decidir as lides. É já muito conhecida a história (infelizmente real) de um julgamento no Poder Judiciário em que os magistrados discutiam regras de preferência do código de trânsito ao tratar de uma abalroação entre navios.  O próprio conceito de "culpa", quando se trata de acidentes e fatos da navegação, demanda uma visão peculiar, diferente daquela a que nos habituamos no Direito Civil7. Em segundo lugar, a internacionalização das lides é predominante no Direito Marítimo. As diferentes nacionalidades dos envolvidos - armadores, embarcadores, seguradores - e as diferentes "bandeiras"8 das embarcações são a situação mais comum nos litígios marítimos.  Assim, a determinação do foro e da lei aplicável é sempre o primeiro desafio na resolução de conflitos marítimos.  Daí porque a arbitragem é largamente utilizada nos contratos marítimos, por permitir a prévia definição do "foro" (na verdade, da sede da arbitragem) e da lei aplicável, além de outras questões práticas, como o idioma em que será realizada. Em terceiro lugar, e como decorrência da própria internacionalização, há uma forte presença dos costumes no Direito Marítimo e, em consequência, na solução dos litígios nesse âmbito. De fato, quando diferentes partes de uma mesma relação jurídica estão sujeitas a diferentes ordenamentos, o costume se apresenta como solução eficiente para regular e harmonizar estas relações. De tudo isso decorre, em quarto lugar, uma multiplicidade de fontes normativas - ordenamentos locais, costumes, tratados internacionais - incidindo na matéria.  Com o perdão pelo truísmo, a solução de disputas se dá pela aplicação das normas jurídicas aos fatos subjacentes ao litígio.  Se estas normas jurídicas vêm de fontes distintas e variadas, é essencial a vivência e experiência de quem vai aplicá-las na resolução da disputa. É quase intuitivo que um árbitro especializado terá melhores condições de lidar com essa multiplicidade de fontes que um árbitro não especializado e, por óbvio, muito mais ainda que um juiz estatal. Os contratos marítimos, vale lembrar, são comumente padronizados, com modelos elaborados por entidades especializadas. A mais conhecida delas é a BIMCO - Baltic and International Maritime Council, fundada em 1905 e com sede em Copenhague, na Dinamarca.  Em decorrência de todos estes fatores até aqui listados, estes modelos já preveem instituições arbitrais específicas, geralmente as referidas acima. Assim, no exterior, a questão aqui trazida não gera debates, sendo mesmo natural a opção por centros especializados, que terão, do mesmo modo, árbitros especializados em Direito Marítimo. Diante disso, no que tange aos árbitros, esta especialização tende a ser natural. Dada a presença, em listas dos principais centros brasileiros (e, obviamente, a possibilidade de escolha de árbitros fora das listas) de árbitros com especialização marítima, o mercado tenderá a se adaptar naturalmente, com a formação de tribunais arbitrais especializados, no âmbito de cada arbitragem, individualmente considerada. Já no que concerne à especialização dos centros de arbitragem, a opinião que manifestei em 2022 demanda, agora, alguns ajustes e esclarecimentos. O Brasil tem algumas experiências neste sentido, como a própria câmara de arbitragem da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo, já referida acima, o CBAM - Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima e uma vice-presidência específica do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem para a área marítima.  A óbvia vantagem dos centros especializados está na possibilidade de editarem regulamentos e normas procedimentais que atendam às peculiaridades das arbitragens marítimas, inclusive por terem seus conselhos gestores formados por especialistas na matéria. Estas iniciativas, embora importantes, não se desenvolveram como o esperado, não tendo estes órgãos administrado, ainda, um número significativo de arbitragens.  Mas é esperado que isso venha a ocorrer, como consequência natural do desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil. Para isso, porém, será necessário que o próprio mercado tenha maior desenvolvimento, e que os maiores players usem de seu peso econômico para incluir, nas minutas de contratos, a previsão de arbitragem, com a indicação de centros especializados. No texto de 2022, apresentei a seguinte previsão: "o mais provável será a consolidação de árbitros marítimos especializados atuando em câmaras generalistas". Disse, ainda que "é possível até que, em algum momento, se tenha uma escassez de árbitros especializados para atender a um crescimento significativo da demanda".  Até que não fui tão mal como profeta, pois errei a primeira previsão e acertei a segunda. De fato, o crescimento de arbitragens marítimas vem revelando uma escassez de árbitros especializados (considerados, também, os naturais impedimentos que decorrem do fato de também serem poucos os escritórios de advocacia específicos), tornando necessário recrutar árbitros menos familiarizados com o tema para formar os tribunais trinos. O erro quanto à primeira previsão (árbitros especializados em centros generalistas), todavia, acaba sendo uma boa notícia.  Isso porque, com o desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil, passamos do "ou" para o "e". Temos novos centros especializados se desenvolvendo e, ao mesmo tempo, os generalistas vêm editando regulamentos específicos para a arbitragem marítima.  Há demanda para todos. Nesse contexto, várias são as boas notícias de 2025. A ABDM acaba de aprovar a atualização das suas Regras de Arbitragem, que passaram, inclusive, a prever procedimentos específicos de arbitragem expedita para litígios sobre demurrage e detention. Foi fundada, no Rio de Janeiro, a Câmara de Arbitragem Marítima, Portuária e do Comércio Exterior, que já nasce com a expertise de juízes do Tribunal Marítimo em seu quadro diretivo, e com regras atualizadas segundo as mais modernas práticas da arbitragem marítima. Em São Paulo, a Câmara de Arbitragem CIESP/FIESP abriu consulta pública para seu novo regulamento de arbitragem marítima e portuária, em louvável iniciativa para ouvir a comunidade arbitral e marítima, de modo ter regras atualizadas e funcionais. Como se percebe, a especialização da arbitragem marítima vem ocorrendo pelas duas vertentes: pela criação ou modernização de centros e câmaras especializados, e também pela maior atenção que os centros generalistas vêm dando ao setor marítimo, seja pela atualização ou criação de regras específicas, seja pela inclusão, em suas listas, de árbitros especializados na matéria. Em suma, estamos num momento excelente do desenvolvimento e especialização da arbitragem marítima no Brasil, e o futuro aponta para momentos ainda melhores. _________ 1 Lei 9.307, de 23/9/1996 e lei 13.129, de 26/5/15 2 De modo bastante simplificado, essa regra significa que cabe ao tribunal arbitral, primeiramente, a definição de sua própria competência. 3 Cite-se, entre outros, os centros de arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), da Câmara Americana de Comércio (AmCham), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). 4 International Chamber of Commerce, com sede em Paris. 5 Merecem referência, também, como instituições emergentes, o Maritime Arbitration Group, da Hong Kong Ship Owners Association e o EMAC (Emirates Maritime Arbitration Centre).  A China, principal player do comércio internacional na atualidade, não poderia ficar para trás: em 30/07/2018, foi inaugurado, em Hainan, o segundo tribunal de arbitragem internacional daquele país, o qual, segundo informações oficiais, "estabelecerá um centro para arbitragem marítima e outro para arbitragem financeira" (Acesso em 11/08/2018). 6 Como bem apontou Luis Cláudio Furtado Faria, em 25/8/22, nesta mesma coluna: "Apenas a título de exemplo, de acordo com a London Maritime Arbitrators Association ("LMAA"), principal instituição da área no cenário internacional, em 2021, foram nomeados 2.777 árbitros para condução de arbitragens marítimas, além de terem sido proferidas 531 sentenças arbitrais. Muito embora tais números não reflitam o número de procedimentos efetivamente instaurados, eles indicam a expressividade do uso desse método de solução de disputas no âmbito global. A Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura, por sua vez, que registrou 37 procedimentos arbitrais ao longo de 2021 e a Comissão Chinesa de Arbitragem Marítima registrou 110 casos no ano de 2020." 7 Como exemplo, uma das mais conhecidas diretrizes na análise de acidentes da navegação - pouco compreensível para o leigo - é a last clear chance, segundo a qual a embarcação "certa", ou seja, aquela que não tem a obrigação de manobrar naquela situação, deve fazê-lo se, no último momento em que ainda seja possível evitar a abalroação, a embarcação "errada" (aquela que tem a obrigação de manobrar na hipótese) não o fizer. O descumprimento desta regra pode levar, em certas circunstâncias, a uma distribuição, entre as embarcações, da responsabilidade pelo acidente, com uma parcela, mesmo menor, sendo atribuída a quem "tinha razão". 8 Sobre o conceito de "bandeira" do navio, remeto o leitor aos textos publicados nas colunas de 8 e 15/5/25.
Em 22 de setembro de 2025, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) realizou seu primeiro webinário para tratar sobre o Tema 2.2 da Agenda Regulatória da Agência, que discute o procedimento de consulta ao mercado da disponibilidade de embarcação brasileira. Como informado pela Agência, o webinário limita-se à navegação de cabotagem por espaço e por tempo, sendo etapa preliminar à Análise de Impacto Regulatório (AIR) referente ao Tema.  Ao longo das discussões sobre o assunto, foram debatidas questões relacionadas à necessidade de aperfeiçoamento do procedimento de consulta (especialmente com relação aos critérios de circularização e bloqueio), à atuação da Antaq, bem como aos direitos e deveres dos entes bloqueantes e bloqueados, dentre outros temas relevantes.  Com esse escopo definido, a Antaq identificou um total de 14 (catorze) problemas a serem solucionados quanto ao Tema 2.2, merecendo destaque os seguintes: (i) baixo índice de conclusão do afretamento; (ii) maior custo das embarcações brasileiras; (iii) bloqueios ineficientes; (iv) falta de prazos para a negociação; (v) indefinição do papel da ANTAQ nas negociações; e, por fim, (vi) falta de exigência de que a embarcação que efetivou o bloqueio seja a mesma que realizou o transporte.  A Seção de Assuntos Regulatórios Gerais da Navegação afirmou, com base no mencionado relatório do webinário, que a falta de critérios claros de circularização e bloqueio leva a um excesso de autorizações de afretamento (AA) e de bloqueios ineficientes ou mesmo indevidos, usados frequentemente como bloqueios "testes". Desse modo, a Agência reiterou que tem a intenção de aumentar a efetividade dos bloqueios, o que pode também reduzir a quantidade de AAs concedidos, o que acabaria atendendo a política pública de proteção à embarcação de bandeira brasileira.  Quanto ao ponto, importante relembrar, tal como já tratado em outros artigos desta coluna, a existência de posições divergentes sobre o tema. Empresas que operam embarcações estrangeiras se posicionam contra a criação de óbices à concessão das AAs, considerados muitas vezes como excessivos, especialmente para as contratações mais complexas em que não existem ou existem poucas embarcações de bandeira brasileira disponíveis no mercado com o mesmo grau de sofisticação técnica.  Na sequência, após identificar os problemas supramencionados, a Antaq os agrupou em quatro categorias (chamadas clusters) e apresentou três ou quatro alternativas regulatórias para cada uma delas. O objetivo era selecionar a opção mais adequada para reduzir bloqueios e circularizações canceladas, evitar bloqueios ineficientes e diminuir tanto os custos administrativos da Agência quanto os custos regulatórios. Assim, os clusters foram divididos da seguinte forma:  i. Cluster 1: definir de forma clara o papel da Antaq nas negociações (estabelecer regras de comportamento, de negociação, direitos e deveres do usuário etc.) a. Não Ação da Antaq b. Antaq como mediadora c. Antaq como árbitra d. Antaq como mediadora e árbitra  ii. Cluster 2: Monitoramento insuficiente a. Não ação da Antaq b. Monitoramento específico c. Monitoramento geral  iii. Cluster 3: Critérios de consulta ao mercado não são efetivos a. Não ação da Antaq b. Maior especificação dos critérios já existentes c. Utilização de critérios genéricos  iv. Cluster 4: Definição de direito e deveres de bloqueantes e bloqueados a. Não ação da Antaq b. Definir (prescrever) c. Autorregulação do mercado  A partir de critérios objetivos, a Antaq entendeu que as melhores soluções regulatórias seriam: (i) se posicionar como a mediadora da negociação entre bloqueante e bloqueado e, a partir de um regulamento de condutas desejadas e indesejadas, controlar os comportamentos das partes durante a negociação; (ii) realizar um monitoramento geral de todas as etapas do processo de afretamento; (iii) especificar com maior precisão os critérios já existentes, para reduzir a ocorrência de bloqueios "testes" para sanar dúvidas; e (iv) definir os direitos e deveres das partes durante a circularização, o bloqueio e a negociação, criando, inclusive, um regramento de padrão de conduta desejado pela Antaq.  Por fim, com a definição de quais seriam as melhores medidas a serem tomadas, a Antaq apresentou suas primeiras propostas de alterações normativas. A primeira norma a ser alterada seria a Resolução 129/2025, recém editada pela Agência. Conforme a proposta, foram sugeridas especificações mais claras quanto: (i) aos critérios da circularização, prevendo, por exemplo, uma carta do cliente para demonstrar a existência do transporte, indicação dos terminais de partida e destino, especificação da carga etc; (ii) à definição do serviço que será prestado; (iii) e, por fim, adequação do prazo para circularizar e negociar.  Outras mudanças normativas dizem respeito ao monitoramento geral, à definição de condutas desejadas e indesejadas, à atualização do Sistema de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio (SAMA) ou criação de outro sistema com essa mesma finalidade e às alterações na Resolução 62/21, para a adequá-la às alterações na RN 129/25 e incluir nela sanções administrativas cabíveis nos casos de infrações a serem prescritas.  Quanto ao monitoramento geral, a proposta é criar uma rotina de publicações regulares de relatórios com dados de afretamentos na cabotagem, incluindo números de circularizações feitas, de bloqueios ofertados, protocolos abandonados ou cancelados, quantidade de carga movimentada etc., nas modalidades viagem e tempo.  Além disso, a Antaq planeja integrar a fiscalização ao SAMA, mediante a criação de painéis de acompanhamento das ações no sistema, a melhoria do perfil "Fiscalização no SAMA" e a inclusão de ações específicas de fiscalização dos afretamentos no PAF (Plano Anual de Fiscalizações). Tais estratégias, resumidamente, buscam coletar os dados, elaborar os relatórios e gerar um ranking entre as EBNs de acordo com o cumprimento das boas práticas de mercado e revisar os procedimentos operacionais, fluxos de informações e ações no SAMA.  Ademais, dentro da elaboração da listagem de condutas desejadas e indesejadas, a Antaq prevê a criação de um Manual de Procedimentos para as condutas que definirão a posição no ranking de boas práticas das EBNs. A Agência, inclusive, já propôs classificar uma conduta indesejada: utilização excessiva dos protocolos de afretamento solicitados, com a correspondente aplicação de multa à EBN infratora, a fim de reduzir o número de circularizações desnecessárias no mercado, isto é, quando há disponibilidade de embarcação brasileira.  A intenção da Agência, como se verifica, é promover um ambiente regulatório mais seguro e previsível. Todavia, como adiantado anteriormente, a discussão no âmbito da Agência deve ser aprofundada, e considerar as especificidades de cada modalidade de navegação e, sobretudo, dos contratos nela firmados, sob pena de provocar exatamente o contrário do que almeja: a insegurança jurídica mediante a criação de diretrizes e regramentos não previstos em lei.  A análise feita em relação ao setor de cabotagem, com dados específicos para esse modal, pode ser bastante distinta da realidade presente em outras modalidades de navegação, como o apoio marítimo. Em outras palavras, a discussão no webinário - a princípio restrita ao modal da cabotagem - não poderá ser estendida para outros modais de navegação, sem que haja a análises dos dados e particularidades de cada um deles.  É crucial, portanto, que a Antaq, em seu esforço contínuo de aprimoramento da regulação, observe atentamente as informações coletadas, de acordo com a modalidade de navegação, e aprimore a nova regulação equilibrando os interesses em jogo, sempre com foco no desenvolvimento econômico do setor.
O presente tema foi objeto de excelente abordagem em artigo recentemente publicado por Sérgio Ferrari, nesta mesma coluna, em 14/8/25, sob o título "Resolução de disputas sobre demurrage e o acórdão 521/25 da ANTAQ - primeiras impressões", cuja leitura recomendamos com bastante ênfase. Obviamente, não se pretende aqui esgotar o assunto, mas sim contribuir para a análise desta importante decisão proferida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) nos autos do Processo nº 50300.014940/2024-55, refletida no Acórdão nº 521-2025-ANTAQ1, publicado em 06/08/2025, sob a relatoria da Diretora Flávia Takafashi, que aprovou "entendimentos regulatórios, com base em intepretação lógica e sistemática da Resolução ANTAQ nº 62/2021", em relação ao modo de contagem do prazo, hipóteses excludentes, transparência e responsabilidade pelo pagamento de demurrage.2  Inicialmente, cabe destacar o item 5.5. do referido acórdão que estabeleceu importante mecanismo de estímulo à composição das partes ao dispor que: "(...) os pedidos de medidas cautelares sobre cobranças de sobrestadias atualmente em tramitação nesta Agência deverão ser submetidos ao rito sumário de composição antes de eventual deliberação do Colegiado; devendo suas relatorias serem consideradas preventas aos presentes autos."  Trata-se de relevante inovação procedimental no âmbito da agência que vai ao encontro de instrumentos jurídicos modernos de resolução de disputas, como a autotutela, autocomposição, mediação e arbitragem, que cada vez mais são colocados a serviço dos setores regulados como métodos alternativos aos litígios extrajudiciais ou judiciais.    De outro lado, no tocante aos parâmetros da cobrança em si, a agência estabeleceu importantes premissas para a incidência da sobrestadia de contêineres, cabendo destacar:  a) a demurrage somente deve incidir quando a utilização dos contêineres por prazo superior à livre estadia ocorrer: no interesse, por opção ou por culpa dos usuários, ou quando o evento causador estiver sob o risco do negócio dos usuários;  b) não pode haver incidência quando a paralisação dos contêineres for relacionada a: ato ou omissão do transportador ou daqueles a seu serviço; a logística mobilizada pelo transportador marítimo para oferta do serviço; ou quando o evento causador estiver sob o risco do negócio do transportador, do depósito de vazios ou do terminal portuário.  Estes novos parâmetros seguem no compasso da Resolução ANTAQ nº 112/20243 - que estabeleceu uma matriz de riscos para identificação do agente responsável pelo pagamento de armazenagem adicional de carga nas instalações portuárias, distribuindo responsabilidades com base no controle dos eventos causadores de atrasos.  Embora na fundamentação do Acórdão 521-2025 a diretoria colegiada da agência tenha consignado que a matriz de riscos deve ser aplicada de imediato aos casos da sobrestadia de contêiner, o item 5.3 da decisão estabeleceu expressamente a recomendação e necessidade de regulamentação do tema através de resolução.  Fato é que a recente decisão passou a considerar dois parâmetros para atribuição da responsabilidade pelo pagamento da sobrestadia, os quais que não estavam previstos na Resolução ANTAQ nº 62/2021: a necessidade de aferição da culpa do usuário quanto ao atraso na devolução dos contêineres; e a apuração se o evento que motivou o atraso se insere no risco operacional do próprio transportador, do depósito de contêineres vazios ou do terminal portuário por ele indicados.  Com efeito, no tocante à natureza jurídica da demurrage, o entendimento fixado pela ANTAQ converge com o posicionamento já pacificado no Poder Judiciário de que se trata de indenização contratual pré-fixada, devida pelo usuário que utiliza o contêiner por período superior ao estipulado entre as partes, tudo isso como forma de compensar o armador pela indisponibilidade da unidade na frota e consequentes perdas pela impossibilidade de utilização do equipamento para a prática de novos fretes no período.  Portanto, tratando-se de indenização contratual pré-fixada, a cobrança de sobrestadia independe de perquirição de culpa do usuário, bastando, para a sua incidência, a verificação do atraso na devolução do contêiner para que a compensação ao armador tenha lugar.4  É certo que a cobrança não deve incidir nas hipóteses em que a devolução da unidade dentro do período livre for comprovadamente impossibilitada por ato do armador. Neste sentido, parece bastante razoável o comando estabelecido no item 5.1.2 do acórdão: "não há incidência de sobrestadia quando a utilização do contêiner, por período superior ao prazo de livre estadia, decorra de ato, omissão ou falhas de logística sob responsabilidade do transportador, do terminal por ele indicado, ou do depósito de vazios".  No entanto, ao impor ao armador o dever de analisar se houve culpa ou não do usuário como condição de legitimar a cobrança contraria a própria lógica da natureza indenizatória da demurrage. Neste particular, nos parece temerário o disposto no item 1.1.1 do acórdão que estabelece: "é premissa fundamental para a incidência da sobrestadia que a extensão de prazo da utilização do contêiner, por período superior ao prazo de livre estadia, decorra de interesse, opção, culpa ou risco de negócio do usuário".  Este comando regulatório provocará grande insegurança jurídica para aquele presta o serviço e cede o contêiner, no caso o armador - que muitas vezes sequer tem condições de aferir se o atraso na devolução da unidade se deu por culpa do usuário, seja ele um importador, agente de carga ou um terceiro com quem sequer manteve qualquer tipo de relação jurídica em determinada cadeia de transporte.  Neste aspecto, importante nos atentarmos ao princípio do consequencialismo jurídico para uma análise mais profunda sobre os potenciais efeitos das decisões proferidas no âmbito regulatório. Isto é, o impacto que a decisão poderá produzir no setor regulado, sopesando, neste caso em especial, as vantagens e desvantagens aos usuários e armadores em decorrência da fixação do elemento culpa como condição para a cobrança da demurrage.  O fato é que a incerteza e dificuldade imposta ao armador na análise de eventual culpa do usuário pelo atraso na devolução do contêiner acarretará grandes prejuízos financeiros pela consequente impossibilidade de cobrança em muitos dos casos. Em se confirmando este cenário, haverá significativo aumento do risco financeiro da operação de transporte para o armador, o que naturalmente impactará os fretes praticados na costa brasileira, atingindo, por consequência, não só aqueles que incidem em sobrestadia, mas todos os usuários dos serviços de transporte marítimo, inclusive aqueles efetuam a devolução das unidades dentro do prazo contratado.  Neste passo, o comando regulatório determinado no acórdão em análise provocará grande insegurança jurídica para aquele presta o serviço de transporte e cede o contêiner, no caso o armador - que muitas vezes sequer tem condições de aferir se o atraso na devolução da unidade se deu por culpa do seu contratante direto - seja ele um importador ou agente de carga - ou de um terceiro completamente desconhecido com quem sequer manteve qualquer tipo de relação jurídica na cadeia de transporte.  A introdução do critério de culpa do usuário como condição para a cobrança de sobrestadia demanda uma análise mais detida sob a ótica do consequencialismo regulatório - abordagem que vem ganhando protagonismo na atuação das agências, inclusive por recomendação da OCDE5 e da Lei das Agências Reguladoras (lei 13.848/2019).  Conforme dispõe o art. 4º da referida lei, as decisões das agências devem considerar, sempre que possível, os "efeitos econômicos e sociais de suas ações", o que impõe uma avaliação ex ante do impacto regulatório de comandos normativos ou interpretativos adotados por deliberação colegiada.  Ao transferir ao armador o ônus de aferir a culpa do usuário como requisito para a cobrança de demurrage, a ANTAQ cria um cenário de incerteza contratual que eleva o risco da operação, desestimula a oferta de contêineres em determinadas rotas e, por fim, pode levar ao aumento generalizado dos fretes marítimos, atingindo inclusive usuários adimplentes.  Esse tipo de efeito colateral - que prejudica a eficiência do setor e compromete a diluição de custos - deveria ser ponderado no momento da formação da decisão regulatória sob pena de se criar desincentivos regulatórios perversos que comprometem a função econômica da indenização por indisponibilidade de ativos.  Nesse contexto, revela-se imprescindível que a ANTAQ adote práticas sistematizadas através de Análise de Impacto Regulatório (AIR), cujo instrumento foi expressamente dispensado quando da deliberação que deu lugar ao Acórdão 521/2025, especialmente em temas com repercussão econômica relevante e que envolvam a repartição de riscos entre agentes da cadeia logística. A jurisprudência regulatória deve, cada vez mais, dialogar com os princípios da boa governança regulatória, sob pena de comprometer sua legitimidade e eficácia prática. __________ 1 Acórdão 521/2025-ANTAQ, Relatora Flavia Takafashi, publicado no DOE em 06/08/2025; 2 Resolução ANTAQ 62, de 29/11/2021: Estabelece as regras sobre os direitos e deveres dos usuários, dos agentes intermediários e das empresas que operam nas navegações de apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso, e estabelece infrações administrativas.  3 Resolução ANTAQ 112, de 13/03/2024: Estabelece critérios para identificação do agente responsável pela armazenagem adicional de carga nas instalações portuárias, de acordo com o previsto no artigo 6º da Resolução ANTAQ nº 72, de 30 de março de 2022; altera a Resolução ANTAQ nº 62, de 29 de novembro de 2021 e a Resolução ANTAQ nº 75, de 02 de junho de 2022 4 Disponível aqui.  5 Recomendações do Comitê de Política Regulatória da OCDE: Integrar a Avaliação do Impacto Regulatório (AIR) desde os estágios iniciais do processo de políticas para a formulação de novas propostas de regulação. Identificar claramente os objetivos da política, e avaliar se a regulação é necessária e como ela pode ser mais efetiva e eficiente na consecução desses objetivos. Considerar outros meios de regulação e identificar os trade offs das diferentes abordagens analisadas para escolher a melhor alternativa.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria No transporte marítimo internacional, cada detalhe pode definir o rumo de uma disputa. Entre eles, o protesto por avaria, previsto no art. 754 do CC, ocupa lugar central. A regra é clara: o destinatário da carga tem dez dias para reclamar eventuais danos, sob pena de decadência. Passado esse prazo, o direito simplesmente se extingue, como se tivesse sido tragado pelo mar. O presente artigo tem por escopo examinar a ausência de protesto e aplicação da decadência transporte marítimo internacional, com especial atenção à postura adotada pelo Poder Judiciário brasileiro diante de seu dispositivo. O parágrafo único do art. 754 dispõe: "Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência de direitos. Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em 10 (dez) dias a contar da entrega." Essa exigência, que pode parecer formalismo, tem objetivo concreto: preservar a estabilidade das relações comerciais, evitando que o transportador fique indefinidamente exposto a pleitos indenizatórios e esvaziando os meios de produção e preservação de prova. O protesto funciona como aviso imediato, permitindo que a parte responsável apure os fatos ainda recentes, com elementos probatórios preservados, avaliando a natureza, causa e extensão de eventuais avarias. Trata-se de requisito essencial para a conservação de eventual direito indenizatório, garantindo ampla defesa e contraditório às partes interessadas na regulação de eventuais danos e prejuízos. Aliás, eventuais vistorias conjuntas que venham a ser realizadas após a efetivação de um protesto por avarias podem, inclusive, se mostrar úteis para prevenir litígios, pois uma vez que se possibilita a apuração por ambas as partes, e eventualmente essas podem atingir uma composição e evitar um litígio judicial. O início do prazo decadencial se dá com a entrega da carga, que no transporte marítimo ocorre em regra no momento da descarga do contêiner no terminal, especialmente no transporte porto a porto, encerrando a responsabilidade da transportadora, conforme art. 3º do decreto-lei 116/1967: Art. 3º A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo, e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio. § 2º As mercadorias a serem descarregadas do navio por aparelhos da entidade portuária ou trapiche municipal ou sob sua conta, consideram-se efetivamente entregues a essa última, desde o início da Iingada do içamento, dentro da embarcação. §3º do art. 1º do decreto-lei 116/1967 afirma que os volumes em falta, avariados ou sem embalagem ou embalagem inadequada ao transporte por água, serão desde logo ressalvados pelo recebedor, e vistoriados no ato da entrega, na presença dos interessados. O decreto-lei ainda prevê que volumes em falta, avariados ou com embalagem inadequada devem ser ressalvados e vistoriados no ato da entrega, na presença dos interessados. Portanto, a apresentação do protesto em até dez dias após o descarregamento é condição para manter o direito de ressarcimento do consignatário. A não observância desse prazo implica a decadência do direito. Nesse sentido, Maria Helena Diniz2 destaca: "Protesto necessário junto ao transportador. O consignatário, ou destinatário, deverá, então, conferi-la, apresentando, sob pena de decadência, tempestivamente, as devidas reclamações. O destinatário tem, portanto, o direito de acionar o transportador, ao receber mercadoria cuja perda parcial ou avaria não pôde ser verificada, em razão de não ser perceptível à primeira vista, contanto que o faça dentro do prazo decadencial de dez dias, contados da data da entrega (vide: RT, 711:226; 7]RS, Ap. Cível 70.019.145.804, 12 Câm., rei. des. Cláudio B. Maciel, j. 30/8/2007)." Uma vez demonstrado que a parte que pretende obter o ressarcimento não observou o prazo decadencial, o direito à indenização pela suposta avaria à carga encontra-se caduco, por força do parágrafo único do art. 754 do CC. Consequentemente, conclui-se que a empresa tenta obter um suposto direito que já se encontra extinto. A jurisprudência tem reiterado esse entendimento com firmeza. Em diversas ocasiões, os tribunais afastaram ações regressivas ou pedidos de ressarcimento por não ter sido observado o protesto no prazo legal. Primeiro Julgado: APELAÇÃO CÍVEL. Transporte marítimo internacional. Sentença que julgou extinto o processo, com resolução do mérito, pela decadência. Insurgência da autora. Inadmissibilidade. Decadência. Ocorrência. Perda parcial da carga. Protesto não realizado pela requerente no prazo decadencial de dez dias previsto no parágrafo único do art. 754 do CC. Caso concreto em que, conforme bem reconhecido pelo D. Juízo de Origem: "o documento de fls . 70/78, denominado "Statement of Facts", não se presta a tal fim, até mesmo em razão da pequena perda apurada naquele momento, de, aproximadamente, 0.3% da carga total manifestada, o que poderia caracterizar, a princípio, quebra natural da carga. Dessa forma, o protesto se mostrava, realmente, imprescindível para a preservação do direito da requerente". Sentença mantida. Recurso não provido. (TJ/SP - Apelação Cível: 10257877420238260562 Santos, Relator.: Helio Faria, Data de Julgamento: 22/07/2024, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/7/2024) Segundo Julgado: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS - Transporte Marítimo de Carga - Avarias - Improcedência, ante a decretação da decadência do direito, na medida em que a autora não apresentou o protesto, no prazo de 10 dias da entrega das mercadorias - Extinção do processo, nos termos do art. 487, II, do CPC - Apelo da autora, visando afastar a decadência - Inadmissibilidade - Hipótese em que a autora apresentou protesto após um ano da descarga da mercadoria - Decadência bem decretada - Aplicação do disposto no art. 754, parágrafo único, do CC - A lei prevê a necessidade de imediata notificação em caso de avaria perceptível no ato da entrega ou, quando se tratar de avaria imperceptível de imediato, no prazo de dez dias, contados da entrega do produto - Autora que percebeu, desde logo, a ocorrência de avaria, ao analisar o relatório final da Termag e o Mapa de Rateio, e constatar diferença de pesagem na carga entre embarque e desembarque, mas não denunciou ao transportador, deixando ocorrer a decadência - Precedente desta Corte - Sentença mantida - RECURSO DESPROVIDO. (TJ/SP - AC: 10267918320228260562 Santos, Relator.: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 07/11/2023, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/11/2023) Importante destacar que o prazo decadencial pode começar a correr a partir da efetiva constatação do dano, e não necessariamente da entrega ou nacionalização da carga. O CC estabelece que, havendo avarias visíveis, a reclamação deve ser imediata, e, quando se tratar de danos não perceptíveis de pronto, o prazo de dez dias conta-se da entrega do produto. Assim, a lei busca assegurar rapidez e clareza no procedimento, evitando que o transportador também permaneça indefinidamente exposto a alegações de vícios ocultos. O ponto comum desses julgados é a rigidez do prazo decadencial: dez dias, nem mais, nem menos. Não há flexibilização, mesmo quando o dano é evidente ou a seguradora age com diligência após o pagamento da indenização. Para os tribunais, a segurança jurídica do transporte marítimo exige observância estrita do dispositivo legal. Para seguradoras, a lição é clara: ao indenizar o segurado, sub-rogam-se em direitos que já não existem caso o prazo decadencial tenha expirado. A sub-rogação não revive pretensões extintas. O direito desapareceu, tal como embarcação que zarpou sem retorno, não à toa algumas seguradoras já emitiram pronunciamentos aos segurados acerca da importância e necessidade do protesto tempestivo, sob pena inclusive de negativa de cobertura. Em síntese, o protesto tempestivo é a âncora capaz de resguardar o direito. No mar do comércio marítimo internacional, onde cada detalhe pode representar milhões, silêncio ou demora custam caro. Observar rigorosamente o art. 754 não é formalidade, mas requisito essencial à manutenção do direito e à estabilidade das operações comerciais. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta aqui. _______ 1 Disponível aqui. 2 Diniz, Maria Helena.Código civil anotado I Maria Helena Diniz.-II. ed.- São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 592.)
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. O presente artigo tem por escopo examinar a aplicação e o reconhecimento da cláusula de eleição de foro nos contratos de transporte marítimo internacional, com especial atenção à postura adotada pelo Poder Judiciário brasileiro diante de sua invocação. Parte-se do pressuposto de que, uma vez regularmente estipulada entre partes envolvidas em atividades de natureza empresarial, a cláusula de eleição de foro constitui manifestação legítima da autonomia privada e, como tal, deve ser respeitada, afastando-se a competência da jurisdição nacional para apreciar e decidir controvérsias. Tal análise revela-se relevante diante da crescente judicialização de litígios no setor marítimo, nos quais se observa, por vezes, a tentativa de desconsiderar pactos livremente firmados, em afronta aos princípios da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da previsibilidade nas relações contratuais de caráter internacional. Os Tribunais Brasileiros tem reiteradamente reconhecido a validade e a eficácia da cláusula de eleição de foro em contratos internacionais de transporte marítimo, desde que pactuada de forma expressa e inequívoca entre as partes. Nesse contexto, os tribunais nacionais tem afastado a competência da Justiça brasileira quando constatam a existência de cláusula de eleição de foro estrangeiro, ressalvadas situações excepcionais em que se discuta matéria de ordem pública ou em que reste demonstrada manifesta abusividade. A orientação predominante, contudo, é no sentido de que o Judiciário não detém poder para revisar ou invalidar cláusulas livremente estipuladas em contratos internacionais de transporte marítimo, devendo prevalecer o foro escolhido. Essa postura reforça a inserção do Brasil no cenário jurídico global, alinhando-se aos princípios da cooperação internacional e da confiança mútua entre jurisdições e propiciando segurança jurídica aos contratos internacionais. Com o intuito de evidenciar as implicações práticas do tema e contribuir para o debate em torno da eficácia da cláusula de eleição de foro, este estudo se debruçará sobre dois precedentes paradigmáticos. A partir da análise crítica dessas decisões, será possível compreender os fundamentos que têm orientado o Judiciário brasileiro na aceitação ou relativização da autonomia da vontade das partes, bem como avaliar os reflexos dessas orientações na previsibilidade contratual e no desenvolvimento do direito marítimo internacional no país. Primeiro Julgado: TRANSPORTE MARÍTIMO DE MERCADORIAS (...) RECURSO DA TRANSPORTADORA Cláusula de eleição de foro internacional Inteligência do art. 25 do CPC Autonomia privada das partes contratantes em sede de contrato interempresarial Insuficiência da presença de alguma dentre as situações previstas nos incisos do art. 21 do diploma processual civil Abusividade não constatada Natureza de contrato de adesão, que não impede o reconhecimento da validade da cláusula, porquanto inexistente dúvida acerca de seus termos Inteligência do art. 423 do CC Incompetência da justiça brasileira para decidir quaisquer questões referentes ao contrato de transporte entre comerciante e transportador (...) Sentença reformada Extinção do feito, sem resolução do mérito, em relação aos pedidos relacionados às avarias e extravio da carga transportada (...). (TJ/SP; Apelação 1132287-71.2018.8.26.0100; 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal; Rel. Marco Fábio Morsello; J. 3/10/2019) Segundo Julgado: (...) Cabe, ao início, destacar o teor da súmula 335, do STF, ao dizer que "é válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato". O contrato de transporte marítimo internacional possui cláusula de eleição de foro estrangeiro com a ressalva de que nenhuma ação poderia ser ajuizada perante qualquer outro juízo. E, embora a parte autora impugne a tradução do conhecimento de embarque juntada pela ré (fls. 179/191), deixou de juntar a tradução que considera correta, embora regularmente intimada para este fim (fls. 238). Portanto, considera-se válida a tradução apresentada pela requerida. Dessa forma, a opção dos contratantes foi pela exclusão da jurisdição brasileira. Importante dizer que a hipótese dos autos não envolve qualquer interesse público ou direito indisponível. Penso, portanto, que aqui descabe analisar qualquer uma das regras de competência da Justiça Brasileira, porquanto as Partes, livremente, fizeram a opção pela jurisdição internacional. Digo isso, porque não importa que se trate o território nacional do local do cumprimento da obrigação ou mesmo local do fato, na medida em que as Partes do contrato, antecipadamente, deliberaram por abdicar das regras de competência da Justiça Brasileira, firmando contrato com a fixação de cláusula de eleição de foro internacional de modo exclusivo. Ora, se as Partes contratantes, em juízo pleno de cognição quanto aos riscos e efeitos da cláusula de eleição de foro internacional, ausentes qualquer situação de vulnerabilidade na relação entre elas, optaram pela sua inclusão no contrato, descabe a intervenção do Poder Judiciário quanto à sua modificação. A intervenção do Poder Judiciário na relação contratual celebrada entre Partes em posição de igualdade, acostumadas às peculiaridades do transporte marítimo internacional, não tratando o fato de questão de interesse público ou de direito indisponível, significaria desequilibrar a balança da Justiça, afetando até mesmo as condições que precificaram o custo do serviço. A Parte busca o que chamo de "Estado Babá", ou seja, que o Poder Judiciário, representante do Poder Estatal, lhe pegue no colo quando os seus interesses foram contrariados, pois que, bom que se diga, quando os efeitos do contrato lhe são favoráveis, não busca o mesmo socorro, chegando mesmo a enaltecer a sua validade. Cabe afirmar, ainda, que na relação contratual do transporte marítimo, a envolver vários atores ligados pelo mesmo contrato base, ausente situação de vulnerabilidade, impõe-se a sujeição de todos aos seus efeitos, sob pena de comprometimento de toda a lógica do transporte marítimo internacional. (...) No âmbito do TJ/SP, confira-se: Exceção de incompetência - cláusula de eleição de foro - contrato regido pelas leis do Estado de Utah/EUA - incidência do art. 25 do CPC - ausência de abusividade competência exclusiva da autoridade judicial estrangeira reconhecida - ação julgada extinta - sentença mantida - recurso improvido. (Apelação 0037723- 25.2015.8.26.0100 (...). (TJ/SP, Processo 1019444-96.2022.8.26.0562, Frederico dos Santos Messias, 4ª Vara Cível do Foro de Santos, DJ 7/12/2022) No primeiro caso, o acórdão do TJ/SP reafirma a autonomia privada em contratos interempresariais, especialmente em operações de transporte marítimo internacional, ao validar a cláusula de eleição de foro estrangeiro. A decisão prestigia o art. 25 do CPC e reconhece que, quando as partes são empresas de grande porte e atuação global, não há que se falar em hipossuficiência ou vulnerabilidade que autorize a intervenção do Judiciário brasileiro para afastar a vontade expressa no contrato. Trata-se de aplicação direta dos princípios da força obrigatória dos contratos e da liberdade de contratar, essenciais para assegurar a segurança jurídica em relações de alta complexidade econômica. Outro ponto relevante é a rejeição da alegação de que o contrato seria de adesão. Ainda que o julgado não tenha tratado especificamente de instrumentos baseados em modelos da BIMCO, o afastamento dessa caracterização suscita uma reflexão importante: na prática internacional de transporte marítimo, é comum o uso de formulários padrão elaborados por entidades como a BIMCO. Esses modelos - reconhecidos por oferecer dezenas de formulários que podem ser livremente combinados e ajustados - não se equiparam, por si só, a contratos de adesão quando as partes, ambas experientes e de capacidade econômica equivalente, optam dentre múltiplas opções disponíveis. O segundo julgado em análise reafirma, com clareza, a força normativa da cláusula de eleição de foro em contratos de transporte marítimo internacional, alinhando-se ao teor da súmula 335 do STF. A decisão evidencia que, havendo convenção expressa no contrato entre as partes e inexistindo elementos de vulnerabilidade ou matéria de ordem pública, o Poder Judiciário brasileiro deve reconhecer a competência exclusiva da jurisdição estrangeira eleita, ainda que o território nacional fosse, em tese, o local de cumprimento da obrigação ou do fato. A jurisprudência se destaca ao trazer para sua fundamentação o conceito de "Estado Babá" correlacionado com a ideia de que não cabe ao Estado suprir a vontade da parte contratante apenas quando os efeitos contratuais lhe são desfavoráveis. Este brilhante entendimento revela uma postura de valorização da boa-fé objetiva e da coerência nas relações contratuais empresariais e reforça a liberdade de contratar das partes, propiciando, consequentemente, segurança jurídica aos negócios. Para além, a decisão ressalta que o contrato de transporte marítimo internacional, por envolver múltiplos atores e interesses interdependentes, não comporta o tratamento assimétrico característico de relações de consumo e, ainda, fortalece a autonomia privada e prestigia a previsibilidade negocial, especialmente em setores complexos como o do transporte marítimo, nos quais os custos e condições contratuais são diretamente influenciados pela estabilidade das regras pactuadas. Desse modo, a opção pela jurisdição estrangeira prevista no contrato deve prevalecer, sob pena de comprometer a lógica do comércio marítimo global e a autonomia das partes contratantes. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui.
A crescente movimentação de contêineres nos portos brasileiros, impulsionada pelo avanço das operações marítimas, trouxe consigo desafios operacionais que afetam diretamente os usuários dos serviços portuários. Embora o volume transportado tenha aumentado significativamente, a infraestrutura disponível não acompanhou o mesmo ritmo, o que gerou sobrecarga em pátios, limitações de agendamento e gargalos logísticos com reflexos especialmente sensíveis para exportadores e importadores. Nesse contexto, a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários passou a receber um número crescente de denúncias relativas à cobrança de sobrestadia de contêineres, nas modalidades conhecidas como demurrage e detention. As reclamações giram, em sua maioria, em torno de situações alheias ao controle dos usuários, como reprogramações de escalas ou omissões por parte dos armadores, indisponibilidade de janelas para entrega de cargas nos terminais e dificuldades para devolução de contêineres vazios nos depósitos indicados pelos transportadores. Com o intuito de responder de forma técnica e institucional a esse cenário, a ANTAQ consolidou novos entendimentos regulatórios destinados a uniformizar a interpretação da resolução 62/21 e a oferecer maior clareza quanto à legitimidade ou não das cobranças. A análise realizada pela Agência revelou que a finalidade original da sobrestadia - qual seja, incentivar a devolução ágil dos equipamentos - vinha sendo desvirtuada em muitos casos. O instrumento, concebido como estímulo à eficiência, passou a ser aplicado mesmo quando o atraso decorre de falhas imputáveis ao próprio sistema logístico, o que afronta a razoabilidade contratual e o interesse público. A ANTAQ passou, então, a adotar como critério orientador o chamado "Princípio do Incentivo", consagrado pela FMC - Federal Maritime Commission nos Estados Unidos, segundo o qual a sobrestadia apenas se justifica quando a retenção do equipamento decorre de uma decisão ou responsabilidade do próprio usuário, no curso de sua atividade comercial. Em linha com esse princípio, a cobrança torna-se indevida quando a permanência do contêiner além do prazo de livre estadia (free time) é causada por falhas operacionais do transportador, do terminal portuário ou do depósito indicado para devolução. Dentre os entendimentos agora consolidados, destaca-se que a contagem da sobrestadia deve ser suspensa a partir da primeira tentativa frustrada de entrega ou devolução do equipamento, mesmo que já iniciada, sempre que houver impedimento logístico não atribuível ao usuário. Ademais, eventos de caso fortuito ou força maior que ocorram durante o free time também devem suspender sua contagem. A Agência reconheceu que, em casos de indisponibilidade de depósito que gerem prejuízos extraordinários ao usuário, poderá haver inclusive a instauração de processo sancionador contra os responsáveis. Por outro lado, reafirmou que a retenção de carga pelo armador somente se justifica nas hipóteses de inadimplemento de frete ou de valores relacionados à avaria grossa. Também esclareceu que a recusa de novos embarques por inadimplência do usuário não se aplica a contratos de prestação de serviço já iniciada. Por fim, reiterou que a empresa mandatária de transportador NVOCC estrangeiro está sujeita à regulação da ANTAQ, na qualidade de agente intermediário. Dois avanços importantes foram introduzidos nesse novo entendimento. O primeiro diz respeito à flexibilização do princípio tradicionalmente invocado nas disputas marítimas - "once on demurrage, always on demurrage" - cuja aplicação, segundo a ANTAQ, deve ser relativizada sempre que a demora decorrer de causas externas à vontade do usuário. Nesses casos, a contagem da sobrestadia deve ser suspensa a partir da primeira tentativa frustrada de devolução do contêiner, retomando-se apenas quando restabelecidas as condições logísticas adequadas para o recebimento. O segundo avanço consiste na criação de um rito sumário para o tratamento das denúncias, com foco na solução célere e estruturada das controvérsias. A proposta busca fomentar a composição entre as partes, com base em parâmetros já consolidados pela própria Agência. A atuação técnica da ANTAQ, nesses casos, permitirá apontar com clareza as responsabilidades envolvidas, facilitando a identificação de cobranças legítimas e o cancelamento daquelas consideradas abusivas. Como medida complementar, a ANTAQ determinou o sobrestamento de análises sancionatórias em curso até a efetiva implantação do rito sumário e estabeleceu a necessidade de tentativa prévia de composição antes da análise de pedidos de cautelares. Ao consolidar tais entendimentos e implementar um modelo ágil de resolução de disputas, a Agência contribui para a previsibilidade das relações comerciais, a redução da litigiosidade e o fortalecimento da segurança jurídica nos contratos de transporte marítimo. Essas mudanças, além de refletirem uma postura regulatória alinhada às melhores práticas internacionais, têm o potencial de beneficiar diretamente os usuários e de elevar o grau de eficiência logística do comércio exterior brasileiro. Trata-se de um passo importante no amadurecimento das relações entre regulador, armadores e usuários, com impactos positivos sobre a competitividade portuária e a racionalidade contratual no setor marítimo.
O Comitê de Proteção do Meio Ambiente Marinho da Organização Marítima Internacional (IMO) aprovou, durante a sua 83ª sessão (MEPC 83), ocorrida entre 7 e 11 de abril de 2025, o texto preliminar do chamado IMO Net-Zero Framework (ou Marco de Emissões Líquidas Zero), que será incluído no Anexo VI da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL). O texto preliminar das emendas ao Anexo VI da MARPOL foi encaminhado para consideração dos Estados Membros e deverá ser formalmente adotado em uma sessão extraordinária do MEPC em outubro de 2025, entrando em vigor em 2027. O objetivo da nova regulamentação, que será aplicável a navios com 5 mil toneladas brutas (GT) ou mais, é reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) provenientes do transporte marítimo internacional o mais rápido possível, cumprindo as metas de redução já estabelecidas na Estratégia da IMO de 2023 para Redução de Emissões de GEE de Navios e promovendo efetivamente, assim, a transição energética do setor marítimo. Para tanto, os navios sujeitos a essa nova regulamentação deverão reduzir de forma anual e contínua a intensidade de GEE dos combustíveis utilizados, conforme as metas anuais de intensidade estabelecidas. Vale notar que não há qualquer imposição de tecnologia específica a ser utilizada pelas embarcações para fins de redução da intensidade de carbono. Tal liberdade tem como fim o incentivo à inovação tecnológica e a novos projetos de redução de emissão de GEE e de transição energética no setor. As novas regras preveem, ainda, (i) a precificação de emissões de GEE, impondo, àqueles que descumprirem as metas, a aquisição de unidades corretivas, a transferência de unidades excedentes de outras embarcações ou a utilização das acumuladas previamente para equilibrar as suas emissões; e, de outro lado, (ii) o recebimento de recompensas financeiras pela adoção de tecnologias, combustíveis e/ou fontes de energia com emissões zero ou quase zero de GEE. Para apoiar a implementação das medidas nele previstas, o Marco de Emissões Líquidas Zero também prevê a criação do Fundo IMO Net-Zero, que receberá e gerenciará as contribuições financeiras relacionadas à precificação de emissões de GEE, bem como distribuirá os recursos arrecadados para recompensar navios que utilizem tecnologias limpas, apoiar países em desenvolvimento na transição energética e financiar infraestrutura, capacitação, planos nacionais e mitigação de impactos negativos. A nosso ver, todavia, as obrigações trazidas pela MEPC 83 não serão facilmente concretizadas e cumpridas, especialmente se mantido o cenário atual. Há diversos desafios, tanto brasileiros quanto mundiais, para o atingimento das metas estabelecidas. Dentre os desafios, pode-se elencar: i. o convencimento dos operadores, que ainda se mostram resistentes às novas tecnologias, como as embarcações elétricas ou a hidrogênio; ii. o alto preço para construção e afretamento de embarcações sustentáveis (que comportam ao menos um tipo de tecnologia sustentável ou combustível alternativo); iii. o preço dos combustíveis alternativos, superior ao dos combustíveis tradicionais; iv. a falta de mercado consumidor diverso e amplo para incentivar a produção de combustíveis alternativos; v. o limite tecnológico, cuja superação é incerta; vi. a ausência de infraestrutura adequada nos portos e terminais portuários, dentre outros. No Brasil, em especial, para que o país se adeque às normas internacionais de descarbonização do setor marítimo, será necessária, antes de tudo, a realização de estudos para conhecer a sua realidade, a fim de possibilitar a implementação de políticas públicas eficazes e adequadas para o atingimento das metas estabelecidas pela IMO. Some-se a tudo isso, como mais um obstáculo ou desafio à aplicação da norma, a própria política internacional, que vive momento conturbado relativamente à temática ambiental. Recentemente, os Estados Unidos posicionaram-se contrariamente à MEPC 83, afirmando, inclusive, que atuariam em conjunto com outros países para que a norma não fosse adotada. Diante desse cenário, é evidente que a efetiva descarbonização do setor marítimo exigirá não apenas avanços tecnológicos e investimentos robustos, mas também um esforço coordenado entre os Estados Membros da IMO, operadores privados e organismos multilaterais. A construção de consensos diplomáticos será essencial para garantir a adoção e a implementação eficaz do IMO Net-Zero Framework, respeitando as diferentes realidades econômicas e estruturais dos países envolvidos. Somente por meio de diálogo construtivo, políticas públicas bem fundamentadas e incentivos à inovação será possível transformar os desafios atuais em oportunidades concretas para uma transição energética justa e sustentável no transporte marítimo internacional.
Introdução A intensificação das políticas internacionais de mitigação das mudanças climáticas vem transformando o setor de transporte marítimo em uma arena estratégica de regulação ambiental e econômica. Nesse contexto, a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (MARPOL), por meio do seu Anexo VI, consolidou-se como o principal instrumento jurídico multilateral para o controle das emissões atmosféricas da navegação, fixando limites progressivos de enxofre nos combustíveis e metas de eficiência energética das embarcações. No caso brasileiro, o Anexo VI foi ratificado em 2010 e passou a ser aplicado internamente a partir de janeiro de 2020, com a adoção do limite de 0,50% de teor de enxofre nos combustíveis marítimos. Todavia, a despeito da vigência normativa, ainda não há taxação ambiental específica sobre emissões de navios em águas jurisdicionais nacionais, restringindo-se a atuação da Marinha e da ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis à fiscalização de conformidade. Esse cenário contrasta com a realidade internacional, marcada pela consolidação de mecanismos de precificação de carbono, como o EU ETS - European Union Emissions Trading System, que já impõe custos significativos às operações marítimas em águas europeias, e pelo CBAM - Carbon Border Adjustment Mechanism, que afetará diretamente exportações brasileiras de produtos intensivos em carbono. A problematização que emerge é clara: quando e de que forma os navios que operam em águas brasileiras estarão sujeitos à taxação ou à obrigatoriedade de créditos de carbono? A resposta envolve não apenas a leitura do regime internacional da IMO, mas também a análise da recém-instituída legislação nacional que criou o SBCE - Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões, cuja regulamentação em fases poderá incluir o transporte marítimo até 2030. A relevância jurídica e econômica do tema justifica-se pelo impacto direto sobre armadores, afretadores, operadores portuários e empresas de apoio offshore, que precisarão lidar com custos adicionais, cláusulas contratuais inovadoras (ETS, CII, FuelEU) e potenciais litígios decorrentes da alocação de responsabilidades. Para a advocacia marítima, a questão não é apenas de conformidade normativa, mas também de estratégia preventiva, exigindo revisão contratual, simulação de custos (MRV) e governança de dados. Diante disso, o objetivo do presente artigo é examinar a implementação da MARPOL Anexo VI no Brasil, discutir se e quando poderá ocorrer a taxação ambiental de navios, avaliar os cenários de custos no comércio internacional e identificar os reflexos contratuais já incorporados pelo mercado offshore. Como contribuição prática, o estudo apresenta ainda um checklist de auditoria contratual voltado a advogados do setor, integrando transporte internacional e apoio marítimo. A estrutura do artigo organiza-se da seguinte forma: inicialmente, descreve-se o marco normativo brasileiro e a comparação com a realidade internacional; em seguida, introduz-se o CBAM como segunda camada de custos para exportações; depois, analisam-se as perspectivas do SBCE e os cenários de preço-sombra; posteriormente, apresentam-se as cláusulas BIMCO mais relevantes e o checklist de auditoria contratual; por fim, discutem-se os cálculos práticos de custo e as conclusões estratégicas para a advocacia marítima e offshore no Brasil. Leia a coluna na íntegra.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema da sobre-estadia de contêineres, também conhecido como "demurrage" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente o conceito e a base legal para a cobrança. Para melhor compreensão do tema, serão apresentados dois casos práticos, proporcionando uma análise mais concreta e minuciosa. A sobre-estadia de contêiner (demurrage) vem a ser a expressão consagrada no ramo de comércio internacional para designar a remuneração devida ao transportador marítimo pela não devolução do seu equipamento no prazo de utilização contratualmente estipulado, até porque, como já visto em artigo anteriormente publicado nesta coluna2, "o contêiner não deve ser confundido como embalagem da mercadoria. Ele é, na verdade, um equipamento próprio, acessório do navio, utilizado para a unitização de cargas" e, assim, deve ser devolvido ao transportador no prazo ajustado, para que retorne à logística do transporte. Demurrage é uma palavra oriunda do francês que significa estadia. O conceito de demurrage de contêineres surgiu da própria ideia de demurrage de navios, sendo que ambos, embora distintos, utilizam a mesma terminologia, tendo em comum entre si a extrapolação do prazo. A sobre-estadia de contêineres sempre irá envolver e derivar de um contrato de transporte marítimo (Bill of Lading), o qual engloba o embarcador, o transportador marítimo e o consignatário. Após o término do transporte marítimo, o consignatário da mercadoria possui um período de tempo, denominado 'free-time', para desunitizar o contêiner e devolvê-lo à transportadora marítima. Excedido o prazo sem que o contêiner tenha sido devolvido ao transportador, este terá direito à cobrança de uma taxa diária de sobre-estadia ou demurrage em face do consignatário, cobrança esta que possui lastro contratual e natureza de indenização prefixada em razão de indevida retenção do contêiner por prazo excedente ao lapso do 'free time'. Logo, é o Conhecimento de Embarque o fundamento jurídico da cobrança da demurrage, valor devido pelo destinatário, embarcador ou consignatário do contêiner - solidariamente - por dia de retenção do contêiner além do prazo contratado entre as partes. Por consectário lógico, o Conhecimento de Transporte, como contrato, é lei entre as partes, obrigando-as ao cumprimento de suas obrigações. Muito embora tenha origem em um contrato de transporte, a jurisprudência pátria vem mitigando o caráter originariamente contratual, vez que tal cobrança está incorporada aos usos e costumes do transporte marítimo, sendo defeso aos usuários alegarem desconhecimento acerca da cobrança, em caso de atraso na devolução dos equipamentos que lhe foram confiados para transporte de suas cargas, até porque não seria crível admitir a sua utilização por prazo indeterminado sem qualquer ônus. Importante destacar que a responsabilidade pela devolução do contêiner não se afasta mesmo diante de situações como greve/paralisações da Receita Federal ou entraves alfandegários. A jurisprudência tem reiterado que tais eventos são previsíveis e inerentes à atividade empresarial dos importadores, não caracterizando caso fortuito ou força maior. Nos termos do art. 393 do CC, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. No entanto, a doutrina majoritária e a jurisprudência têm destacado que, para a configuração do caso fortuito ou força maior, exige-se imprevisibilidade e inevitabilidade do evento. Além disso, é fundamental distinguir o evento externo do risco próprio da atividade desempenhada. Portanto, eventual paralisação ou entraves aduaneiros, embora possam impactar os fluxos logísticos, são considerados eventos previsíveis e cíclicos, especialmente no setor de comércio exterior. Sendo assim, a sua ocorrência não exime a obrigação de devolver o contêiner no prazo pactuado, tampouco afasta a incidência da demurrage. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais tratam sobre a legalidade da cobrança de sobre-estadia por parte do Transportador Marítimo. Primeiro Julgado: Cobrança - Transporte - Demurrage - Sobreestadia de contêiner - Inaplicabilidade do CDC - Inexistência de relação de consumo, mas contrato de transporte celebrado com a transportadora com o nítido escopo de incrementar a atividade comercial da requerida, afastando a incidência da lei 8.078/1990 - Ré revel - Utilização de contêiner por prazo superior ao período livre avençado - Valor devido em razão de sobreestadia, por constar expressamente do termo de responsabilidade de devolução de conteiner - Natureza jurídica da sobreestadia que não é de cláusula penal, mas de indenização fixada em razão de indevida retenção do contêiner, por prazo excedente ao lapso do tempo livre ou free time - Inexistência de abusividade das taxas de sobreestadia - Burocracia alfandegária não caracteriza hipótese de caso fortuito ou força maior - Sentença reformada - Recurso provido. (TJ/SP, Apelação 0021433-43.2011.8.26.0562, des. Relator Francisco Giaquinto, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 7/11/2017) Segundo Julgado: AÇÃO DE COBRANÇA- SOBREESTADIAS CONTAINER- CONTRATO TRANSPORTE MARÍTIMO - "Demurrage" - Taxa de sobreestadia, em razão de atraso na devolução de "container" - Despesa que deve ser suportada pela apelante - Pessoa que consta como CONSIGNATÁRIA no Conhecimento de embarque (B/L) - Cobrança que tem início desde o primeiro dia após transcorrido o período de "free time" - Assinatura do termo de responsabilidade em data posterior a devolução dos contêineres - Irrelevância - Tendo aderido e aceito o contrato de transporte, quando recebeu as mercadorias, a apelante sujeitou-se aos direitos e obrigações nele inseridos - Cobrança procedente - Conversão da moeda estrangeira deve ser realizada na data do pagamento (STJ) - Recurso não provido. (TJ/SP; Apelação 1002968-79.2020.8.26.0100, des. Ana De Lourdes Coutinho Silva Da Fonseca, 13ª Câmara de Direito Privado; j.12/5/2021) Pode-se observar que, no primeiro julgado, proferido pelo TJ/SP, restou fundamentado que a burocracia para o desembaraço aduaneiro é situação absolutamente previsível e própria da atividade empresarial desenvolvida pela ré, não podendo ser considerada caso fortuito ou força maior. O acórdão destaca ainda que a alegação de problemas portuários e burocracia alfandegária não tem o condão de afastar a cobrança da taxa de sobre-estadia e que, não ocorrendo a restituição do contêiner no prazo livre, incidirá a remuneração pelas sobre-estadias, até a data da efetiva devolução do cofre de carga. Dessa forma, o entendimento firmado é no sentido de que a sobre-estadia de contêineres é devida pela privação do uso do equipamento, indenizando a proprietária por ter sido privada de utilizar seu contêiner em operações logísticas a terceiros, incorrendo em custos logísticos que envolvem toda a programação de disponibilidade de contêiners, frotas de navios e cargas em determinado porto. Afinal, dentro das operações logísticas de um transportador, se 100 contêiners chegam a determinado porto de destino, a transportadora conta com os mesmos 100 contêineres estando disponíveis, depois do prazo contratualmente avençado, para operação de outras cargas que serão embarcadas naquele porto. Se faltam contêineres, a logística passa a onerar o transportador e causar outros prejuízos, razão pela qual os valores diários em caso de sobre-estadia do contêiner com o proprietário da carga são previamente ajustados dentro da relação contratual e usualmente empregados nas práticas de mercado. O segundo julgado, por sua vez, também oriundo do TJ/SP, afirma a responsabilidade da parte que figura como consignatária no Conhecimento de Transporte Marítimo quanto às verbas de sobre-estadia de contêiner geradas em razão da devolução extemporânea da unidade. Isto porque, de acordo com a praxe marítima, a emissão do Conhecimento de Transporte Marítimo (Bill of Lading), contendo as cláusulas que regerão o transporte contratado, ocorre por ocasião do embarque das mercadorias, no porto de origem. Este contrato é, então, emitido em no mínimo 3 (três) vias, uma das quais é entregue ao embarcador, a segunda ao transportador marítimo, e a terceira via é remetida ao consignatário, para que este possa, mediante a apresentação de sua via original, receber a carga no porto de destino e instruir a respectiva Declaração de Importação. Assim, mediante a apresentação do Conhecimento de Embarque no porto de destino, a consignatária das mercadorias comprova sua titularidade sobre a carga e adere ao contrato, anuindo quanto aos termos e condições do contrato de transporte, resultando na sua manifesta condição de parte legítima para responder pelas obrigações derivadas da não devolução do contêiner no prazo convencionado com o transportador marítimo. Desta forma, é possível observar que os julgados apresentados acima ilustram o posicionamento firme, não apenas do TJ/SP, mas das Cortes pátrias como um todo, quanto à responsabilidade contratual da consignatária das mercadorias pela devolução tempestiva dos contêineres ao transportador marítimo e, inobservado este prazo, pelo pagamento das sobre-estadias de contêineres (demurrage) calculadas a cada dia de retenção dos cofres de carga. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Começo este texto me mantendo fiel ao propósito da coluna Migalhas Marítimas, de propagar o conhecimento do Direito Marítimo de modo simples, explicando inicialmente o conceito de demurrage e sua contextualização, antes de abordar propriamente a recente decisão da ANTAQ e sua influência sobre a resolução de disputas nesse tema. A demurrage ou sobrestadia designa um valor cobrado quando o navio ou o contêiner permanece em local de carga ou descarga além do tempo previamente acordado entre as partes. Trata-se, portanto, de uma indenização devida ao armador (ou operador de contêiner) pelo tempo excedente além do período livre, chamado de "free time", que seria suficiente para o embarque ou desembarque das mercadorias. A natureza jurídica da demurrage é objeto de grande debate no Direito Marítimo, havendo entendimentos de que seria cláusula penal, ou indenização pré-fixada. Nesta mesma Coluna, em 15/7/211, Marcelo Sammarco e Fernanda Azevedo publicaram texto que bem esclarece estas duas visões, e ao qual remeto o leitor interessado. Para os objetivos do presente artigo, basta ter em vista que esse pagamento tem como objetivo compensar o proprietário do navio ou do equipamento pela imobilização além do esperado, evitando perdas financeiras causadas por atrasos que comprometem a logística e o planejamento operacional. Além disso, a demurrage exerceria função pedagógica, incentivando o cumprimento dos prazos estabelecidos e a eficiência nas operações portuárias. Aqui, trato apenas da demurrage de contêiner, que é de ocorrência muito mais frequente que a de navio, e que gera grande número de litígios. Neste contexto a sobrestadia se refere ao período em que o contêiner permanece sob responsabilidade do importador/exportador, além do tempo livre estipulado pelo transportador. Após o término do prazo acordado, inicia-se a cobrança diária de demurrage até que o contêiner seja embarcado ou devolvido. A legislação brasileira não trata da demurrage. Nenhuma surpresa quanto a isso, uma vez que o Direito Marítimo se baseia fortemente na liberdade contratual e nos costumes, sendo bastante limitada a interferência estatal em seus institutos. A compreensão da sua natureza jurídica, portanto, impactará a interpretação das disposições da legislação civil e comercial sobre obrigações e contratos, na solução dos litígios decorrentes da demurrage. A conclusão do parágrafo anterior, porém deve ser ponderada com o fato de que, no Brasil, a ANTAQ tem resoluções que tratam de forma mais detalhada da demurrage, inclusive sobre obrigações das partes, o que, à primeira vista, contrariaria a liberdade contratual mencionada acima e que perpassa toda a compreensão do Direito Marítimo. Há quem veja na lei 10.233/01, que define as competências da ANTAQ no seu art. 272, uma espécie de "delegação" para que a Agência edite tais normas que, de algum modo, interferem em relações contratuais privadas. Penso, porém, que a legitimidade da ANTAQ tem outro fundamento. Como lhe compete definir normas para o uso da infraestrutura portuária, e este é exatamente o espaço em que se desenrolam, quase sempre, as causas e consequências da demurrage, com impactos sobre a operação portuária como um todo, a Agência não apenas pode, como deve definir alguns parâmetros mínimos para tal cobrança. Além disso, seu papel de órgão regulador do transporte aquaviário, como um todo, legitima tais disposições, desde que observada alguma autocontenção na regulação das relações privadas. Assim, é certo que deve ser buscado o devido equilíbrio entre a atuação regulatória, que visa promover um bom ambiente de negócios em determinado setor econômico (no caso, o transporte aquaviário) e a preservação da autonomia das partes na estipulação contratual das condições e valores da demurrage.  A resolução 2.389/12, dispõe sobre a fiscalização das instalações portuárias e dos agentes marítimos, conferindo à ANTAQ o poder de averiguar eventuais irregularidades nas cobranças, incluindo demurrage, e penalizar empresas que desrespeitem as normas. A resolução 18/17 promoveu ampla regulamentação do transporte aquaviário, tratando de "direitos e deveres dos usuários, dos agentes intermediários e das empresas que operam nas navegações de apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso", além de definir infrações administrativas, nos termos do seu art. 1º. Seu art. 2º traz ainda as definições de free time e demurrage3, e disposições específicas sobre esses institutos, em seus arts. 19 a 214. Foi revogada pela resolução 62/21, que tratou dos mesmos temas e, no que concerne à demurrage, atualizou as definições em seu art. 2º5. Seus arts. 19 a 21, por outro lado, mantiveram as disposições da resolução anterior. A resolução de disputas relativas a demurrage de contêineres representa, há muito, um desafio na prática do Direito Marítimo no Brasil. A multiplicidade de agentes públicos e privados que participam das operações portuárias e o conhecido "gargalo logístico" de quase todos os portos brasileiros fazem com que os prazos de estadia frequentemente sejam ultrapassados. São frequentes as reclamações de embarcadores quanto a valores abusivos cobrados por armadores ou operadores portuários. Muitas vezes, os valores acabam sendo pagos, apenas para não agravar ainda mais a situação, pois a instauração do litígio levaria a uma retenção por tempo ainda maior das mercadorias. Além disso, as divergências sobre demurrage, entre as mesmas partes, costumam ser pulverizadas em vários embarques, em diferentes BL's 6. Assim, embora o valor total seja relevante, a discussão em cada cobrança costuma ter valores não tão significativos (considerada, obviamente, a ordem de grandeza dos valores no transporte marítimo), tornando inviável para a parte, especialmente o embarcador, arcar com os custos do litígio. Observado esse contexto, nenhum dos métodos de resolução de disputas, atualmente disponível, parece trazer o meio ideal, ou ao menos razoável, para solução dessas controvérsias. A arbitragem apresenta a vantagem do conhecimento específico dos árbitros, quando realizada por árbitros especializados em Direito Marítimo e em câmaras de igual especialização.  No entanto, mesmo a arbitragem expedita - justificável em grande parte dos casos de demurrage, em razão do valor envolvido - pode não ocorrer na rapidez demandada pela dinâmica do transporte marítimo, nem apresentar custos acessíveis, em comparação com o valor do litígio. A judicialização do litígio tampouco tem se mostrado eficiente na resolução da questão. Salvo alguns poucos exemplos de iniciativas como o Núcleo de Direito Marítimo da Justiça Estadual de São Paulo, os juízes de cidades portuárias nem sempre têm especialização na matéria. Além disso, o tempo para que se obtenha uma decisão, os custos do litígio e os riscos dos ônus da sucumbência acabam desestimulando a judicialização.    Neste contexto, a ANTAQ acaba se apresentando como via alternativa de possível solução para esses litígios. Não se trata, até o momento, de uma competência definida expressamente.  Na verdade, esse papel acabou sendo exercido pela Agência em processos de denúncia, em que se pedia a punição a armadores ou operadores que faziam cobranças consideradas abusivas. Consolidou-se também a possibilidade de medidas cautelares administrativas no âmbito desses processos. Trata-se, portanto, em grande medida, de uma construção prática, decorrente da grande demanda de composição desses litígios concernentes à demurrage. Nesse contexto, no acórdão 521/25, publicado em 6/8/25, a ANTAQ aprovou "entendimentos regulatórios, com base em intepretação lógica e sistemática da Resolução ANTAQ nº 62/2021". Em nove proposições objetivas, a Agência deu sua interpretação qualificada a várias questões relativas ao modo de contagem do prazo, hipóteses excludentes, transparência e responsabilidade pelo pagamento da demurrage. No que interessa ao tema deste artigo, o item 5.4 do acórdão assim estabeleceu: "determinar à SFC que, seguindo as diretrizes estabelecidas na presente deliberação, elabore o rito procedimental sumário para os casos que envolvam demandas afetas a cobranças de sobrestadias como forma de incentivar a composição de conflitos e sua célere resolução e já passe a adotar o novo rito em suas análises;". Dispôs ainda, no item 5.5, que "os pedidos de medidas cautelares sobre cobranças de sobrestadias atualmente em tramitação nesta Agência deverão ser submetidas ao rito sumário de composição antes de eventual deliberação do Colegiado; devendo suas relatorias serem consideradas preventas aos presentes autos;". Com essa decisão, a ANTAQ dá um primeiro e importante passo para maior institucionalização e regulamentação do seu próprio papel na resolução de disputas sobre demurrage entre agentes privados. Nesse sentido, trata-se de iniciativa muito bem-vinda e positiva, que poderá trazer maior segurança jurídica para as partes envolvidas no transporte marítimo. Não passou despercebido da Agência, ainda, o fato de que a regulamentação através de acórdão não é o meio ideal para tema tão relevante, que demanda maior formalidade, no mínimo através de uma resolução. Assim, o item 5.3 do mesmo acórdão decide "aprovar a proposta da SRG para antecipação do tema 2.6 "Sobre-estadia de contêiner - Resolução-ANTAQ nº 62/2021" da agenda regulatória para 2025 (Despacho SRG 2506632), recomendando que o texto traduza os entendimentos regulatórios aqui propostos, observando a ressalva feita no Voto AST-D1 2568113 em relação a não incidência de Análise de Impacto Regulatório (AIR)". Trata-se, de outro ponto bastante positivo da decisão, esperando o mercado, e também os operadores do Direito Marítimo, que essa nova regulamentação traga ainda mais segurança jurídica para o tema, o que há décadas vem sendo demandado pela comunidade marítima, ajudando a desatar um dos vários nós da logística no Brasil. __________________________ 1 Migalhas nº 5.144. Disponível aqui. 2 Art. 27. Cabe à ANTAQ, em sua esfera de atuação: II - promover estudos aplicados às definições de tarifas, preços e fretes, em confronto com os custos e os benefícios econômicos transferidos aos usuários pelos investimentos realizados; IV - elaborar e editar normas e regulamentos relativos à prestação de serviços de transporte e à exploração da infra-estrutura aquaviária e portuária, garantindo isonomia no seu acesso e uso, assegurando os direitos dos usuários e fomentando a competição entre os operadores; 3 Art. 2º Para os efeitos desta Norma são estabelecidas as seguintes definições: XIX - livre estadia do contêiner (free time): prazo acordado, livre de cobrança, para o uso do contêiner, conforme o contrato de transporte, conhecimento de carga ou BL, confirmação da reserva de praça (booking confirmation), ou qualquer outro meio disponibilizado pelo transportador marítimo; XX - sobre-estadia de contêiner: valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução; 4 Art. 19. As regras e os valores de sobre-estadia, bem como o número de dias de livre estadia do contêiner deverão ser disponibilizados até a confirmação da reserva de praça ao embarcador, ao consignatário, ao endossatário e ao portador do conhecimento de carga - BL. Art. 20. O prazo de livre estadia do contêiner será contado: I -  no embarque, a partir da data de retirada do(s) contêiner(es) vazio(s) pelo embarcador no local acordado; e II -  no desembarque do(s) contêiner(es) cheio(s), a partir do dia seguinte após a entrega da carga no local acordado. Art. 21. A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular. § 1º Caso o embarcador decida postergar o embarque do contêiner por qualquer motivo, ou dê causa ao postergamento, a contagem do prazo da sobre-estadia somente se encerrará no momento do efetivo embarque. § 2º A contagem do prazo de livre estadia do contêiner será suspensa em decorrência de: I -  fato imputável diretamente ao próprio transportador marítimo, ao proprietário do contêiner, ou ao depósito de contêineres (depot); ou II -  caso fortuito ou de força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente. § 3º A contagem da sobre-estadia que já tiver sido iniciada não se suspende na intercorrência de caso fortuito ou força maior. § 4º O transportador marítimo ou o proprietário do contêiner deverá manter disponível ao embarcador, ao consignatário, ao endossatário e ao portador do conhecimento de carga - BL, a partir do primeiro dia de contagem da sobre-estadia, enquanto esta durar, a identificação do contêiner e o valor diário de sobre-estadia a ser cobrado. 5 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições: XVI - livre estadia do contêiner (free time): prazo acordado, livre de cobrança, para o uso do contêiner, conforme o contrato de transporte, BL, confirmação da reserva de praça (booking confirmation), ou qualquer outro meio disponibilizado pelo transportador marítimo; XXII - sobre-estadia de contêiner: valor devido ao transportador marítimo, ao proprietário do contêiner ou ao agente transitário pelos dias que ultrapassarem o prazo acordado de livre estadia do contêiner para o embarque ou para a sua devolução; 6 O bill of lading (conhecimento de embarque) é o documento emitido pelo transportador, correspondendo a uma versão muito sintética do contrato de transporte.
No dia 10 de junho de 2025, a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários editou a nova RN 129/25, substituindo a então resolução 1/15 da Agência, a fim de adequar a norma sobre afretamento de embarcações às mudanças introduzidas pela lei 14.301/22, também chamada de "BR do Mar". A nova RN trouxe diversas inovações e alterações importantes para o setor de cabotagem, mas também para os demais modais de navegação, ou seja, apoio portuário, apoio marítimo e longo curso. Sob o aspecto formal, a nova norma apresenta uma estrutura mais detalhada, com capítulos, seções e artigos mais extensos, além de definições mais precisas e atualizadas, introduzindo conceitos e procedimentos de forma mais clara e sistematizada. De início, a RN 129/25 trouxe um esclarecimento na definição do que seria uma "embarcação brasileira" para fins da norma (art. 2º, XV). A partir de agora, a definição passa a se referir a todas as "embarcações de bandeira brasileira", no que se incluem não somente as inscritas no Registro de Propriedade Marítima, mas também as estrangeiras que, inscritas no Registro Especial Brasileiro sob contrato de afretamento a casco nu por Empresa Brasileira de Navegação, passem a arvorar bandeira brasileira com suspensão da sua bandeira de origem. Confira-se:   Redação RN 1/15   Redação RN 129/25   Art. 2º, XXII - embarcação de bandeira brasileira: a que tem o direito de arvorar bandeira brasileira, conforme a legislação em vigor.   Art. 2º, XV - embarcação de bandeira brasileira: a que tem o direito de arvorar bandeira brasileira, podendo ser embarcação de registro brasileiro, entendida como a inscrita no Registro de Propriedade Marítima, de propriedade de pessoa física residente e domiciliada no País ou de empresa brasileira, ou podendo ser embarcação estrangeira, inscrita no REB - Registro Especial Brasileiro sob contrato de afretamento a casco nu por EBN, condicionado à suspensão provisória de bandeira no país de origem. O ajuste redacional no art. 2º, XV, confere maior clareza sobre conceitos que, por vezes, geravam dúvidas em sua aplicação. A norma agora prevê que o conceito de embarcação de bandeira brasileira abrange (i) as embarcações propriamente brasileiras e (ii) as embarcações estrangeiras inscritas no REB, com suspensão da bandeira de origem. A alteração é salutar e oportuna para evitar dúvidas na aplicação dos conceitos. Ainda a título introdutório, a norma corrobora a prática de centralização dos procedimentos de afretamento no SAMA - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, o que representa um avanço significativo na modernização e desburocratização do setor de navegação brasileiro. Para o leitor da coluna menos familiarizado com o assunto, o SAMA funciona como uma plataforma única e informatizada para o gerenciamento de todas as etapas do afretamento, desde a solicitação inicial até o encerramento do contrato, eliminando a necessidade de múltiplos canais de comunicação e tornando o processo mais transparente para todas as partes envolvidas. A obrigatoriedade de acesso ao SAMA para verificação de consultas e andamento dos processos (resolução 129/25, art. 24) garante que todas as informações estejam centralizadas e disponíveis em um único ambiente digital, acessível de qualquer localidade, reduzindo deslocamentos, custos operacionais e a dependência de atendimento presencial. Adentrando nos pontos centrais da norma, o prazo de até 15 dias para registro do afretamento na ANTAQ foi mantido, mas a nova norma detalha as informações obrigatórias e amplia a exigência de envio de documentos por Reconhecimento Óptico de Caracteres ou OCR (art. 4º, §§ 5º e 6º e art. 16). A nova norma reforça também a obrigatoriedade do envio do contrato de afretamento em até 60 dias, com possibilidade de solicitação de tradução juramentada pela ANTAQ. Em relação às hipóteses de afretamento, o afretamento de embarcação de bandeira brasileira continua dispensado de autorização. Já em relação ao afretamento de embarcação estrangeira, a nova norma detalha e amplia as hipóteses em que o afretamento de embarcação estrangeira independe de autorização, especialmente para navegação de longo curso, apoio marítimo e cabotagem, e traz limites mais claros para tonelagem e prazos. Aqui, é necessário abrir um parêntese para mencionar as situações específicas previstas para a chamada Empresa Brasileira de Investimento na Navegação ou, simplesmente, Ebin. A Ebin é uma figura introduzida pela BR do Mar e agora prevista na resolução ANTAQ 129/25, sendo distinta da EBN - Empresa Brasileira de Navegação tradicional. Enquanto a EBN tem como objeto principal o transporte aquaviário de carga ou pessoas, a Ebin tem como finalidade o fretamento de embarcações para empresas brasileiras ou estrangeiras de navegação, atuando como investidora e intermediária no mercado de afretamento (art. 2º, XVIII e XIX). A principal diferença está no limite e na forma de utilização do direito de afretamento de embarcações estrangeiras. A Ebin pode afretar embarcação estrangeira por tempo, na proporção de até 200% (duzentos por cento) da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção em estaleiro brasileiro, durante o período de construção (art. 4º, § 12). Todavia, caso a Ebin não utilize esse direito, pode transferi-lo onerosamente para EBNs, criando um mercado secundário de direitos de tonelagem (art. 4º, § 13). Os direitos de tonelagem das embarcações fretadas por Ebin são transferidos para a EBN afretadora, permitindo que esta contabilize a tonelagem como própria para fins regulatórios (art. 4º, § 14). Em relação às EBNs tradicionais, o afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, nas navegações de apoio marítimo, cabotagem e longo curso, continua limitado ao dobro da tonelagem de porte bruto das embarcações de tipo semelhante encomendadas pela EBN a estaleiro brasileiro, durante o período máximo de 36 meses de construção (art. 4º, III). Dependendo do tipo de navegação, pode-se adicionar a esse limite metade da tonelagem de porte bruto das embarcações de registro brasileiro de sua propriedade ou da tonelagem de porte bruto das embarcações de tipo semelhante de sua propriedade. Entretanto, não há previsão para que a EBN tradicional transfira direitos de tonelagem para terceiros. Em resumo, ao contrário da Ebin, que atua como investidora e intermediária, podendo negociar direitos de afretamento, a EBN tradicional fica restrita ao uso próprio dos direitos de afretamento, sem possibilidade de negociação secundária. A resolução ANTAQ 129/25, ainda na esteira da BR do MAR, prevê uma flexibilização progressiva para o afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu, com suspensão de bandeira, na navegação de cabotagem. Essa flexibilização visa ampliar gradualmente o acesso das EBNs a embarcações estrangeiras, independentemente de contrato de construção vigente ou de propriedade de embarcação de registro brasileiro, conforme limites temporais estabelecidos na norma. Em apertada síntese, o art. 4º, inciso IV, da resolução estabelece que o afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira, na navegação de cabotagem, pode ser realizado independentemente de contrato de construção vigente ou de propriedade de embarcação de registro brasileiro, observando-se os limites quantitativos definidos no § 10 do mesmo art.. Esse parágrafo detalha os marcos temporais para a ampliação do número de embarcações estrangeiras que podem ser afretadas a casco nu na cabotagem. Importante destacar que a verificação da quantidade de embarcações afretadas considera o grupo econômico da empresa afretadora, conforme o conceito previsto no art. 5º-A da resolução ANTAQ 62/21 (art. 4º, § 11). Além disso, as embarcações afretadas sob essa flexibilização não podem ser utilizadas para comprovar existência ou disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira para fins de bloqueio em processos de circularização (art. 9º, § 7º). Em resumo, tal como previsto na BR do Mar, a nova norma estabelece uma abertura gradual para o afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu na cabotagem, com marcos temporais bem definidos: três embarcações a partir de janeiro de 2024, quatro a partir de janeiro de 2025 e liberdade total a partir de janeiro de 2026. Essa flexibilização representa uma mudança significativa no regime regulatório, promovendo maior competitividade e flexibilidade operacional para as EBNs no setor de cabotagem. A resolução 129/25 reforça, ainda, a responsabilização das EBNs e terceiros pelas informações prestadas e prevê sanções mais claras para o descumprimento dos procedimentos, incluindo a possibilidade de suspensão de acesso ao SAMA e multas (arts. 21, 22, 28). Por fim, embora essa alteração não estivesse prevista na BR do Mar, a nova Resolução acabou trazendo uma alteração relevante na definição do conceito de bloqueio parcial, conforme previsto ao art. 2º, inciso X. Neste caso, houve o acréscimo de uma hipótese para o exercício do bloqueio parcial, que, se antes era por tempo ou por tonelagem, também poderá ser agora por "parte da operação requerida". Confira-se:   Redação RN 1/15   Redação RN 129/25   Art. 2º, X - bloqueio parcial: quando o bloqueio se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações brasileiras para o bloqueio completo.   Art. 2º, X - bloqueio parcial: bloqueio que se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, parte da operação requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações de bandeira brasileira para o bloqueio completo. Nesse particular, a alteração na definição poderá representar grandes impactos à indústria de navegação, na medida em que amplia a margem para o exercício do referido bloqueio por embarcações brasileiras. A temática dos bloqueios, como já deve ter notado o leitor dessa coluna em publicações anteriores, é um tema bastante relevante para indústria de exploração de óleo e gás offshore que traz impactos operacionais e econômicos muito sensíveis. Como se sabe, os contratos firmados nesse setor são complexos e costumam exigir planejamento e previsibilidade quanto ao seu escopo. Há, assim, justificado receio de que o bloqueio parcial por parte da operação requerida acabe ocasionando insegurança jurídica e instabilidade nos projetos em curso e nos que ainda irão se iniciar. Nessa modalidade, a embarcação inicialmente empregada no contrato poderá ter que ser substituída no curso do contrato para realização de parte da operação por outra embarcação, ocasionando insegurança jurídica e operacional, com perda de tempo e recursos de todos os envolvidos. A introdução da nova hipótese também tem sido alvo de críticas no setor tendo em vista o trâmite processual que resultou na alteração. Em princípio, a agenda regulatória da própria ANTAQ previa que o assunto somente seria analisado na agenda de 2025-2028, e não na agenda anterior. Nesse contexto, a alteração para inclusão da possibilidade de bloqueio por parte da operação pode demandar uma maior participação dos agentes da indústria que serão por ela afetados. O debate efetivo sobre as consequências das alterações na norma nesse particular, envolvendo os entes regulados e ANTAQ, poderá contribuir para o aperfeiçoamento da resolução. Em conclusão, a nova RN 129/25 da ANTAQ trouxe diversas inovações e alterou de forma considerável a regulação impressa na ora revogada resolução 1 de 2015. Em diversos aspectos, como visto, a norma aprimora conceitos relevantes, reduz a burocracia e introduz abordagens mais modernas e flexíveis. Entretanto, algumas das alterações promovidas, em especial a permissão de bloqueios parciais por parte da operação, parecem demandar maior reflexão e diálogo com os agentes envolvidos, buscando um ponto de equilíbrio que promova um ambiente regulatório que seja, ao mesmo tempo, atrativo para as empresas nacionais e estrangeiras, eficiente e também seguro em todos os seus campos de aplicação.
A navegação de cabotagem é um pilar fundamental da logística nacional. Além de ser um modal eficiente e sustentável para o transporte de cargas ao longo da costa brasileira, ela funciona como um importante instrumento para integrar territórios e promover o desenvolvimento regional. Embora reconhecido seu papel geoeconômico, o setor enfrentou, por muito tempo, desafios como entraves regulatórios, concentração de mercado e a ausência de políticas públicas estruturadas que incentivassem seu crescimento de forma competitiva e sustentável. Nos últimos anos, a cabotagem ganhou destaque na agenda pública voltada para a modernização da matriz de transportes. Esse movimento culminou na promulgação da lei 14.301, de 7/1/22, que instituiu o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, conhecido como Programa BR do Mar. A legislação trouxe um conjunto de medidas para ampliar a oferta de serviços, estimular a concorrência e tornar o setor mais atrativo para investidores privados, especialmente ao flexibilizar as regras de afretamento de embarcações pelas EBNs - Empresas Brasileiras de Navegação. O principal objetivo do programa é simplificar os mecanismos de afretamento, permitindo que EBNs autorizadas possam usar embarcações estrangeiras. Essa medida representa uma mudança importante na política pública voltada à navegação costeira, pois reconhece o afretamento como um instrumento legítimo para ampliar a capacidade instalada, sem prejudicar os requisitos de nacionalidade necessários para a operação. Mais recentemente, o Programa BR do Mar foi regulamentado pelo decreto 1.255, de 2025, que atualizou os parâmetros para sua implementação, reafirmando o caráter facultativo da adesão e definindo os tipos de afretamento permitidos. Esse decreto reforça os pilares da política pública, que são a ampliação da frota mercante nacional e a desburocratização dos procedimentos para a operação de novas embarcações por EBNs habilitadas. O afretamento por tempo, modalidade central do programa, permite maior flexibilidade operacional às empresas brasileiras de navegação. Por meio dele, as EBNs podem contratar embarcações estrangeiras para operar na cabotagem. Contudo, o decreto é bastante claro quanto às condições para esse afretamento, buscando assegurar o cumprimento dos critérios de nacionalidade e controle econômico da frota, em conformidade com a legislação marítima. O Programa BR do Mar tem potencial significativo para impulsionar a economia nacional, promovendo a integração entre portos e regiões costeiras. Ao fortalecer o transporte marítimo de curta distância, diminui-se a dependência do modal rodoviário, reduzindo custos logísticos, o desgaste das rodovias e as emissões de gases poluentes. Além disso, o estímulo à cabotagem gera empregos diretos e indiretos, tanto na construção e manutenção das embarcações quanto nas operações portuárias. A melhora das condições para atuação das EBNs favorece a competitividade do setor e pode atrair investimentos em infraestrutura e tecnologia, com impactos positivos na cadeia produtiva e no desenvolvimento regional. A habilitação no Programa BR do Mar é feita mediante requerimento da empresa interessada, formalizada por ato do ministro de Estado de Portos e Aeroportos, segundo regulamentação específica. Para isso, a empresa deve comprovar autorização da Antaq para operar como EBN na cabotagem, apresentar regularidade fiscal perante a Fazenda Nacional e fornecer dados operacionais periódicos conforme as diretrizes ministeriais. O não cumprimento desses requisitos pode resultar na perda da habilitação, com direito ao contraditório e ampla defesa, e a vedação para novo pedido pelo prazo de dois anos. Uma vez habilitada, a EBN pode afretar embarcações estrangeiras por tempo determinado, visando a ampliação da frota e maior flexibilidade regulatória. O limite para esse afretamento é calculado com base na tonelagem de porte bruto das embarcações próprias, com percentuais diferenciados conforme o perfil de sustentabilidade da frota. O programa também prevê o afretamento para substituir embarcações em construção, seja no país ou no exterior, respeitando limites de tonelagem e prazos máximos de 36 meses, prorrogáveis mediante comprovação do avanço físico da obra. Nessas situações, a embarcação estrangeira não é contabilizada como frota própria para fins legais. Além disso, admite-se o afretamento vinculado a contratos de transporte de longo prazo, com duração mínima de cinco anos e utilização exclusiva de embarcações sustentáveis. Também são previstas operações especiais de cabotagem, analisadas pela Antaq com base em critérios objetivos, como tipo de carga, rotas diferenciadas e ausência de oferta nacional equivalente. Importa salientar que, em todas as modalidades, as embarcações estrangeiras devem pertencer a subsidiárias integrais estrangeiras da própria EBN ou de outra EBN, permanecendo sob sua posse ou propriedade durante todo o período do afretamento, mediante contrato a casco nu devidamente registrado. Ainda, as embarcações afretadas nessas condições não serão computadas como frota própria, e o descumprimento das condições estabelecidas poderá acarretar processos administrativos e até a exclusão da empresa do programa. Por fim, cabe mencionar que ainda está pendente a definição dos critérios técnicos e operacionais que qualificam uma embarcação como sustentável para fins do programa. Embora a lei 9.432/1997 condicione algumas modalidades de afretamento a esses requisitos, o decreto 1.255/25 não especifica os parâmetros, deixando para futura regulamentação pelo Ministério de Portos e Aeroportos, em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a responsabilidade por estabelecer essas diretrizes. Quanto à tripulação das embarcações afretadas pelo programa, o art. 12 do decreto estabelece a obrigatoriedade de comandante e chefe de máquinas brasileiros, assim como dos mestres de cabotagem e condutores de máquinas que constem como tripulantes, independentemente de estarem registrados no cartão de tripulação de segurança, em conformidade com as normas do Conselho Nacional de Imigração. A norma permite, entretanto, que os demais tripulantes sejam estrangeiros. Essa regra não é novidade, mas reacende o debate sobre a regulamentação trabalhista aplicável, especialmente quanto à possibilidade de contratação sob padrões internacionais, em divergência com a CLT. Dada a alta carga de custos da mão de obra marítima no Brasil, o tema permanece sem regulamentação clara, gerando insegurança jurídica para as EBNs. Assim, o Programa BR do Mar representa um avanço importante para a modernização da cabotagem, oferecendo maior flexibilidade operacional e incentivando a expansão da frota nacional. Contudo, aspectos essenciais, como a definição dos critérios para embarcações sustentáveis e a regulamentação trabalhista da tripulação estrangeira, ainda precisam de clareza para garantir segurança jurídica e eficácia na aplicação do programa. O sucesso do Programa BR do Mar depende do compromisso conjunto do governo e do setor privado em superar esses desafios, por meio de diálogo institucional, regulamentação objetiva e políticas públicas que incentivem a inovação e a sustentabilidade no transporte marítimo de cabotagem.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. O presente artigo tem por objetivo analisar a inaplicabilidade do CDC às relações jurídicas decorrentes do transporte marítimo internacional, notadamente quando envolvem contratos de afretamento, transporte regular de carga ou outras operações de caráter comercial entre entes empresariais. A crescente judicialização de controvérsias no setor revela, com frequência, a tentativa de se aplicar o regime protetivo do CDC a relações que, por sua natureza técnica, estrutura contratual e equilíbrio de forças, não se amoldam ao conceito de relação de consumo. Embora o CDC represente importante marco protetivo nas relações assimétricas entre consumidor e fornecedor, sua aplicação pressupõe a presença de elementos específicos como a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica da parte consumidora que não se fazem presentes nas operações marítimas entre empresas de grande porte ou entre agentes com expertise no comércio internacional. A extensão indevida do microssistema consumerista a tais relações implica desconsiderar não apenas a legislação especial aplicável ao transporte marítimo, mas também os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, tão caros ao direito privado A distinção entre relações de consumo e relações comerciais no âmbito do transporte marítimo é, portanto, crucial para a preservação da segurança jurídica, da previsibilidade contratual e da funcionalidade das práticas comerciais internacionalmente consolidadas. A aplicação inadequada do CDC pode resultar na atribuição de ônus desproporcionais a uma das partes, desestruturando os fundamentos contratuais pactuados e criando precedentes que comprometem a eficiência e a estabilidade do setor logístico e portuário. Para ilustrar os reflexos práticos dessa controvérsia e fomentar o debate sobre os limites da aplicação do CDC, o presente estudo analisará dois julgados emblemáticos. A análise comparativa dessas duas jurisprudências permitirá uma reflexão crítica sobre os critérios utilizados pelos tribunais brasileiros para qualificar as relações jurídicas no setor marítimo, evidenciando a necessidade de maior rigor técnico na distinção entre contratos comerciais e relações de consumo, bem como o impacto dessas decisões na prática do direito marítimo nacional. Primeiro Julgado: Transporte Marítimo - Reclamação por Avaria de Carga - Inaplicabilidade do CDC 10.1 RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGAS. AVARIAS. RESPONSABILIDADE CIVIL. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. - Ação ajuizada em 10/2/2006. Recurso especial interposto em 24/7/2012 e distribuído a este gabinete em 25/8/2016. - Inaplicabilidade do CDC, como regra geral, aos contratos de transporte marítimo pela dificuldade de enquadramento como consumidor das partes contratantes. - Ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes para a aplicação da legislação consumerista. - Recurso especial conhecido e provido. (STJ, 1.391.650/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 18/10/2016, DJe 21/10/2016) Segundo Julgado: 10.21 (...) Trata-se de ação de cobrança de valores referentes a despesas de sobre-estadia de contêiner, com base na alegação de que o prazo para a devolução foi ultrapassado, em confronto ao avençado pelas partes. Inexiste relação de consumo a autorizar reconhecimento de vício por força do disposto na relação consumerista. Consumidor, reza o artigo 2º do citado diploma legal, é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. No caso das pessoas físicas, a condição de destinatário final presumida. Porém, no caso de pessoas jurídicas, a presunção é inversa, cabendo à interessada demonstrar tal condição, que no caso, sequer é alegada. Neste sentido julgado publicado na Revista dos Tribunais, volume 763,p. 268/271, cuja ementa transcrevo: "PESSOA JURÍDICA Consumidor Impossibilidade da presunção de ser parte vulnerável na relação de consumo, por se dedicar a atividade produtiva e lucrativa Aplicação da proteção do Código de Defesa do Consumidor que depende da afirmação e demonstração da satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística. Ementa Oficial: Por não presumir parte vulnerável e por se dedicar a atividade produtiva e lucrativa, a pessoa jurídica, por isso mesmo, não se presume consumidora e só terá proteção do Código do Consumidor se afirmar e demonstrar a satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística". Esta é a correta interpretação do disposto no art. 2º do CDC ao incluir as pessoas jurídicas no conceito de consumidores, que reclama atenção à distinção da condição da pessoa física e jurídica na relação de consumo (...). (TJ/SP, Processo 1008181-67.2022.8.26.0562, juiz Joel Alonso Beltrame Júnior, 10ª vara Cível do Foro de Santos, DJ 24/8/2022) No primeiro caso selecionado para análise, o STJ, ao julgar o REsp 1.391.650/SP, firmou entendimento no sentido da inaplicabilidade do CDC às relações de transporte marítimo de cargas, especialmente em contextos nos quais não se comprova a vulnerabilidade da parte contratante. Trata-se de uma ação indenizatória por avarias em carga transportada por via marítima, na qual o Tribunal de origem havia reconhecido a aplicação do CDC à relação contratual firmada entre a parte autora e o transportador, com fundamento na suposta hipossuficiência da demandante. A 3ª turma do STJ, entretanto, reformou o acórdão recorrido ao enfatizar que, como regra geral, os contratos de transporte marítimo não se submetem ao regime consumerista, uma vez que as partes envolvidas normalmente empresas de grande porte ou agentes do comércio exterior não se enquadram na figura do consumidor final, tampouco demonstram a vulnerabilidade necessária à incidência do microssistema protetivo. A relatora, ministra Nancy Andrighi, ressaltou expressamente que "a ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes afasta a aplicação da legislação consumerista", restabelecendo a racionalidade técnica exigida para o tratamento jurídico desse tipo de relação contratual. Esse precedente é especialmente relevante por reforçar a distinção entre relações de consumo e relações empresariais complexas, reconhecendo que o transporte marítimo internacional de cargas se insere no campo do direito comercial e do direito marítimo, os quais possuem normas próprias e consolidadas para regência de obrigações, responsabilidade civil, limitações legais e cláusulas contratuais específicas. A decisão, portanto, coaduna-se com os princípios da segurança jurídica e da especialidade normativa, evitando a sobreposição indevida de regimes jurídicos distintos que poderiam desestruturar as práticas comerciais do setor marítimo. Além disso, o acórdão reafirma a necessidade de análise casuística e técnica para se identificar, com precisão, se há elementos que justifiquem a aplicação do CDC, o que, naquele caso concreto, não se verificou. O segundo caso examinado refere-se a uma ação de cobrança de sobre-estadia (demurrage) de contêiner, proposta com fundamento no descumprimento contratual relativo ao prazo de devolução da unidade. A controvérsia foi submetida à 10ª vara Cível de Santos, que enfrentou a alegação, por parte da ré, consignatária das mercadorias, de existência de relação de consumo capaz de atrair a aplicação do CDC e, consequentemente, mitigar suas obrigações contratuais. O juiz da causa, de forma técnica e alinhada à jurisprudência dominante, rechaçou a incidência do CDC, afirmando expressamente que não se presumem relações de consumo quando envolvidas pessoas jurídicas que atuam com finalidade econômica, especialmente quando a parte interessada não demonstra a condição de destinatária final nem a existência de vulnerabilidade específica. Fundamentando-se no art. 2º do CDC e em julgados doutrinadores, o magistrado destacou que, no caso das pessoas jurídicas, não há presunção de hipossuficiência, sendo necessário comprovar, cumulativamente, os requisitos subjetivos (vulnerabilidade), objetivo (finalidade do serviço) e finalístico (uso como destinatário final), sob pena de se banalizar a proteção consumerista. A decisão valoriza a teoria finalista aprofundada, amplamente adotada pela doutrina e pela jurisprudência, segundo a qual a pessoa jurídica somente poderá ser considerada consumidora quando demonstrar que a aquisição ou utilização do serviço ocorreu fora do seu ciclo produtivo ou empresarial, e que se encontra em situação de desigualdade técnica ou econômica frente ao fornecedor. No caso concreto, nada disso foi demonstrado. Ao contrário, a parte ré figurava como agente ativo da cadeia logística, com pleno domínio técnico sobre os termos do contrato de transporte e armazenagem, razão pela qual não se justificava a incidência de normas protetivas excepcionais. Além disso, a fundamentação do juízo de primeiro grau apresenta relevante contribuição teórica ao reafirmar a necessidade de diferenciar os regimes jurídicos aplicáveis conforme o perfil dos contratantes, resguardando a autonomia das convenções privadas no campo das relações comerciais marítimas. Isso é particularmente importante nas disputas envolvendo sobre-estadia de contêiner, cuja disciplina está associada à eficiência da cadeia de suprimentos e ao uso racional dos ativos logísticos, e que não pode ser comprometida por distorções interpretativas baseadas em um enquadramento jurídico indevido. Este julgado, portanto, confirma a orientação já consolidada no STJ quanto à incompatibilidade estrutural entre as normas do CDC e as operações típicas do comércio marítimo, especialmente quando travadas entre operadores econômicos que atuam com grau equivalente de sofisticação, expertise e poder negocial. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos a dicotomia entre "Contêiner x Mercadoria" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a importância de distinguir corretamente esses dois elementos, de forma que o ônus de um não recaia indevidamente sobre o outro. Para melhor compreensão do tema, serão apresentados dois casos práticos, proporcionando uma análise mais concreta e minuciosa. Ao tratarmos da relação entre carga e contêiner no transporte marítimo, é essencial reconhecer que ambos desempenham funções distintas e possuem naturezas próprias. Essa diferenciação é fundamental para a adequada atribuição de responsabilidades. Se de um lado a mercadoria representa a carga, objeto do transporte, de outro o contêiner representa um acessório do navio, sendo um meio pelo qual o transporte daquela carga é operacionalizado. Assim, eventuais obrigações relacionadas à carga não devem ser automaticamente transferidas ao contêiner, pois a ausência dessa individualização pode levar à imputação indevida de encargos, comprometendo a segurança jurídica e o equilíbrio nas relações contratuais. Conforme estabelece o art. 24 da lei 9.611/1998, o contêiner não deve ser confundido como embalagem da mercadoria. Ele é, na verdade, um equipamento próprio, acessório do navio, utilizado para a unitização de cargas, ou seja, para reunir e acondicionar diferentes volumes em uma única estrutura, facilitando o transporte. Sua principal função é tornar o deslocamento de mercadorias mais ágil, seguro e eficiente, especialmente quando envolve a combinação de modais, como navio, caminhão e trem. Art. 24. Para os efeitos desta lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso. Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo. Diante disso, fica claro que o contêiner é um equipamento acessório à embarcação, destinado exclusivamente ao transporte de cargas, mantendo-se, contudo, juridicamente distinto e independente em relação a elas. Contudo, mesmo com a clareza do exposto acima quanto à distinção entre carga e contêiner, é comum, na prática, que essa separação não seja devidamente respeitada. A carga está sujeita a diversas obrigações legais, fiscais e aduaneiras - como apresentação de documentos no prazo, pagamento de tributos e cumprimento de exigências sanitárias ou ambientais. Quando essas obrigações não são cumpridas, a mercadoria pode ser retida, considerada abandonada ou até mesmo declarada perdida pela Autoridade Alfandegária. Essas medidas são legítimas e fazem parte do poder de polícia do Estado, mas devem se aplicar exclusivamente à carga e aos seus responsáveis legais. No entanto, em razão dessas medidas aplicadas à carga, o contêiner utilizado no transporte frequentemente permanece retido junto com a mercadoria, ainda que não haja qualquer irregularidade que lhe diga respeito, fato que causa inúmeros prejuízos ao transportador. Essa prática atribui ao contêiner - um equipamento logístico auxiliar, com função específica - os impactos de uma sanção que, em termos jurídicos, deveria se limitar à carga. Como resultado, o contêiner fica retido, causando atrasos nas operações logísticas, custos extras, como a cobrança de demurrage (sobrestadia), armazenagem, bloqueio da disponibilidade do equipamento para novos embarques e possíveis disputas entre os diferentes elos da cadeia de transporte. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais tratam da inexistência de vínculo jurídico entre o contêiner e a carga nele transportada. Primeiro Julgado: ADMINISTRATIVO. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. DESUNITIZAÇÃO DE CARGA E DEVOLUÇÃO DE CONTÊINERES. APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE PERDIMENTO DAS MERCADORIAS TRANSPORTADAS EM RAZÃO DE ABANDONO DAS MERCADORIAS IMPORTADAS. LEGITIMIDADE PASSIVA DA AUTORIDADE ALFANDEGÁRIA. CONTÊINERES DE PROPRIEDADE DE SOCIEDADE DE TRANSPORTE MARÍTIMO. RETENÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. (...) 5 - Em relação ao mérito, a controvérsia cinge-se em verificar a legalidade ou não do ato perpetrado pelo Inspetor-Chefe da Alfândega do Porto do Rio de Janeiro, consistente na retenção de contêineres de propriedade da impetrante, sociedade do ramo de transporte marítimo, em razão do abandono das mercadorias transportadas contidas em seu interior pelo importador. 6 - Na hipótese dos autos, após as mercadorias acondicionadas nos contêineres de propriedade da impetrante terem sido descarregadas no Porto do Rio de Janeiro, não foi iniciado pelo importador, dentro do prazo legal, o desembaraço aduaneiro, de modo que as mercadorias 1 foram consideradas abandonadas, sujeitando-se a procedimento administrativo fiscal para aplicação da penalidade de perdimento, o que não justifica a retenção dos contêineres. 7 - O contêiner possui como finalidade a realização de transporte de cargas, não se confundindo com a própria carga ou com a embalagem das mercadorias transportadas, de maneira que não há que falar em identidade entre o contêiner e sua carga, tampouco em existência de relação de acessoriedade entre eles, conforme se depreende do disposto no artigo 24, da Lei nº 9 .611/98. 8 - Mostra-se, pois, ilegal a conduta da autoridade impetrada em penalizar o proprietário da unidade de carga, com a retenção do equipamento, uma vez que a infração foi cometida pelo proprietário da mercadoria importada, devendo apenas este último sujeitar-se aos prejuízos decorrentes da apreensão da carga. 9 - Remessa necessária e recurso de apelação desprovidos. (TRF-2 - AC: 01057197920124025101 RJ 0105719-79.2012.4.02.5101, Relator.: JULIO EMILIO ABRANCHES MANSUR, Data de Julgamento: 17/11/2016, 5ª TURMA ESPECIALIZADA) Segundo Julgado: AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. RETENÇÃO DE CONTAINER. DESCABIMENTO. RECURSO PROVIDO. 1. É iterativa a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o contêiner não é acessório da mercadoria importada e, verificado o abandono ou a perda da carga por infração aduaneira, não se justifica sua manutenção no recinto alfandegado. 2. O fato de o Poder Público não possuir condições para o adequado armazenamento da mercadoria não pode acarretar privação de bens particulares, a não ser que expressamente autorizado por lei. 3. Com efeito, é de exclusiva responsabilidade do importador o desembaraço aduaneiro da mercadoria importada, não se podendo imputar ao transportador ônus decorrente de sua omissão ou das limitações físicas de espaço da agravada em comportar as mercadorias importadas, mesmo porque o artigo 3º do Decreto-Lei nº 116/67 evidencia que "a responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio". 3. Ademais, o responsável pela manutenção e guarda da mercadoria é o recinto alfandegado, o qual inclusive é remunerado para tanto, e não a transportadora. A desunitização no interior do recinto alfandegado em nada prejudica eventual procedimento administrativo. (....) (TRF-3 - AI: 00096396120164030000 SP, Relator: desembargador Federal Marcelo Saraiva, 4ª turma, Data de Publicação: 10/3/2017) Pode-se observar que, no julgado proferido pelo TRF da 2ª região, a Corte concluiu pela ilegalidade da retenção dos contêineres de propriedade da transportadora marítima, em decorrência do abandono da carga pelo importador. O acórdão destaca que a penalidade de perdimento das mercadorias, imposta em razão do não cumprimento, pelo importador, do desembaraço aduaneiro no prazo legal, não justifica a apreensão dos contêineres utilizados no transporte, haja vista que esses equipamentos não devem se confundir com a carga que transportam. O Tribunal reconhece, ainda, que o contêiner é mero instrumento logístico, cuja finalidade é a viabilização do transporte da mercadoria, não havendo qualquer relação de identidade jurídica entre si. Tal entendimento tem como fundamento o art. 24 da lei 9.611/1998. Dessa forma, o entendimento firmado é no sentido de que a retenção dos contêineres se caracteriza como medida ilegal, por impor ao proprietário do equipamento uma penalidade por infração cometida exclusivamente pelo importador da carga. No segundo julgado, o TRF da 3ª região destaca uma questão crucial: a incapacidade do Poder Público em disponibilizar condições adequadas para o armazenamento da mercadoria não pode justificar a retenção ou apreensão de bens particulares, como os contêineres. Essa posição reforça que limitações estruturais ou administrativas da autoridade alfandegária não podem gerar prejuízos a terceiros que não tenham cometido infrações, garantindo a proteção da propriedade privada. O Tribunal reafirma que o desembaraço aduaneiro é responsabilidade exclusiva do importador, cabendo à autoridade alfandegária a guarda e conservação da mercadoria. Portanto, o transportador não deve sofrer penalidades decorrentes de falhas ou limitações no espaço físico do recinto alfandegado, nem da omissão do importador. Assim, os julgados consolidam o entendimento de que o contêiner é juridicamente distinto da carga, e sua retenção indevida configura violação aos direitos do proprietário do equipamento, devendo ser afastada qualquer transferência indevida de ônus. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. _______ 1 Disponível aqui.
A exigência de consulta ao mercado nacional visa a proteger o mercado e as embarcações brasileiras, mas sua aplicação deve observar condições técnicas concretas. A preferência por navios brasileiros não pode ser absoluta e deve observar as necessidades da exploração - inclusive no que diz respeito à capacidade de transporte, por exemplo. I - Introdução: A lógica regulatória do afretamento marítimo A regulação da navegação marítima brasileira reflete uma dualidade essencial: de um lado, a necessidade de integração à logística internacional; de outro, o dever constitucional de proteção à bandeira nacional e à indústria naval, previsto no art. 178 da CF.1 Nesse contexto, o afretamento - ou seja, a contratação de embarcação para transporte mediante pagamento - constitui ferramenta fundamental para a operacionalização do comércio e da logística nacional. Especialmente em setores como a cabotagem, o apoio marítimo e o offshore, é comum que EBNs - Empresas Brasileiras de Navegação contratem embarcações estrangeiras, dada a indisponibilidade de navios nacionais tecnicamente aptos. A relação entre o fretador, "aquele que disponibiliza, total ou parcialmente, a embarcação para afretamento"2 e o afretador, "aquele que tem a disponibilidade da embarcação ou parte dela, mediante o pagamento de taxa de afretamento"3 demanda arcabouço regulatório sólido, que assegure equilíbrio contratual e resguarde o interesse público. Essa possibilidade, contudo, é condicionada à autorização da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, conforme estabelecido no art. 9º, I, da lei 9.432/1997. O objetivo é garantir que a contratação de navios estrangeiros ocorra apenas quando inexistente embarcação brasileira adequada à operação. É justamente para verificar esse requisito que se instituiu o procedimento de circularização - mecanismo regulatório próprio do ordenamento jurídico nacional, voltado à efetivação da prioridade legal da bandeira brasileira. II - O procedimento de circularização: Fundamentos e função A circularização é o procedimento administrativo obrigatório que antecede a autorização para o afretamento de embarcações estrangeiras no Brasil. Previsto na lei 9.432/1997 (art. 9º, I) e regulamentado pela resolução 129/25, dentre outras da ANTAQ, esse mecanismo busca assegurar o cumprimento da prioridade legal conferida a navios de bandeira nacional. Na prática, o procedimento é acionado quando uma EBN manifesta à ANTAQ a intenção de contratar uma embarcação estrangeira. A partir desse momento, outras EBNs podem apresentar embarcações nacionais aptas a executar o serviço - o que, se aceito, "bloqueia" o afretamento pretendido. Essa consulta formal ao mercado é realizada exclusivamente por meio do SAMA - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, plataforma digital da agência reguladora. Mais do que uma exigência burocrática, a circularização materializa a política pública de proteção à marinha mercante brasileira. Seu propósito é duplo: garantir a competitividade das empresas nacionais e incentivar o desenvolvimento da indústria naval, com reflexos diretos na geração de empregos qualificados e no fortalecimento da cadeia logística nacional. O art. 9º, I da lei 9.432/1997 estabelece, de forma expressa, que o afretamento de navio estrangeiro só pode ser autorizado na ausência de embarcação brasileira adequada: "Art. 9º O afretamento de embarcação estrangeira [...] depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos:I - quando verificada a inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido." Essa mesma lógica se reflete no art. 7º4 da resolução 129/25 da ANTAQ, que condiciona a emissão do CAA - Certificado de Autorização de Afretamento à circularização. Realizada por meio do sistema SAMA, a circularização permite que outras EBNs se manifestem apresentando embarcações de bandeira brasileira (Art. 9º da resolução 129/25 da ANTAQ).5 Essa manifestação pode ensejar dois tipos de bloqueio, nos termos do art. 2º, incisos IX e X da resolução 129/25 da ANTAQ:6 Bloqueio firme: A embarcação ofertada é tecnicamente adequada e atende integralmente aos requisitos da operação, sendo o bloqueio reconhecido formalmente pela ANTAQ; e Bloqueio parcial: Atendimento parcial da capacidade requerida - seja em tonelagem, seja em prazo -, em razão da indisponibilidade de embarcação que cubra a demanda por completo. Caso a embarcação nacional indicada em bloqueio firme possua características técnicas equivalentes à estrangeira inicialmente pretendida, a contratação da embarcação brasileira torna-se obrigatória7. A inobservância do procedimento ou sua condução de forma ineficaz sujeita as empresas a sanções administrativas, incluindo multa, cassação de autorização e até declaração de inidoneidade, nos termos da atuação fiscalizatória da ANTAQ. III - Bloqueio parcial: Prioridade interpretada conjuntamente com razoabilidade e proporcionalidade Um dos principais desafios do procedimento de circularização consiste em compatibilizar a prioridade legal conferida às embarcações nacionais com sua efetiva capacidade de atender, de forma segura, eficiente e economicamente viável, à demanda contratual e ao mercado dinâmico em que o afretamento está inserido. A mera disponibilidade formal de um navio de bandeira brasileira não basta. É necessário que a embarcação possua as condições técnicas mínimas para a operação pretendida - como tonelagem compatível, sistemas de posicionamento e manobra, certificações exigidas, aderência aos prazos, localização estratégica e possibilidade efetiva de transporte dos bens ou prestação dos serviços que serão objeto do contrato. Em operações de grande escala ou alta complexidade, é comum que apenas embarcações estrangeiras reúnam todos os requisitos para garantir a integridade e a viabilidade logística da contratação. O problema se acentua nos casos de bloqueio parcial, quando a embarcação nacional indicada não tem capacidade plena de atendimento - seja por restrições de carga, seja por impossibilidade de cumprir a janela operacional exigida. Nessas situações, embora haja formalmente proposta nacional, a substituição integral da embarcação estrangeira revela-se inviável na prática. Ignorar esse descompasso pode comprometer a operação. Um exemplo paradigmático dessa abordagem ocorreu no mandado de segurança 1055843-44.2023.4.01.3400 distribuído perante a 6ª Vara Federal Cível da seção judiciária do Distrito Federal. A ação foi ajuizada após a ANTAQ afastar bloqueio parcial apresentado por uma empresa do ramo de transporte de carga, em circularização conduzida por empresa fretadora, que buscava afretar embarcação para o transporte de produtos siderúrgicos para uma empresa de produção de semiacabados de aço. Na ocasião, a empresa buscava afretar uma embarcação para o transporte de produtos siderúrgicos em território nacional. A empresa fretadora iniciou a circularização e outra EBN apresentou bloqueio parcial, indicando um navio de bandeira nacional. A proposta foi recusada pela fretadora com base em três fatores: (i) a tonelagem e as dimensões da embarcação eram inferiores às demandadas; (ii) a janela de execução era incompatível com o cronograma da empresa produtora de semiacabados; e (iii) a localização do navio inviabilizava o atendimento nos prazos contratuais previamente acordados. Embora a ANTAQ inicialmente tenha reconhecido a validade do bloqueio, reviu sua posição ao analisar medida cautelar apresentada pela fretadora. A Diretoria Colegiada autorizou a contratação do navio estrangeiro. Destacou-se, no voto do relator, que o bloqueio parcial não configura direito absoluto e deve ser sopesado com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Como pontuado:8 "...é forçoso reconhecer que o direito de exercer o bloqueio parcial não é absoluto, pois a reserva do mercado do transporte de cargas na navegação de cabotagem às embarcações brasileiras não deve ser um fator gerador de aumento dos custos para os usuários, nem tampouco impor condições operacionais díspares da demanda objeto de circularização. Assim, quando o bloqueio parcial inviabilizar o transporte integral da carga (com parte da capacidade em tonelagem requerida ou por parte do tempo requerido) é razoável e proporcional, em uma ponderação de valores entre a norma e o caso concreto, que o bloqueio seja julgado não firme por não aderência ao previsto no § 3º do art. 3º da resolução normativa 01-ANTAQ, de 2015." Além disso, dois aspectos técnicos foram decisivos: (i) O levantamento técnico realizado pela área especializada da ANTAQ demonstrou que, no mercado de transporte de produtos siderúrgicos originários de Pecém, a menor operação registrada entre 2022 e 2023 foi de 26,6 mil toneladas. Diante disso, a proposta da empresa que solicitou o bloqueio - limitada a apenas 5,5 mil toneladas - mostrou-se economicamente e operacionalmente inviável tanto para a contratante quanto para a afretadora9; e (ii) "Diante do contexto fático apresentado, a embarcação (...) não conseguirá aportar no Porto de Pecém/CE a tempo de atender à janela de operação registrada no protocolo (...) (entre 1 e 5/6 de 2023); motivo pelo qual deverá ser declarado não firme o bloqueio realizado pela empresa."10 Inconformada, a empresa que solicitou o bloqueio impetrou mandado de segurança, alegando ausência de regular intimação para se manifestar antes da decisão que afastou o bloqueio. Por ordem judicial, a ANTAQ reavaliou o caso, após manifestação da empresa bloqueante mas reiterou a sua improcedência, autorizando a continuidade da contratação de navio estrangeiro. IV - Conclusão Independentemente do mérito das decisões administrativas e judiciais, o caso ilustra um desafio recorrente no setor: a preferência pela bandeira brasileira deve ser relativizada sempre que a embarcação ofertada não atender, de forma plena, aos requisitos técnicos e logísticos da operação. No caso concreto, obrigar o afretador a organizar mais de uma viagem apenas para viabilizar a utilização de navio nacional seria, nas palavras da própria ANTAQ, "inviável economicamente e operacionalmente, tanto para o usuário, quanto para a empresa que procedeu a circularização". A insistência em utilizar uma embarcação inadequada - ainda que formalmente ofertada - pode gerar atrasos, entrega parcial e descumprimento contratual. No caso do aço, por exemplo, trata-se de um insumo essencial a cadeias produtivas estratégicas como a indústria de base, a construção civil e a infraestrutura. Nesse cenário, os efeitos jurídicos são significativos: descumprimento de obrigações contratuais, comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e aumento de custos. Em síntese, portanto, a proteção à bandeira brasileira, embora essencial para o fortalecimento da marinha mercante nacional, deve ser aplicada com prudência. O caso trazido como exemplo evidencia a importância de decisões técnicas rigorosas e céleres, que considerem as particularidades de cada operação. O equilíbrio entre o fomento à indústria nacional e a racionalidade econômica é indispensável para garantir previsibilidade, eficiência e segurança jurídica nas contratações de transporte marítimo no Brasil. ________________ 1 Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.   2 ANTAQ. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Resolução Normativa nº 129 de 5 de junho de 2025. Disponível aqui . Acesso em 19/6/25. Art. 2º, XXIII 3 Ibidem. Art. 2º, II 4 Art. 7º A empresa brasileira de navegação interessada em obter a autorização de afretamento deverá preencher formulário de circularização no SAMA. 5 Art. 9º A EBN interessada em fretar embarcação que atenda ao objeto da circularização nos seguintes prazos contados do envio da circularização: 6 IX - bloqueio firme: procedimento de bloqueio reconhecido como válido pela ANTAQ para o atendimento da circularização, comunicando formalmente às partes envolvidas e informando as razões da decisão;   X - bloqueio parcial: quando o bloqueio se faz com parte da capacidade em tonelagem requerida, ou por parte do tempo requerido, diante da indisponibilidade de embarcações brasileiras para o bloqueio completo; 7 "A ANTAQ, no exercício do seu poder regulamentar, editou a Resolução Normativa nº 01-ANTAQ/2015, na qual estabeleceu que a Empresa Brasileira de Navegação (EBN) interessada em afretar embarcação estrangeira a ser empregada na navegação de apoio marítimo deve realizar o procedimento de Circularização, por meio do qual se permite que outra EBN ofereça embarcação brasileira em condições de atender à navegação de apoio pretendida e, assim, bloqueie o afretamento da embarcação estrangeira, PASSANDO A SER OBRIGATÓRIO O AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO BRASILEIRA. (...), Entretanto, não há qualquer prova de que os princípios da Lei 9.432/1997 tenham sido cumpridos, UMA VEZ QUE NÃO CONSTA NOS AUTOS DEMONSTRAÇÃO DE TER OCORRIDO A CONTRATAÇÃO DE EMBARCAÇÃO BRASILEIRA QUE EFETUOU O BLOQUEIO DA CIRCULARIZAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO À EMBARCAÇÃO OPERADA PELAS AUTORAS. Embora a Petrobras entenda que para a hipótese de encerramento antecipado é suficiente a não obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), não é isso que se conclui pela análise do próprio negócio jurídico realizado entre as partes e especialmente da lei que regula a matéria." (TJRJ, Apelação Cível 0077014-28.2018.8.19.0001, Relator Desembargador Ferdinaldo do Nascimento, 19ª Câmara Cível, j. em 06/10/2020) 8 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71 9 "viagens já realizadas durante o durante o primeiro semestre dos anos de 2022 e 2023 e as práticas de operação do mercado de transporte para produtos siderúrgicos originários de Pecém (não o mercado de afretamento), constante nos parágrafos 12 e 13 do Despacho GAF nº 1943584, observo que a menor operação registrada na pesquisa foi 26,6 mil toneladas, fato que leva este Relator a compreender que uma eventual operação residual de 5,5 mil toneladas seja inviável economicamente e operacionalmente, tanto para o usuário, quanto para a empresa que procedeu a circularização.". 9 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71; 10 Processo SEI ANTAQ nº 50300.008950/2023-71
quinta-feira, 12 de junho de 2025

Direito Marítimo e a "Amazônia Azul"

Em 26/3/2015, a Comissão de Limites da Plataforma Continental ("CLPC"), implementada pela Organização das Nações Unidas ("ONU"), aprovou o pedido do Brasil de acréscimo da sua Plataforma Continental na Margem Equatorial brasileira, região também chamada de "Amazônia Azul". Essa denominação refere-se à toda extensão da jurisdição brasileira sobre o mar, incluindo o Mar Territorial, a Zona Contígua e a Zona Econômica Exclusiva (ZEE), sendo também chamada de a "última fronteira do Brasil", em razão da sua localização ao extremo norte do país.  A ampliação da Plataforma Continental reconhecida pela ONU abrange uma área de impressionantes 360 mil km2. A alcunha "Amazônia Azul" atribuída a essa porção marítima de proporções gigantescas não se dá apenas pelo seu tamanho, mas também por suas características e potenciais únicos. Em termos econômicos, ambientais e até mesmo de segurança nacional, essa vasta extensão marítima ao extremo norte do Brasil possui alta relevância, uma vez que:  Sob o aspecto econômico, a abundância de recursos na região, em especial das gigantescas reservas de óleo e gás e as rotas comerciais marítimas que se utilizam dessa zona marítima com frequência para o comércio internacional de mercadorias tornam essa área de interesse estratégico destacado para o país. Especialmente a foz do Rio Amazonas, que ganhou os noticiários recentemente, mas também a Margem Equatorial como um todo ocuparão papel fundamental na exploração de reservas de óleo e gás ali presentes, a exemplo do ocorrido nos últimos anos no país vizinho, a Guiana, com impactos evidentes para a economia nacional. No que diz respeito à matéria ambiental, é desnecessário lembrar que a plataforma continental é habitat de incontáveis recursos vivos, abrigando sítios ambientais cuja necessidade de proteção é inquestionável. Relacionado ao interesse ambiental, há também o científico, detendo o país exclusividade para a realização de estudos e pesquisas nessa área. Por fim, no âmbito da segurança nacional encontra-se presente não só o dever de fiscalização e prevenção de possíveis ameaças ao país, mas também e igualmente relevante a prerrogativa de negociar com outros Estados acordos e tratados internacionais sobre a realização de atividades da região. O reconhecimento do acréscimo à Plataforma Continental brasileira tem, assim, o potencial de aumentar a relevância internacional do Brasil, devido à possibilidade de acordos internacionais envolvendo os interesses presentes na região.  É possível compreender, desde já, como o acréscimo à Plataforma Continental brasileira na Margem Equatorial impacta diversas áreas da economia, das relações internacionais e governamentais, sendo oportuno abordar brevemente aspectos jurídicos relacionados ao tema, em especial sob a ótica do Direito Marítimo, que interessa mais de perto ao leitor dessa coluna.  Iniciando no campo normativo internacional, vale mencionar que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), celebrada em Montego Bay, em 1982, acrescida do Acordo Suplementar de 1994, trata especificamente da exploração dos recursos das profundezas marinhas em áreas internacionais. A UNCLOS estabelece as bases legais para a delimitação das diferentes zonas marítimas, como o Mar Territorial, a Zona Contígua, a Zona Econômica Exclusiva ("ZEE") e a Plataforma Continental, inclusive a estendida. Essa convenção define os direitos e deveres dos Estados costeiros sobre essas áreas, além de prever mecanismos de resolução de controvérsias e regras específicas para a proteção do meio ambiente marinho, a conservação dos recursos vivos e a pesquisa científica oceânica.  Já no âmbito interno, a matéria é regulada pela Lei n.º 8.617/93, que incorpora as disposições da UNCLOS ao ordenamento jurídico brasileiro e detalha os limites da soberania e dos direitos de soberania do Brasil nas áreas marítimas. A lei disciplina o exercício de atividades econômicas, científicas e ambientais na ZEE e na plataforma continental, incluindo a necessidade de autorização para pesquisas por Estados estrangeiros e empresas, bem como a fiscalização e controle dessas atividades por órgãos federais, com destaque para a Marinha do Brasil.  Além disso, por óbvio, normas ambientais específicas também incidem sobre essas áreas. Para citar apenas uma delas, a Lei nº 6.938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, impõe a exigência de licenciamento ambiental para empreendimentos potencialmente poluidores, como a exploração de petróleo offshore. Nesse sentido, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) tem papel fundamental na emissão de licenças e na imposição de condicionantes ambientais, como foi observado nos debates públicos e nos pareceres técnicos relativos à exploração de petróleo na bacia da foz do Amazonas.  Cabe mencionar, ainda, a atuação da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), órgão responsável pela coordenação das políticas públicas voltadas ao uso sustentável do espaço marinho sob jurisdição brasileira. A CIRM desenvolve o Plano Setorial para os Recursos do Mar (PSRM), instrumento estratégico que orienta as ações do Estado na Amazônia Azul, incluindo aspectos de governança, ciência e tecnologia, defesa, meio ambiente e desenvolvimento econômico.  Nesse cenário normativo multifacetado, observa-se que o reconhecimento do direito brasileiro sobre a Plataforma Continental estendida impõe, simultaneamente, novas responsabilidades e oportunidades. As normas reguladoras setoriais e internacionais não apenas delimitam os espaços de atuação do Estado e da iniciativa privada, como também impõem parâmetros de sustentabilidade, soberania e segurança.  No caso da plataforma continental estendida, que ultrapassa a ZEE, o Estado costeiro tem exclusividade para explorar os recursos minerais e outros presentes no subsolo. O leito marinho e o subsolo da plataforma continental estão regulados, de forma geral, pela lei 8.617/93. Em seus artigos, a Lei trata da Plataforma Continental reafirmando, em seu artigo 12, a soberania brasileira sobre os recursos naturais anteriormente mencionados.  Adicionalmente, os artigos 13 e 14 dessa mesma lei estabelecem a jurisdição e competência da União para regulamentar e autorizar as atividades de perfuração, investigação científica marinha, proteção, preservação do meio marinho e tudo o que concerne às ilhas artificiais, instalações e estruturas ali presentes, incluindo a colocação de cabos submarinos na plataforma continental, atividade que tem assumido maior relevância na área de tecnologia da informação.  Vale ainda mencionar que tramita no Senado Federal o PL 6.969/13 (Lei do Mar), recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados. O projeto pretende criar uma política nacional para a gestão integrada, a conservação e o uso sustentável do sistema costeiro-marinho ("PNGCMar"). Além disso, o projeto traz novos institutos e instrumentos já consagrados internacionalmente, como: a Avaliação Ambiental Estratégica; o Sistema Costeiro-Marinho; o Planejamento Espacial Marinho; e as Áreas Marinhas Protegidas.  Por fim, juntamente com o requerimento pelo acréscimo na Margem Equatorial, o Brasil também pleiteou também a ampliação de sua Plataforma Continental ao longo do litoral Sudeste, em área que se estende até as proximidades do Uruguai - uma solicitação que ainda aguarda análise e deliberação pela Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC). Essa pendência revela que a consolidação dos direitos brasileiros sobre o espaço marítimo é um processo contínuo, técnico e diplomático, que exige persistência estratégica e alinhamento institucional.  Como nota final, o IBGE divulgou em 2024 o mapa do Brasil alterado, um importante marco para o país, compreendendo a extensão terrestre do país, juntamente com o Mar Territorial Brasileiro, a ZEE e a extensão da Plataforma Continental reconhecida pela ONU. A construção jurídica da Amazônia Azul, todavia, não se encerra com essa aprovação recente. Pelo contrário, inaugura uma nova fase na qual o Brasil, agora com direitos ampliados sobre regiões de alto valor estratégico, assume também maiores responsabilidades, sendo fundamental articular os interesses governamentais, ambientais e científicos na região, com os das empresas que certamente desenvolverão atividades econômicas nessa área.
A crescente preocupação com as mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases de efeito estufa tem mobilizado esforços internacionais para a redução de carbono em diversos setores da economia. No caso da navegação, o transporte marítimo responde por cerca de 3% das emissões globais. O transporte marítimo internacional é vital para o comércio global, movimentando mais de 80% do volume de bens comercializados mundialmente. Entretanto, é também um setor que contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa, sendo que a maioria das embarcações utiliza combustíveis fósseis de baixo grau de refino, como o óleo combustível pesado, que contém alta concentração de enxofre e gera grandes volumes de carbono, óxidos de nitrogênio, óxidos de enxofre e material particulado. Os impactos ambientais vão além da contribuição para o aquecimento global, afetando também a saúde humana, especialmente em áreas portuárias densamente povoadas. Neste ensaio, o objetivo é lançar luz sobre os potenciais impactos para a indústria naval, especialmente no contexto brasileiro, os riscos de taxação internacional decorrentes do não cumprimento das metas de descarbonização, considerando a necessidade urgente de investimentos em infraestrutura portuária sustentável, para que o Brasil possa atender às exigências ambientais e se manter competitivo no cenário global. Como consequência desse cenário temos o avanço das políticas ambientais globais e o endurecimento das normas internacionais sobre emissões de gases de efeito estufa, impondo ao setor marítimo uma transformação sem precedentes. A Convenção MARPOL e seus desdobramentos, especialmente no Anexo VI, impõem limites rigorosos à emissão de poluentes pelos navios, com impactos diretos sobre as rotas comerciais e a competitividade dos países exportadores. Nesse contexto, o Brasil, que depende fortemente da navegação para escoamento das suas commodities, encontra-se diante de dois grandes desafios: evitar as barreiras comerciais decorrentes do descumprimento ambiental e preparar a sua infraestrutura portuária para atender às exigências técnicas de uma frota cada vez mais limpa. A IMO - Organização Marítima Internacional tem promovido diretrizes progressivas para reduzir a intensidade de carbono na navegação, destacando-se o CII - Carbon Intensity Indicator e o EEXI - Energy Efficiency Existing Ship Index. Desde 2023, navios são classificados com base no seu desempenho ambiental, o que pode influenciar a autorização de entrada em determinados portos. Além disso, propostas em tramitação no âmbito da União Europeia e de outras jurisdições preveem a imposição de taxas ou tarifas sobre navios e cargas oriundas de países que não cumprirem com os padrões internacionais de emissões, como parte do mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM, na sigla em inglês). Países como o Brasil correm o risco de ver seus produtos taxados, caso os seus portos não estejam habilitados para dar suporte aos navios de baixo carbono. O mecanismo de CBAM - Ajuste de Carbono na Fronteira da União Europeia, em vigor desde outubro de 2023 em fase transitória, impõe a partir de 2026 a obrigatoriedade de compra de certificados de carbono por importadores de produtos intensivos em emissões, tais como aço, ferro, alumínio, cimento, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio. O preço desses certificados será equivalente ao do EU ETS - Sistema de Comércio de Emissões da UE, que em 2023 variava entre 80 e 100 euros por tonelada de CO2. A frota global é composta por diferentes tipos de navios (petroleiros, graneleiros, porta-contêineres, entre outros), com perfis operacionais variados. Isso dificulta a padronização das medidas de eficiência e das tecnologias disponíveis. De fato, nem todos os armadores têm acesso à tecnologia e ao capital necessário para a modernização das suas embarcações ou para adaptá-las às suas operações. A substituição de motores, instalação de sistemas de limpeza de gases (scrubbers) e aquisição de combustíveis alternativos impõem altos custos de transição. Além disso, a operacionalidade também se tornará mais cara, pois o combustível fóssil ainda largamente utilizado representa um custo muito menor do que aqueles considerados verdes. A transição energética mundial traz consigo a exigência de investimentos de grande monta, estimando-se atualmente que até 2030 serão necessários US$ 7,3 trilhões, considerando todos os setores da economia, não limitado ao setor portuário e de navegação aqui analisado. Para o Brasil, que não possui uma política nacional de precificação de carbono, isso significa que os exportadores não poderão deduzir valores pagos localmente, aumentando o custo de seus produtos no mercado europeu. Estimativas indicam que o aço brasileiro poderá enfrentar uma taxa adicional de aproximadamente 3,3 euros por tonelada exportada para a União Europeia, o que impactará sobremaneira a competitividade da produção brasileira no cenário internacional. Os novos parâmetros de exigência para o controle de emissão de gases de efeito estufa representam uma grande mudança no papel desempenhados pelos portos, que deixarão de ser unicamente um apoio logístico para o comércio exterior e o transporte marítimo, para assumir protagonismo como estruturas de suporte ao controle mundial de emissão de poluentes. A atual infraestrutura portuária brasileira apresenta grandes lacunas para o atendimento de navios com demandas ambientais mais exigentes. Ainda são poucos os portos que contam com instalações de cold ironing - sistema que permite ao navio desligar seus motores e conectar-se à rede elétrica terrestre - ou dutos e armazenagem para combustíveis sustentáveis como GNL (gás natural liquefeito), metanol verde ou amônia verde. A ausência desses recursos não apenas compromete o atendimento aos novos padrões da MARPOL, como também expõe o país a sanções indiretas, como a recusa de escalas, aumento de prêmios de seguros e o encarecimento logístico para os exportadores brasileiros. Para evitar a marginalização nos fluxos comerciais internacionais, o Brasil precisa implementar uma política coordenada de investimentos em infraestrutura portuária verde. Isso inclui: Instalações de abastecimento (bunkering) para combustíveis de baixa emissão; Sistemas de fornecimento de energia elétrica limpa nos cais; Equipamentos para captação e tratamento de emissões de navios atracados; Incentivos fiscais e financiamento público-privado para modernização dos terminais. No âmbito regulatório, a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários pode e deve atuar como catalisadora dessa transição, ajustando as normas de outorga e fiscalização para privilegiar empreendimentos alinhados às diretrizes ambientais. Além disso, a introdução de parâmetros ambientais nos contratos de arrendamento e concessão é urgente, vinculando o cumprimento de metas sustentáveis à renovação contratual e à autorização de obras de expansão. A falta de conformidade ambiental poderá gerar custos ocultos para o comércio exterior brasileiro. Produtos agrícolas, minérios e manufaturas que partem de portos sem infraestrutura sustentável poderão ser rotulados como "de alto carbono", impactando acordos comerciais com parceiros como União Europeia e Japão, que exigem rastreabilidade ambiental das cadeias produtivas. A visão acerca do tema precisa ser ampla, merecendo atenção também para a chegada da carga aos portos, privilegiando modais menos poluentes para o escoamento da produção. Uma alternativa estratégica é a criação de green corridors, rotas marítimas sustentáveis conectando portos brasileiros a hubs internacionais que já operam com combustíveis limpos. Parcerias com países desenvolvidos e adesão a iniciativas como o Green Shipping Challenge podem atrair recursos e acelerar a descarbonização do setor. Portos como Roterdã, Hamburgo, Los Angeles e Xangai já investem fortemente nessa direção. Diferentemente do que está em desenvolvimento em diversos países e regiões do mundo, não temos ainda no Brasil um plano unificado, reunindo todos os players do setor em torno da discussão acerca da transição energética, objetivando a descarbonização no âmbito da navegação. Estamos diante de movimentos individualizados, sem a coordenação e integração por uma política nacional abarcando os interesses e objetivos individuais, mas em prol de um bem comum e essencial. O Brasil precisa reagir com celeridade às exigências da MARPOL e às iminentes políticas de taxação ambiental internacional. O risco de exclusão dos fluxos marítimos sustentáveis é real e crescente, e somente com uma infraestrutura moderna, regulação eficaz e planejamento estratégico será possível garantir a competitividade do setor portuário nacional. Investir em sustentabilidade não é apenas uma obrigação legal ou moral, mas uma condição essencial para proteger os interesses econômicos brasileiros no comércio marítimo global._______ IMO (International Maritime Organization). MARPOL - Annex VI: Prevention of Air Pollution from Ships. Disponível aqui. União Europeia. EU Emissions Trading System (EU ETS) for Shipping. European Commission. 2023. Ministério dos Transportes (Brasil). Plano Nacional de Logística Portuária Sustentável (PNLP-S). Documentos técnicos, 2024. LIMA, P.; SOUSA, R. Política Ambiental Internacional e a Taxação de Emissões no Comércio Marítimo. Revista de Direito Marítimo, v. 12, n. 3, 2023. MACHADO, Alexandre. A Revisão do Anexo VI da MARPOL (2025): Governança Ambiental do Transporte Marítimo e os Desafios Logísticos do Brasil. Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos do Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos do Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.  Este artigo tem como objetivo abordar a construção e os reparos navais, começando com um breve panorama histórico. Discutiremos sucintamente o conceito de navio, o papel das sociedades classificadoras e os principais aspectos envolvidos nos contratos de construção e reparação naval. Para exemplificar a relevância e as implicações jurídicas do tema, analisaremos dois julgados, proporcionando uma análise mais detalhada e prática do assunto. A construção naval no Brasil teve início no século XIX, com o estaleiro fundado por Barão de Mauá, em Niterói/RJ. Mas foi apenas a partir da década de 1950, durante o governo Juscelino Kubitschek, que o setor ganhou impulso. Em 1958, com o Plano de Metas, o país passou a investir estrategicamente na indústria naval, por meio do FMM - Fundo da Marinha Mercante e da Taxa de Renovação da Marinha Mercante - depois substituída pelo AFRMM - Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante. Esses incentivos permitiram que, em 1972, o Brasil alcançasse a posição de segundo maior parque industrial de navios mercantes do mundo, atrás apenas do Japão. Entretanto, no final da década de 1970, a combinação de alta inflação, dependência de encomendas do setor estatal, especialmente da Companhia Lloyd Brasileiro, e o foco excessivo no mercado interno marcou o início de uma crise na indústria naval brasileira, que se estenderia por duas décadas. Com capacidade ociosa e dificuldade para competir no mercado internacional, os estaleiros enfrentaram sérias limitações. Custos elevados, alto endividamento, processos produtivos ineficientes, atrasos nas entregas e navios que não atendiam às exigências de um mercado cada vez mais competitivo contribuíram para o declínio do setor. Atualmente, a indústria naval brasileira está em momento de retomada, com investimentos e encomendas a crescer, mas também com desafios a serem superados. Estaleiros especializados em embarcações de apoio marítimo e portuário estão a se destacar com aumentos de produção e expansão internacional. No entanto, alguns estaleiros ainda enfrentam dificuldades, como falta de demanda e processos de recuperação judicial, e a retomada da indústria naval como um todo depende de novos estímulos e investimentos. Nesse cenário de retomada gradual e reestruturação do setor, é importante compreender os elementos jurídicos fundamentais que envolvem a construção naval. Um deles é o próprio navio, que, embora juridicamente classificado como bem móvel, possui características peculiares que o diferencia. Sua possibilidade de ser hipotecado e sua necessidade de ser levado a registro, por exemplo, levam parte da doutrina a considerá-lo um bem móvel sui generis, evidenciando a complexidade das relações contratuais e regulatórias que envolvem sua construção, operação e financiamento. Dentro desse contexto técnico e normativo, destaca-se o papel das sociedades classificadoras. Os navios mercantes utilizados em operações de longo curso, cabotagem ou apoio marítimo e portuário devem ser projetados, construídos, inspecionados e entregues de acordo com as normas estabelecidas por uma sociedade classificadora autorizada pelas autoridades marítimas do país de bandeira. No entanto, a exigência da classificação obrigatória depende do porte da embarcação e do nível de risco que ela representa para a tripulação, instalações portuárias e meio ambiente, sendo dispensada em determinados casos de menor risco ou dimensão. As sociedades classificadoras são entidades técnicas, de natureza privada, que exercem função pública delegada em alguns países, atuando em nome das autoridades marítimas para fins de certificação estatutária. Sua principal função é verificar e atestar a conformidade das embarcações com critérios técnicos nacionais e internacionais, voltados à segurança da navegação, à proteção da vida humana, da propriedade e do meio ambiente. Essa estrutura técnico-regulatória influencia diretamente o modelo contratual adotado na construção naval. A modalidade mais comum, tanto no Brasil quanto no exterior, é a construção por empreitada, regulamentada por uma relação contratual firmada entre o armador e o estaleiro. No âmbito da construção naval, a empreitada geralmente envolve o estaleiro como responsável tanto pelo fornecimento dos materiais quanto pela execução da obra, assumindo integralmente os riscos até a entrega do navio ao armador. Diante dos altos valores envolvidos e da complexidade do processo construtivo é comum que as partes adotem instrumentos contratuais de segurança, como garantias financeiras, cláusulas resolutivas e seguros, com o objetivo de mitigar eventuais prejuízos decorrentes do inadimplemento de uma das partes e assegurar maior equilíbrio e previsibilidade à relação contratual. O TJ/RJ reafirma, conforme o julgado abaixo, que as disposições aplicáveis ao contrato de empreitada se estendem à construção naval, com a obrigação do estaleiro voltada para a entrega do navio conforme os termos acordados (obrigação de resultado). APELAÇÃO. Ação ordinária de cobrança, cumulada com perdas e danos. Reconvenção. Contrato de construção naval. Armadora e estaleiro que o firmaram em duas versões, na mesma data, com valores distintos: o de maior valor, que previa financiamento pelo BNDES, cujo crédito foi aberto na mesma data, tendo sido levado ao registro público competente; o de menor valor não foi registrado, nem aludia ao financiamento do BNDES, todavia foi aquele efetivamente norteador da execução das obrigações avençadas, inclusive quanto ao valor efetivamente pago, ao prazo de entrega do navio e à repactuação de prazos e formas de pagamento. O registro não constitui requisito de validade do contrato de construção naval em face da legislação de regência; não se trata de transferência de propriedade de embarcação, mas de construção de embarcação nova. Prevalência do contrato efetivamente observado pela conduta das partes. Nada obstante a existência de dois termos contratuais, não se configura a litigância de má-fé aventada pelo julgado de piso, dado que, em princípio, ambas as partes pretenderiam beneficiar-se dessa dualidade com o fim de obter-se o financiamento, ao passo que a litigância de má-fé pressupõe o uso do processo por uma das partes em detrimento da outra. Natureza jurídica do contrato de construção naval ajustado entre as partes: contrato de empreitada, também nominado de contrato por escopo, cujo prazo cumpre função meramente moratória, não induzindo a extinção da obrigação se, esgotado o seu termo final, o escopo não se aperfeiçoou integralmente; prorrogação que se impõe, para que se alcance o escopo, no caso, a construção e entrega do navio encomendado, o que não afasta as cominações decorrentes da mora, sindicada a participação de cada contraente para dar-lhe causa. Conjunto probatório exaustivo, integrado por documentos, perícia e testemunhos, a demonstrar atraso de pagamento pela empresa armadora contratante, financiadora da construção, e atraso de execução pelo estaleiro contratado, sem provocar lesão à honra objetiva deste, mas a produzir efeitos patrimoniais atraentes das penalidades moratórias, bem aplicadas pela sentença. Pleitos principal e reconvencional parcialmente procedentes (...). (TJ/RJ, AC, 0003873-97.2005.8.19.0205, Des. Jessé Torres, 2ª Câmara Cível, j. 24/8/11) No âmbito dos contratos de reparo naval, a obrigação assumida pelo prestador de serviço também é de resultado, exigindo-se a entrega da embarcação em condições adequadas para operar. Essa abordagem foi adotada pelo STJ em caso paradigmático, no qual se discutiu a gravidade do descumprimento contratual por parte do estaleiro contratado, diante da reprovação técnica de reparos que inviabilizaram o uso da embarcação pelo armador. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE COBRANÇA. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. REPARO EM NAVIO. REPROVAÇÃO DE PARTE DOS SERVIÇOS REALIZADOS POR AGÊNCIA DE CLASSIFICAÇÃO QUE IMPEDIU A CONCESSÃO DA AUTORIZAÇÃO PARA NAVEGAÇÃO. INADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. RECONHECIMENTO. RECURSO PROVIDO. (...) 2. Devidamente analisada e discutida pelo Tribunal fluminense a questão referente a reprovação, pela agência de classificação, dos reparos realizados no navio, que impediram a concessão da autorização para sua navegação, com fundamento claro e expresso, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há que se falar em violação dos arts. 489 e 1.022, ambos do NCPC. 3. Em decorrência do princípio da boa-fé objetiva, um contratante não pode exigir que o outro cumpra a obrigação que lhe cabe sem antes adimplir a sua (art. 476 do CC/2002). 4. A arguição da exceptio non adimpleti contractus exige que o inadimplemento seja substancial, relevante, a ponto de causar desproporcionalidade na sinalagma entabulada entre os contratantes. 5. Na espécie, diante da necessidade de se realizar reparos em um navio, uma empresa especializada foi contratada para a prestação do serviço e alguns pontos foram reprovados pela agência classificadora, impedindo que a embarcação voltasse a operar, ou seja, o navio não poderia navegar, não serviria sequer para catraia, caracterizando o descumprimento substancial da obrigação pelo prestador do serviço, ensejando o acolhimento da arguição da exceção do contrato não cumprido. 6. Navio que não navega não serve, porque navegar é preciso. 7. Recurso especial provido. (...) Colhe-se do acórdão recorrido que a ela foi contratada para realizar reparos em navio da GLOBAL, tais como trocas de chapas de aço e de válvulas, instalação e remoção de equipamentos, reparos do sistema propulsor e de comando, tratamento, pintura, entre outros (e-STJ, fl. 1.138). Todavia, parte dos serviços foi reprovada pela classificadora Bureau Veritas, (...), o que teria impedido a embarcação de operar (e-STJ, fl. 1.139). O acórdão recorrido também transcreveu parte das respostas do perito aos quesitos apresentados, esclarecendo que muitos serviços contratados não foram realizados (e-STJ, fl. 1.141). Ao final descreveu os serviços e reparos realizados por conta da GLOBAL, mediante contratação de terceiros, que só então obteve a autorização para operar/navegar. Pelas circunstâncias delimitadas pelo acórdão recorrido, observa-se que diante da necessidade de se realizar reparos em um navio, uma empresa especializada foi contratada para a prestação do serviço e alguns itens foram reprovados pela sociedade classificadora, a ponto de impedir que a embarcação voltasse a operar, ou seja, o navio não poderia navegar. E navegar é preciso! Dessa forma, não se pode afirmar que o descumprimento contratual foi mínimo, como concluiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; o inadimplemento foi elevado, grave, substancial, a ponto do navio ser impedido de operar, não poder navegar, não serviria nem sequer para catraia. Navio que não navega não serve. (...) Portanto, se o navio, após a realização dos serviços, não mais servia para o seu propósito, caracterizado ficou o descumprimento substancial da obrigação pela ENAVI, ensejando o acolhimento da arguição da exceção do contrato não cumprido. (STJ, REsp 1907391, Rel. ministro MOURA RIBEIRO, 3ªTURMA, j, 22/6/21) No recurso especial colacionado acima, o STJ entendeu que a reprovação de parte dos reparos pela sociedade classificadora, impedindo a autorização para navegação, configurou inadimplemento substancial da contratada. A Corte reconheceu que a embarcação, ao não atender às condições mínimas de operação, tornou-se inservível ao seu propósito. Com base na quebra do equilíbrio contratual e na violação da boa-fé objetiva, foi acolhida a exceção do contrato não cumprido, autorizando a suspensão das obrigações da parte lesada e eventual indenização. Como destacou o relator, de forma emblemática, "navio que não navega não serve, porque navegar é preciso". Diante da análise das questões jurídicas relacionadas à construção e reparação naval, é possível observar que, tanto nos contratos de construção quanto nos de reparo e modernização de embarcações, a natureza de obrigação de resultado se impõe. Em ambos os casos, o cumprimento integral das obrigações contratuais é fundamental para garantir a funcionalidade das embarcações e a segurança das operações. Além disso, as decisões judiciais demonstram que o descumprimento dos prazos e a qualidade dos serviços prestados geram consequências jurídicas substanciais, evidenciando a importância de um contrato bem estruturado e da vigilância constante sobre o cumprimento das condições acordadas. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo. Para acessar o livro, clique aqui.  __________ 1 Disponível aqui.
Na coluna de hoje, concluímos o tema da "bandeira" das embarcações, iniciado na semana passada. Bandeiras de conveniência Os registros de bandeiras de conveniência também denominados registros independentes, de complacência ou de favor (flag of convenience, flagging out ou flag discrimination) são registros abertos de embarcação. Os registros abertos são caracterizados pela facilidade em se realizar o registro, pelos incentivos fiscais, pela não imposição de vínculo entre o Estado de registro e o navio, pela flexibilidade na fiscalização das embarcações neles registradas, pela legislação menos severa no que diz respeito à segurança e equipamento de bordo. III.2 - Características Os registros de conveniência caracterizam-se pela facilidade e rapidez nos processos de registro. Além disso, pode-se destacar também o fato das taxas de registro (iniciais e de manutenção) serem bem baixas. Também temos a impossibilidade de o governo anfitrião utilizar os navios para propósitos próprios. Destaca-se também a inexistência de legislação ou métodos administrativos destinados ao controle das empresas de navegação. A contabilidade, em geral, não é fiscalizada, sendo a legislação flexível. Do mesmo modo, a legislação trabalhista é favorável. Não há tributação das receitas oriundas da exploração dos navios ou, quando tributadas, os impostos são mínimos. Por esta razão, os países que adotam as bandeiras de conveniência são considerados como paraísos fiscais1. Os registros abertos de BDC - Bandeiras de Conveniência se caracterizam por oferecerem total facilidade para registro, incentivos de ordem fiscal e não imposição de vínculo efetivo entre o Estado de Registro e o navio. Ademais, tais Estados não exigem e nem fiscalizam, com o devido rigor, o cumprimento e a adoção das normas e regulamentos nacionais ou internacionais sobre as embarcações neles registradas. Além das vantagens econômicas oferecidas por tais registros, há em geral legislação e regulamentos menos severos sobre segurança e equipamento de bordo. Não se exige, no mais das vezes, nenhum vínculo efetivo entre o Estado de registro e o navio. Evidentemente, tais facilidades (não exigência de vínculo efetivo e não observância de legislação e regulamentos severos, concernentes à segurança da navegação e obrigação de fiscalizar dos Estados) só são possíveis porque os Estados que concedem a bandeira de conveniência não aderiram (ou, às vezes, simplesmente não cumprem) os preceitos da CNUDM III e de outras convenções internacionais de extrema importância no cenário da navegação, como a MARPOL, SOLAS 1974, CLC/1969, dentre outras. O objetivo de um navio adotar a bandeira de conveniência consiste em estratégia empresarial que visa maior eficiência e lucratividade, uma vez que com isso tem-se a facilitação da competitividade do navio, e o valor do custo do fretamento é menor, haja vista a não aplicação de normas jurídicas restritivas. Nos registros nacionais, em que pese a maior segurança da navegação, há sujeição às normas tributárias, trabalhistas e do meio ambiente, o que aumenta ainda mais o custo do fretamento daquela embarcação. Em consequência, a lucratividade é menor, devido às exigências às quais o navio deve se adequar para conseguir o seu registro e poder assim navegar. Atualmente, os principais países de bandeira de conveniência são: Libéria, Panamá, Honduras, Costa Rica, Bahamas, Bermudas, Singapura, Filipinas, Malta, Antigua, Aruba, Barbados, Belize, Bolívia, Birmânia, Camboja, Ilhas Canárias, Ilhas Cayman, Ilhas Cook, Chipre, Guiné Equatorial, Registro Marítimo Internacional da Alemanha, Gibraltar, Líbano, Luxemburgo, Ilhas Marshall, Ilhas Mauricio, Antilhas Holandesas, San Vicente, Santo Tomé e Príncipe, Sri Lanka, Tuvalu e Vanuatu. Aspectos positivos e negativos da adoção de registros abertos Historicamente falando, a ideia da criação da bandeira de conveniência remonta à II Guerra Mundial e teve sua origem nos Estados Unidos, que autorizou que seus navios adotassem a bandeira panamenha, e dessa forma, pudessem entregar as cargas no Reino Unido, sem que com isso aderissem ao conflito contra  sua vontade. Acontece que, após a guerra, os benefícios puramente econômicos do sistema panamenho tinham se tornado evidentes: permitir à indústria do transporte marítimo evitar os altos custos com a contratação de tripulações americanas, permitir a redução do fardo que representavam os regulamentos mais exigentes, limitar as consequências financeiras de um eventual naufrágio ou perda do navio. Neste contexto competitivo, é menor a influência do "direito-custo", ou seja, das normas de direito que interferem no custo do frete, em especial as normas trabalhistas, tributárias e relativas à segurança marítima e poluição marinha. Neste contexto, a adoção de Bandeira de Conveniência consiste em estratégia empresarial que visa maior eficiência e lucratividade. Prepondera o entendimento segundo o qual a competividade internacional das empresas de navegação restaria comprometida se, a contrario sensu, os navios se submetessem à adoção de registro nacional em seus respectivos países. Ao fazê-lo, consequentemente, estariam sujeitos à legislação do país de bandeira, o que importaria em maiores despesas advindas do "direito-custo" (principalmente legislação e encargos tributários e trabalhistas), entraves burocráticos, subordinação a rigorosas normas de segurança da navegação ou ainda entraves políticos. Com efeito, os navios que arvoram pavilhões de conveniência não integram, de modo efetivo, a economia dos Estados de registro, não servem a seu comércio exterior nem são, para tais países, positivamente produtores de divisas, salvo no concernente aos direitos de inscrição. Efetivamente, tais navios não frequentam, com regularidade, seu porto de matrícula. Ao contrário, realizam o chamado "tráfico de terceira bandeira", ou seja, promovem um tráfico marítimo estranho à mobilização do comércio exterior do país cuja bandeira arvoram. Em consequência, as possibilidades concretas do controle, fiscalização e inspeção do navio por parte das autoridades do Estado de registro são praticamente inexistentes. Além desses aspectos negativos, ocasionados pela navegação de navios com registros abertos, destacam-se também os desastres marítimos. Em decorrência dessas catástrofes, surgiram reações contrárias aos registros abertos, sobretudo, em relação às bandeiras de conveniência, já que as evidências mostraram que os maiores problemas em relação aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e internacionais da navegação ocorreram com navios que ostentavam tais bandeiras. Atualmente, verifica-se um cenário complexo, de grande dependência do transporte marítimo de outras bandeiras, violação da concorrência leal pelas bandeiras de conveniência, os cartéis na indústria de transportes marítimos e omissão dos governos em combatê-los, o que inibe o desenvolvimento das empresas de navegação de países em desenvolvimento, que é dinâmico e de alto risco. A questão da bandeira de conveniência é um tema de grande relevância econômica e estratégica. De um lado, os armadores defendem-na em face da redução de custo que proporciona, de outro lado, os trabalhadores e governos criticam-na tendo em vista os baixos salários e más condições de trabalho e a evasão de tributos. Na visão de Souza, há muitos nomes para bandeira de conveniência: "Bandeiras de Conveniência, bandeiras de necessidade, bandeiras transfugas, bandeiras piratas são os pavilhões que oferecem facilidades para os armadores registrarem seus navios nesses países."2 O mesmo autor entende que as características comuns nos países que oferecem tais bandeiras são: "a) O país autoriza cidadãos não-residentes a serem armadores e/ou controlarem seus navios mercantes; b) o registro é fácil de obter, pois um navio pode se registrar no estrangeiro, não restando a transferência sujeita a qualquer restrição; c) o rendimento obtido pela exploração dos navios não está sujeito a qualquer imposto ou sujeito a impostos insignificantes; os direitos por matrículas e uma taxa anual, calculada sobre a tonelagem do navio, são, em geral, os únicos encargos existentes; d) o país de matrícula é uma pequena potência que não tem, nem terá necessidade, em qualquer circunstância previsível, dos navios registrados; e) as receitas obtidas pelas taxas, embora pequenas, aplicada sobre uma tonelagem importante, tem uma influência valiosa na economia do país; f) é livremente permitida a contratação de tripulações estrangeiras; g) o país não tem poderes, nem estrutura administrativa, para fazer cumprir os regulamentos e convenções internacionais; h) o país não tem desejo, nem condições de controlar as companhias."3 Na esteira desse pensamento, é lógico concluir que os mais prejudicados com o uso das bandeiras de conveniência são os tripulantes, os Estados que deixam de arrecadar tributos, a segurança da navegação e o meio ambiente. No que tange, em especial, aos tripulantes, podem ainda ser citadas as seguintes desvantagens: (...) problemas trabalhistas, tripulantes sem qualificação profissional, competindo com marítimos autênticos e oferecendo seu trabalho por menores salários e condições de trabalho inferiores; instabilidade no trabalho. Os tripulantes são desembarcados em qualquer lugar e abandonados à própria sorte; inexistência de contrato de trabalho com cláusulas claras e às vezes até escritos em idioma diferente daquele do tripulante; problemas econômicos. Muitas vezes são pagos salários abaixo dos estipulados para nacionais do país do armador; não se pagam feriados, não há direito a férias. Muitas vezes a transferência de pagamento para os familiares (consignação) não é remetida; muitas vezes os pagamentos são efetuados em moedas diferentes das estipuladas em contratos, (...) em razão de o tripulante estar submetido a períodos intensos de navegação e trabalho, estão mais sujeitos a doenças e acidentes. (...) A diminuição de custos devido ao não pagamento de impostos, taxas, salários, encargos sociais etc., cria uma concorrência desleal para com os armadores que ostentam bandeiras do seu próprio país." As convenções da OIT no mundo do shipping vêm trazendo a lume uma série de regras e princípios que visam enfrentar estes problemas. As convenções 108/1958 e 185/2003 foram adotadas pela OIT - Organização Internacional do Trabalho com vistas à padronização e à facilitação dos trâmites de embarque e desembarque, trânsito e repatriação de marítimos. Todavia, como decorrência das normas essenciais do Direito Internacional Público, tais convenções vinculam apenas seus Estados Partes, ou seja, não podem ser exigidas de um navio arvorando a bandeira de um Estado que não manifestou sua adesão. O Brasil ratificou ambos os instrumentos, porém a convenção 185 ainda não foi promulgada por decreto presidencial, de modo que, formalmente, ainda não tem validade no âmbito interno. Contudo, os portos têm admitido sua aplicação e constantemente aplicado multas aos navios de bandeiras cujos Países não sejam signatários das convenções 108 e 185 da OIT. Além dos baixos padrões de segurança, os sindicatos dos trabalhadores marítimos criticam os baixos salários e as condições de trabalhos dos tripulantes, especialmente não oficiais, dos navios de bandeira conveniência. Diante disso, a ITF - International Transport Workers'Federation , entidade sindical que congrega a maioria dos sindicatos de trabalhadores marítimos, para combater tal prática, criou o Blue Certificate Issuance, como forma de reduzir tal nível de exploração. Os navios que possuem esse certificado se comprometem a dar condições mínimas de salário e qualidade no trabalho. Não obstante, a ITF enfrenta um dilema, porque, ao mesmo tempo em que objetiva acabar com as más condições de trabalho nos navios de bandeira de conveniência, tem arrecadado muitos recursos para seu fundo, possivelmente, a maior fonte de receita da ITF. Dessa forma, se a ITF conseguisse simplesmente extinguir as bandeiras de conveniência, eliminaria a sua principal fonte de riqueza. Ainda no que tange à segurança da navegação marítima, a maioria dos acidentes da navegação envolve navios de bandeiras de conveniência (open registries). Embora tais países, em muitos casos, sejam partes das convenções sobre segurança marítima, simplesmente não exigem ou implementam tais padrões (standards) de modo que muitos navios que se registram em tais países são perigosos e abaixo do padrão (substandards). Vale mencionar o acidente ocorrido em 1978, no litoral da França, com o navio petroleiro Amoco Cadiz, de bandeira de conveniência, vez que registrado nas Bahamas, mas de propriedade norte-americana. Esse acidente foi o maior derramamento de óleo já registrado até aquela data, e as comunidades locais e o Governo Francês processaram a empresa nos Estados Unidos. Após 14 anos, obteve-se uma indenização, em valores atualizados, de cerca de 190 milhões de euros. Os acidentes ocorrem bem mais entre os navios de bandeira de conveniência. Em 2001, 63 % de todas as perdas em termos de tonelagem ocorreram em 13 países de bandeiras de conveniência. Os cinco maiores são Panamá, Chipre, São Vicente, Camboja e Malta. Existindo uma regulação internacional do transporte marítimo, a mitigação dos problemas ocasionados pelas bandeiras de conveniência exige uma postura ativa do Governo brasileiro na OMC, a fim de aplicar sanções aos países que as concedem. No entanto, com a criação da ANTAQ e edição da lei 8.884/1994 (lei de defesa da concorrência), o Brasil possui instrumentos legais e institucionais (CADE) que podem contribuir para aplicar sanções a empresas que violam o princípio da concorrência leal. Uma forma eficaz para combater tais problemas seria a difusão da fiscalização, inclusive com poder de detenção do navio, realizada pelo "Port State Control". O Brasil procurou se inserir nesta questão de forma positiva, através da adoção do já mencionado REB - Registro Especial Brasileiro pela lei 9.432/1997. Trata-se de uma estratégia para incentivar a adoção da bandeira nacional, mas respeitando-se padrões mínimos de respeito à segurança da navegação e à proteção dos trabalhadores e do meio ambiente. Assim, incentivados por essas novas regras, no ano 2010, ocorreu o lançamento do primeiro navio portas-contêiner construído inteiramente no Brasil. Denominado de Jacarandá e construído pelo EISA - Estaleiro Ilha S.A., com verbas do FMM - Fundo da Marinha Mercante, a pedido da empresa de logística "Log-In", esse lançamento foi uma demonstração clara do quanto uma legislação mais atenta aos acontecimentos globais pode colaborar para o desenvolvimento e reconhecimento do país no cenário internacional. Não apenas no setor houve comemorações, o REB também trouxe benefícios aos armadores e tripulantes das embarcações com bandeira nacional, pois possibilitou a contratação dos marítimos sob a proteção da própria legislação trabalhista nacional (CLT) garantindo-lhes condições humanitárias. Conclusão O objetivo de um navio adotar a bandeira de conveniência consiste em estratégia empresarial que visa maior eficiência e lucratividade, uma vez que com isso tem-se a facilitação da competitividade do navio, e o valor do custo do fretamento é menor, haja vista a não aplicação de normas jurídicas que implicam custos maiores. O uso das bandeiras de conveniência é um meio de o proprietário alcançar lucros e facilidades fiscais, além de vislumbrar vantagens jurídicas no tocante à frágil aplicação das normas legais. Esse registro, segundo os setores mais críticos da doutrina, seria conveniente para o proprietário do navio ou armador, e não para o Estado de registro, que não internaliza nenhum capital e sequer tal fato contribui para o comércio exterior daquele determinado país.  Por outro lado, porém, se tal visão extremada fosse inteiramente correta, não haveria tantos países interessados em conceder bandeiras de conveniência.  Além disso, a criação de segundos registros por vários países, dentre os quais o Brasil, como forma de deter a fuga de registros para bandeiras de conveniência, não tem se mostrado totalmente eficaz. As evidências, com o aumento expressivo da quantidade de navios registrados em tais bandeiras de conveniência desde 1960, comprovam tal assertiva. Por sua vez, o estudo da legislação mostra que a difusão da fiscalização do Port State Control pode contribuir também para o aumento da segurança marítima. Trata-se, na verdade, de uma diferente abordagem para o problema: em vez de combater as bandeiras de conveniência, ou lutar para que seus concedentes exerçam uma fiscalização mais efetiva no porto de matrícula, os Estados passam a exercer uma efetiva fiscalização nos seus próprios portos, exigindo o respeito às normas de segurança da navegação e do meio ambiente.  Trata-se de forma mais inteligente e efetiva de resguardar os valores envolvidos, pois enquanto for vantajosa, na esfera comercial, a prática das bandeiras de conveniência, qualquer medida internacional para impedi-las carecerá de efetividade.  Nada obstante, não se pode também abandonar totalmente a atuação em nível internacional, via OMC, do Brasil e dos países prejudicados pela ação das bandeiras de conveniência, por violação do GATS - Acordo Geral sobre Serviços, de modo a abordar a questão das bandeiras de conveniência sob a ótica da proteção à livre e leal concorrência. Por tudo o que foi visto, a questão parece se reconduzir à velha balança regulatória: quanto mais regulação estatal, maiores os custos, quanto menos regulação estatal, maiores os riscos aos valores comuns a toda a Humanidade, como a segurança, o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores.  Como lembra Sergio Guerra: "O fenômeno da Regulação, tal como concebido nos dias atuais, nada mais representa, pois, do que uma espécie de corretivo indispensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e deformações do regime capitalista. De outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por este mesmo capitalismo."4 Nesse contexto, mesmo abstraída a carga pejorativa - muitas vezes injusta - atribuída às "bandeiras de conveniência", tal instituto continua favorecendo um deficit normativo que pode, em certas situações, expor a risco a proteção dos valores acima citados, além de propiciar concorrência desleal. Já o instituto do "segundo registro", quando bem aplicado e fiscalizado, pode representar um efetivo avanço e incentivo à indústria naval e à navegação em geral, uma vez que os Estados podem transigir naquilo que não afeta diretamente a coletividade (reduções tributárias e regulatórias, e especialmente diminuição da burocracia e simplificação de procedimentos), ao mesmo tempo em que mantém sob controle o respeito às normas de segurança da navegação e da proteção do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores marítimos. Por fim, a prática do Port State Control, embora não dirigida diretamente à questão dos registros abertos, acaba se mostrando um excelente caminho para mitigar os problemas que podem advir do abuso das bandeiras de conveniência. ___________ ANJOS, José Haroldo dos. O contrato de trabalho dos marítimos nas embarcações estrangeiras. In: CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino. Direito marítimo, regulação e desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, direito marítimo e perspectivas num mundo em reforma da ordem internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2004. GUERRA, Sérgio. Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de Direito Marítimo, v. 1.2ª. ed. Barueri: Manole, 2005. MONTIEL, Luis Beltrán. Curso de derecho de la navegación. Buenos Aires: Astrea, 1976. SANTOS, Theophilo de Azeredo. Direito da navegação (marítima e aérea). 2ª. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 1968. SOUZA, François Armand de. Noções de Economia dos transportes marítimos. ___________ 1 Cabe observar que, no Brasil, a expressão "paraíso fiscal" ficou estigmatizada, especialmente pelo público leigo, como algo relacionado à ilicitude.  Entretanto, sua utilização aqui é feita no sentido original, de um Estado que oferece facilidades tributárias para atrair capitais estrangeiros, não necessariamente ligados a atividades criminosas ou ilícitas. 2 SOUZA, François Armand de. Noções de Economia dos transportes marítimos, p. 79 e passim. 3 Ibidem. 4 GUERRA, Sérgio. Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 24.
Introdução: Natureza jurídica do navio A classificação jurídica dos bens vem se modificando, constantemente, em virtude de critérios econômicos. A enorme importância que alguns bens, como navios e aeronaves, foram conquistando, provocou a diferenciação civilista entre bens imóveis, móveis e móveis sujeitos à matrícula. No âmbito da natureza jurídica do navio, surgem dois elementos fundamentais: o enquadramento como bem móvel de natureza sui generis e a configuração de res conexa, um todo composto de várias partes e diversos acessórios, assinalando, assim, que a sua natureza jurídica é complexa. O navio é uma coisa composta, integrada por partes ou elementos passíveis de individualização ou separação e, simultaneamente, está provido de unidade orgânica. Além de coisa composta, o navio é bem móvel, ainda que passível de hipoteca. Ademais, a natureza peculiar do navio faz com que seja suscetível de matrícula, registro e embandeiramento, ou seja, atribuição de uma nacionalidade.  No ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com o art. 82 do CC, o navio deve figurar entre os bens móveis. Pode-se afirmar, inclusive, que, em decorrência da sua própria função e estrutura, o navio não pode ser considerado um bem imóvel, tendo em vista que flutua, navega e desloca-se de um local para o outro, evidenciando todas as características dos bens móveis. Entretanto, não obstante a sua caracterização como bem móvel, por vezes circunstâncias impostas legalmente, como no caso da hipoteca naval, na hipótese da venda judicial e ainda relativamente aos trâmites concernentes ao registro e à transferência de propriedade, evidenciam o caráter peculiar do navio, distinto dos demais bens móveis. Assim, possui uma natureza especial, o que leva alguns autores a classificá-lo como coisa móvel sui generis. O motivo para esse tratamento deve-se ao fato de que, realmente, o navio é um bem móvel, porém, é especial, uma vez que possui elevado valor econômico e importância para o desenvolvimento da economia. Todo navio tem denominação própria e é vinculado a um determinado porto, estando sujeito a um registro especial; tem nacionalidade e domicílio, identificação e especialização; sendo considerado, ainda, projeção do território nacional no mar, sujeito a legislação específica. Diante de tais características, a lei 7.665/88, que regula o registro da propriedade marítima no Brasil, permite que a hipoteca ou outro gravame real recaia sobre a embarcação, ainda que em fase de construção. Entretanto, isso só é possível porque as embarcações, como são bens muitíssimo valiosos e facilmente identificáveis, oferecem as condições necessárias para assegurar o pagamento de uma dívida. Definição e tipos O registro da propriedade das embarcações determina a sua nacionalidade. Efetuado o registro, a embarcação estará habilitada a arvorar o pavilhão do Estado de registro, além de ter a proteção no alto-mar e outras vantagens inerentes à nacionalidade. Hasteando a bandeira de uma nação, o navio passa a ser parte integrante do território dela, nele dominando as suas leis e as convenções internacionais ratificadas pelo Estado de Registro. A CNUDM - Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar III, em seu art. 91, exige que haja um forte elo de ligação entre o Estado e o navio, preconizando que Estados signatários deverão estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade às embarcações, para o registo no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira. Destarte, os navios possuem a nacionalidade do Estado cuja bandeira esteja autorizados a arvorar, devendo existir, em princípio, um vínculo substancial entre o Estado do registro e o navio. Infere-se que o princípio da nacionalidade dos navios apresenta dicotomia de aspectos:  o aspecto de Direito interno, que concerne às condições que fixa cada Estado para outorgar o uso de seu pavilhão e  o aspecto atinente ao Direito Internacional e que, coincidentemente, condensa um recurso técnico que visa organizar a juridicidade no alto-mar, atrelando a conduta nos navios ao ordenamento do Estado da bandeira. Considerando as condições e pressupostos adotados pelos diversos países, os registros das embarcações podem ser classificados em Registros Nacionais e em Registros Abertos. Nos Registros Nacionais, o Estado que concede a bandeira mantém um efetivo controle sobre os navios nele registrados, mantendo-os atrelados à sua legislação. Especificamente quanto ao registro nacional brasileiro, as embarcações estão sujeitas à inscrição nas capitanias dos portos, delegacias ou agências, que são os órgãos de inscrição, ou no Tribunal Marítimo, conforme o seu tipo e dimensões, excetuando-se as abaixo relacionadas:  as da Marinha do Brasil;  as embarcações miúdas, sem propulsão a motor;  os dispositivos flutuantes infláveis, sem propulsão, destinados a serem rebocados, com até 10 m de comprimento. Por ocasião do registro/inscrição será emitida a PRPM - Provisão de Registro de Propriedade Marítima ou o TIE - Título de Inscrição de Embarcação, respectivamente. Enquanto o processo de registro estiver tramitando no Tribunal Marítimo será emitido o DPP - Documento Provisório de Propriedade. Os Regimes Abertos se dividem em Registros de Bandeira de Conveniência e Segundos Registros. Os BDC - Registros Abertos de Bandeiras de Conveniência se caracterizam por oferecerem total facilidade para registro, incentivos de ordem fiscal e a não imposição de vínculo efetivo entre o Estado de registro e o navio. Ademais, tais Estados, em muitas situações, não exigem e nem fiscalizam, com o devido rigor, o cumprimento e a adoção das normas e regulamentos nacionais ou internacionais sobre as embarcações neles registradas. Cabe registrar, desde logo, que a expressão "bandeira de conveniência" possui certa carga pejorativa, no sentido de que tal instituto seria apenas uma "fuga" das regulamentações presentes nos ordenamentos estatais e internacional. Tal crítica, no entanto, deve ser relativizada, uma vez que, ao menos em tese, é possível instituir regimes mais favoráveis, especialmente sob o ponto de vista tributário e regulatório, sem prejuízo à segurança da navegação e do meio ambiente. A maior evidência desta afirmação está no fato de que, como será visto adiante, muitos Estados com forte tradição marítima criaram o "segundo registro", como forma de flexibilizar as exigências legais e evitar a perda de sua frota para países que concedem "bandeiras de conveniência". Por outro lado, o Segundo Registro ou Registro Internacional ("Second Register" ou "Off Shore Register"), foi criado em alguns países visando resguardar a sua frota mercante, oferecendo vantagens similares às bandeiras de conveniência. O Segundo Registro é concedido por países que já possuem registro nacional, a navios de sua nacionalidade ou de outras, oferecendo vantagens similares às concedidas por bandeiras de conveniência. Submete o navio a todas as leis e convenções internacionais concernentes à segurança da navegação, excetuando, em alguns países, as leis trabalhistas, subvenções e incentivos concedidos aos navios do registro nacional. Alguns países, como Dinamarca, Portugal, Bélgica, Inglaterra, Alemanha e Brasil, permitem um segundo registro quando o navio registrado em um país é afretado a casco nu a empresa de outro país. Destarte, o país da empresa afretadora pode permitir o uso de sua bandeira, desde que não haja incompatibilidade de leis entre o país de origem e o país da empresa afretadora. Há somente dois tipos principais de registros de navios: ou ele é registrado como de bandeira nacional ou ele está no registro aberto. Há sutis diferenças entre um segundo registro e entre uma bandeira de conveniência, porém ambos são registros abertos. O Segundo Registro tem suas particularidades, que variam de nação a nação, porém numa coisa eles diferem das bandeiras de conveniência, que é o grau de exigências, quanto a níveis e padrões de operação e segurança. Para perceber a ideia da importância destes institutos, tome-se como exemplo a Alemanha: os armadores alemães detêm a maior frota mundial de navios porta-contêineres, sua parcela do mercado mundial é de 37,2%. A marinha mercante alemã controla 3.011 navios e está entre as mais modernas e seguras do mundo. Entretanto, somente 570 deles (aproximadamente 19%) navegam com bandeira alemã, os demais o fazem sob bandeiras de conveniência. A vasta maioria das Unidades MODU (Plataformas de petróleo, FPSO, Navios Sonda, e barcaças), estão sob registros de conveniência, inclusive no Brasil. Segundo Registro: Características, exemplos e países que o adotam Como regra geral, o navio só pode ter uma única nacionalidade, cujas exigências de registro são determinadas pelo Estado que concederá o pavilhão.  O segundo registro foi criado em alguns países, visando resguardar sua frota mercante e o oferecimento de vantagens similares às bandeiras de conveniência. Esse tipo de registro geralmente é concedido por países que já possuem registro nacional a navios de sua nacionalidade ou de outras, e que auferem vantagens similares às concedidas por bandeiras de conveniência.  Nesse sentido, vale registrar que países que antigamente tinham grande frota mercante e viram seus navios transferirem-se para bandeiras de conveniência resolveram criar um segundo registro, que denominaram registro internacional, em comparação com o normal, chamado de registro nacional ou primeiro registro. O objetivo é que, oferecendo quase as mesmas vantagens de bandeiras de conveniência, os navios de propriedade de armadores de sua nacionalidade voltassem a se inscrever no país, nesse segundo registro.  A inscrição em segundo registro não suprime o registro de propriedade marítima e tem caráter complementar. É a orientação que se extrai, por exemplo, da lei 9432/97, em seu art. 11, § 11, e da lei 7.652/88. Todavia, a adoção de segundo registro não consagra a dupla nacionalidade do navio. O registro inicial, isto é, o primeiro registro, o registro nacional da propriedade marítima, será suspenso e o navio passa a integrar a frota mercante do Estado de segundo registro.  Entretanto, é possível citar a existência de opinião doutrinária em sentido contrário, que assevera que o segundo registro importa em dupla nacionalidade do navio, a saber:  "o navio de dupla nacionalidade é um caso mais raro; como exemplo, um navio é registrado num país e depois afretado a casco nu  para empresa de outro país. Havendo compatibilidade das leis, o país da empresa afretadora pode permitir o uso de sua bandeira, sendo, neste caso, o navio registrado em particular em departamento referente aos afretamentos a caso nu1 (...). Alguns autores consideram como navio de dupla nacionalidade aquele em que o elo de ligação navio-Estado é muito fraco, como ocorre com os navios de bandeira de conveniência."2 Em regra, o segundo registro submete o navio a todas as leis e convenções internacionais concernentes à segurança da navegação, excetuando, em alguns países, as leis trabalhistas, as subvenções e os incentivos concedidos aos navios do registro nacional. Alguns países, como Dinamarca, Portugal, Bélgica, Inglaterra e Alemanha permitem um segundo registro, v.g., o navio registrado em um país e afretado a casco nu a empresa de outro país. Destarte, o país da empresa afretadora pode permitir o uso de sua bandeira, desde que não haja incompatibilidade de leis entre o país de origem e o país da empresa afretadora.  O navio que navegar com mais de um pavilhão é considerado, pelas convenções de Genebra sobre alto-mar (CNUDM I e II) e pela a CNUDM III, como um navio apátrida, sem nacionalidade.    Os segundos registros de maior importância no cenário mundial são o NIS - Registro de Navio Internacional Norueguês (Norwegian International Register) e o DIS - Registro de Navio Internacional Alemão (Deutshe International Register).  O Brasil também instituiu o segundo registro - denominado REB - Registro Especial Brasileiro, pela lei 9.432/97. O Brasil ampara a hipótese de embarcações estrangeiras adotarem a bandeira brasileira sob contrato de afretamento a casco nu, por empresa brasileira de navegação, condicionado à suspensão provisória de bandeira no país de origem.    Podem ser listadas como as principais vantagens do REB os seguintes fatores:  O financiamento à empresa brasileira de navegação para construção, conversão, modernização e reparação de embarcação pré-registrada no REB com taxa de juros semelhantes à de embarcação para exportação, a ser equalizada pelo Fundo da Marinha Mercante; a garantia às empresas brasileiras de navegação da contratação, no mercado internacional, de cobertura de seguro e resseguro de cascos, máquinas e de responsabilidade civil para suas embarcações registradas no REB, desde que o mercado interno não ofereça tais coberturas ou preços compatíveis com o mercado internacional; a desconsideração pelas empresas brasileiras de navegação das remunerações recebidas pelas tripulações das embarcações inscritas no REB; no montante que servirá de base ao pagamento da contribuição para o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo; a não integração do frete aquaviário internacional, produzido por embarcação de bandeira brasileira registrada no REB, como base de cálculo para tributos incidentes sobre importação e exportação de mercadorias pelo Brasil; a isenção das embarcações inscritas no REB do recolhimento da taxa do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo; a equiparação de construção, conservação, modernização e reparo de embarcações pré-registradas ou registradas no REB à operação de exportação; a isenção de contribuições atinentes ao PIS/PASEP e ao Cofins sobre a receita do frete de mercadorias transportadas entre o país e o exterior; a autorização de restabelecimento de registro brasileiro como de propriedade da mesma empresa nacional de origem, sem incidência de impostos ou taxas pelas empresas brasileiras de navegação, com subsidiárias integrais proprietárias de embarcações construídas no Brasil, transferidas de sua matriz brasileira.  Além das vantagens já enunciadas, destaca-se, ainda, a vantagem relativa à nacionalidade da tripulação. Nas embarcações registradas no REB serão necessariamente brasileiros apenas o comandante e o chefe de máquinas.  Trata-se de vantagem comemorada pelos armadores, por se entender que não haveria a necessidade de contratação de marítimos sob a égide da legislação trabalhista brasileira, o que representaria relevante redução de custos. Todavia, inobstante a permissividade da lei no que tange à contratação apenas do comandante e do chefe de máquinas brasileiros, a norma aplicável aos contratos de trabalho continua sendo a legislação do Estado de Bandeira, in casu, CLT e normas correlatas. Na próxima coluna, em prosseguimento, abordarei as chamadas "bandeiras de conveniência".  _________ 1 Afretamento a casco nu é o contrato de afretamento em virtude do qual o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação. Nesse sentido, ver Lei n. 9.432/97, artigos 2º, 3º e 9º.  2 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
A Emenda Constitucional 132/23 ("EC 132/2023") e a Lei Complementar 214/25 ("LC 214/2025") instituíram uma profunda reforma na tributação sobre o consumo no Brasil. Entre outras mudanças, a reforma substituirá tributos como ICMS, ISS, PIS e COFINS pelo Imposto sobre Bens e Serviços ("IBS") e pela Contribuição sobre Bens e Serviços ("CBS"), ambos estruturados no modelo de imposto sobre valor agregado ("IVA"), inspirado nas experiências europeias e em outros países ao redor do mundo.   Um dos pontos mais sensíveis para o setor marítimo, especialmente aquele relacionado à cadeia econômica de exploração e produção de petróleo e gás, é o impacto dessas mudanças sobre os contratos de afretamento de embarcações.  No regime atual, os contratos de afretamento - seja a casco nu, por tempo ou por viagem - não devem ser tributados por ICMS ou ISS, conforme reconhecido pelo STF, na ADI 2779, e pelo STJ, no EREsp 1.054.144.   A jurisprudência tem entendido que nos contratos de afretamento em geral, definidos no artigo 2º da lei 9.432/1997, verifica-se, predominantemente, uma obrigação de dar, semelhante a existente nos contratos de locação, por meio do qual a embarcação fretada é disponibilizada para o afretador.  Assim, não há uma transferência mercantil da propriedade da embarcação ou a prestação de um serviço previsto na lista anexa de serviços da LC 116/03. Isso tem afastado a tributação desses contratos tanto pelo ICMS, quanto pelo ISS.  Mesmo quando se verificam outras obrigações no contrato de afretamento, além da disponibilização da embarcação, como no caso do fornecimento da mão de obra da tripulação ou mesmo da manutenção da embarcação, não há fato gerador do ICMS e do ISS. O contrato de afretamento é uno e incindível, não podendo ser mutilado para fins tributários.  Todavia, o espectro de incidência do IBS e da CBS é muito mais amplo, e essa abrangência tem suscitado algumas dúvidas sobre a incidência desses novos tributos sobre os contratos de afretamento.  A EC 132/23 alterou a Constituição de 1988 e incluiu o artigo 156-A, que confere competência ao legislador complementar para instituir um imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, estipulando que esse tributo "incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços" e também sobre a "importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou de serviços realizados por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja sujeito passivo habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade".  A LC 214/25, em seu artigo 4º, estabelece a incidência do IBS e da CBS sobre operações onerosas com bens ou serviços, incluindo, expressamente, a locação.  Isso tem gerado dúvidas quanto à extensão desses tributos, levando alguns a concluir, de forma apressada, que o afretamento estaria automaticamente sujeito aos novos tributos.  A resposta a essa questão, entretanto, exige análise mais cuidadosa, guiada pelas normas constitucionais e legais que regem a nova tributação, notadamente levando em conta as particularidades dos contratos de afretamento.  Em linhas gerais, na indústria do petróleo e gás, os contratos de afretamento são celebrados entre empresas fretadoras brasileiras e armadores estrangeiros. O ingresso desses bens no Brasil se faz sob o amparo do Regime Aduaneiro Especial de Exportação e Importação de Bens Destinados às Atividades de Pesquisa e Lavra das Jazidas de Petróleo e de Gás Natural ("Repetro"), que admite diferentes modalidades de importação ou de admissão temporária de bens com suspensão de tributos.  A legislação do Repetro atualmente em vigor suspende tributos como II, IPI, PIS/COFINS-Importação e o ICMS em casos de afretamentos de embarcações específicas, que ingressam temporariamente no país, e são destinadas às atividades de exploração de petróleo e gás.  Pelo texto da nova legislação, em especial o artigo 93 da LC 214/25, o IBS e a CBS também estarão suspensos na hipótese em que a lei denomina de "importação de bens destinados às atividades de exploração, de desenvolvimento e de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos previstas na legislação específica, cuja permanência no País seja de natureza temporária, constantes de relação especificada no regulamento".  Essa disposição legal cumpre o mandamento constitucional do artigo 156, § 5º, VI, que trata da necessidade da lei complementar dispor sobre diferimento e desoneração do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais.  Assim, em princípio, embarcações afretadas no exterior que atualmente ingressam no país sob o regime do Repetro, conhecidos no jargão do mercado como "bens repetráveis", também poderão ingressar em território nacional e aqui operar com suspensão de IBS e de CBS, a partir do momento em que esses tributos começarem a vigorar.    Esse tratamento diferenciado evita um enorme impacto que a reforma tributária poderia ter sobre o setor. O Repetro é fundamental para a manutenção das atividades de exploração e lavra de petróleo no País e para garantir nossa segurança energética. Trata-se de uma indústria que demanda investimentos bilionários e de alto risco. A tributação elevada de CBS e IBS poderia funcionar como uma barreira alfandegária intransponível para o ingresso de bens em valores bilionários como plataformas de petróleo e navios-sonda no país.  Em tese, caberá ao regulamento listar esses "bens repetráveis". Na nossa visão, por força do princípio da legalidade tributária, que, por ser garantia fundamental, não foi, nem poderia ser flexibilizado pela reforma tributária, a função do regulamento é puramente expletiva. Isto é, evidenciar e dar publicidade sobre os bens que são importados com essa finalidade e devem ser objeto de suspensão desses tributos. O regulamento não poderia criar nem restringir o tratamento tributário previsto na lei.  Logo, os bens, em especial as embarcações afretadas e utilizadas nessas atividades, devem necessariamente estar sujeitos à suspensão do IBS e CBS, não havendo incidência desses tributos no caso desses afretamentos.  No caso de outros afretamentos internacionais de bens que não se qualifiquem como "repetráveis", poderá haver algum tipo de controvérsia sobre a incidência desses tributos. No entanto, em se tratando de contratos internacionais de afretamento para uso temporário de embarcações no país, é de se cogitar o próprio cabimento da cobrança de IBS e CBS.  Isso porque a CF/1988 prevê que, em operações realizadas no plano internacional, o IBS e a CBS incidem no caso de "importação" de bens. Todavia, o contrato de afretamento não se qualifica juridicamente como uma importação de bem, já que o bem não ingressa em definitivo no território e na economia nacional, sendo apenas utilizado pelo fretador durante a vigência do contrato de afretamento. Não há, tecnicamente, "importação" do bem, no sentido constitucional do termo, a atrair a incidência desses tributos sobre o consumo.  A questão da tributação desses contratos internacionais de afretamento é, aliás, um tema frequentemente debatido no Direito Tributário Internacional. A própria Diretiva IVA que trata do afretamento de navios que navegam em águas internacionais estabelece a isenção de IVA no transporte internacional, havendo, inclusive, precedentes do Tribunal de Justiça Europeu sobre controvérsias na aplicação dessa norma comunitária.  A reforma tributária tem por premissa racionalizar e simplificar a tributação no Brasil, sem implicar o aumento da carga tributária. Por isso, por mais que se verifique uma ampliação do espectro dos tributos atualmente em vigor, como o IBS e CBS, isso não significa necessariamente uma tributação sobre os contratos de afretamento. Existem particularidades nesses contratos e nas normas que disciplinam esses tributos, de tal sorte que essas atividades essenciais para a exploração e produção de petróleo e gás deveriam, a rigor, seguir desoneradas também desses novos tributos.
Em recente julgamento proferido nos autos da apelação cível 1023520-26.2024.8.26.0100, a 12ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP revisitou a discussão acerca da eficácia de cláusula de arbitragem em face de seguradora sub-rogada nos direitos de contratante de transporte marítimo de cargas. Na hipótese, a relação entre as partes era derivada de um contrato global de prestação de serviços de transporte marítimo, firmado entre multinacional de grande porte econômico, fabricante de transformadores industriais, com agente de cargas internacional, especializado na logística e transporte de "carga-projeto".  Na oportunidade, os I. Julgadores reafirmaram um ponto que entendemos ser crucial para o setor de seguros e transporte marítimo, qual seja o de que a seguradora sub-rogada nos direitos do segurado deve respeitar a cláusula de arbitragem, firmada no contrato de transporte. No acórdão restou destacado que a sub-rogação transfere integralmente os direitos e obrigações do segurado, incluindo a submissão ao procedimento arbitral, destacando para tanto a ciência prévia da seguradora acerca das condições pactuadas pelo segurado. Esse entendimento está alinhado com precedentes do STJ e Tribunais de Justiça de outros Estados, por bem como o art. 757 do CC, que define o contrato de seguro como aquele em que a seguradora assume riscos previamente delimitados. No caso em análise, a seguradora, após indenizar sua segurada, ajuizou ação regressiva contra a transportadora, buscando recuperar o valor pago pelo sinistro. No entanto, no contrato de transporte marítimo havia cláusula de arbitragem internacional estipulada, estabelecendo que eventuais disputas deveriam ser resolvidas no juízo arbitral de Londres, conforme as regras da ICC - Câmara de Comércio Internacional. A seguradora, defendendo a sua posição, alegou que não poderia ser obrigada ao cumprimento dessa cláusula, pois não foi parte do contrato de transporte. No entanto, os D. Julgadores rejeitaram a tese, destacando que a seguradora tinha plena ciência da cláusula de arbitragem pactuada antes de assumir o risco. No v. acórdão enfatizou-se: "Num negócio desse porte, certamente a seguradora ponderou os riscos do contrato envolvendo transporte internacional, até mesmo para a adequada precificação do prêmio e da indenização." O mencionado trecho reflete uma questão relevante, pois não se pode alegar surpresa quanto a uma cláusula expressa em um contrato do qual a seguradora conhecia previamente os termos. Além disso, a decisão reforça que a seguradora não pode escolher quais cláusulas do contrato original deseja herdar. Se o segurado contratou com a estipulação da cláusula de arbitragem, a seguradora herda esse compromisso junto com os demais direitos e obrigações. Nesse sentido, é a afirmação contida no v. acórdão: "É da essência da sub-rogação que o sub-rogado receba o direito como ele se apresenta. Com todas as garantias, mas também com todas as limitações." Importante salientar que a seguradora somente integrou o litígio em razão da existência do contrato firmado pelo segurado, sendo portanto de rigor o respeito aos seus respectivos termos, destacando-se aqui a autonomia da vontade das partes que elegeram a via arbitral para a solução das suas disputas. Tal hipótese está prevista no Código Comercial brasileiro, a teor do seu art. 728: "Pagando o segurador um dano acontecido à coisa segura, ficará sub-rogado em todos os direitos e ações que ao segurado competirem contra terceiro; e o segurado não pode praticar ato algum em prejuízo do direito adquirido dos seguradores." A partir do texto legal acima, nota-se que o legislador foi muito claro ao afirmar que o segurador sub-rogado tem os mesmos direitos e ações que teria o segurado em face do terceiro. Isto decorre de uma razão muito simples: O segurado não pode transferir ao segurador mais direitos e ações do que lhe competia originariamente.  E isso é corroborado no texto do CC, a teor dos arts. 349 e 786: Artigo. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida contra o devedor principal e os fiadores.  (.) Artigo 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.  Assim, o julgamento consolidou o entendimento de que o contrato de seguro não pode ser interpretado de maneira isolada em relação ao contrato de transporte, pois a seguradora tinha ciência dos riscos e das regras envolvidas na contratação exercida pelo segurado. Como já mencionado acima, a v. decisão também se fundamentou na regra do art. 757 do CC, que define o contrato de seguro da seguinte forma: "Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados." A letra da lei deixa claro que o seguro não pode ser dissociado das condições previamente estabelecidas no contrato original. Quando a seguradora aceita dar cobertura a determinado risco, ela assume também as limitações contratuais e os procedimentos previamente pactuados pelo segurado. Nesse ponto, a v. decisão asseverou que a arbitragem não foi uma imposição unilateral do transportador, mas uma cláusula previamente acordada e conhecida por todas as partes envolvidas: "A seguradora, ao aceitar garantir o transporte marítimo, assumiu também a submissão à arbitragem, pois se trata de um risco calculado e previamente delimitado no contrato de transporte." Portanto, ao precificar o prêmio e definir a cobertura, a seguradora já sabia que eventuais litígios deveriam ser resolvidos através de arbitragem, não podendo submeter a disputa ao Judiciário brasileiro. Esse raciocínio é reforçado pela jurisprudência do STJ, que tem decidido de forma consistente que a seguradora sub-rogada deve respeitar as cláusulas contratuais pactuadas pelo segurado, incluindo a eleição de foro e a arbitragem. O entendimento ora reiterado no TJ/SP, segue os precedentes consolidados do STJ, que já analisou casos semelhantes e reafirmou a necessidade de cumprimento das cláusulas contratuais previamente pactuadas, como segue: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO SUCESSIVO DE CONVERSÃO EM PERDAS E DANOS. CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. 1. Ação ajuizada em 19/07/2013. Recurso especial concluso ao gabinete em 03/07/2017. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal é definir se a presente ação de obrigação de fazer pode ser processada e julgada perante a justiça estatal, a despeito de cláusula compromissória arbitral firmada contratualmente entre as partes. 3. A pactuação válida de cláusula compromissória possui força vinculante, obrigando as partes da relação contratual a respeitar, para a resolução dos conflitos daí decorrentes, a competência atribuída ao árbitro. 4. Como regra, diz-se, então, que a celebração de cláusula compromissória implica a derrogação da jurisdição estatal, impondo ao árbitro o poder-dever de decidir as questões decorrentes do contrato e, inclusive, decidir acerca da própria existência, validade e eficácia da cláusula compromissória (princípio da Kompetenz-Kompetenz). 5. O juízo arbitral prevalece até mesmo para análise de medidas cautelares ou urgentes, sendo instado o Judiciário apenas em situações excepcionais que possam representar o próprio esvaimento do direito ou mesmo prejuízo às partes, a exemplo da ausência de instauração do juízo arbitral, que se sabe não ser procedimento imediato. 6. Ainda que se admita o ajuizamento - frisa-se, excepcional - de medida cautelar de sustação de protesto na Justiça Comum, os recorrentes não poderiam ter promovido o ajuizamento da presente ação de obrigação de fazer nesta sede, em desobediência à cláusula compromissória firmada contratualmente entre as partes. 7. Pela cláusula compromissória entabulada, as partes expressamente elegeram Juízo Arbitral para dirimir qualquer pendência decorrente do instrumento contratual, motivo pela qual inviável que o presente processo prossiga sob a jurisdição estatal. 8. Recurso especial conhecido e não provido. (REsp nº 1.694.826/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 13/11/2017) O julgamento do caso 1023520-26.2024.8.26.0100 no TJ/SP, confirmando o mesmo entendimento da jurisprudência do STJ e Tribunais de Justiça de outros Estados brasileiros, reforça a importância do respeito ao exercício pleno da autonomia da vontade das partes contratantes, que renunciaram ao juízo estatal em favor do procedimento arbitral para a solução dos conflitos, bem como do conhecimento prévio dos termos e condições contratados pela seguradora, que não pode alegar ser mero terceiro e, portanto, imune aos respectivos efeitos jurídicos.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema das "cláusulas arbitrais" no contexto dos contratos de transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto. Os contratos de transporte marítimo são firmados em larga escala e ao redor de todo o mundo, abrangendo operações complexas que envolvem diversas partes, como armadores, afretadores, operadores portuários e seguradoras. Dada a natureza transnacional dessas relações, é essencial que os envolvidos tenham segurança e previsibilidade quanto às obrigações assumidas e aos meios disponíveis para resolver eventuais disputas. A incerteza quanto à jurisdição competente ou ao direito aplicável pode gerar custos elevados e comprometer a eficiência das operações. Nesse contexto, a arbitragem se destaca como uma alternativa eficiente, oferecendo um procedimento célere, especializado e adaptado às particularidades do setor marítimo. A arbitragem é amplamente adotada nos contratos de transporte internacional devido à sua flexibilidade e confiabilidade, além de ser bastante tradicional na seara do direito marítimo. Os tribunais arbitrais costumam ser compostos por especialistas na matéria, o que permite uma análise mais técnica das questões envolvidas, reduzindo riscos de decisões que desconsiderem as práticas comerciais do setor. No Brasil, a lei de arbitragem (lei 9.307/1996) e o CPC reconhecem a validade das cláusulas compromissórias e estabelecem que a existência de convenção arbitral impede a apreciação da demanda pelo Judiciário, salvo em hipóteses excepcionais. Isso reforça a segurança jurídica dos contratos e a confiança dos agentes do mercado marítimo na arbitragem como um meio eficaz de solução de controvérsias. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre o tema das cláusulas de arbitragem nos contratos de transporte marítimo. Primeiro Julgado: AÇÃO DE REGRESSO. Seguro. Transporte multimodal de mercadoria. Acidente. Perda total da carga. Arbitragem. Cláusula compromissória estipulada no contrato de prestação de serviços firmado entre a operadora do transporte (ré) e a empresa segurada. Cláusula que também vincula a seguradora (autora). Precedente deste Tribunal. Sentença reformada para julgar extinto o processo sem resolução do mérito, com base no art. 267, VII, do CPC. Recurso provido. (TJ/SP; Apelação 0149349-88.2011.8.26.0100; Relator (a): Tasso Duarte de Melo; 12ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 11/2/15) Segundo Julgado: Pretensão regressiva fundada em sub-rogação - Transporte marítimo internacional de cargas - Cláusula compromissória - Sub-rogação legal do segurador, de maneira integral, envolvendo os créditos do qual o credor sub-rogado teria direito, bem como de todas as obrigações, principais e acessórias, decorrentes do contrato - Convenção privada inserida no instrumento por meio da qual as partes se comprometem a submeter previamente à arbitragem os litígios que possam vir a surgir - Competência exclusiva - Arts. 4ª, 8º, 32, I e 33, da lei 9.307/1996 (lei de arbitragem) e art. 853, do Código Civil - Possibilidade de exame pelo Judiciário somente de questões formais, a respeito da validade, existência e nulidade da sentença arbitral (...). (TJ/SP; Apelação 1009026-77.2015.8.26.0002; Relator (a): César Peixoto; 38ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 17/8/16) Ao analisar o primeiro julgado, é possível observar a existência da cláusula arbitral no contrato de transporte marítimo, de modo que o Tribunal que a seguradora se subroga nos direitos e ações que competiam ao segurado, em todos os seus limites, incluindo-se, portanto, a cláusula de arbitragem. Neste sentido, é certo que a decisão em comento está de acordo com o entendimento do STJ no recurso especial de 1.988.894, já tratado em artigo anterior publicado nesta coluna 2, por meio do qual a Quarta Turma da Corte Superior entendeu pela vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte. Isso porque, de acordo com a Corte Superior, a cláusula compromissória não é condição personalíssima da parte segurada e, segundo os art.s 349 e 786 do Código Civil, a sub-rogação transfere os aspectos materiais e processuais da relação originária. Assim, para que essa transmissão ocorra, é essencial que seja possibilitado à seguradora ter conhecimento prévio da cláusula compromissória no contrato de transporte ao qual se dará cobertura, e tal disposição não implica diminuição dos direitos ou ações da segurada, pois integra o risco segurado. Além disso, a Corte Superior discorreu, ainda, sobre a impossibilidade de afastamento da cláusula arbitral pelo segurado subrogado, visto que "implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga 3." Deste modo, é certo que na subrogação não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, não podendo a seguradora, que decide dar cobertura a um determinado contrato, pretender posteriormente não se vincular aos direitos e obrigações dispostos naquele contrato. Logo, de acordo com o julgado em estudo, o subrogado não pode adquirir mais direitos que os originalmente transmitidos, visto que a cláusula compromissória prevista no contrato de prestação de serviços vincula igualmente a seguradora. Sobre isso, é amplo o entendimento do STJ, no qual mantém a posição de que o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado. Veja: AGRAVO INTERNO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE FORNECIMENTO DE MOTORES. DEFEITO NO MOTOR . CONTRATO DE SEGURO. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURADORA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA PACTUADA ENTRE SEGURADA E UM CONSÓRCIO DE EMPRESAS . 1. A controvérsia reside em saber se a cláusula compromissória instituída no contrato de fornecimento de equipamentos deve produzir seus efeitos na relação jurídica agora existente entre os litigantes da presente ação regressiva, por força da sub-rogação operada pelo art. 786 do Código Civil. 2 . O acórdão recorrido está em consonância com o entendimento da Quarta Turma do STJ, no julgamento REsp 1.988.894/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, que, a despeito de a sub-rogação legal em favor da seguradora não importar transmissão automática de cláusula compromissória, a ciência prévia da seguradora a respeito de sua existência no contrato objeto de seguro-garantia resulta na submissão à jurisdição arbitral . 3. No caso dos autos, o acórdão recorrido afirmou que a seguradora tinha conhecimento das regras de contratação. Alterar essa conclusão colidiria com a súmula 7/STJ. Agravo interno improvido. (STJ - AgInt no AREsp: 2273766 RJ 2023/0001678-6, Relator.: ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 3/6/24, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 5/6/24); AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO. CONTRATO. CLÁUSULA DE COMPROMISSO ARBITRAL . PERDA DA CARGA. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA À SEGURADA. SUBROGAÇÃO DA SEGURADORA. SUBMISSÃO AO JUÍZO ARBITRAL NA DEMANDA QUE BUSCA RESSARCIMENTO DA CAUSADORA DO SINISTRO . AGRAVO DESPROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. O acórdão objeto do recurso especial concluiu ser da praxe de contratos de transporte internacional que conste a cláusula compromissória arbitral, fazendo parte, portanto, do risco calculado da seguradora, em casos deste jaez, sendo certo ainda que, na espécie, tinha a ora recorrente (seguradora) conhecimento de referida estipulação, o que legitima ser-lhe oponível aquela cláusula . 2. Ao assim decidir, coloca-se em consonância o Tribunal de Justiça com julgados das duas Turmas que compõem a Segunda Seção. 3. Agravo interno desprovido . Recurso especial da seguradora desprovido. (STJ - AgInt no REsp: 1637167 SP 2016/0294173-4, Relator.: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 26/2/24, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/2/24); AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TRANSPORTE MARÍTIMO. SEGURO . CLÁUSULA ARBITRAL. SUB-ROGAÇÃO. PRECEDENTE. 1 . A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assentou que a seguradora se sub-roga nos direitos e ações que competiam ao segurado, incluída a cláusula de arbitragem. 2. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1958434 SP 2021/0133656-2, Relator.: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 12/8/24, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/8/24); O segundo julgado reforça a prevalência da cláusula compromissória arbitral em contratos de transporte marítimo internacional de cargas, mesmo em demandas propostas pelo segurador subrogado. A decisão se alinha à interpretação dos dispositivos da lei de arbitragem (lei 9.307/1996), especificamente os arts. 4º, 8º, 32, I e 33, e do arti. 853 do Código Civil, estabelecendo que o compromisso arbitral deve ser respeitado pelas partes e que o Poder Judiciário somente pode analisar aspectos formais da arbitragem, como validade, existência e nulidade da sentença arbitral. No caso concreto, a subrogação operada pelo segurador não altera ou afasta a incidência da cláusula compromissória arbitral, uma vez que o subrogado assume integralmente não apenas os créditos originários do credor primitivo, mas também todas as obrigações principais e acessórias, em seus estritos limites, o que inclui a cláusula arbitral. Veja-se que o julgado destaca que a cláusula arbitral é uma convenção privada entre as partes que, respaldada pela lei, deve prevalecer. Dessa forma, a decisão também demonstra consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, preservando a autonomia da vontade das partes contratantes e respeitando a aplicabilidade da arbitragem, como no caso das seguradoras sub-rogadas. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no livro de "Jurisprudência Marítima", que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui. ___________  1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
quinta-feira, 20 de março de 2025

Criação de turmas no Tribunal Marítimo

O Tribunal Marítimo é um órgão autônomo, vinculado ao Comando da Marinha do Brasil, que auxilia o Poder Judiciário com a função de julgar acidentes e fatos da navegação em águas brasileiras, que envolvam tripulantes nacionais ou embarcações de bandeira brasileira. As decisões desta Corte administrativa possuem valor de prova técnica e são alcançadas através de um julgamento colegiado realizado por um corpo técnico multidisciplinar composto por seis desembargadores com diferentes expertises, sob a presidência de um desembargador-presidente, que é vice-almirante da Marinha de guerra. Em 18/5/21, foi promulgada a atual versão do RIPTM - Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo, que disciplina sobre a composição e competência desta Corte, bem como estabelece ritos processuais e o julgamento dos feitos da sua competência legal, além de fixar procedimentos administrativos pertinentes ao órgão. Originalmente, essa versão do RIPTM determinava que os Inquéritos conduzidos pelas Capitanias dos Portos, delegacias e agências, após suas conclusões, deveriam ser distribuídos a um desembargador-relator e um desembargador-revisor, sendo julgados em sessão do Pleno, mediante decisão por maioria dos votos, com a presença de, no mínimo, cinco desembargadores, incluído o desembargador-presidente1. Ocorre que, com o intuito de aprimorar a sua atuação e garantir maior eficiência na tramitação dos processos, o Tribunal Marítimo implementou uma importante alteração no RIPTM: a criação de duas turmas de julgamento.  Segundo a resolução TM 65/24 de 19/12/24, cada turma será composta por três juízes. Os parágrafos 2º e 3º do art. 2-B dispõem que a primeira turma comportará um desembargador especializado em Direito Marítimo, um desembargador capitão de longo curso da marinha mercante brasileira e um desembargador do corpo de engenheiros e técnicos navais, subespecializado em máquinas ou casco. Já a segunda turma, será composta por um desembargador especializado em Direito Internacional Público, um desembargador especialista em armação de navios e navegação comercial e um desembargador do corpo de armada. Diferentemente das sessões do Pleno, em que o desembargador-presidente detinha o voto de desempate "voto de minerva", a nova resolução estabelece que a sua função é exclusivamente presidir as turmas, sem direito a voto. Na sua ausência, a presidência caberá ao desembargador mais antigo da turma2. Segundo o art. 41-A3 da alteração procedimental, visando disciplinar as decisões das turmas, foi determinado que elas devem contar com a participação e o voto de todos os seus três integrantes. Caso haja três votos divergentes, o processo será remetido ao Pleno para nova votação. Ademais, em complemento ao objetivo da criação das turmas de julgamento de acelerar a tramitação processual, aprimorar a organização dos julgamentos e proporcionar maior celeridade e eficácia na análise dos casos, essa mudança na regulamentação processual almejou também de fortalecer o duplo grau de jurisdição. Isso porque, a resolução prevê, em seu art. 143-A4, a possibilidade de interposição de recurso ordinário direcionado ao Pleno contra acórdãos proferidos pelas turmas. Essa nova modalidade recursal implementada pelo Tribunal Marítimo possui uma hipótese de cabimento amplo, sendo possível o seu manejo sempre que a parte interessada discordar da valoração realizada pela turma. Nesse ponto, importante rememorar que, antes da alteração regimental, em face de um acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo, seria apenas possível a oposição de embargos de declaração, caso houvesse omissão, obscuridade ou contradição na decisão, ou então de embargos infringentes, caso o v. acórdão não fosse unanime, ou se fossem identificadas provas ou fatos novos, que não foram apreciados pela decisão. Ou seja, o único recurso com objetivo precípuo de reformar o acórdão tinha hipótese de cabimento restrito, não estando ao alcance de todos os representados, que não dispunham deste instrumento processual, caso fossem condenados à unanimidade e não houvesse fatos ou provas novas. Assim, com a alteração implementada pela Corte Marítima, passou a ser garantido o duplo grau de jurisdição a todos os envolvidos em fatos e acidentes da navegação sem qualquer restrição ou condicionamento para o exercício desse direito de interpor recurso. Mediante a interposição do novo recurso ordinário, os processos julgados pelas turmas serão levados à apreciação do Pleno, em que votarão também os três desembargadores que compõe a outra turma, possibilitando, assim, que seja reformada a decisão. Nessa modalidade de julgamento, o desembargador-presidente retorna à sua função histórica de proferir o voto de minerva, caso haja um empate no julgamento. Em que pese essa relevante alteração no regimento interno processual do Tribunal Marítimo já tenha sido proferida no final do ano de 2024, ainda não era de conhecimento da comunidade marítima o momento em que começaria a ser aplicado esse novo rito de julgamento, bem como qual seria a regra de transição para a sua implementação. Nesse sentido, no dia 27/2/25 sobreveio a portaria TM-MB 8, que regulamentou a resolução 65/24, e fixou, em seu art. 1º 5, que o novo rito de julgamento pelas turmas seria adotado em todos os processos eletrônicos que ainda estejam em secretaria aguardando julgamento ou apreciação de representação. O supramencionado dispositivo normativo previu ainda que o julgamento desses casos em tramitação deveria ser realizado perante a turma integrada pelo desembargador-relator. Valendo-se destacar que o seu parágrafo primeiro6 excluiu desse rito de julgamento os recursos em andamento e os processos físicos, enquanto o parágrafo segundo7 excluiu desta nova regra procedimental os processos que já estivessem pautados. Nota-se, portanto, que se tratou de relevante alteração ao procedimento adotado pelo Tribunal Marítimo há muitos anos, com aplicabilidade imediata e que poderá representar uma relevante ferramenta para a gestão do acervo processual da Corte. Portanto, tem-se que a criação das turmas de julgamento e as demais modificações promovidas pelo Tribunal Marítimo, buscaram não apenas promover mais celeridade e eficiência na tramitação processual, possibilitando uma gestão mais eficaz do acervo de casos em andamento, permitindo também o exercício de duplo grau de jurisdição mais consistente e eficaz, conquanto foi criado um recurso que tem hipótese de cabimento amplo.  _________ 1 Art. 41 RIPTM - As decisões do Tribunal serão tomadas por maioria simples de votos, desde que estejam presentes, no mínimo, cinco Juízes, incluído o Juiz-Presidente. 2 Art. 2º - B. As Turmas são constituídas de três Juízes, na forma deste artigo. [...] §4º Na ausência do Juiz-Presidente, a Turma será presidida pelo Juiz mais antigo que a compõe.  3 Art. 41-A. As decisões das Turmas serão tomadas com a presença e voto de todos os seus componentes. Parágrafo único. Quando houver 3 (três) votos divergentes, o processo será encaminhado ao Pleno, para nova votação. 4 "Art. 143-A. Dos Acórdãos prolatados pelas Turmas caberá Recurso Ordinário ao Pleno, para o reexame de toda a matéria. Parágrafo único. Aplica-se ao Recurso Ordinário o previsto para os Embargos Infringentes, com exceção do art. 144." 5 Art. 1º Determinar à Diretora-Geral da Secretaria que os processos eletrônicos que estejam em Secretaria aguardando julgamento ou apreciação de representação sejam incluídos em pauta observando a Turma a qual compõe o respectivo Juiz-Relator 6 §1º Os recursos em andamento e os processos físicos serão incluídos em pauta para julgamento pelo Pleno. 7  §2º O disposto no caput deste artigo não se aplica aos processos já pautados.
É inegável e bastante conhecida a relevância do seguro marítimo para as atividades realizadas no setor da navegação. Desde seu início, o ato de embarcar e se lançar ao mar foi chamado de "aventura marítima", sendo o uso do termo mais do que adequado, considerando os altos riscos envolvidos nessa atividade, não obstante os avanços tecnológicos e de segurança das embarcações. Em Londres, no século XVII, na Tower Street, os comerciantes e armadores se reuniam na histórica Lloyd's Coffee House para obter seguros marítimos e apostar sobre quais navios retornariam ou não ao porto de partida. Os prejuízos que podem decorrer dessas atividades, de fato, não podem ser tolerados ou suportados pela grande maioria dos players do mercado. Com isso, assim como em outros setores, o instituto do seguro se torna essencial para a própria continuidade da atividade. A partir de contratos de seguro e resseguro, a transferência do risco a terceiro revela-se verdadeiro viabilizador das atividades marítimas. Em uma linha, o seguro marítimo configurou-se como uma necessidade de todos. No campo jurídico, um dos aspectos mais relevantes e que dá ensejo a inúmeras controvérsias é a possibilidade de a seguradora indenizar o seu cliente e se sub-rogar no lugar deste para promover a chamada ação de ressarcimento ou, como usualmente colocado, o direito de regresso contra o causador do dano. Seria impossível discorrer sobre todos os tópicos envolvidos na questão da sub-rogação das seguradoras, logo, vale tecer comentários sobre duas decisões recentes do TJ/RJ que ilustram controvérsias essenciais e relevantes sobre esse tema. A primeira delas trata da relevante questão do prazo prescricional para a seguradora promover ação regressiva pelo dano causado ao segurado, em face do transportador marítimo. Já a segunda aborda a legitimidade passiva do agente marítimo em processo de ação regressiva em face de seu cliente/agenciado (no caso, transportador marítimo estrangeiro), ponto que está envolto em controvérsias, existindo posicionamentos jurisprudenciais divergentes sobre o tema. Confira-se, abaixo, o primeiro julgado, de fevereiro do ano corrente, no qual se discutiu a questão da prescrição da ação regressiva proposta pela seguradora: APELAÇÃO CÍVIL. AÇÃO DE RESSARCIMENTO. CONTRATO DE SEGURO. REGRESSO EM FACE DA CAUSADORA DO DANO. CARGA AVARIADA. TRANSPORTE MARÍTIMO. ALEGA A AUTORA QUE DURANTE O TRAJETO ENTRE O PORTO DE RECIFE E O PORTO DE MACEIÓ, HOUVE A AVARIA DE 150,780 TONELADAS DE CLORETO DE POTÁSSIO E CONSTATADA A AUSÊNCIA DE 4,091 TONELADAS DAS 2.000,000 EMBARCADAS EM DESFAVOR DO SEGURADO, RAZÃO PELA QUAL FOI ACIONADO O SEGURO EM RAZÃO DO SINISTRO, OCORRENDO O PAGAMENTO DO VALOR TOTAL DE USD 28.491,54, QUE CONVERTIDOS EM REAIS ("BRL") PELA COTAÇÃO DO BANCO CENTRAL, NA DATA DO PAGAMENTO, CORRESPONDEM AO MONTANTE DE R$ 115.641,46. DECRETADA A REVELIA DA PARTE RÉ. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO EM RAZÃO DA PRESCRIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO PARA PROPOSITURA DE AÇÃO PELO SEGURADOR PARA REQUERER DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO O RESSARCIMENTO POR DANOS CAUSADOS À CARGA, NOS TERMOS DA SÚMULA 151/STF E DO ART. 8º, CAPUT, DO DECRETO-LEI 116/67, TENDO COMO TERMO INICIAL A DATA DO PAGAMENTO INTEGRAL DA INDENIZAÇÃO AO SEGURADO. PRECEDENTES DO STJ E DO TJ/RJ. RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE PESSOAS JURÍDICAS QUE EXERCEM ATIVIDADE EMPRESARIAL E VISAM LUCRO, INEXISTINDO VULNERABILIDADE DE QUALQUER DELAS. INAPLICABILIDADE DO CDC. AJUIZAMENTO DE NOTIFICAÇÃO JUDICIAL. CAUSA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO. CONTAGEM DO NOVO PRAZO A PARTIR DA DATA DA INTIMAÇÃO. NOS TERMOS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 202 DO CÓDIGO CIVIL, EM SE TRATANDO DE INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO CAUSADA POR ATO ÚNICO (HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS II, III, IV, V E VI), A RECONTAGEM DO PRAZO INICIA NO DIA SEGUINTE AO DA INTIMAÇÃO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL. A NOTIFICAÇÃO DO DEMANDADO OCORREU APENAS EM 2/9/20, QUANDO JÁ TRANSCORRIDO O PRAZO PRESCRICIONAL DE UM ANO, CONTADO DA DATA DO PAGAMENTO OCORRIDO EM 24/9/18, TENDO A SENTENÇA CORRETAMENTE RECONHECIDO A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DEDUZIDA PELO AUTOR, ORA APELANTE. SENTENÇA DE EXTINÇÃO QUE SE MANTÉM. PEQUENO REPARO APENAS PARA AFASTAR A CONDENAÇÃO DO AUTOR AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS, TENDO EM VISTA QUE A PARTE RÉ, REVEL, NÃO CONSTITUIU PATRONO NOS AUTOS. DADO PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO. (0196107-77.2021.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). VALÉRIA DACHEUX NASCIMENTO - Julgamento: 5/2/25 - SEXTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO) Como se observa, a discussão sobre a prescrição para ajuizamento da ação pela seguradora consistiu no cerne da controvérsia, mas há dois aspectos desse julgado que merecem atenção mais detida do leitor dessa coluna. Em primeiro lugar, o julgador afasta a aplicação do CDC, que estabeleceria o prazo prescricional de cinco anos - por não haver a configuração de vulnerabilidade por nenhuma das partes envolvidas - e, em seguida, define que o decreto-lei 116/67, art. 8°, caput é aplicável ao caso - por ser o instrumento que rege as operações de transporte de carga "por via d'água nos portos brasileiros" - e "a todos os entes envolvidos na relação de transporte marítimo", incluindo as seguradoras. Assim, de acordo com a súmula 151 do STF1, a partir do pagamento integral do prêmio, o segurador sub-roga-se no lugar do segurado e, contra ele, passa a correr o prazo de um ano para ajuizamento da ação regressiva. Resumidamente, o que o julgado acima revela é a importância de se atentar ao prazo prescricional de um ano para exercício do direito de regresso pela seguradora contra o causador do dano, o que, a depender das circunstâncias do caso concreto, pode ser um prazo relativamente exíguo para o exercício dessa pretensão. A seguir, eis o segundo acórdão, que trata de questão mais polêmica, qual seja a existência ou não de legitimidade passiva do agente marítimo para responder perante a seguradora em ação regressiva contra o transportador causador do dano: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL. PERDA DA CARGA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.ALEGAÇÕES DA RÉ APELANTE DE NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO E DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. (...) 2.Nulidade da sentença que se rechaça. 3. REsp 404.745/SP, relator ministro Jorge Scartezzini, Quarta turma, julgado em 4/11/04, DJ de 6/12/04: O agente marítimo, na condição de mandatário e único representante legal no Brasil de transportadora estrangeira, assume, juntamente com esta, a obrigação de transportar a mercadoria, devendo ambos responder pelo cumprimento do contrato do transporte internacional celebrado. Com efeito, tendo o agente o direito de receber todas as quantias devidas ao armador do navio, além do dever de liquidar e de se responsabilizar por todos os encargos referentes ao navio ou à carga, quando não exista ninguém no porto mais credenciado, é justo manter-se na qualidade de representante do transportador estrangeiro face às ações havidas por avaria ou outras consequências, pelas quais pode ser citado em juízo como mandatário. Legitimidade passiva ad causam reconhecida. 4. Legitimidade passiva da ré ora apelante que se reconhece. O agente marítimo procurador que age como mandatário responsabiliza-se por todos os encargos referentes ao navio ou à carga e é representante do transportador estrangeiro nas ações havidas por extravio, avarias ou outras consequências advindas do transporte da carga. 5. Precedentes desta Corte. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (0053637-96.2016.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). FERNANDO CERQUEIRA CHAGAS - Julgamento: 5/12/24 - VIGESIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 11ª CÂMARA CÍVEL) No caso supracitado, a apelante alega que não teria legitimidade para figurar no polo passivo da relação jurídica processual, porque não teria relação com a carga e apenas teria atuado como "mera mandatária de serviços de agenciamento marítimo da transportadora". Todavia, o Tribunal entendeu que o agente marítimo efetivamente age em nome do mandante e é responsável pelos "encargos referentes ao navio ou à carga", efetivamente o representando, nesse sentido, em ações por extravio, avarias ou demais incidentes possíveis no transporte de cargas - inclusive, na hipótese de regresso movida pela seguradora. Com isso em mente, o Tribunal manteve a decisão apelada e citou outras decisões no sentido de responsabilizar o agente marítimo mandatário juntamente do seu mandante, no caso, o transportador, frente à seguradora. Neste ponto, vale ressaltar que o tema está envolto em controvérsias. Conforme publicado previamente nesta coluna Migalhas Marítimas (Navegando por mares Jurisprudenciais: (Parte V) - Agente Marítimo - Inexistência de solidariedade com o armador/transportador), mostra-se ainda em discussão e palco de frutíferos debates. Em síntese, há casos em que os Tribunais ora reconhecem a responsabilidade solidária entre agente marítimo e armador (como o supratranscrito), e que ora reconhecem a inexistência desse vínculo. No artigo anteriormente citado, encontram-se julgados em sentido diametralmente oposto, ou seja, reconhecendo que o agente marítimo não detém legitimidade para figurar no polo passivo de ações regressivas, valendo conferir, por todos, o acórdão proferido pelo TJ/SP, na apelação 1025766-79.2015.8.26.0562, julgado em 27/11/17, citado no referido artigo. Como se nota, as controvérsias nessa seara são tão latentes quanto os riscos existentes na aventura marítima. De todo modo, em conclusão, os seguros marítimos desempenham um papel fundamental na mitigação dos riscos inerentes ao transporte marítimo, garantindo maior previsibilidade e segurança às operações comerciais que envolvem bens de alto valor e extensas rotas de navegação. A análise das decisões judiciais destacadas evidencia a complexidade das questões envolvidas na recuperação de valores pelas seguradoras, sobretudo no que tange à prescrição para o ajuizamento da ação regressiva e à legitimidade passiva dos agentes marítimos. A jurisprudência sobre esse tema segue em evolução, exigindo atenção dos operadores do Direito e dos envolvidos no setor para a melhor compreensão e aplicação das normas vigentes. A consolidação de entendimentos sobre essas questões é essencial para garantir maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações entre seguradoras, transportadores e demais players do mercado. 1 "Prescreve em um ano a ação do segurador subrogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio."
Introdução     Há cerca de um ano, publiquei neste espaço um pequeno texto sobre a "carteira de motorista" para a condução de embarcações não-comerciais, ou seja, aquelas que a legislação denomina "esporte e recreio", e seus condutores são denominados "amadores" (Migalhas 5.7801). Naquela ocasião, anunciei que faltavam quatro meses para que entrassem em vigor as novas normas que passariam a reger a "habilitação náutica".  A entrada em vigor destas alterações, no entanto, passou por sucessivos adiamentos - a próxima data prevista é 31/3/25 - de modo que entendo oportuno voltar ao tema.  Assim, este artigo recordará brevemente como é e como passaria (ou passará) a ser a regulamentação do tema, seguida de um histórico das várias idas e vindas do tema. Por fim, sugerirei uma nova abordagem na elaboração dessas normas, para aumentar a participação da sociedade no processo de sua elaboração e, sobretudo, conferir maior segurança jurídica ao tema. Revisitando os conceitos Na habilitação para conduzir veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc. Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas ("jet skis"). As áreas de navegação têm as seguintes definições:  Interior Águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas.  Costeira Dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa).  Oceânica Sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa). A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior. A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas. Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior. Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica).  A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador. Em paralelo a esta categorização das habilitações, as NORMAM - Normas da Autoridade Marítima preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica. Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a adoção de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação. Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria. As mudanças efetuadas na regulamentação e seus sucessivos adiamentos A mudança dessa regulamentação se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida.  É a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas. No capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da NORMAM 211 - Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio foi inserida uma simples "nota", em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024." No artigo citado ao início deste texto, publicado no Migalhas 5.780, fiz uma respeitosa crítica a essa alteração, tanto sob o aspecto formal quanto sob o aspecto material.  Para evitar repetições, remeto o leitor àquele artigo. A mudança teve sua vigência alterada de 1/6/24 para 1/11/24 (portaria DPC/DGN/MB 127, de 24/6/24). A "nota" passou a ter a seguinte redação: "Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Contudo, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de novembro de 2024." A dotação de equipamentos obrigatórios em razão da classificação da embarcação - e não da área em que está efetivamente navegando - é passível de críticas, que, no entanto, poderão ser objeto de outro texto, pois a proposta aqui é tratar apenas da habilitação. Não foi divulgado, pela Autoridade Marítima, o motivo de tal adiamento, mas parece evidente que, além das várias dúvidas e perplexidades causadas pela alteração, pesou também a impossibilidade prática de que a própria Marinha pudesse atender, em tempo hábil, a todos os interessados em obter nova habilitação para atenderem à norma. Em 17/12/24 - após o transcurso do prazo - foi publicada a portaria DPC/DGN/MB 147, com nova postergação, desta vez para 31/3/25. É curioso observar que essa informação só pôde ser confirmada no Diário Oficial da União, pois o link que acompanha a publicação da portaria 147 continua remetendo à redação antiga da NORMAM-211, o mesmo ocorrendo na versão publicada no site da DPC, supostamente atualizada. Embora possa parecer uma questão menor, a ampla e correta divulgação das normas e suas alterações é parte importante do devido processo legal no Direito Administrativo.  Afinal, como um condutor poderia se defender de uma autuação ilegal, se a própria Autoridade Marítima mantém uma versão desatualizada da Norma em seu site? Se, no artigo anterior, critiquei a insegurança jurídica causada pela forma com que a alteração foi feita - através de uma simples "nota" agregada aos dispositivos numerados da Norma - decerto a situação não melhorou: caso o cidadão procure a informação no site oficial da Diretoria de Portos e Costas, suporá que a alteração está em vigor desde 1/11/24. De todo modo, apesar destes sucessivos adiamentos, a Autoridade Marítima tem reiterado seu entendimento de que a nova forma de aferir a exigência de habilitação aos amadores poderá contribuir, efetivamente, para a segurança da navegação. No artigo anterior, apresentei críticas quanto ao conteúdo da norma, pois, segundo a opinião corrente na comunidade marítima de esporte e recreio, a nova exigência em nada contribuirá para o aumento da segurança da navegação. Obrigar o condutor de uma embarcação que navega em águas restritas, de enseadas, baías e lagoas, a ter conhecimentos de navegação astronômica ou sobrevivência no mar, por exemplo, é um caso acadêmico de falta de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade pretendida pela norma. Em termos jurídicos, isso significa, claramente, uma falta de razoabilidade da norma. Também critiquei a forma como a alteração foi feita, sem a alteração ou modificação de qualquer item, mas apenas com a inserção de uma "nota" entre eles. Hora de ouvir a sociedade? Todas estas idas e vindas da alteração da NORMAM-211, e os problemas na sua divulgação, indicam, a meu ver, um deficit de participação na elaboração da norma. Trata-se, agora, de uma crítica ao modo de elaboração e deliberação da Autoridade Marítima a respeito de assuntos de nítida natureza regulatória. Desde o processo de desestatização do final da década de 1990, o Direito brasileiro incorporou o instituto das agências reguladoras, que exercem um relevante papel de editar normas infralegais, em setores específicos, como saúde - Anvisa e ANS, telecomunicações - Anatel, aviação civil - Anac, energia elétrica - Aneel, transportes aquaviários - ANTAQ e vários outros. Desde o seu surgimento no Brasil, e incorporando uma experiência de décadas em outros sistemas jurídicos (especialmente europeu e norte-americano), as agências adotam um processo deliberativo com ampla participação da sociedade, colhendo sugestões e elaborando minutas para debate, além de realizar audiências públicas sobre temas que ainda serão objeto de regulamentação. Note-se que não se trata uma "participação popular" no sentido amplo de um plebiscito, referendo ou iniciativa popular, mas de uma participação setorial, da específica comunidade de partícipes das relações jurídicas daquele setor regulado. Para exemplificar, nos processos de elaboração de normas da ANATAQ, são ouvidos armadores, agentes, embarcadores, autoridades portuárias, navais, e outros tantos interessados nos efeitos e desdobramentos da norma que está em elaboração. Naturalmente, todas essas discussões têm acentuado caráter técnico, e justamente por isso devem ter a participação dos envolvidos na aplicação da norma, em vez da elaboração unilateral pela autoridade. Também é certo que a palavra final será do órgão regulador (que, no caso das agências, têm natureza colegiada), mas, historicamente, sugestões da sociedade sempre foram incorporadas, em maior ou menor medida, às normas elaboradas através de um processo participativo, o que demonstra as vantagens desse processo deliberativo. Quando se observa o fenômeno da regulação jurídica de modo mais amplo, pode-se notar que não surgiu com as agências reguladoras.  Muito antes da criação das agências, outros órgãos já exerciam função semelhante, embora sem esse nome, como a CVM - Comissão de Valores Mobiliários, que elabora uma infinidade de normas sobre o funcionamento do mercado de capitais e governança empresarial. Atento a essa realidade, o legislador, através da lei 13.655/18, inseriu dispositivo na LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com o seguinte teor: Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.    Entendo, com o devido respeito, que o dispositivo se amolda com perfeição à situação retratada neste artigo.  Além das questões relativas à razoabilidade da norma, em si (já tratadas neste texto e no anterior), há consequências sensíveis sobre o mercado náutico de esporte e recreio, que tem grande potencial de crescimento no Brasil, mas não vem recebendo nenhum incentivo. Ao contrário, medidas como essa desestimulam o desenvolvimento dessa atividade. Sem abrir mão de sua autoridade técnica e da palavra final sobre o conteúdo da norma, creio que a Marinha teria muito a ganhar se abrisse o diálogo com a comunidade marítima de esporte e recreio (marinas, clubes, escolas náuticas, federações de vela, etc.), ou seja, daqueles que vivem diariamente a realidade nas águas navegáveis, que certamente têm suas sugestões de aperfeiçoamento, e gostariam de ser ouvidos. Fica, então, a modesta e respeitosa sugestão, considerando que a norma ainda não está em vigor, de que seja feito novo adiamento e, em seguida, aberto um processo de escuta da comunidade náutica de esporte e recreio, através de consulta pública e recebimento de sugestões. Quiçá esta experiência com a questão da habilitação dos amadores seja bem-sucedida e, assim, incentive a Marinha a maior abertura para a sociedade na revisão de outras normas relevantes para o Direito Marítimo brasileiro. 1 Disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema do "Clube de P&I ("P&I Club"), explorando o seu conceito e destacando a ausência de solidariedade entre o Clube e o armador integrante da associação. Para isso, será analisado o papel dos clubes de P&I no setor marítimo, especialmente na gestão de riscos e na proteção de interesses mútuos dos armadores e transportadores, além de esclarecer os limites de responsabilidade das partes envolvidas. Os Clubes de P&I, ou seja, Clubes de Proteção e Indenização ("P&I Club - Protection and Indemnity Clubs") funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos caracterizadas pela autogestão, constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros2. Assim, no contexto do Clube de P&I, presume-se a contribuição de cada um dos armadores ou operadores e afretadores, ou seja, de seus "membros", a fim de cobrir prejuízos ou responsabilidades enfrentados por qualquer um dos membros. Contudo, importante ressaltar que as funções dos Clubes de P&I não se confundem com as atividades desempenhadas pelas seguradoras tradicionais. Isso porque os membros do Clube fazem jus apenas ao reembolso dos prejuízos cobertos, na forma de princípio denominado "pay to be paid", ou seja, apenas quando houver desembolso prévio para realização do pagamento dos valores devidos aos terceiros, seus credores. Assim, não compete ao Clube o pagamento de indenizações e muito menos garantir o adimplemento dos seus membros perante terceiros3. Dessa forma, os Clubes de P&I não respondem diretamente pelas obrigações assumidas pelo armador ou pelo transportador perante terceiros. Logo, a responsabilidade perante terceiros é exclusivamente do armador ou transportador, ou seja, de seus membros, que permanecem como a parte diretamente vinculada às obrigações contratuais ou legais, de modo que o Clube funciona apenas como uma ferramenta de apoio ao armador e ao transportador. Em termos práticos, o Clube de P&I oferece um apoio a seus membros, auxiliando-os na cobertura financeira, na assistência jurídica e na gestão de crises. Lembrando que qualquer vinculação direta com as obrigações assumidas pelo armador perante terceiros foge do escopo de atuação e responsabilidade do Clube. À vista disso, considerando que os Clubes de P&I não celebram contratos típicos de seguro com seus membros (armadores/transportadores) e que sua obrigação se limita ao reembolso das despesas de seus associados, sem garantia de pagamento direto a terceiros, não há qualquer determinação legal ou contratual que os vincule como responsáveis, seja de forma solidária ou subsidiária, pelos danos causados por seus membros. A jurisprudência reafirma que a responsabilidade do Clube de P&I se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos dos armadores e transportadores. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador. Primeiro julgado: Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP; agravo de instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator (a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19) Segundo julgado: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADE DO CLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. (...) 3.1. O cerne da controvérsia reside em definir se a ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4. P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto "segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas". De outro lado, a relação jurídica que se pretende ver reconhecida tem sua origem numa relação jurídica de Direito Processual, surgida no processo 07212934-07.2000.8.06.0001, entre a autora e um dos membros do Clube de proteção e indenização constituído pela ré. Trata-se de um direito de crédito originado de ônus processual imposto ao armador membro do Clube de P&I e réu naquela ação, em decorrência de sua sucumbência nos autos da demanda regressiva movida pela cliente da sociedade de advogados-autora. (...) 7. Por fim, como já descrito alhures, o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas "chamadas" ou calls (regra 13 do estatuto da ré - fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da ré - fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente - tal como no caso dos P&I Clubs - mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. (...) De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do Clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, "pague para ser pago", isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do Clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido. Majoração dos honorários advocatícios, nos termos do art. 85, §11 do NCPC. (TJ/RJ, apelação cível 0189045-59.2016.8.19.0001, Órgão julgador 6ª câmara Civel; des. Relatora Teresa de Andrade, data do julgamento: 23/5/18) Observa-se que, no primeiro julgado, o TJ/SP reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube de P&I em relação aos atos de seus associados (armadores/transportadores). Isso porque, inexiste vínculo jurídico entre o Clube de P&I e seus membros que justifique a sua inclusão no polo passivo da demanda, considerando que o escopo de sua atividade é "limitado a dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima4". Desse modo, o Tribunal Estadual concluiu que não é possível estender os efeitos da coisa julgada a uma parte que não integrou a demanda original. Quanto ao segundo julgado, pode-se observar que o TJ/RJ bem aborda a natureza e a dinâmica dos Clubes de P&I e reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube em relação aos atos dos seus membros. Para tanto, o TJ/RJ destaca que a organização dos Clubes de P&I possuem particularidades que se distinguem daquelas vigentes nos contratos de seguro tradicionais, sendo tais fatores determinantes para o afastamento da sua responsabilidade perante terceiros em relação aos danos causados pelos seus membros (armadores/transportadores). Entre tais fatores, destaca-se o fato de que os Clubes de P&I funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, em que se pressupõe a contribuição de todos os seus membros, por meio da constituição de um "fundo garantidor" para diluição dos prejuízos suportados por cada um deles. O TJ/RJ também reforçou uma das principais obrigações existentes entre os Clubes de P&I e seus membros, qual seja a existência do princípio "pay to be paid", conforme acima narrado, o qual estabelece que o direito ao reembolso dos prejuízos sofridos pelo integrante do Clube somente nasce a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, inexistindo, portanto, vínculo material entre o Clube de P&I e a suposta vítima do dano. Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria e também já foi tema de outros interessantes artigos publicados nesta coluna especializada, entre outros.5  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados aos temas de Direito Marítimo e de Clubes de P&I, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. ______________ *Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira. 1 Disponível aqui. 2 Conceito disponível aqui. fl. 173. 3 "(...) uma pessoa pode pertencer a uma sociedade (como um Cube P&I) cujas regras não lhe garantem o direito a uma indenização, mas apenas a contribuições de outros membros para suas perdas. Uma vez que a essência do contrato de seguro é que o segurado deve ter o direito a uma indenização, parece que, neste caso, não pode haver um contrato de seguro." (Tradução livre: MCGILLIVRAY; PARKINGTON. Insurance Law. 8th ed. Londres: [s.d.], 1998) No original: "(.) a person may belong to a society (such as a P. & I. Club) whose rules do not entitle him to an indemnity but only to contributions from other members towards his loss. Since the essence of a contract of insurance is that the insured should be entitled to an indemnity, it seems that in such a case there cannot be a contract of insurance." 4 TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19 5 Como: disponível aqui;Outro exemplo: disponível aqui.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos sobre o tema "carga refrigerada" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a questão da responsabilidade civil do transportador marítimo. Para tanto, apresentaremos dois casos concretos permitindo uma análise mais detalhada e prática sobre o assunto. Quando se trata de responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, é importante considerar os três requisitos essenciais para a sua configuração, são eles: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Contudo, é de extrema importância destacar que sem a existência do nexo de causalidade entre o fato e a conduta do agente, não há responsabilidade configurada à espécie. Nesse sentido, são os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira: "Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo". A lição nos ensina que, independentemente do regime de responsabilidade civil, seja objetiva ou subjetiva2, em nenhum momento o lesado fica dispensado de comprovar a relação de causalidade entre a conduta do agente e o evento danoso, a fim de que se configure o dever de reparação. Se a demonstração do nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, estaria sendo adotado o regime do risco integral e automático, o que é incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, sobretudo nas hipóteses de responsabilidade por avaria de carga no transporte.  Essa premissa é especialmente relevante quando tratamos do transporte de cargas refrigeradas. As especificidades dessa carga exigem um cuidado redobrado, pois qualquer falha na manutenção das condições adequadas de temperatura pode gerar danos, que somente serão atribuídos ao transportador caso seja comprovado o nexo de causalidade entre o seu ato e o prejuízo sofrido. Por outro lado, o dano também pode, em alguns casos, ser decorrente de conduta diretamente atribuída ao embarcador. Nessas situações, o nexo de causalidade entre a conduta do transportador e o dano sofrido pela carga é rompido, afastando a responsabilidade do transportador. Isso pode ocorrer, por exemplo, em casos em que o embarcador não forneça informações precisas sobre as condições em que a carga deva ser transportada, em situações em que a carga já é embalada em avançado estado de maturação ou, ainda, se a carga for inadequadamente embalada, comprometendo sua integridade durante o transporte. Essas falhas, quando identificadas como causa direta do prejuízo, excluem o dever de reparação do transportador, visto que o evento danoso não se relaciona com sua conduta. Portanto, a responsabilidade do transportador só se configura quando o dano resulta diretamente da sua atuação negligente ou inadequada, e não quando é provocado por falhas imputáveis ao embarcador ou à própria natureza do produto entregue para o transporte. Essa distinção entre a responsabilidade do transportador e a do embarcador é fundamental para evitar a transferência indevida de responsabilidade e assegurar que a parte efetivamente responsável pelo dano seja a que deve arcar com os custos da reparação. Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da responsabilidade civil do transportador, especialmente em se tratando de cargas refrigeradas. Primeiro julgado: INDENIZAÇÃO. Contrato de transporte - Carga perecível (frutas) Conhecimento de transporte não faz menção à necessidade de abertura do sistema de ventilação necessária para conservação da mercadoria. Tempo de duração da viagem compatível com o limite tolerável para conservação das frutas. Temperatura no interior do "container" adequada e de acordo com a recomendação do exportador. Causas prováveis da avaria, apuradas pela perícia, consistiram em infestação fúngica e polpa com consistência mole, bem como falta de ventilação, para troca de gases no interior do ''contêiner''. Frutas foram embarcadas em provável processo de maturação - Exportador, que não instruiu, adequadamente, os funcionários da transportadora, no sentido de ser acionado sistema de ventilação no interior do contêiner para conservação das frutas - Responsabilidade objetiva do transportador excluída. (TJ/SP, AC: 9096749-19.2006.8.26.0000, relator: Plinio Novaes de Andrade Júnior, 24ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/11/11) Segundo julgado: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO TRANSPORTE MARÍTIMO - IMPROCEDÊNCIA. Apelação. Avaria em carga alegada maturação de peras durante o transporte marítimo, por acondicionamento em temperatura inadequada. Falta de provas nesse sentido, inclusive do momento em que ocorreu a avaria. Impossibilidade de se reconhecer a responsabilidade da apelada. Sentença mantida. Art. 252 do regimento interno do TJ/SP - A sentença deve ser confirmada por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir, nos termos do art. 252 do regimento interno deste Egrégio Tribunal de Justiça. Recurso não provido. (TJ/SP, AC: 0053367-24.2008.8.26.0562, relator: Marino Neto, 11ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/2/13) Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP conclui que, embora a responsabilidade do transportador seja objetiva, a falha do embarcador em fornecer as devidas instruções quanto à ventilação adequada do contêiner causou diretamente os danos à carga, afastando a responsabilidade do transportador. O acórdão destaca que a carga foi embalada sem qualquer interferência do transportador e com a recomendação de ser conservada a 0,5ºC, porém, não constou qualquer solicitação para abertura do sistema de ventilação do contêiner, para conservação das frutas transportadas. Dessa forma, o entendimento do Tribunal é que não há responsabilidade atribuída à transportadora pelos danos verificados nas frutas transportadas, vez que o prejuízo ocorreu por culpa exclusiva do exportador, que não instruiu, adequadamente, os prepostos da transportadora, sobretudo considerando-se que durante todo o período do transporte marítimo, a unidade foi alimentada com uma refrigeração exata a 0,5º C. Acerca da questão dos vícios de embalagem e falhas do embargador na preparação adequada da carga a ser destinada a transporte, vide interessante artigo3 publicado anteriormente nesta coluna. No segundo julgado, observa-se que o TJ/SP novamente reconhece a ausência de responsabilidade da transportadora pelos danos à carga, ressaltando que cabe à importadora evidenciar que os prejuízos ocorreram em decorrência do transporte, conforme o que determina o art. 373, I, do Código de Processo Civil, o que não foi comprovado. O acórdão identifica que a importadora optou por desistir da fiscalização aduaneira que seria realizada logo após a descarga da carga, assumindo assim os riscos dessa decisão. Ademais, reconhece que a inspeção realizada pela autora foi feita muito tempo após a entrega da mercadoria e de forma unilateral e parcial, comprometendo a veracidade dos fatos alegados. Com isso, o TJ/SP concluiu que, sem a comprovação do nexo causal entre a conduta da transportadora e os danos alegados, não seria possível responsabilizá-la, sobretudo quando a temperatura da unidade de carga foi mantida sob a refrigeração indicada durante todo o período do transporte, tendo as oscilações de temperatura ocorrido em períodos fora da etapa marítima, quando a carga não se encontrava sob custódia do transportador marítimo. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo. Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/ *Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira. 1 Disponível aqui. 2 E trazendo reflexões provocativas a respeito da responsabilidade civil do transportador marítimo, podemos citar interessante artigo publicado anteriormente nesta coluna: disponível aqui. 3 Disponível aqui.
O transporte marítimo é um dos pilares do comércio internacional, responsável por grande parte do escoamento de mercadorias entre países. O contêiner, como principal equipamento de movimentação de cargas, é fundamental para garantir a eficiência e a segurança nas transações comerciais globais. Nesse cenário, surgem institutos como a demurrage e a detention, que disciplinam a utilização e a devolução de contêineres, bem como o prazo para a realização dessas operações.  Neste ensaio analisaremos esses institutos, explorando conceitos, diferenças, e a natureza jurídica das cobranças, a relevância do "free time" e a importância da previsão contratual, enfocando a jurisprudência contemporânea, destacando as responsabilidades de transportadores, importadores e outros atores da cadeia logística.  O transporte marítimo de cargas remonta às primeiras civilizações, quando os oceanos se tornaram rotas estratégicas para o comércio. O contêiner desempenha um papel essencial nesse cenário, funcionando como uma unidade padronizada que protege a carga e facilita o manuseio, armazenamento e transporte.  No Brasil, a legislação confere ao contêiner o status de equipamento acessório ao navio, não sendo considerado embalagem das mercadorias. A lei 6.288/75, posteriormente revogada pela Lei 9.611/98, estabelecia que o contêiner deve atender às normas técnicas e de segurança, sendo parte integrante das operações logísticas. Essa regulamentação buscava garantir previsibilidade e eficiência no uso desses equipamentos, cuja indisponibilidade pode comprometer as atividades comerciais do armador.  Ademais, os contêineres proporcionaram uma verdadeira revolução logística, permitindo maior eficiência no transporte intermodal, reduzindo custos operacionais e mitigando os riscos de avarias ou roubos. Essa padronização também facilita a adoção de soluções tecnológicas, como rastreamento em tempo real, contribuindo para a transparência das operações.  A demurrage e a detention são institutos próprios do Direito Marítimo que disciplinam o uso e a devolução dos contêineres, respectivamente pelos importadores e pelos exportadores.  A demurrage refere-se à sobreestadia do contêiner em um terminal ou porto após o término do prazo de "free time", tendo como objetivo compensar o armador pela indisponibilidade do contêiner. A demurrage possui natureza indenizatória, sendo preestabelecida em contratos ou tabelas publicadas pelos armadores.  A detention, por sua vez, aplica-se quando o contêiner é devolvido ao armador após o prazo estipulado, para as providências de embarque. É considerada uma indenização pelos custos associados à indisponibilidade do equipamento, afetando diretamente a logística do armador. Embora menos mencionada que a demurrage, sua aplicação depende igualmente de previsão contratual.  A natureza jurídica de ambos os institutos tem sido amplamente discutida nos tribunais. Por possuírem caráter indenizatório, sua cobrança não depende da comprovação de prejuízos diretos, mas sim da configuração do descumprimento contratual. Tal entendimento é fundamental para garantir a segurança jurídica nas relações comerciais internacionais.  O "free time", como é sabido, é o período de franquia concedido ao consignatário e/ou embarcador da carga, durante o qual não incidem as cobranças por demurrage ou detention. Esse prazo é essencial para que o importador conclua o desembaraço aduaneiro, transporte e a desova do contêiner. No entanto, a ausência de previsão contratual, embora não seja prescindível, pode gerar litígios e interpretações conflitantes.  Uma previsão contratual robusta e transparente deve incluir a definição do prazo de "free time", os valores aplicáveis por demurrage e detention, o formato da cobrança e, ainda, as situações excepcionais que possam justificar a extensão do prazo sem cobrança adicional.  Quando bem estruturados, tais contratos evitam ambiguidades, fortalecendo o princípio da boa-fé e minimizando os riscos de judicialização das cobranças.  Como não poderia ser diferente, o Conhecimento Marítimo (Bill of Lading - BL), como documento essencial no transporte marítimo que é, cumpre três funções principais: recibo da mercadoria, título de propriedade e evidência do contrato de transporte. Há uma questão relevante e comum nessa cadeia logística, e que repercute em relação ao tema pode trazer repercussão quanto a responsabilidade em relação a demurrage e detention, que são os casos com emissão de Master BL (MBL) e House BL (HBL).  O Master BL é aquele emitido pelo armador ou transportador de fato, que regula a relação contratual entre este e o agente de carga. O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador, regulando obrigações entre o agente e o consignatário.  Esses documentos são frequentemente objeto de disputas quanto à responsabilidade pelas taxas de demurrage e detention. A ANTAQ, em decisão recente (processo nº 50300.019623/2020-00), destacou que o consignatário do House BL não tem legitimidade para questionar os termos do Master BL, reforçando o princípio da individualidade contratual.  O correto entendimento dos papéis desempenhados por cada um dos atores envolvidos é de suma importância para o deslinde de disputas relacionadas com demurrage e detention.  A evolução tecnológica também impactou o uso do BL, com a crescente adoção do e-BL (Bill of Lading eletrônico). Essa inovação busca reduzir custos, aumentar a eficiência e mitigar riscos relacionados à manipulação de documentos físicos, sem comprometer sua segurança jurídica.  A jurisprudência, há muitos anos, é farta em casos que discutem a incidência da cobrança após o término do "free time". Em recente decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Apelação nº 0000643-32.2018.8.24.0050), concluiu-se que, mesmo diante de condições climáticas adversas, a responsabilidade pelo pagamento da demurrage recai sobre o importador, considerando que a previsibilidade desses eventos está íntima ao risco da atividade logística.  Também em julgamento recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enfrentou questões centrais envolvendo a cobrança de demurrage. A ação foi proposta pela transportadora visando o pagamento de quantia que entendia ser devida pela sobreestadia de contêineres.  A decisão abordou aspectos relevantes, como a natureza jurídica da demurrage, reconhecendo que a demurrage possui caráter indenizatório, destinado a compensar o transportador pela indisponibilidade dos contêineres, rejeitando o argumento de que a cobrança seria abusiva ou que dependeria de previsão contratual específica ou em sua forma física.  Noutro aspecto, analisando a questão da alegação de impedimento de devolução do equipamento por fato de terceiro, sob o argumento de que a retenção dos contêineres pela Receita Federal configuraria caso fortuito ou força maior, sobreveio o entendimento de que tal situação não exclui a responsabilidade pelo pagamento da demurrage, uma vez que os riscos associados ao trâmite aduaneiro fazem parte da atividade de importação.  Essa decisão demonstra a tendência jurisprudencial de reforçar a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais do transporte marítimo, afastando argumentos baseados em supostas exceções não devidamente comprovadas.  Também em decisão recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu de forma diversa, entendendo que a atuação da Receita Federal, classificada como subjetiva em relação a escolha das mercadorias que serão submetidas a uma análise mais rigorosa, o que representaria uma excludente da obrigatoriedade de pagamento pela incidência da demurrage.  A responsabilidade pelo pagamento de demurrage e detention recai, respectivamente, sobre o consignatário e embarcador da carga, que deve garantir a devolução oportuna do contêiner, de acordo com cada contrato. No entanto, há casos em que o transportador também pode ser responsabilizado, como em situações de negligência ou falhas operacionais que causem atrasos.  Além disso, a má-fé de qualquer uma das partes pode levar a disputas judiciais. Se o importador retém deliberadamente o contêiner, ou se o transportador impõe cobranças excessivas, ambos podem ser responsabilizados. Em tais casos, o princípio da boa-fé objetiva e a necessidade de previsão contratual são frequentemente invocados pelos tribunais.  A prática demonstra que a previsão de sanções equilibradas e a adoção de um diálogo transparente entre as partes são fundamentais para evitar litígios e preservar relações comerciais.  O que não se pode admitir, é que os riscos a que estão expostos os importadores inerentes a operação de importação sejam repassados a terceiro, no caso o transportador, que cumpriu a sua obrigação contratual, mas que será penalizado com a indisponibilidade do seu equipamento, em face de uma questão que lhe é absolutamente estranha, mas que é previsível pelo importador.  A atuação fiscalizadora da Autoridade Aduaneira decorre de lei, que a desempenha segundo os seus próprios critérios, não sendo plausível se alegar que essa atuação represente um fato inusitado e alheio ao processo. O importador, ao mensurar o seu empreendimento e uma operação de importação, tem em conta todos os cenários possíveis, inclusive uma eventual submissão a um procedimento fiscalizatório mais rigoroso.  A alegação de que a atuação da Receita Federal é ilegal, muitas vezes, equivale a afirmação de que a Autoridade Aduaneira agiu de forma contrária à lei por exercer a sua atribuição de fiscalizar os procedimentos de importação de mercadorias, o que de fato corresponde ao exercício do seu dever legal.  A demurrage e a detention são instrumentos essenciais para a regulação do uso de contêineres no transporte marítimo. A jurisprudência brasileira tem contribuído significativamente para a consolidação desses institutos, reafirmando sua natureza indenizatória e a necessidade de cumprimento das obrigações contratuais.  Por fim, a previsão do "free time" e o respeito as obrigações contratuais são fundamentais para evitar litígios e garantir a eficiência das operações logísticas. Transportadores, importadores e demais envolvidos devem buscar maior clareza em suas relações contratuais, promovendo assim maior segurança jurídica e previsibilidade no comércio internacional.
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum. Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria. Neste artigo, abordaremos o tema do "atraso" no contexto do transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto. A atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Em virtude de tais fatores, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam em certeza ou exatidão. Tal imprecisão, conhecida de antemão tanto pelos armadores e transportadores como também pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não é apta a gerar pretensões e reclamações por eventuais atrasos, desde que, logicamente, dentro do limite do razoável. O transporte marítimo, por sua natureza, está sujeito a inúmeros contratempos. Como mencionado anteriormente, a aventura marítima possui particularidades que envolvem situações exclusivas desse modal de transporte. Entre essas peculiaridades, destaca-se o atraso na chegada das embarcações, um evento frequentemente considerado normal, sobretudo quando decorrente de circunstâncias de força maior, especialmente aquelas de origem natural. Assim, a jurisprudência reafirma que o atraso na entrega de carga pode, por regra, não imputar responsabilidade sobre o transportador, uma vez que, conforme demonstra a prática marítima, não se ajustam datas exatas em razão da natureza do negócio, devendo ser consideradas as peculiaridades concretas de cada caso. Feitas essas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam o tema do atraso no transporte marítimo. Primeiro julgado: Atraso - Previsão de chegada do transporte não implica em certeza - Ausência de responsabilidade do transportador. 5.1 COMPRA E VENDA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS MATERIAIS (...). TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO OU MESMO DE CIÊNCIA, PELAS RÉS, ACERCA DA NATUREZA DA MERCADORIA TRANSPORTADA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, PELA AUTORA, DOS FATOS CONSTITUTIVOS DO SEU DIREITO (ART. 333, I, CPC/73; ART. 373, I, NCPC). SENTENÇA MANTIDA. AGRAVO RETIDO NÃO PROVIDO. RECURSO PRINCIPAL NÃO PROVIDO. (.) Além disso, a manutenção dos referidos documentos nos autos em nada socorre a tese da apelante. É que, ao revés do alegado nas razões do apelo, os e-mails trocados entre as partes, especialmente aquele de fls. 128/129, mencionado pela recorrente, faz apenas referência à previsão de chegada das mercadorias ao porto de destino, inclusive com a resposta da autora no sentido de aguardar novas previsões, dada as peculiaridades do contrato firmado. Neste contexto, conforme bem argumentado pela litisdenunciada MSC e ponderado pelo magistrado sentenciante "o transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde as condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada (fls. 87/88). As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso" (fl. 293). Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota (fls. 293/294). A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (conforme links das reportagens citadas a fl. 230), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal, pois sequer há prova de que no momento da cotação do frete pela ré ou do embarque do contêiner pela denunciada houvesse ciência da natureza da mercadoria transportada." (fls. 332/333, destaquei). Ademais, é clara a comprovação da atividade empresária por ela desenvolvida, conforme se extrai do seu contrato social, cláusula 2.ª, "DO OBJETIVO SOCIAL, fls. 12. Neste sentido, "a autora se dedica ao ramo de importação e exportação de alimentos, não podendo alegar ignorância quanto às peculiaridades de cada meio de transporte utilizado nas suas relações comerciais no exterior." Além disso, "O documento de fl. 153 demonstra que a autora já havia contratado o transporte por navio para o mesmo destino. Esse mesmo documento demonstra que a autora solicitou a cotação de frete padrão alimento, sem especificar o gênero alimentício e a necessidade de entrega em data certa. E diferentemente do sustentado pela autora, não consta em qualquer documento emitido pela denunciada data certa e nem definida para a chegada ao destino das mercadorias transportadas pela via marítima" (fls. 332, destaquei), ressaltando-se que a ré Norge "apenas cientificada sobre a natureza da carga e necessidade de entrega quando já iniciada a viagem." (fls. 333). E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." (fls. 333, destaquei). Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas, ônus que, ademais, impendia à autora demonstrar, a teor do disposto no art. 333, I, do CPC/73, vigente à época (art. 373, I, NCPC). Como se vê, a sentença deve ser mantida por seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir pelo não provimento do recurso, nos termos do art. 252 do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça que estabelece que "Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando suficientemente motivada, houver de mantê-la". Ante o exposto, nega-se provimento agravo retido e ao recurso principal. (TJSP, Apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. relator Alfredo Attié, 26ª câmara de Direito Privado, j. 23/11/17) Segundo julgado: Atraso - Transporte Marítimo - Hipótese equiparada a caso fortuito - Exclusão de responsabilidade do transportador 5.10 Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relator: Maria Rita Lima Xavier, data de publicação: 27/9/04.) Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP aponta para alguns elementos determinantes no afastamento da responsabilidade pelo atraso da entrega de carga transportada por via marítima. O primeiro fator destacado é a natureza do transporte marítimo, que possui peculiaridades próprias e está sujeito a fatores externos como condições climáticas, congestionamento de portos, entraves logísticos e operacionais, eventos por vezes atribuíveis ao interesse carga ou a terceiros, entre outros que não estão sob controle do transportador. Em seguida, o acordão destacou a ausência de data certa e definida para a chegada das mercadorias ao destino no contrato do transporte. Ainda que a transportadora tenha informado datas de previsão ao longo do transporte, as mesmas consistiam em meras estimativas, conforme previam as cláusulas contratuais no caso concreto. Ainda nesse sentido, as condições gerais previstas no conhecimento de embarque traziam expressa a isenção de responsabilidade do transportador por atrasos, e indicavam que itinerários e prazos poderiam ser alterados sem aviso prévio. Por essa mesma razão, o Tribunal reconheceu que a autora não demonstrou que o transportador assumiu a obrigação de entregar a carga em data certa. Tampouco provou que o transportador tinha ciência da natureza perecível das mercadorias antes do início do transporte. Por fim, relevante destacar que o acordão reconheceu que, como empresa atuante no comércio internacional de alimentos, a autora deveria estar ciente dos riscos e peculiaridades do transporte marítimo. Sendo assim, o risco pela falta de entrega no prazo acordado com o comprador final foi atribuído exclusivamente à autora. Em síntese, o transportador marítimo foi isento de responsabilidade pelo atraso na entrega, por ausência de previsão contratual de prazo garantido e pela falta de comprovação de culpa ou negligência, ressaltando a influência da natureza do transporte marítimo na imputação de responsabilidade ao transportador pelo atraso. No segundo julgado do TJ/PA, observa-se o reconhecimento da ocorrência de caso fortuito ou força maior, circunstâncias que resultam na exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em situações que escapam completamente ao seu controle e independem de sua vontade, conforme previsto no art. 393 do Código Civil. Esse dispositivo legal estabelece que o devedor não responde por prejuízos resultantes de força maior ou caso fortuito, salvo se expressamente responsabilizado por contrato. É importante destacar que caso fortuito e força maior, embora frequentemente tratados como conceitos correlatos, possuem distinções no âmbito jurídico. Ambos dizem respeito a eventos imprevisíveis e inevitáveis que impossibilitam o cumprimento de uma obrigação, mas diferem quanto à origem do evento e à sua relação com a esfera de controle. O caso fortuito refere-se a eventos imprevisíveis de origem interna, relacionados às atividades ou ao contexto do transporte. A força maior, por sua vez, decorre de fatores externos à vontade ou ao controle das partes, usualmente provocados por fenômenos naturais ou sociais. No transporte marítimo, é evidente que os fenômenos naturais desempenham papel predominante, como alterações climáticas, condições adversas do mar e outros fatores intrínsecos à atividade marítima. Nesse sentido, o acórdão prolatado pela relatora analisou de forma criteriosa os elementos que caracterizam a exclusão de responsabilidade do transportador marítimo em virtude de força maior. Conclui-se, assim, que a decisão é plenamente compatível com a realidade fática e com a legislação brasileira, excluindo, de forma legítima, a responsabilidade do transportador por atrasos decorrentes de força maior ou caso fortuito. Examinados os julgados acima, e retomando a análise das eventuais responsabilidades em casos de atraso, convém relembrar um relevante artigo publicado anteriormente nessa coluna, por ocasião dos atrasos sofridos pelas cargas a bordo do navio "Ever Given", quando do encalhe no Canal do Suez2. Naquela oportunidade, destacamos: "Mas como fica a responsabilidade do transportador no caso de atrasos decorrentes de um evento como no caso Ever Given? Não há um regime internacional uniforme que discipline o atraso no transporte marítimo. O maior esforço nesse sentido são as Regras de Hamburgo, as quais estão em vigor apenas em 35 países e o Brasil, apesar de ter sido um dos signatários das referidas Regras, não as ratificou. As Regras de Hamburgo definem que o atraso é constatado quando a carga não é entregue no destino no tempo acordado ou, na ausência de uma previsão expressa de um prazo no contrato de transporte, em um período que poderia ser razoavelmente esperado para tanto. As Regras de Hamburgo limitam a indenização a duas vezes e meio o valor do frete da carga atrasada, não podendo esse valor exceder o frete total. Todavia, o que mais interessa no caso em análise, é que as Regras disciplinam que o transportador não será responsável por atrasos decorrentes de eventos que não estejam sob sua responsabilidade. No Direito Brasileiro, aplica-se à hipótese de atraso na entrega de mercadorias o regime geral de responsabilidade civil por danos. O Código de Processo Civil de 1939 previa, em seu art. 756, o prazo de 15 dias para que o consignatário da carta apresentasse eventual "reclamação por motivo de atraso", mas, no entanto, não trazia uma definição do que seria considerado "atraso" e a regra tampouco foi acolhida pelos Códigos Processuais posteriores. A lei civil, por sua vez, disciplina, no art. 733, § 1° que "o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso". Tal previsão ainda deixa margem para interpretação sobre o que seria considerado um excesso de tempo capaz de configurar um atraso, não obstante trazer o critério da comparação com o percurso realizado. Sob a ótica contratual, o prazo de cumprimento de uma obrigação e as penalidades contratuais em caso de atraso podem ser inseridos nas cláusulas do contrato e regulados conforme a vontade das partes, desde que a redação da cláusula não seja abusiva ou contrária à ordem pública. Entretanto, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam certeza ou exatidão. Por vezes, há inclusive a inserção de cláusulas dentro das condições gerais do conhecimento de transporte prevendo expressamente que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar as mercadorias em data determinada. Tal imprecisão, conhecida de antemão pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não permite uma apuração categórica sobre o termo "a quo" de eventual atraso. Tal questão, inclusive, já foi palco de exame pelos nossos tribunais: (...) Da análise dos autos constata-se que inexiste qualquer prova de ter a primeira ré se comprometido junto à autora a entregar o bem transportado exatamente no dia 16/4/04, contrariando, assim, a narrativa constante da exordial. (...) Sabe-se, todavia, que previsão não significa certeza, exatidão, não sendo apta a gerar pretensão. (...). De outra maneira, o contrato de conhecimento celebrado entre as partes contratantes (...), não estipula datas de chegada da mercadoria adquirida pela parte autora, ao contrário, dispõe na cláusula 13 que "A transportadora não garante as datas de chegada. A transportadora não se responsabiliza pelo atraso..." Nestas condições, não restou evidenciado ter a parte ré agido de má-fé ou mesmo descumprido o quanto se obrigou mediante ajuste. (...) apenas forneceu à contratante/autora uma data provável de execução total do contrato. De outro modo, a data prevista de entrega do bem foi frustrada por razões alheias à vontade da empresa acionada, conforme restou demonstrada através da prova carreada aos autos (...)  (TJ/BA, proc. 644289-8/2005, juíza Maria De Fátima Silva Carvalho, 2ª vara Cível, j. 30/9/08) E, tirando o foco do contrato de transporte, o julgado abaixo, proferido pelo E. TJ/SP, serve como um alerta para que tais circunstâncias sejam devidamente tratadas na seara do contrato de compra e venda internacional de mercadorias pactuado entre o exportador/embarcador e o importador/consignatário, no âmbito da relação comercial entre os mesmos, especialmente em casos nos quais existe a necessidade de que a carga chegue ao destino a tempo de uma determinada ocasião. (...) TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO (...) O transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde às condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada. As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas à alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: "Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso". Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota. A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (...), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal. (...) E, uma vez que "o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo", o "risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega." Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas (...). (TJ/SP, apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, des. Alfredo Attié, 26ª câm. de Direito Privado, j. 23/11/17) Vale lembrar que a atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada 'aventura marítima'. Sob essa ótica e considerando-se que em nosso ordenamento jurídico, o atraso seria a extrapolação de um prazo expressamente acordado - e já se viu não ser a prática nos contratos de transporte marítimo de mercadorias a definição de prazos fixos para entrega - ou de um prazo razoável, considerando-se o percurso realizado, será necessário apurar concretamente, caso a caso, transporte a transporte, se houve efetivamente algum excesso de tempo, fora do que seria razoável estimar, entre o início e o término do transporte realizado, que pudesse ter causado um dano à carga ou ao consignatário, capaz de ocasionar responsabilização do transportador. A esse respeito, a resolução normativa 18-ANTAQ da Agência Nacional de Transportes Aquaviários3 prevê, no seu art. 17, § 1º4, a ocorrência de um atraso quando, na ausência de prazo acordado, a carga não for entregue dentro de um prazo razoavelmente exigível, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. E, para trazer parâmetros mais concretos ao que seria um "prazo razoavelmente exigível", a prática internacional entende que um atraso passa a ser indenizável quando extrapola em mais de 50% o tempo estimado da viagem5. Todavia, nem todo excesso de tempo na jornada marítima acima de tal limite gera, por si só, uma responsabilização por atraso, na medida em que se admite a ocorrência de hipóteses que justifiquem determinado atraso e, consequentemente, servem como excludentes da responsabilidade do transportador. Nesse ponto, novamente a resolução normativa 18-ANTAQ prevê, agora no parágrafo 2º do art. 17, que "o atraso decorrente de caso fortuito ou de força maior não configura descumprimento do critério de pontualidade". Seguindo-se esta linha, eventos da natureza que se enquadrem no conceito de força maior6, fatos do príncipe e até mesmo fatos de terceiro desconexos ao contrato de transporte, que fujam aos limites das cautelas e precauções a que o transportador está obrigado7, podem ser enquadrados no conceito de fortuito externo e, consequentemente, exonerar eventual responsabilidade por atrasos, como no caso a seguir julgado pelo E. TJ/PA: Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia à sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJ/PA, AC: 2004300-24302, relatora: Des Maria Rita Lima Xavier, pub: 27/9/04) Com isso, cumpriria, no caso concreto, analisar não só a existência de dano, como também a causa do atraso. E, no exemplo do incidente no canal de Suez, para as cargas a bordo da embarcação Ever Given, a definição legal de eventuais responsabilidades sobre as cargas transportadas estará atrelada ao desfecho das investigações e a fixação das causas que geraram o incidente, especialmente se houver eventual constatação de força maior. Já para as cargas transportadas nas centenas de outras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal durante os dias que se sucederam, provavelmente, sob a ótica da lei brasileira, seria justificável o atraso ante à circunstância fortuita que viria a causar o acréscimo de mais alguns dias àquela jornada marítima. O cenário, no entanto, seria diferente para os transportes pactuados após a ocorrência do encalhe, pois, em tais casos, a situação já seria previsível e a logística poderia ser reajustada de antemão. Por óbvio, cada caso concreto pode guardar especificidades aqui não vislumbradas, mas situações como estas exigem ponderação de todas as partes envolvidas, além da manutenção de um canal de comunicação, na medida em que, tanto o transportador como os proprietários de cargas podem trocar informações acerca do transcurso da jornada e eventuais ajustes de previsão de chegada do navio ao destino." Como se vê, a temática debatida por ocasião do encalhe do navio Ever Given no Canal do Suez bem se aplica ao tema aqui proposto. Questões decorrentes de atraso, ainda que com maior ou menor intensidade, repercutem e afetam todos os envolvidos na logística do transporte e por vezes ocupam a agenda dos Tribunais brasileiros, para a definição de responsabilidades, razão pela qual esperamos que o presente artigo sirva como fonte de consulta ao tema sob debate. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/ * Coletânea de Artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais Brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira.  1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 http://portal.antaq.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/CARTILHA-ANTAQ2018-vf.pdf 4 Art. 17, § 1º O atraso ocorre quando a carga não for entregue dentro do prazo expressamente acordado entre as partes, ou, na ausência de tal acordo, dentro de um prazo que possa, razoavelmente, ser exigido do transportador marítimo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso. 5 Como afirma John F. Wilson em "WILSON, John F.; "Carrige of Goods by Sea"; Harlow, Inglaterra: Pearson, 2010" 6 RESPONSABILIDADE CIVIL - Transporte marítimo - Regressiva de seguradora sub-rogada - Perda de carga em razão de caso fortuito (furacão) - Incidência dos arts. 102 do Código Comercial e 1.058 do Código Civil, excluindo a responsabilidade do transportador - Improcedência da ação em 1º grau - Apelação não provida. "(...) O caso fortuito restou devidamente comprovado, presentes os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade. O primeiro conceituado como o acontecimento que impossibilita cumprimento da obrigação e, o segundo, como a inexistência de meios para evitar ou impedir os efeitos do evento extraordinário. (...) A previsibilidade, a que se apegam os apelantes, era dispensável, desde que "se surgiu como força indomável e inarredável, e obstou o cumprimento da obrigação, o devedor não responde pelo prejuízo (...)". (TJ/SP, apelação 604283-7, relator des. Jorge Farah, 1º Tribunal de Alçada Civil, j. 31/7/93). 7 O C. STJ já reconheceu que fato de terceiro e as circunstâncias estranhas que não guardam conexidade com o transporte em si podem ser equiparáveis a fortuito externo apto a excluir responsabilidades, conforme EREsp 1.431.606; REsp: 38891 (relator: ministro Claudio Santos, pub. 28/3/94); AgRg no REsp: 1285015 (relator: ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 18/6/13) e; REsp: 70393 (relator: ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10/3/97).